Marcelo Nunes Apolinário
marcelo_apolinario@hotmail.com
A produção normativa de tipos penais assume nos dias atuais um caráter sem
precedentes, não apenas nos países anglo-saxônicos, que por incomensuráveis
razões de ordem política criminal, utilizam já algum tempo o Direito Penal para
resolução de inúmeros problemas sociais , mas também nos países de cultura
jurídica romano-germânico, incluindo-se aqueles que tradicionalmente são
conhecidos por utilizarem mecanismos punitivos mínimos em seus ordenamentos
penais. No entanto, esse fenômeno da expansão punitiva é notado em decorrência
dos diversos contornos da sociedade global de nossos dias.
Com o avanço tecnológico, do sistema produtivo e das comunicações, associados à grande densidade demográfica e considerável expectativa de vida jamais atingida na história da humanidade, as relações intersubjetivas estreitam-se, potencializando as reais possibilidades de graves colisões, resultado de uma sociedade de feições massificadas, considerada de risco. A complexidade do nosso tempo incrementa por um lado, o isolamento humano e por outro ostenta sua maior fragilidade e dependência do coletivo.
O consumo massivo de produtos eventualmente perigosos, o risco cotidiano de
vitimização envolvendo um número indeterminado de pessoas em acidentes de
transporte - dos mais variados -, em acidentes ambientais, o pânico social
derivado pela atuação do crime organizado, o terrorismo internacional, o tráfico
de drogas, a debilidade do Estado em resolver seus problemas por outras
instâncias, são circunstâncias atrativas dos articulados e velozes meios de
comunicação que penetram as raias cognitivas dos cidadãos de nosso tempo.
Assim, como forma de atender prontamente os reclames imediatos da opinião pública, legisladores e aplicadores do ordenamento jurídico, optam em dar uma resposta mais contundente e repressiva aos conflitos que surgiram ou possam surgir.
Dessa forma, o Direito Penal é trazido à tona para que o Estado possa demonstrar com rigidez, uma imediata e eficaz resposta, atendendo-se, portanto, ao anseio social. O trajeto escolhido como resultado dessa pressão social é o de produção de novos tipos penais , o agravamento das penas dos já existentes ou a supressão de algumas garantias fundamentais no âmbito do processo penal e da execução da pena.
Isto significa que a complexidade da sociedade considerada do risco e do “espetáculo” tem encaminhado o Direito Penal a um caminho obscuro, desconhecido que tem obrigado os investigadores das mais diversas áreas das ciências humanas à busca de novos modelos de sistematização do paradigma do positivismo penal. Dessa forma, grande parte da doutrina prega a expansão do Direito Penal por intermédio do enrijecimento das conseqüências jurídicas cominadas nos tipos, da criminalização de condutas que, todavia já são “incriminadas” por outros ramos do ordenamento, além da criminalização de condutas que, se não chegam a atingir um determinado bem jurídico, o põem em perigo.
Essa tendência atual deveria ser neutralizada pela observância dos pressupostos modernos atinentes a mínima intervenção, segundo o qual o Direito Penal deve mostrar-se sempre como ultima ratio, intervindo nas relações sociais apenas em última instância no sentido de que o Direito punitivo aja efetivamente na proteção de bens jurídicos relevantes, renunciando, dessa forma a uma intervenção para a proteção de circunstâncias socialmente irrelevantes, representativas de uma criminalidade bagatelar, em que a ofensa aos bens tutelados se faz de forma pouco lesiva.
A postura repressiva exacerbada abusa do simbolismo do direito penal, aumentando ainda mais a capacidade intervencionista intimidadora, chamada prevenção geral. Criam-se, dessa forma, tipos de perigo abstrato , culposos , abertos e normas penais em branco .
Todavia, a solução adotada é de pronto desmascarada, pois a ineficácia dessas novas regras demonstra-se na incapacidade de redução dos índices de criminalidade. Assim, o sistema penal deslegitima-se perante a sociedade, aumentando-se ainda mais a sensação social de insegurança.
Com esta exorbitante orientação das conseqüências pelo direito penal moderno, esse instrumento de controle social passou também, a ser um mecanismo de pedagogia social, com o objetivo de sensibilizar a comunidade acerca de determinados assuntos até então tutelados fora do âmbito do direito punitivo.
Dessa forma, o direito penal passa a ser considerado como um valor e um fim em si mesmo, o que leva a sua prática como meio para educação. É justamente o que vem ocorrendo com os delitos ambientais, por exemplo. Contudo, o direito penal não deve ser utilizado apenas para atender exclusivamente a finalidade pedagógica com o fim próprio de prevenção geral, dado que como já se afirmou, por ser o ramo do direito que estabelece as sanções mais graves, deve ser a ultima ratio, e não a única. Ademais, pelo seu caráter fragmentário e subsidiário, deveria primeiro, serem esgotadas todas as demais formas para o alcance do fim de educação. Considerar, portanto, que o direito penal está sendo utilizado apenas com a finalidade pedagógica é totalmente antagônico ao fundamento de proteção a bens jurídicos, bem como uma real ofensa ao principio de intervenção mínima, já que o sistema penal atual é acometido por gradual perda de legitimidade, estruturando-se a partir de um conceito funcionalista-eficientista que delega à criminalização de (certas) condutas e à pena uma forma grotesca de processo pedagógico.
De tudo isso, é possível sintetizar que o direito penal se converteu nos últimos anos em mais um instrumento político de direção social que um mecanismo de proteção jurídica subsidiária de outros segmentos do próprio ordenamento jurídico.
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