Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


TRANSFORMAÇÕES NO ESPECTRO IDEOLÓGICO LATINO-AMERICANO: COMPARAÇÃO DOS SIGNIFICADOS DE ESQUERDA NAS PROPOSTAS ELEITORAIS DO CHILE E URUGUAI

Autores e infomación del artículo

Manuela de Castro C. Netto*

Lucas Araújo Monte**

Universidade de Brasília

E-mail: manuela.costanetto@gmail.com


RESUMO
O presente estudo se propôs a analisar as transformações nos significados das ideologias políticas de mandatos democráticos do Chile e do Uruguai. A investigação foi feita comparando programas de governo apresentados pelos candidatos chilenos Patricio Aylwin, candidato do Concertación de Partidos por la Democracia, em 1989, e Michelle Bachelet, candidata do Partido Socialista, em 2013, e do uruguaio Tabaré Vázquez, candidato do Frente Amplio nas eleições de 2000 e 2005, realizando uma análise comparativa e diacrônica entre os significados ideológicos de esquerda presentes nos programas. O trabalho concluiu que os representantes das esquerdas chilena e uruguaia ressignificaram o seu discurso em direção à direita para conseguir lograr êxito nas respectivas eleições.
Palavras-chave: ideologia, hegemonia, esquerda, política chilena, política uruguaia.

RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo analizar las transformaciones en los significados de las ideologías políticas de los mandatos democráticos en Chile y Uruguay. La investigación se realizó comparando los programas guberidntales presentados por los candidatos chilenos Patricio Aylwin, candidato de la Concertación de Partidos por la Democracia, en 1989, y Michelle Bachelet, candidata del Partido Socialista, en 2013, y del uruguayo Tabaré Vázquez, candidato del Frente Amplio en las elecciones de 2000 y 2005, realizando un análisis comparativo y diacrónico entre los significados ideológicos presentes en los programas. El trabajo concluyó que los representantes de la izquierda chilena y uruguaya replantearon su discurso hacia la derecha para lograr el éxito en las elecciones respectivas.
Palabras clave: ideología, hegemonía, izquierda, política chilena, política uruguaya.

ABSTRACT
This paper aimed to analyze the changes in the meanings of the political ideologies of democratic mandates in Chile and Uruguay. The investigation was carried out by comparing government programs presented by Chilean candidates Patricio Aylwin, candidate of the Concertación de Partidos por la Democracia in 1989, and Michelle Bachelet, candidate of the Socialist Party in 2013, and uruguayan Tabaré Vázquez, candidate of the Frente Amplio in the 2000 and 2005 elections, carrying out a comparative and diachronic analysis between the left ideological meanings present in the programs. The work concluded that the representatives of the Chilean and Uruguayan left reframed their speech towards the right to achieve success in the respective elections.
Keywords: ideology, hegemony, left wing, Chilean politics, Uruguayan politics.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Manuela de Castro C. Netto y Lucas Araújo Monte (2020): “Transformações no espectro ideológico latino-americano: comparação dos significados de esquerda nas propostas eleitorais do Chile e Uruguai”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (mayo 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2020/05/transformacoes-ideologico-latinoamericano.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe2005transformacoes-ideologico-latinoamericano


1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa investigou as ressignificações ideológicas da esquerda chilena e uruguaia, em momentos históricos diferentes1 . Apesar da relevância desse debate na atualidade, os estudos apresentam, ao menos, duas correntes distintas para compreender o fenômeno. Se por um lado, as ressignificações podem representar a abertura do sistema político a novas configurações ideológicas, que podem ocorrer devido às mudanças nos valores sociais (INGLEHART; WELZEL, 2009), demonstrando a dinâmica presente nos conteúdos do espectro político-ideológico. Numa outra perspectiva, o fenômeno também pode ser interpretado a partir de restrições ao espectro político, revelando limites às contestações nas democracias (DAHL, 2005).
O período que segue dos anos 60, marcado pelo início das ditaduras civil-militares na América do Sul, à primeira década dos anos 2000 é fundamental para entender o fenômeno de ressignificação no espectro ideológico. Com o fim do ciclo das ditaduras, em meados da década de 1980, segue uma etapa de redemocratização e de ascensão de governos identificados com a direita, sobretudo nos anos 90. A partir dos anos 2000, como resposta às políticas de caráter neoliberal, as quais estagnaram a economia dos países latino-americanos, alterando “tanto a ordem social interna dos países, como a autonomia estatal ante o exterior” (IBARRA, 2011, p. 240), bem como pelo aumento e concentração da desigualdade de renda e social – sem que houvesse qualquer tipo de discussão para os problemas estruturais por parte dos governos neoliberais (COUTINHO, 2006) –, houve a ascensão e o fortalecimento de governos situados à esquerda.
Os significados de esquerda e o teor ideológico do conteúdo das propostas foram ampliados por estes fenômenos político-sociais e econômicos, trazendo reflexões sobre os limites para a possibilidade de consolidação de projetos e questioidntos sobre a correspondência – ou até mesmo a falta desta – entre os conteúdos políticos e as diretrizes econômicas das propostas.
Em um contexto no qual o avanço do neoliberalismo na América Latina é um fator que, cada vez mais, influencia a governabilidade e as diretrizes políticas e econômicas dos países, esta análise pode contribuir para compreender os significados ideológicos como não permanentes e estabelecer uma genealogia de suas aplicações em diversos momentos históricos, além de entender “diferentes formas democráticas de enfrentar os problemas da liberalização econômica” (COUTINHO, 2006, p. 118).
Neste sentido, foram analisados quatro programas de governo. No caso do Chile, foram utilizados para análise o texto programático de Patricio Aylwin, candidato do Concertación de Partidos por la Democracia em 1989, nas primeiras eleições diretas após o plebiscito que deu fim à ditadura civil-militar, e de Michelle Bachelet, do Partido Socialista Chileno, em 2013, sucedendo o governo neoliberal de Sebastián Piñera. No caso uruguaio, a análise se deu a partir dos programas de Tabaré Vázquez, do Frente Amplio, em dois momentos diferentes: em 1999, quando se candidatou à presidência como representante da esquerda, tendo ficado em segundo lugar; e em 2004, quando se tornou presidente da República.
A abordagem comparativa dos casos, em momentos distintos no tempo, lida com as dificuldades características da metodologia utilizada, a análise transversal diacrônica. A principal fonte para a análise são os programas de governo e a literatura. O trabalho delimita-se a analisar os programas entre si. Ainda que não haja espaço para dissertar sobre todas as particularidades referentes a cada caso, a análise se utiliza de características textuais relevantes para interpretar os dados, empregando-as em seu contexto.

2. CONCEITO E TRANSFORMAÇÕES DAS IDEOLOGIAS DE ESQUERDA

Segundo Miguel Serna Forcheri (2004), sobretudo durante o período de redemocratização das nações latino-americanas, o termo esquerda teve um significado polissêmico, podendo se referir “a posições relativas de cada ator dentro de um sistema político”, e a uma “dimensão ideológica, referida aos valores e crenças de doutrinas políticas, dividida entre correntes favoráveis ao igualitarismo e à mudança social” (FORCHERI, 2004, p. 16). Esta dimensão ideológica da esquerda se assemelha com a definição de esquerda de Bobbio (2001), na qual atribui o termo às ações de um governo em torno da igualdade. Ou seja, direita estaria mais próxima de um pensamento de que as desigualdades são naturais, e, portanto, não devem ser alvo da intervenção estatal. Por outro lado, a esquerda, é mais alinhada a ideia de que a maior parte das clivagens são fruto de desigualdades sociais e, portanto, passíveis da ação política.
Assim, as ideologias de direita e esquerda, adaptadas à democracia liberal, limitaram-se a classificar-se entre mais ou menos desiguais (SARTORI, 1997). Além das condições macropolíticas e macroeconômicas, os interesses eleitorais de cada partido também os influenciam ao operar seus significados ideológicos. A partir da perspectiva do estudo das Teorias Políticas das Ideologias, como um subcampo da Teoria Política, é possível conceituar sobre as especificidades do pensamento político, demonstrado através de propostas e visões de mundo apresentadas em programas de governo (FINLAYSON, 2012). Segundo Freeden (2013), os conceitos políticos carregam uma gama de significados, mas nunca todos eles simultaneamente. Infere-se daí que tais conceitos estão em constante transformação: “através do tempo, a ideologia se adapta e se desenvolve em relação aos eventos” (FINLAYSON, 2012, p. 5, tradução nossa).
Finlayson entende que as “ideologias consistem em de-contestações e são caracterizadas pela gama de conceitos que as compõem, e quais os significados atribuídos a elas” (2012, p. 5, tradução nossa). A de-contestação é parte da dinâmica de ressignificação e envolve a adaptação de elementos ideológicos ao que pode ser considerado mais ou menos tolerável aos indivíduos. No mesmo sentido, Freeden (2013) vislumbra que as ideologias, por serem portadoras de uma infinidade de significados, podem indicar algo mais do que está aparentemente representando ou significando. No entanto, Freeden (2013) ressalta que o padrão recorrente dos conteúdos das ideologias é a regra. Portanto, a impermanência dos significados é o que permite o estudo das transformações no espectro político-ideológico.
Tendo à luz a abordagem de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1987), as transformações ocorridas dentro dos partidos do Chile e do Uruguai serão analisadas tendo como metodologia a Análise de Discurso. Os autores focam na maneira como atores políticos ocupam, ou dão nome, aos significados. Segundo Finlayson (2012), os teóricos debatem que a Significação não é ontologicamente fixa, e que qualquer fixação é resultado de ações sócio-históricas, e que estas são forma e expressão do poder social. A criação de consenso em torno de grandes temas, é, portanto, nos termos de Gramsci (1984), um exercício da hegemonia. Para este autor,
os setores dominantes da sociedade construíram os valores e as crenças que permitiriam e justificariam a sua permanência enquanto grupo dominante. Assim, além de utilizar outros meios de coerção, como o físico, por exemplo, a fração dominante da sociedade exerceria a dominação por meio da construção do consenso ideológico. (NEGRI, 2008, p. 15)

3. O AVANÇO NEOLIBERAL E SUA INFLUÊNCIA NA NOVA ESQUERDA CHILENA E URUGUAIA

            Durante a Guerra Fria, as tentativas de estabelecer novos sistemas político-econômicos que recusassem o modelo econômico neoliberal eram constantes. A proposta que mais se destacou na América Latina, por propor redistribuição econômica e reformas estruturais, foi a via chilena ao socialismo, de Salvador Allende, presidente eleito do Chile em 1970. Contudo, este projeto foi interrompido por um golpe militar com o apoio da direita em 1973. Naquele momento se tornou clara a identificação das ideologias políticas com a esquerda, direita e centro no Chile (e no mundo Ocidental), marcado pela divisão da política em três terços (MAINWARING; SCULLY, 1997).
Os programas de esquerda sofreram um processo de não-consolidação devido às mudanças políticas globais, à consolidação da hegemonia neoliberal, à globalização e às relações de dominação entre países centrais e a periferia (IBARRA, 2011) exercidas através da política internacional e da economia. “A análise histórica mostra que, na democracia latino-americana, nunca foi possível o desenvolvimento completo de um programa de governo esquerda” (NEGRI, 2008, p. 1). Para financiar o golpe de Estado no Chile, os Estados Unidos implementaram um bloqueio econômico, cortando aproximadamente 40 milhões de dólares em ajuda e crédito (KORNBLUH, 2004) e, “segundo os documentos da CIA, a entidade passou a financiar a oposição e atividades terroristas no solo chileno”. (NEGRI, 2008, p. 6).
Teorias foram criadas, construindo e fortalecendo, através de propaganda e difusão internacional, a ideia de que, política e ideologicamente, não há alternativas para os princípios neoliberais (ANDERSON, 1995). Um exemplo pode ser Fukuyama (1992), que, em O Fim da História e o Último Homem, preconizava o fim das disputas ideológicas com a vitória da democracia liberal, representativa e capitalista. O autor compreende a história como o campo de batalha das ideologias, estas entendidas como grandes projetos de civilização que finalmente encontraram uma síntese dialética no sentido hegeliano. Isso, de uma forma ou de outra, enfraquecia possíveis debates sobre novos caminhos políticos e propostas econômicas. “A crença no fim da história [...] também compôs esse acervo ideológico em que se encaixavam perfeitamente as reformas direcionadas ao mercado, posteriormente batizadas como neoliberalismo” (COUTINHO, 2006, p. 112).
Com o fim do socialismo soviético e a difusão do capitalismo como projeto econômico global, e depois de crises advindas da implementação do neoliberalismo na América Latina, os pólos ideológicos mais radicais perderam sua centralidade na definição do posicioidnto à esquerda ou à direita. O processo de realocação no espectro político-ideológico está associado, para além dos contextos locais, ao cerceamento de tentativas de transformações estruturais que visavam a ruptura com a lógica e a manutenção do livre mercado (NEGRI, 2008, p. 17).
Ao final dos anos 90 e início dos anos 2000, a América Latina enfrentou ondas de privatizações, choques de abertura comercial, desregulamentação (COUTINHO, 2006), além do desmonte de serviços públicos e incremento à competitividade, por presidentes como Jorge Battle e Luis Alberto Lacalle, no Uruguai e Eduardo Frei Ruiz-Tagle e Sebastian Piñera, no Chile. Essas medidas causaram crises econômicas, agravando os problemas sociais enfrentados na região, como o desemprego e a concentração de renda. Havia a expectativa de que o “investimento estrangeiro erradicaria a pobreza crônica do subdesenvolvimento” (IBARRA, 2011, p. 239). “O que se viu na prática, contudo, foi a manutenção de economias primário-exportadoras deficitárias e o desmantelamento da indústria local” (COUTINHO, 2006, p. 114).
A Hegemonia Burguesa (LACLAU; MOUFFE, 1987; PETRAS, 2001) restringiu significados que compõem as oposições ideológicas na democracia em torno de três principais eixos: o econômico (Estado mais ou menos redistributivista), o político (Democracia mais ou menos participativa) e o sociocultural (maior ou menor inclusão de demandas econômicas ou identitárias de minorias sociais), o que colaborou para o enfraquecimento de versões mais ortodoxas da esquerda e ampliou versões radicais ou participativas da democracia. Isso não fez desaparecer a esquerda da disputa política, apenas a atribuiu novas características e dinâmicas. “As características das propostas econômicas desses governos, contudo, possuem mais semelhanças com a direita do que com as esquerdas tradicionais.” (NEGRI, 2008, p. 1).  
Abriu-se espaço, então, para o consenso entre partes e novos arranjos possíveis entre ideologias até então contraditórias (GIDDENS, 1996), e para convergências entre esquerda e a direita nos programas de governo atuais não apenas no reconhecimento de valores democráticos (FORCHERI, 2004), mas essencialmente no desenvolvimento do capitalismo. Coutinho, em seu ensaio Movimentos de Mudança Política na América do Sul Contemporânea, discorre sobre como a liberalização econômica “respondeu insatisfatoriamente à democratização política” (2006, p. 121). Isso pode ser um caminho para entender o motivo pelo qual a esquerda que ascendeu ao poder depois do avanço neoliberal preza tanto pela democracia. Desta forma, as diferentes crises advindas da abertura dos frágeis mercados nacionais da região à livre concorrência internacional contribuíram para selar a adesão à chamada nova esquerda e ao nacionalismo, que emergiram como alternativas possíveis ao neoliberalismo (COUTINHO, 2006).
As crises neoliberais ocorreram de maneiras distintas em cada país, por diferentes razões, em diferentes proporções, e causaram diferentes mudanças na esquerda dos países estudados. Logo, o movimento de recusa ao projeto hegemônico não poderia ser homogêneo na América Latina. Por isso, é imprescindível analisar os condicionantes e as especificidades de cada caso:
Esta onda nacionalista não é homogênea e nem mesmo chega a configurar-se como um movimento coeso e muito bem definido. Em essência, os anos 2000 marcaram o fim do pensamento único, da hegemonia neoliberal, e o início de um período de maior pluralidade e de desdobramentos futuros, em que se encontram diferentes formas democráticas de enfrentar os problemas da liberalização econômica (COUTINHO, 2006, p. 118).

4. DESCRIÇÃO DOS CASOS

            Para compreender os casos chileno e uruguaio, e como cada um se transformou ao seu modo, foram pesquisados nos textos programáticos categorias analíticas e questões contextualizadas a partir da literatura e dos documentos oficiais, que representam temas, problemáticas, situações enfrentadas e perspectivas relacionadas à esquerda na América Latina, a partir das perguntas: Qual a relação percebida entre o Estado e a economia capitalista? Qual a atuação do setor privado nas questões sociais? Qual a função do Estado frente às questões sociais? O neoliberalismo causa ou contribui para a solução dos problemas sociais? Qual a atuação do Estado frente à economia?, e das categorias de análise: mercado, socialismo, revolução, capitalismo, esquerda, neoliberalismo, imperialismo, empresas, setor privado e regulação. Todas foram utilizadas para o mapeamento de dados e para a compreensão das situações, mas apenas os trechos relevantes à cada caso serão apresentados mais detalhadamente.

4.1. O caso chileno
A aliança política Concertación de Partidos por la Democracia surgiu como uma alternativa ao regime autoritário do general Augusto Pinochet, que, por 17 anos, cercou violentamente o campo de ações de cunho social e a atuação política da esquerda, além de impor medidas neoliberais como a abertura comercial, privatizações em massa em setores como o bancário, previdenciário, industrial, de telecomunicação, e a redução da circulação de moeda para combater a inflação. Estas medidas incentivaram a concentração de renda no país, e a inflação só diminuiu significativamente com a retirada das tarifas que protegiam o mercado interno chileno. Isso trouxe consequências negativas para o desenvolvimento industrial chileno, já que entre 1970 e 1981 a participação no PIB da produção industrial (interna) reduziu em 5% (FFRENCH-DAVIS, 2003).
Em 1989, com a chegada no poder de uma coalizão política que agregava partidos de centro-esquerda e esquerda, foi exposto no respectivo programa de governo a intenção de retomar o desenvolvimento das indústrias internas, já que durante a ditadura neoliberal a economia se tornou mais dependente (NEGRI, 2008, p. 7). Partindo de uma “concepción de un Estado activo que configura una economía mixta que en sector público y sector privado se complementan adecuadamente” (AYLWIN, 1989, p. 13), o Estado exercia o papel de “regular los conflictos de intereses a través de instituciones democráticas fuertes (AYLWIN, 1989, p. 11). Huneeus (2003) traz à luz a intenção do partido de conciliação entre as classes, a fim de manter a estabilidade política do país:
O ministro da Fazenda, Alejandro Foxley (PDC) estava particularmente preocupado em conseguir a confiança do empresariado, objetivo difícil de alcançar devido à alta politização deste setor, que incluía a admiração pelo general Pinochet, ainda comandante chefe do Exército (HUNEEUS, 2003, p. 127, tradução nossa).
Tomás Moulian aponta, em seu livro Chile Actual: anatomía de un mito, que os poderes agiam sob a ameaça de ação direta das forças armadas, a qual exercia seu poder na função de “determinar cuando la existencia de conflictos o de una crisis harían exigible su participación como protectoras de la «esencia» del sistema” (MOULIAN, 1998, p. 50), e isso se reflete nas medidas econômicas conciliadoras do governo de Aylwin, que se restringia à “funciones de orientación, previsión, identificación de oportunidades, usando preferentemente instrumentos indirectos e incentivos en la regulación de la economía” (AYLWIN, 1989, p. 13). Havia ministros socialistas na equipe de Aylwin, e ter a confiança do empresariado era essencial para a governabilidade.
Isso se reflete no texto programático, especialmente na forma cuidadosa em que o setor privado é tratado, bem como o espaço que o Estado tem na política econômica adotada: não há menções aos termos neoliberalismo, capitalismo, socialismo ou imperialismo, e se faz menção ao reconhecimento das empresas privadas — pequenas, médias e grandes — como agentes produtivos fundamentais (AYLWIN, 1989, p. 12). Contudo, está presente a tentativa de diminuir os impactos econômico-sociais que as privatizações em massa tiveram, sobretudo na concentração de renda. Para isso, além de propor que as empresas monopólicas tivessem os preços regulados pelo Estado (AYLWIN, 1989, p. 29), Aylwin coloca em seu programa que a solução é a geração de mais empregos, demonstrando enxergar a intensificação da economia capitalista, submetida às ações reguladoras e corretivas do Estado, como um meio para a superação do principal problema social do país à época. Assim, é traçada uma equivalência entre direitos sociais e humanos com os direitos econômicos. Nota-se uma diferença na solução encontrada para o combate à pobreza e desigualdade antes e depois da ditadura de Pinochet. Salvador Allende propôs a “organização dos tipos de propriedade, a chilenização do cobre, a estatização dos bancos, e a unificação dos serviços de saúde” (NEGRI, 2008, p. 7). Por outro lado, o plano de governo da Concertación menciona que:
Nos parece de especial importancia que la promoción de los derechos humanos debe extenderse a los derechos económicos y sociales, incluida la consagración solemne de la igualdad de oportunidades y el derecho a la satisfacción de las necesidades básicas (AYLWIN, 1989, p. 12).
Percebe-se que as pautas que se referem à igualdade social saem do âmbito de reformas econômicas e passam para o de direitos sociais e econômicos, colocando o setor privado como fundamental para o dinamismo da economia, da cultura e do desenvolvimento social do país.
Da mesma forma que o caso anterior, o programa de Michelle Bachelet de 2013 não conta com menções aos termos socialismo, capitalismo, imperialismo e neoliberalismo. Contudo, há 43 menções à mercado no texto e 79 à empresas.  Há uma referência à nacionalização, 13 à regulação e seis ao setor privado. Na parte do texto destinada a tratar sobre o trabalho (BACHELET, 2014, p. 92), a (então) candidata se propõe a promover a autonomia de trabalhadores e empregadores para negociar em igualdade de condições, e compatibilizar a produtividade e a competitividade com a dignificação do trabalho, trazendo o sindicalismo como meio para alcançar este objetivo, além de propor uma justa distribuição de riquezas. É possível inferir daí que o papel do Estado perante o capitalismo é de incentivo e regulação da economia, e, em paralelo a isso, criar empregos e proteger os direitos trabalhistas
É possível apontar também como expressão das restrições no espectro ideológico da esquerda na democracia, dentre outros fatores políticos internos e globais, a ideia de que o desenvolvimento social e ambiental não é apenas responsabilidade do Estado, como também de empresas e corporações multinacionais. Se analisada a história chilena, depois de Allende ser deposto pelos militares não houve nenhum outro candidato com propostas tão à esquerda quanto a Via Chilena al Socialismo. Devido à hegemonia do fundamento liberal, “apenas programas de governo que compartilhem de certas premissas liberais são considerados viáveis e podem ser desenvolvidos”. Este fenômeno é o da “não-consolidação de programas de governo de esquerda”, que pode ocorrer ou através de um golpe de Estado, ou através de deslocamentos ideológicos (NEGRI, 2008, p. 4).
Outra característica da nova esquerda é o identitarismo, o qual é facilmente adaptável a medidas econômicas neoliberais e não faz com que um governo seja necessariamente de esquerda. Bachelet em seu programa enfatiza a importância da participação política e econômica das mulheres. Há 52 menções ao termo mulheres no texto programático. O trecho a seguir reflete a relação entre sociedade e mercado proposta pela presidenta:
apoyar el desarrollo y fortalecimiento de las cooperativas, del comercio justo, las empresas que solucionan problemas sociales y ambientales desde los productos y servicios que comercializan, el turismo comunitario y otras formas de emprendimiento asociativos o que promueven la inclusión social. (BACHELET, 2013, p. 81).
Os valores pós-materialistas (INGLEHART; WELZEL, 2009), atualmente, são importantes pautas políticas para a nova esquerda, a qual tende a “subordinar lutas sociais às lutas culturais, e a política de redistribuição [econômica] à política do reconhecimento [identitário]” (FRASER, 2007, p. 297). Isso é visível no programa de Bachelet, a qual, segundo Petras (2006), não representa ruptura com a política econômica neoliberal do Chile, e sim a continuidade do governo de Ricardo Lagos, que era do Partido por la Democracia (PPD) ao se eleger e identificado, pelo autor, com o projeto neoliberal.

4.2. O caso uruguaio
            Tabaré Ramón Rosas Vázquez é integrante da coalizão uruguaia Frente Amplio (FA), que inclui socialistas, comunistas, sociais-democratas, democratas cristãos, Tupamaros – antigo grupo de guerrilha no qual alguns se tornaram senadores e ministros do FA (PETRAS, 2006) – e liberal-democratas. A coalizão foi criada em 1971, dois anos antes de ser instaurada no país a ditadura cívico-militar, que criminalizou a aliança até o fim deste período, em 1984.
No programa de governo de 2000, ano em que o candidato perdeu as eleições para o neoliberal Jorge Battle – que propunha, por exemplo, a privatização de empresas de tratamento de distribuição de água potável – foram identificadas 25 menções a empresas. Nelas o candidato rejeita as privatizações das empresas estatais, e menciona o fortalecimento destas como pilares do desenvolvimento e soberania para o país (VÁZQUEZ, 2000, p. 25). Segundo Coutinho (2006, p. 119), as tendências nacionalistas da nova esquerda são uma expressão da recusa ao projeto neoliberal, “buscando, na medida do possível, reconstruir a capacidade de coordenação e investimento do Estado Nacional, debilitado por décadas de crise fiscal e reformas pró-mercado”. Há três menções ao termo imperialismo no programa, em que critica o neoliberalismo imposto pelo imperialismo, tratando-o como a fonte da concentração de riqueza (VÁZQUEZ, 2000, p. 2). Neste texto, o Estado tem papel fundamental de promover e criar condições para o desenvolvimento nacional, de nivelar as iniquidades sociais e  de “mantener una presencia activa y directa en áreas estratégicas de la economía como la energía y las comunicaciones, los servicios esenciales como por ejemplo: el agua potable” (VÁZQUEZ, 2000, p. 25).
No documento El gobierno del cambio: la transición responsable, de 2004, na sessão encuentro con empresarios o candidato se propõe a “generar un ambiente propicio para la actividad empresarial que beneficie al empresariado pero que también beneficie a la sociedad.”, e em seguida enfatiza a previsibilidade do valor da moeda como forma de avançar na desdolarização da economia. Essa visão é diferente da apresentada no Programa de Governo de 2000. Pois, na versão de 2004 o empresariado ganha protagonismo como dínamo do desenvolvimento do país, enquanto no do ano 2000 há uma indicação clara de que a atividade estatal é o meio para tal objetivo.
O candidato se propõe a promover a “adecuación de la estructura del Estado y la Administración Pública para que éstas sean más funcionales a la estrategia del desarrollo productivo y sostenible” (VÁZQUEZ, 2004, p. 32). Contudo, o setor privado não é colocado como agente da sustentabilidade, mas sim da produtividade, e não há menções ao incentivo à empresas públicas, ficando a cargo do Estado a regulação e supervisão da produtividade.
No programa de governo de 2004, o candidato faz três menções à neoliberalismo: uma delas associa o modelo econômico à “pobreza, inequidad, emigración, desempleo, concentración de la riqueza, desintegración social, anulando las posibilidades del ejercicio pleno de la ciudadanía” (VÁZQUEZ, 2004, p. 1). Contudo, segundo Petras (2006, s/p., tradução nossa), “suas nomeações chave para o Banco Central e o Ministério da Economia – Danilo Astori – , são neoliberais, defensores da restrição do orçamento para gastos sociais, enquanto financia generosamente as elites de agroexportação”. Dentre outras políticas neoliberais adotadas no mandato de 2005, está um acordo firmado com os Estados Unidos “sobre ‘proteção aos investimentos’, que abraçava os princípios mais importantes do livre mercado incluídos no Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA)” (PETRAS, 2006, s.p., tradução nossa). Além disso, o autor denuncia que “o ministro da Agricultura, Mujica, apoia o agronegócio e o investimento estrangeiro na agricultura, dando firmeza à lei de expulsão de ocupantes sem-terra no interior” (PETRAS, 2006, s.p., tradução nossa).
O partido “desde que nasce, en sus documentos fundacionales y en sus propuestas, nunca cultivó un proyecto socialista, su programa y su propuesta, (…) incluso una frase: ‘un programa democrático avanzado’, pero no socialista” (FORCHERI, 2004, p. 182). Tais bases fundacionais podem, inclusive, ter corroborado com a “moderação das propostas de transformação econômica” do partido (FORCHERI, 2004), atuando paralelamente a questões macro-políticas que restringem propostas contrárias à continuidade do sistema capitalista.
Observa-se uma aceitação grande, por parte de Tabaré Vasquez, das medidas neoliberais, as quais incluem o livre mercado e o modelo de desenvolvimento baseado no capitalismo globalizado. Isto é, a cargo das grandes empresas privadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante registrar que as propostas de governo não condizem, necessariamente, com a prática (obviamente, nas hipóteses dos candidatos serem eleitos). Por outro lado, é importante destacar, que os programas de governo mostram como o candidato se apresenta (a partir de um desejo real ou dissimulado) e, sobretudo, denotam as bases ideológicas que constituem tais documentos (LAVER; GARRY, 2000). Como ele se apresenta, o que pode ou deve ser dito, desvela as restrições no espectro ideológico que independem da governabilidade ou das condições reais, pois são ideológicas.
            A comparação entre os programas de governo de Patricio Aylwin (1989) e Michele Bachelet (2013), no Chile, e de Tabaré Vázquez em 2000 e 2005, no Uruguai, permitiu perceber que a restrição dos conteúdos ideológicos na América Latina ocorre de acordo com com as possibilidades de consolidação na democracia liberal, a depender também de circunstâncias locais, do continente ou país em questão, e globais, sob a hegemonia política e econômica dos países do norte global.
As características das propostas econômicas desses governos, em alguns casos, possuem mais semelhanças com a direita do que com as esquerdas tradicionais. Aylwin porque tinha que adaptar suas políticas econômicas ao período pós-ditatorial, o qual abrangia resquícios da tutela militar e impedia a consolidação de um programa que não abarcasse os interesses do setor privado. No Chile, os programas da esquerda seguiram o caminho da conciliação através do tempo como uma adaptação nacional ao neoliberalismo. Bachelet em seus programas, mesmo sem a pressão militar, mas com a pressão imperialista internacional, aderiu a políticas sociais que dão espaço para a cooperação público-privado.
Já no Uruguai, a Frente Amplia demonstrou uma mudança considerável nas suas propostas de 2000 para 2004. Enquanto que o primeiro programa de governo defendia o protagonismo da atuação estatal na economia e no desenvolvimento do país, o segundo, assumiu, em certa medida, os postulados neoliberais, e alçou a iniciativa privada como a responsável pelo desenvolvimento da nação. É certo que a Frente Amplia, embora ressignificada ao longo dos anos, representa a esquerda uruguaia, reunindo propostas de desenvolvimento social, mas sem recusar a ordem hegemônica neoliberal. E é essa a principal justificativa para que tenha se tornado possível a consolidação de seus projetos políticos, sobretudo após a vitória em 2004 com Tabaré Vásquez.
A visão de que cada governante visa manter o equilíbrio interno no país por meio do consenso, nada mais é do que o direcioidnto das suas propostas (e ações políticas) em direção à hegemonia (GRAMSCI, 2002). Portanto, o consenso e os arranjos de interesses entre as classes, os quais se reproduzem, conforme apresentado no presente estudo, na política econômica neoliberal, indicam a direção em que está situado o centro hegemônico, isto é, a(s) própria(s) ideologia(s) dominante(s).
Assim, nos casos chileno e uruguaio, observa-se a lógica neoliberal explicitada nas propostas vencedoras das esquerdas, de modo ressignificá-las, mudando a própria concepção de esquerda na região. Considerando o caráter homogeneizante da hegemonia, resta manifestado nas esquerdas, que ascenderam ao poder nos países estudados, a dificuldade em contornar o neoliberalismo na prática. “Certas lógicas estruturais de reprodutibilidade condicionam e quase obrigam certos governos a passarem por cima de suas crenças ideológicas” (OFFEE, 1991; BLOCK, 1981 apud MOULIAN, 1998, p. 40, tradução nossa). Se há limitações aos conteúdos de esquerda na disputa eleitoral, sobretudo no campo econômico, há, por certo, limites para a própria competição no modelo democrático liberal (MONTE, 2018).

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*Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UNB), Brasil. E-mail: manuela.costanetto@gmail.com.
**Pesquisador do Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (ELA/UNB – Brasil); Doutorando em Ciências Sociais (ELA/UNB); Mestre em Ciências Sociais (UNB/ELA). E-mail: lucas.monte.bsb@gmail.com.
1 O presente artigo se refere aos resultados e discussões realizadas no âmbito do Trabalho Final do Projeto de Iniciação Científica da Universidade de Brasília (PIBIC), pela orientanda Manuela de Castro C. Netto, sob a orientação do Prof.º Dr. Camilo Negri e coorientação do Prof.º Me. Lucas Araújo Monte.

Recibido: 27/04/2020 Aceptado: 27/05/2020 Publicado: Mayo de 2020


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