Mercy Lucero Cepeda *
Marlene Niehues Gasparin **
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Correo: lucecm03@gmail.com
RESUMO: Esta escrita tem por objetivo estabelecer uma reflexão sobre discursos em relação a cidade de Foz do Iguaçu, que faz fronteira com o Paraguai e a Argentina, presentes na música regional “Isso é Foz do Iguaçu”, juntamente com os conceitos relacionados ao poder simbólico cultural e social (GEERTZ, 2008; BOURDIEU, 1989:1996; VIVEROS DE CASTRO, 2002). Mais especificamente, consiste em olhar para as representações das vozes sociais e culturais presentes na canção que são reproduzidas como verdades locais a partir de uma ‘comunidade imaginada’ (ANDERSON, 1993), onde é possível perceber, pela composição do autor, uma visão particular constituída socialmente.
Palavras-chave: Espaço fronteiriço; representação social; imaginário cultural.
RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo establecer una reflexión sobre los discursos con relación a la ciudad de Foz do Iguaçu, que hace frontera con Paraguay y Argentina, presente en la canción regional "Esto es Foz do Iguaçu", junto con los conceptos relacionados con el poder cultural simbólico y social (GEERTZ, 2008; BOURDIEU, 1989: 1996; VIVEROS DE CASTRO, 2002). Más específicamente, consiste en mirar las representaciones de las voces sociales y culturales presentes en la canción que se reproducen como verdades locales de una 'comunidad imaginada' (ANDERSON, 1993), donde es posible percibir, a través de la composición del autor, una visión particular constituida socialmente.
Palabras clave: Espacio fronterizo; representación social; imaginario cultural.
ABSTRACT: This writing aims to establish a reflection on speeches in relation to the city of Foz do Iguaçu, which borders Paraguay and Argentina, present in the regional song “That is Foz do Iguaçu”, along with the concepts related to the symbolic cultural power. and social (GEERTZ, 2008; BOURDIEU, 1989: 1996; VIVEROS DE CASTRO, 2002). More specifically, it consists of looking at the representations of the social and cultural voices present in the song that are reproduced as local truths from an 'imagined community' (ANDERSON, 1993), where it is possible to perceive through the author's composition, a particular view constituted by socially.
Keywords: Border Space; social representation; cultural imaginary.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Mercy Lucero Cepeda y Marlene Niehues Gasparin (2019): “Vozes da fronteira: imaginário cultural e simbólico de comunidade fronteiriça”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (octubre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/10/vozes-fronteira.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1910vozes-fronteira
INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho é refletir sobre as representatividades sociais com relação a cidade de Foz do Iguaçu, presente na letra da canção intitulada “Isso É Foz do Iguaçu”, composta pelo compositor Sergio Copetti 1. A canção traz um desenho da cidade que circula em diferentes meios midiáticos, levando consigo, uma forte representação da população Iguaçuense, na qual retrata a grande mistura de raças, cores, cultura e natureza. A canção se constitui de um discurso fortemente regional e de uma dimensão expressiva de orgulho e paixão. Nela é possível observar que o campo representado é de uma cidade cosmopolita, aberta para diferentes etnias, culturas, raças, etc. fazendo parte de uma realidade harmoniosa, acolhedora e contemplativa.
Entendemos a cultura como uma ação e como processo de transformação social. Para tanto, as tantas formas de manifestação social e artísticas, seja por meio do teatro, da pintura, de artesanatos, de músicas, entre outras, servem como instrumento de promoção cultural. O compositor, ao produzir a canção, parte de sua percepção individual influenciada pelos valores ou imaginários sociais do meio em que se encontra inserido. Faz-se assim, um jogo de percepções e experiências vividas, compartilhadas e legitimadas socialmente por meio de melodias e ritmos que englobam a experiência de um grupo social. Contudo, a música é capaz de representar sensações dos/nos sujeitos, modificando, recriando ou obscurecendo percepções vividas.
Tomamos a canção com o intuito de refletir sobre os valores e imaginários sociais e como as vozes ‘simbólicas’ sociais são estabelecidas dentro de um determinado contexto social, tendo em vista, as relações regionais fronteiriças que regem a partir da legitimação de fronteiras nacionais. O tema relevante presente na canção aborda as questões que retratam uma visão positiva do aspecto cultural regional. Retrata uma simbologia transnacional e uma legitimação cultural. A letra da canção, através do discurso dado pelo compositor, classifica certo valor de privilégio cultural local.
Nas reflexões de Bourdieu (1989), é possível compreender as escolhas e expressões articuladas pelo compositor e como as representações, construídas através das relações sociais, relação de poder, de ideologias etc. se naturalizam, uma vez que o mundo social é uma construção social, dada por uma representação e (re)interpretação.
Considerando as discussões que atravessam diversas maneiras de compreensão das práticas sociais situadas, aqui, como forma de fazer uma reflexão do geral para o local, o trabalho apresenta as seguintes seções: no primeiro momento, apresentamos e refletimos sobre o conceito de sociedade/espaço social; na sequência, refletimos sobre o conceito de nação e de representações cultural e finalizamos com algumas considerações.
COMPREENDENDO O CONTEXTO SOCIAL/REGIONAL
A tríplice fronteira é constituída pelos países: Brasil, Argentina e Paraguai, denominado também, como um espaço trinacional e transnacional, que se conecta com as cidades vizinhas, sendo estas, Puerto Iguaçu (Argentina), Cidade do Leste (Paraguai) e, do lado brasileiro, Foz do Iguaçu. Seu processo social e histórico visou a formação de uma configuração cultural específica. Assim, na cidade de Foz do Iguaçu existe uma grande transitoriedade de pessoas locais, regionais e de outros países como imigrantes árabes, coreanos, japoneses, entre outros, proporcionando contatos interculturais que permitem aproximações formando um ‘hibridismo’ de relações interétnicas, caraterizada por uma fronteira territorial e, ao mesmo tempo, simbólica e cultural.
O território fronteiriço foi constituído com mais intensidade a partir da década de 60 e 70, devido a diferentes fatores, principalmente ao fator econômico, como o surgimento das grandes construções de obras na região como a Ponte da Amizade e Usina hidrelétrica de Itaipu. Esses fatores fizeram com que abrissem, bruscamente, a circulação de comércios na região. Este sistema de grandes avanços econômicos facilitou e proporcionou inúmeras e grandes possibilidades de fluxo migratório. Aconteceram não somente migrações internas dos países em contato, mas, migrações de muitos outros países. Os imigrantes não influenciaram somente no poder econômico e político local, mas também, dispersaram e disseminaram diferentes e significativas influências culturais, sejam elas, étnicas, religiosas, políticas, culturais, etc.
Assim, esses amplos deslocamentos e circulações de pessoas nesse território fronteiriço, possibilitaram novas reflexões e analises sobre a polissemia de sentido do termo “fronteira”, uma vez que, as fronteiras nacionais dividem e classificam os aspectos territoriais das nações, produzindo artefatos caracterizando uma zona fronteiriça, como símbolos e imagens, comercio de fronteira e alteridades estatais (ALBUQUERQUE, 2009). Ainda, o discurso reproduzido sobre fronteira como ‘fronteiras naturais’ nada tem de natural, trata-se, no entanto, de um artifício simbólico bem imaginado (ALBUQUERQUE, 2009; BOURDIEU, 1989). A fronteira não se limita às barreiras concretas e a artefatos, permite também a existência de combinações culturais e identitárias que se entrelaçam e vão criando novas formas de se sentir pertencentes a um contexto heterogêneo de diversas práticas sociais.
Foz do Iguaçu é considerado um importante destino turístico em termos nacionais e internacionais. Na cidade, existem inúmeras opções turísticas como a represa de Itaipu, as cataratas do Iguaçu, o parque nacional do Iguaçu, e grandes centros religiosos, não sendo suficiente, a região é um grande atrativo econômico, principalmente, devido aos grandes centros comerciais de Cidade do Leste, no Paraguai.
Esses fatores permitem uma pluralidade de imaginários nacionais, sociais, regionais, etc. Essas percepções estão presentes também nas músicas que caracterizam a fronteira como uma identidade especifica, localizada e, muitas vezes, compartilhada. Esse imaginário reproduzido surge de um determinado lugar de fala, que permite e legitima uma categorização de práticas sociais frente a uma ampla realidade e complexidade cultural.
ISSO É FOZ DO IGUAÇU: a construção melodiosa de uma imagem regional
A música, de certa forma, é uma atividade social que serve como uma manifestação expressiva de uma cultura. Articulado a ela se encontram as percepções de mundo, de dimensões culturais e sociais, de ressignificações situadas localmente, tanto pela visão particular do compositor, como significados compartilhados culturalmente. A letra de uma canção revela valores sociais presentes no enunciado, os quais podem ser explícitos ou também implícitos que respondem a dizeres construídos ideologicamente.
Esta canção apresenta uma multiplicidade de vozes significativas constituintes de região de fronteira, uma vez que prevalece a exaltação de unidade no conjunto e combinações de palavras que resultam agradáveis para a formulação de imaginários da região que, de certa forma, serão reproduzidos e reinterpretados pelo olhar de dentro e de fora. Assim, a música está relacionada a uma realidade que busca representar, por meio de configurações sonoras e elementos culturais específicos, promover a imagem de uma cidade fronteiriça e turística.
Pensando a partir da perspectiva bourdiana, compreende-se que os aspectos simbólicos, denominado por Bourdieu (1996) como ‘capital simbólico’ fazem parte de qualquer tipo de capital, sejam eles, físico, econômico, cultural, social, os quais são percebidos pelos seus agentes sociais graças a diferentes categorias de percepções que eles utilizam para compreendê-las e reconhecê-las atribuindo-lhes valor.
Para compreender o campo social mais amplo, trazemos o posicioidnto do antropólogo brasileiro, Viveiros de Castro (2002), que desenvolvendo trabalhos sobre os povos indígenas do território do amazonas, elaborou um conceito bastante importante para compreender o sentido do perspectivismo social, isto é, da sociedade. O autor atribuiu dois sentidos à sociedade - o sentido geral e o sentido particular –. no sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Esta universalidade admite uma interpretação biológica ou instintual, e outro simbólico-moral, ou institucional. Portanto, a sociedade pode ser vista como um atributo básico, mas não exclusivo, da natureza humana. Para o autor, “somos geneticamente predispostos à vida social; a ontogênese somática e comportamental dos humanos depende da interação com seus semelhantes” (p. 297). Já, em sentido particular, a sociedade é uma designação que pode ser aplicada a um determinado grupo humano dotado de algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento; organização institucional relativamente autossuficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um indivíduo, isto é, como a distintividade cultural.
Ainda, o conceito de sociedade pode ter diferentes noções referenciais (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), como o componente populacional que em termos é utilizado como sinônimo de ‘um povo’ visto como uma forma especifica de humanidade; o componente institucional-relacional, se equivale ao ‘sistema’ ou ‘organização social’, isto é, retrata o quadro sociopolítico da coletividade, as formas de poder, de cooperação, de relações, etc.; e, o componente cultural-ideacional do grupo, em que a sociedade é geralmente substituída pelo termo ‘cultura’ que representa os conceitos afetivos da vida em grupo, do conjunto de ideias inculcadas em seus membros através de meios simbólicos variados, bem como os conceitos e práticas que conferem ordem, significação e valor a totalidade existente.
Quando se fala em ‘cultura’ temos espaços para inúmeras interpretações, considerações e representações para compreender as organizações, práticas e experiências humanas. Sabemos que o termo é bastante dinâmico, porém, na maioria das vezes, a conceituamos com respostas simplificadas. Diante disso, sabendo da existência de diferentes concepções sobre a cultura, trazemos aqui, alguns conceitos epistemológicos como forma de compreender algumas possibilidades de olhar para esse conceito tão recorrente.
Geertz (1926-2008) foi um antropólogo norte-americano que contribuiu para a reconstrução do conceito de ‘cultura’, possibilitando maiores e diferentes reflexões que dizem respeito à interpretação das ‘culturas’. O autor, ao procurar explicação às expressões culturais, ele afirma que há um enorme pantanal conceitual para o qual pode conduzir a espécie de teorização sobre cultura. Contrapondo ao trabalho de Kluckhohn, no qual o autor conseguiu tratar os termos culturais com várias definições como: “o modo de vida global de um povo"; "o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo"; "uma forma de pensar, sentir e acreditar"; "uma abstração do comportamento"; "um celeiro de aprendizagem em comum"; "comportamento aprendido"; Geertz, no entanto, defende o conceito de cultura como essencialmente semiótico:
O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 2008, p. 4).
Nesse sentido, os fenômenos culturais são dotados de fatores simbólicos que trazem diferentes significados, que corresponde às práticas dos sujeitos em determinado espaço social. O autor entende que esse significado dado à noção da cultura, constitui-se, de certa forma, por um significado ou por um valor semiótico público, já que, a cultura é pública porque o significado o é (GEERTZ, 2008, p. 9:68). Para o autor, o pensamento humano é um ato público, logo um ato privado “os atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas, são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como o casamento e tão observáveis como a agricultura”. Isso, porque, de acordo com o autor, o pensamento humano é, praticamente, “um ato aberto conduzido em termos de materiais objetivos da cultura comum, e só posteriormente, um assunto privado” (GEERTZ, 2008, p. 61).
Nas falas de Geertz:
O mundo cotidiano no qual se movem os membros de qualquer comunidade, seu campo de ação social considerado garantido, é habitado não por homens quaisquer, sem rosto, sem qualidades, mas por homens personalizados, classes concretas de pessoas determinadas, positivamente caracterizadas e adequadamente rotuladas. Os sistemas de símbolos que definem essas classes não são dados pela natureza das coisas — eles são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente (destaque meu) (GEERTZ, 2008, p. 151).
Geertz (2008, p. 19), nos diz que “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”, isto é, todas as pessoas vivem em um mundo cheio de possibilidades, de diferentes formas de vidas, aptos a aderir qualquer que seja a cultura, porém, se adapta à cultura com a qual tem maior conivência, maior contato. Ali ele exerce o maior grau de significação.
Ainda, segundo o autor, é graças aos padrões culturais que se encontram amontoados por símbolos significativos, que as pessoas encontram sentido nos acontecimentos - “o estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria obscuro” (Op. Cit, p. 20). Em vista disso, podemos entender que os significados culturais caracterizam as pessoas em sociedade mediante a dimensão de interpretações.
A canção “Isso é Foz do Iguaçu”, retrata a cidade do iguaçuense e, não apenas, a do turista. Mostra como sendo a terra das Cataratas que carrega em sua história a marca de uma comunidade unida e entrelaçada por diferentes grupos étnicos. Segundo Bourdeiu (1989, p. 116), o discurso regionalista é um discurso performativo que visa “impor como legitima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada”.
A letra da canção traz implícita a afirmação do fenômeno ‘fronteira’, lugar de integração cultural [4 Cidade cosmopolita] e de identificações nacionais [5 Tem brasileiro, tem argentino - 6 Árabe, chinês, paraguaio e palestino ...]. Na perspectiva do compositor, a canção traça um desenho de uma fronteira demarcada por características regionais e locais específicas. Para Bourdieu (1989, p. 124), o regionalismo, que de certa forma, realça o nacionalismo, é apenas um caso particular das lutas propriamente simbólicas em que os agentes estão envolvidos quer, individualmente ou coletivamente, em estado de organização e, nisso está em jogo a “conservação ou a transformação das relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas ligadas às manifestações da identidade social”.
Na expressão discursiva da canção, a fronteira passa a ser pensada como sinônimo de união, de irmandade e harmonia. Os espaços apresentados na canção, [Cidade de todas as raças - 2 Que aceita o negro, que aceita o branco ... ] transfere a imagem e uma relação equilibrada entre todas as pessoas que vivem e atravessam a/na cidade.
O compositor dialoga e exalta elementos específicos próprios dos referenciais locais da cidade de Foz do Iguaçu [ 11 Cidade da natureza - 10 Terra das cataratas do Iguaçu - 13 Rio paraná e o lago de Itaipu] relacionando com o sentimento de orgulho de uma participação de memória coletiva.
Percebe-se que o contexto presente ou marcado na canção, contribui para uma visão ‘rica e exuberante’ de viver e estar na fronteira, embora haja inúmeros paradoxos como: a existência desigual de serviços públicos de um lado e do outro da fronteira; a desigualdades nos serviços e equipamentos públicos de saúde, hospitais e unidades de pronto atendimento, relacionados principalmente aos estrangeiros; o contrabando, etc. De acordo com Silva (2015, p. 12), "estamos em um terreno movediço" em que diferentes atividades são empreendidas na região como os fatores de ilegalidades que respondem aos parâmetros estatais e nacionais como a ação de 'passar' mercadoria de um país para outro no comercio transfronteiriço considerado como contrabando2 ou ações ilegais. Todavia, com essa ação de ‘passar’ ocorre também o ‘passar’ por uma fronteira de cidadania e de humanidade.
A observação na seguinte sentença “7- Isso é foz do Iguaçu – 8- Da tríplice fronteira do Sul” infere a percepção de fronteiras nacionais em contato como identidade nacional ou regional, embora seja também, uma construção mental e social. Falar e ver a nação ou a região e olhar para elas como espaços institucionalizados serve, por conseguinte, para cristalizá-las e naturalizá-las. O que se percebe é um sentimento de pertencimento de um espaço ou a uma determinada região de estado-nacional.
Quanto à naturalização das fronteiras, Bourdieu (1989, 115), nos chama a atenção que não se podem sustentar regiões “naturais”, separadas por fronteiras “naturais”. De acordo com o autor, a fronteira nunca é mais do que um produto de uma divisão a qual se atribui maior ou menor fundamento na realidade segundo os elementos que ela reúne. A realidade neste caso, sempre é social e se apoia em características que nada tem de natural e que são, em grande parte, produto de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima como a delimitação de língua, tamanho de terra, muros, pontes, etc.
Dessa forma, para Bourdieu (1989), não existem fronteiras naturais e todas são acordos baseados no uso legítimo do poder político-econômico, sendo a fronteira, nada mais do que “o produto de uma divisão” (BOURDIEU, 1989: 114). A região delimitada pela fronteira não é vazia, mas cheia de representações dadas por seus habitantes ou pelos sujeitos nela inserida, a qual permite, muitas vezes, representações fragmentadas.
De acordo com Anderson (1993), o significado de ‘nação’ assim como de ‘nacionalismo’ são artefatos culturais de uma classe particular, no entanto, para compreender esse fator que hoje, na atualidade, tem uma legitimação emocional tão profunda, é importante não deixar de olhar como este fator surgiu no processo histórico mais amplo e como vem mudando seu significado com o decorrer do tempo. Anderson (1993) denomina o termo ‘nação’ como ‘comunidades imaginadas’. Definiu o termo ‘comunidades imaginadas’ ao fazer uma reflexão sobre a origem da nação, de nacionalidade e de nacionalismo afirmando que são assim consideradas por serem como ‘artefatos’ e ‘produtos culturais’ que, de certa forma, são como “tradições inventadas” 3 (HOBSBAWN, 1997, p. 23). Para Anderson (1993, p. 25), a nação é como uma ‘comunidade imaginada’, em vista de que, independentemente da desigualdade que possa existir, ela se constitui sempre como uma escolha coletiva que se dá de forma “horizontal”, isto é, a fraternidade que preside dentro dessa comunidade faz com que se criem representações de unidades devido às criações imaginárias de nacionalidade.
Assim, uma vez que a comunidade é imaginada, ela é também, modelada, adaptada e transformada através de diferentes interpretações. Esta ‘imaginação’ de comunidade e de nacionalismo, reflete-se de diversas formas e estilos, em diferentes obras artísticas como nas poesias, na música, nas artes plásticas, onde claramente, se refletem ou se revelam o aspecto de orgulho e amor, como patriotismo ou regionalismo apaixonado, assim como no discurso dado nesta canção - “14 - Cidade hospitaleira - 9 - Onde o céu é mais que azul”.
A canção se enquadra numa visão de um ponto situado no espaço social, pois, de acordo com Bourdieu (1996), os sujeitos, de certa forma, são agentes que atuam direcionados por um ‘senso prático’ de um sistema adquirido de preferencias, de princípios de visão e de divisão (como os gostos e preferências) e, de “esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada” (BOURDIEU, 1996, p. 45).
Tendo em vista que os sujeitos agem respondendo a diferentes fatores ideológicos, políticos, de crenças, etc. seus posicioidntos não são vazios ou inatos, mas sim, são direcionadas por diversas relações sociais. Para tal compreensão, trazemos para discussão os conceitos de habitus e de campo, dado por Bourdieu (1989), que ajuda a compreender as representações de enaltecimento de determinados fatores sociais e culturais.
A noção de habitus e de campo é bastante útil para compreender a formação social da região mediante a contribuição da canção analisada, pensando a partir de duas noções: de campo e de habitus (BOURDIEU, 1989). Dentro da noção de campo e de habitus, buscou-se entender o posicioidnto e a voz social presente na canção, como expressão simbólica ou práticas simbólicas levantadas pelo posicioidnto particular e grupal, isto é, um habitus socialmente construído. Nas palavras de Thiry-Cherques (2006), citando Bourdieu, o termo habitus serve para estabelecer a diferença com os conceitos como hábito, costume, praxe, tradição, mostrando que tais termos denotam o sistema de disposições duráveis e transferíveis, que funciona como princípio gerador e organizador de práticas e de representações, associado a uma classe particular de condições de existência. O habitus gera uma lógica, uma racionalidade prática, irredutível à razão teórica. É adquirido através da interação social e, ao mesmo tempo, é o classificador e o organizador desta interação. É condicionante e é condicionador das nossas ações. O “o habitus constitui à nossa maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a nossa forma de agir, corporal e materialmente” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 33). Quanto ao campo, este por sua vez, tem propriedade u opinião consensual ou grupal, não somente no sentido econômico, mas também, no sentido de bens culturais, sociais, simbólicos etc. assim, nas palavras de Thiry-Cherques (2006), cada campo cria o seu próprio objeto, seja do campo artístico, educacional, político etc. e o seu princípio de compreensão são “espaços estruturados de posições” em um determinado momento.
Nas palavras de Brandão (2010), o habitus é um saber agir aprendido pelo agente na sua inserção em determinado campo. Cada campo, estruturado diferencialmente de forma relativamente autônoma em relação a outros, fica definido por uma lógica particular de funcioidnto, que a estrutura e classificação das diversas interações ocorrem nesse contexto, definindo objetivos específicos a serem alcançados para que os agentes possam manter ou incrementar suas posições relativas na luta concorrencial naquele espaço.
Sendo assim, as diferentes práticas sociais são o resultado das transformações dos habitus vindas das relações estabelecidas pelos agentes em sua mobilização no interior dos campos específicos, e pelas redes de relação que constroem ao circularem pelos campos no espaço social.
A construção do imaginário social se encontra elencada por diferentes fatores políticos, econômicos e históricos e vai sendo reproduzidas e ressignificadas na canção, que perpassa as relações de poder com o desejo de que essa unidade e atração aparente exista efetivamente. Com isso, a intencionalidade de criar uma identidade que caracteriza a cultura regional, é uma construção simbólica construída por imaginários coletivos e de conceitos abstratos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção musical expõe um produto de negociação social que circula em diferentes veículos midiáticos da região como uma ‘cultura pública’. O compositor, com sua autoridade artística, afirma sua posição de prestigio construindo uma identidade de reconhecimento e poder diante das diversas realidades sociais marcantes da região fronteiriça.
A fronteira de Foz do Iguaçu, além de ser um território politicamente demarcado, é também um espaço polissêmico de produções de representações simbólicas constantes, uma vez que, pela existência de diversidades e transitoriedades, existe a preocupação ou o desejo de concebê-la como homogênea, prospera e consolidada.
Na canção há uma versão dos fatos sociais com expressão de verdades, as quais, de acordo com Bourdieu (1989) estão em jogo nas lutas de pretensão universalista ou de juízo absoluto. A percepção ou estruturação da realidade frente à dinâmica da fronteira ou da cidade se projeta como uma ‘disputa simbólica’ que orienta a uma conformidade dos fatos desse determinado mundo social atribuído pelo olhar do enunciador.
Assim como nos diz Albuquerque (2009, p. 202) “viver na fronteira é geralmente também viver da fronteira”, criando certas imagens, seja de forma individual ou coletiva, do que venha a ser a vida social e cultural fronteiriça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALGUQUERQUE. L. A dinâmica das fronteiras: deslocamento e circulação dos “brasiguaios” entre os limites nacionais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 31, p. 137-166, jan./jun. 2009.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo,1993.
BOURDIEU, Pierre. Espirito de Estado. Gênese e estrutura do campo burocrático. In. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
_________. A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região. In. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
_________. Espaço social e gênese de classe. In. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BRANDÃO, Zaia. Operando com conceitos: com e para além de Bourdieu. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.36, n.1, p. 227-241, jan./abr. 2010.
GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: 2008.
HOBSBAWN., E. J. A produção em massa de tradições. In HOBSBAWN, E. J. E RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
SILVA. Regina. Estado-Nação se (des)fazendo no cotidiano vivido em uma escola na fronteira Brasil, Argentina e Paraguai. IV Enadir, GT n.14. Abordagens Antropológicas do Estado, 2015.
THIRY-CHERQUES, H. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Rio de Janeiro 40(1):27-55, Jan./Fev. 2006.
VIVEIROS de CASTRO, Eduardo: O conceito de sociedade em antropologia: in. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, 2002.