Ândreo da Silva Almeida*
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil
Correo: andreodsalmeida@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho está consubstanciado numa análise acerca da aplicação dos princípios com base nos valores trazidos pelo pós-positivismo para a Teoria Geral do Direito. O estudo concentra-se em contrastar as formas de aplicação dos princípios propostas por Robert Alexy com a apresentada por Humberto Ávila, a fim de identificar se as teorias desenvolvidas pelos autores são conflitantes.
Palavras-chave: Pós-positivismo. Conflito de princípios. Direitos fundamentais.
ABSTRACT
The present work is based on an analysis of the application of principles based on the values brought by post-positivism to the General Theory of Law. The study focuses on contrasting the application of the principles proposed by Robert Alexy with the presented by Humberto Ávila, in order to identify if the theories developed by the authors are conflicting.
Key-words: Post-positivism. Conflict of principles. Fundamental rights
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Ândreo da Silva Almeida (2019): “A aplicação dos princípios a partir das teorias de Humberto Ávila e Robert Alexy”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (septiembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/09/teorias-avila-alexy.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1909teorias-avila-alexy
1 INTRODUÇÃO
Dentre as diversas alterações sofridas pela Teoria Geral do Direito, sem sombra de dúvidas, a de maior destaque tem sido o novo papel desempenhado pelos princípios jurídicos na solução dos conflitos sociais. Isso está diretamente relacionado à tendência por mudança de paradigmas na interpretação do direito, desenvolvida, sobretudo, no período pós-segunda guerra mundial, onde ocorre um enfraquecimento da legalidade estrita para possibilitar uma aproximação do direito com a ética.
Nesse cenário de transformação os princípios apresentam-se como mecanismos essências à superação do pensamento positivista, pois de meras ferramentas interpretativas, utilizadas para suprir eventuais lacunas do ordeidnto jurídico, passam a ser normas que ostentam a mesma força normativa encontrada nas regras. Ocorre que, em meio a essas mudanças, verificou-se que o uso equivocado dos princípios pode culminar num quadro em que qualquer norma jurídica é passível de ser relativizada, de sorte que a segurança jurídica, norteadora do Estado de Direito, se perde em virtude da arbitrariedade na aplicação do direito.
À vista disso, almeja-se no presente trabalho investigar as teorias de Humberto Ávila e Robert Alexy, dada a significativa contribuição desses juristas para o aprimoramento da aplicação dos princípios na atual fase do direito. Assim, buscar-se-á delimitar os pontos em comum e as divergências encontradas a partir da análise comparativa das duas teorias.
Ademais, o estudo traz como objetivos específicos: delimitar a diferença entre texto e norma, visto que na prática nem sempre essa distinção é observada; desenvolver as propostas conceituais de regras e princípios à luz das teorias que configuram o marco teórico da pesquisa; e, por fim, constatar se há significativa divergência entre o modo de aplicação dos princípios desenvolvido por Ávila em relação àquele proposto por Alexy.
Para alcançar os objetivos traçados, o trabalho adotará uma metodologia baseada na pesquisa doutrinária, concentrando-se no estudo das obras “Teoria dos Direitos Fundamentais” de Robert Alexy e “Teoria dos Princípios” de Humberto Ávila.
2 O GÊNERO NORMA E SUAS ESPÉCIES
Em que pese a doutrina acerca da dogmática jurídica apresentar uma relevante discussão acerca do conceito de norma, que, infelizmente, a análise pormenorizada não é compatível com o objetivo deste trabalho, tem-se por necessário delimitar, ainda que por meio de uma distinção, o que é uma norma para a Ciência do Direito.
Cumpre esclarecer, para tanto, que texto normativo e norma são expressões díspares, porém com uma forte ligação. O texto normativo, através da linguagem, veicula determinadas informações que são recebidas pelo destinatário e submetidas a um processo de interpretação, a partir do qual se extrai a norma. Em suma, os textos normativos se constituem no objeto da interpretação; e as normas no seu resultado.1
Essa diferença entre texto e norma é fruto do caráter alográfico do Direito. As expressões artísticas se manifestam de duas formas: artes alográficas e autográficas. Nas artes autográficas (exemplo: uma pintura), o autor realiza integralmente a obra e, assim que concluída, ela passa a ser objeto de contemplação estética. No caso das artes alográficas a contemplação estética ocorre de modo diverso, vez que a completude da expressão artística exige os esforços de outro personagem: o intérprete.2
A música, como exemplo de arte alográfica, tem na sua interpretação uma conjunção de compreensão + reprodução. Valendo-se do exemplo de Fernando Vieira Luiz, numa partitura musical os símbolos musicais descritos, por si só, nada significam, pois não são capazes de gerar nenhum prazer naquele que aprecia música. No entanto, a partir do momento em que a música é compreendia e reproduzida por um intérprete (músico), alcança-se a sua completude como expressão artística, dado que ela passa a ser contemplada por outros intérpretes (uma plateia).3
Infere-se, portanto, que o texto normativo assemelha-se a uma arte alográfica, pois não se completa no sentido atribuído pelo legislador. Ele efetivamente existe quando se alcança a norma por ele veiculada, ou seja, a completude do texto somente é realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete. 4
Robert Alexy, demonstrando a diferença entre enunciado normativo (texto normativo) e norma, destaca que esta pode se manifestar por variados enunciados normativos e, didaticamente, expõe que a norma segundo a qual “é vedada a extradição de um alemão” (1) pode decorrer também de “é proibido extraditar alemães” (1’) ou “alemães não podem ser extraditados” (1’’). 5
Não bastasse a lição do jurista alemão, a autonomia que a norma tem em relação ao texto normativo é evidenciada nas situações em que se chega a ela mesmo inexistindo um texto. Nesse sentido Ávila lembra que inexiste no ordeidnto jurídico pátrio dispositivos que preveem os princípios da segurança jurídica e da certeza do Direito e, apesar disso, não se questiona a normatividade de tais princípios no direito brasileiro.6 7
O inverso também é verdadeiro, haja vista que poderá existir texto normativo sem que dele emane uma norma. No preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, por exemplo, consta que a Assembleia Nacional Constituinte promulgou a Constituição “sob a proteção de Deus”.8 Ora, qual norma decorre desse texto? A princípio, nenhuma. Assim, é possível concluir que nem todo texto (enunciado) contempla uma norma. 9
No entanto, essa autonomia entre o texto e a norma pode ensejar situações mais complexas, as quais exigem uma atenção maior do intérprete do direito, como se dá no caso em que a partir da interpretação de um único texto se alcança mais de uma norma, considerada a plurivocidade sígnica dos textos jurídicos.10 Exemplo disso está no enunciado normativo do inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal, que assegura ao preso o direito de ficar em silêncio, com o seguinte texto: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (...)”. Ocorre que a interpretação desse enunciado também construiu uma norma muito mais abrangente, conhecida como o “direito à não autoincriminação”, que autoriza até mesmo um indivíduo convocado a prestar depoimento em CPI (ou seja, indivíduo que não é preso e sequer acusado) a ficar em silêncio e não prestar qualquer tipo de informação que possa incriminá-lo, conforme interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 79.812/SP.11
Exatamente por norma e texto serem universos distintos e, em especial, por um texto ter capacidade de resultar em mais de uma norma, o Direito Constitucional brasileiro prevê o instituto da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, através da qual o Supremo Tribunal Federal perquire as várias interpretações de determinado texto, declarando, sem modificá-lo, a inconstitucionalidade daquelas interpretações que são incompatíveis com a Lei Maior. Nesse caso, o texto não sofre qualquer tipo de alteração, porém as normas extraídas dele que são conflitantes com a Constituição têm a sua nulidade reconhecida pelo Tribunal. 12
Nota-se, diante do exposto, que texto normativo não é o mesmo que norma, sendo equivocado o conhecimento popular que considera norma jurídica toda e qualquer prescrição de conduta e organização, de característica genérica e abstrata, inserida num diploma legal.
Feita essa distinção, deve-se concentrar os esforços no estudo da norma, vez que esta é um gênero que contempla duas espécies, as regras e os princípios, cuja análise passa-se a realizar. 13
3 A CONCEITUAÇÃO DE REGRAS E PRINCÍPIOS
3.1 A PROPOSTA CONCEITUAL NA TEORIA DE HUMBERTO ÁVILA
Segundo a lição de Ávila, os princípios podem ser conceituados da seguinte forma:
os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessárias à sua promoção.14
Já no tocante às regras, o autor apresenta a seguinte conceituação:
as regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.15
Tais conceitos são construídos a partir de um critério de dissociação, que é dividido em três subcritérios, sendo eles: critério da natureza do comportamento prescrito (1), critério da natureza da justificação exigida (2) e critério da medida de contribuição para a decisão (3).
Da análise do critério da natureza do comportamento prescrito (1), infere-se que os princípios são normas imediatamente finalísticas, enquanto que as regras são normas imediatamente descritivas. Os princípios são considerados normas imediatamente finalísticas, pois preveem um estado ideal de coisas (state of affairs, Idealsustand) que depende de uma série de comportamentos para que seja concretizado, de modo que cumpre ao aplicador identificar, no caso concreto, o comportamento adequado para alcançar o fim traçado no próprio princípio, já que os princípios não apresentam a descrição da conduta adequada. As regras, por seu turno, são normas imediatamente descritivas ou mediatamente finalísticas, uma vez que descrevem a conduta que deve ser adotada para que seja alcançado o fim, ou seja, elas são consideradas um meio de alcançar o fim prescrito no princípio. Com base nisso, afirma-se que os princípios são normas-do-que-deve-ser (ought-to-be-norms), enquanto que as regras são normas-do-que-fazer (ought-to-do-norms).16
Sob a ótica do critério da natureza da justificação exigida (2), vislumbra-se que os princípios são normas com caráter primariamente prospectivo e as regras são normas com caráter primariamente retrospectivo. Neste critério, onde se investiga a justificação necessária à aplicação da norma, percebe-se que os princípios e as regras divergem em relação à sua força justificativa e ao seu objeto de avaliação. Os princípios, por serem normas imediatamente finalísticas, têm uma justificativa da decisão de interpretação baseada na avaliação da relevância dos efeitos da conduta vista como meio de obtenção do estado de coisas, sendo este estado de coisas o fim traçado no princípio a ser alcançado. Já as regras, como o seu elemento frontal é descritivo, a justificativa da decisão de interpretação é baseada na avaliação de concordância entre a construção conceitual dos fatos e a construção conceitual da norma. Em decorrência disso, tem-se que os princípios possuem um caráter prospectivo (future-regarding), dado que o processo de justificação para aplicação da norma (avaliação dos efeitos da conduta para a obtenção do fim) será guiado por um estado de coisas a ser construído, ao passo que as regras ostentam um caráter retrospectivo (post-regarding), visto que elas descrevem situações que já eram previstas pelo legislador, ainda que nunca tivessem ocorrido no plano fático17 .
No entanto, Ávila faz uma reserva quanto à distinção acima exposta, vez que para ele não são apenas as regras que levam em consideração a experiência acumulada no passado, tendo em vista que as situações pretéritas também influem na aplicação dos princípios, pois, segundo o autor, “não é possível avaliar qual comportamento humano é adequado à realização de um estado ideal de coisas sem considerar comportamentos passados e sua relação com um estado de coisas já conquistado”18 . A par disso, Ávila afirma que os princípios são normas com caráter primariamente prospectivo e as regras são normas com caráter primariamente retrospectivo, utilizando o vocábulo “primariamente” com o objetivo de não desconsiderar a influência que a experiência acumulada no passado também exerce sobre os princípios e a relação que as regras guardam com a concretização do estado de coisas ideal no futuro.
No terceiro e último critério, referente à medida de contribuição para a decisão (3), conclui-se que os princípios são normas com pretensão de complementariedade e de parcialidade e as regras são normas preliminarmente decisivas e abarcantes.
A parcialidade dos princípios decorre do fato deles não abrangerem todos os aspectos relevantes para uma tomada de decisão, vez que eles apresentam apenas o estado de coisas ideal a ser alcançado, porém não se ocupam de apresentar os meios para obter tal fim. Por abrangerem apenas parte dos aspectos para a tomada de decisão, os princípios não são capazes de gerar uma solução específica, de sorte que a solução somente advirá de um processo de entrelaçamento/imbricamento entre outros princípios, onde cada um deles contribuirá para a tomada de decisão. Essa necessidade de entrelaçamento com outras normas é que evidencia a pretensão de complementariedade dos princípios. Ávila exemplifica a pretensão de complementariedade dos princípios demonstrando que o princípio de proteção aos consumidores não deve ser aplicado de modo singular em toda e qualquer relação de consumo, porquanto ele deve ser harmonizado com outros princípios necessário à promoção de outros fins, como é o caso do princípio da livre inciativa.19
As regras, por outro lado, trazem um caráter abarcante, uma vez que apresentam todos os aspectos relevantes para a tomada de decisão e, por conseguinte, exprimem uma pretensão de gerar uma solução específica para o caso sem que seja necessário socorrer-se de outras razões. Por esses fatores se considera as regras normas com pretensão de decidibilidade e abrangência.20
Todavia, Ávila também apresenta uma importante ressalva na conclusão desse critério, afirmando que a regras são apenas “preliminarmente decisivas”. Isso porque há casos em que as regras terão suas condições de aplicabilidade implementadas e, mesmo assim, não serão aplicáveis ao caso. Segundo o autor, isso ocorrerá nos casos em que houver razões excepcionais e superiores àquelas que sustentam a própria regra, ensejando o fenômeno denominado de “aptidão para o cancelamento” (defeasibility). 21 22
3.2 A PROPOSTA CONCEITUAL NA TEORIA DE ROBERT ALEXY
Alexy não concorda com os autores que defendem que a diferença entre as regras e os princípios está concentrada no grau de generalidade inerente a cada espécie. Para ele a diferença existente não é apenas gradual, mas sim qualitativa, posto que cada espécie apresenta uma forma específica de aplicação e até mesmo de resolução de conflitos.
Nessa esteira, Robert Alexy conceitua os princípios como:
normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. 23
No tocante às regras, o jurista alemão ensina que:
as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. 24
O fato dos princípios exigirem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas demonstra que tal espécie de norma não veicula um mandamento definitivo, mas sim prima facie.25 Considerando que o grau de realização de um princípio estará sempre atrelado às circunstâncias fáticas do caso concreto, bem como à existência de razões antagônicas (manifestadas em regras ou em princípios colidentes), tem-se que os princípios nunca poderão dispor de toda a extensão do seu conteúdo no momento da sua aplicação.
Dessa forma, por mais relevante que um princípio seja para a resolução de uma determinada questão, o resultado de tal questão não será fruto exclusivo da determinação oriunda daquele princípio, dado que o seu conteúdo sempre será mitigado pelas circunstâncias fáticas e pelas razões que estiverem em rota de colisão no caso concreto. Com base nisso, Alexy assevera que os princípios sempre serão mandamentos de otimização e que possuem um caráter prima facie, pois não é possível extrair do próprio princípio a extensão do seu conteúdo, haja vista a influência que os princípios colidentes e as possibilidades fáticas exercem sobre ele.26
No caso das regras a estrutura é diversa, uma vez que exigem a realização de uma conduta nos exatos termos por elas descritos. Ou seja, as regras ordenam a realização de seu conteúdo diante das possibilidades fáticas e jurídicas. 27 Enquanto que nos princípios as possibilidades fáticas e jurídicas são fatores de mitigação do seu conteúdo, nas regras servem como um comando para a realização integral do conteúdo prescrito.
Todavia, assim como Ávila, Robert Alexy reconhece que as regras, em casos excepcionais, podem perder o seu caráter definitivo estrito. Isso ocorre quando o caso exige que seja estabelecida uma cláusula de exceção em uma regra, cláusula esta que pode decorrer até mesmo de um princípio que esteja em colisão com a regra no caso concreto.28 Nesses casos, o caráter definitivo das regras é substituído por um caráter prima facie, que, no entanto, não pode ser equiparado àquele dos princípios.
Com efeito, o princípio cede lugar sempre que é conferido peso maior a outro princípio antagônico. Já as regras não são superadas simplesmente pelo fato de, no caso concreto, o princípio contrário ter um peso maior do que o princípio que sustenta a regra, mas somente quando ficar demonstrado que o princípio contrário supera, além do princípio que sustenta a regra, os princípios que determinam que as regras criadas pelas autoridades legislativas devam ser seguidas.29 Esses últimos princípios são denominados por Alexy de “princípios formais” e representam, por exemplo, o princípio da segurança jurídica e do Estado de Direito, os quais servem de fundamento para a heteronomia do Direito em uma sociedade. 30
Analisada a proposta conceitual das teorias que configuram o marco teórico deste trabalho, percebe-se que, apesar dos conceitos traçados por Humberto Ávila apresentarem um grau de cientificidade maior do que os desenvolvidos por Alexy, tendo em conta o complexo método de investigação (critério de distinção e seus subcritérios) aplicado pelo jurista brasileiro, há pontos em comum nos conceitos dos dois autores.
Nesse sentido, pode-se registrar como ponto em consonância entre as teorias, o modo de aplicação das regras e dos princípios, visto que ambas sustentam que os conteúdos veiculados nos princípios sofrem uma mitigação em razão de razões antagônicas, sejam elas decorrência de normas colidentes ou das próprias possibilidades fáticas do caso concreto. Humberto Ávila expõe essa visão defendendo o caráter de complementariedade e parcialidade dos princípios e Alexy os reconhecendo como mandamentos de otimização de caráter prima facie. Ademais, concordam quanto à completude das regras na tomada de decisão de casos ordinários, reconhecendo o caráter de decidibilidade dessa espécie normativa em tais casos. E, ainda, apresentam a mesma ressalva quanto à possibilidade desse caráter de decidibilidade ser relativizado em circunstâncias excepcionais sem que se questione a validade da regra no ordeidnto jurídico, representando na teoria de Ávila a “aptidão para o cancelamento” (defeasibility) e na de Alexy a necessidade da criação de uma “cláusula de exceção”.
Não obstante as propostas conceituais dos autores apresentarem muitas semelhanças, há uma significativa divergência entre eles no que toca ao critério que diferencia as regras dos princípios, pois, de um lado, Alexy defende que a diferença entre as duas espécies normativas é qualitativa, dado que cada espécie apresenta o seu respectivo modo de aplicação31 e, do outro, Ávila afirma que o modo de aplicação não é o que distingue regras e princípios, mas sim o grau de determinação estrutural 32 , porquanto os princípios possuem uma indeterminação que inexiste nas regras, o que exige uma forma específica de justificação para cada espécie normativa.
A seguir estudar-se-á, com base nas teorias examinadas neste trabalho, o tema mais relevante e tormentoso do pós-positivismo 33: a aplicação dos princípios.
4 A APLICAÇÃO DOS PRIINCÍPIOS
Como demonstrado acima, Alexy e Ávila reconhecem o caráter prima facie dos princípios. Todavia, o jurista brasileiro entende que tal caráter não é uma propriedade necessariamente presente em todos os tipos de princípios, o que justifica a sua crítica à distinção das espécies normativas quanto ao modo de aplicação, vez que não aceita a afirmação de que as regras sempre se aplicam por “subsunção” e os princípios mediante “ponderação”.
Em suma, Ávila nega o critério de distinção que classifica os princípios como “normas carecedoras de ponderação”, pois entende que a “afastabilidade” de um princípio é contingente e não uma regra. Na visão do autor, só haverá aplicação de princípios mediante ponderação quando eles estiverem em “concorrência horizontal”, porém nem sempre os princípios estão inseridos numa “relação paralela” que permita esse tipo de concorrência.34
Classifica, portanto, os princípios entre os que prescrevem o “âmbito e o modo de atuação estatal” (princípio republicano, federativo, democrático, etc.) e os que representam o “conteúdo e os fins da atuação estatal” (princípio da liberdade, propriedade, etc.). Com base nessa classificação defende que entre princípios de diferentes aspectos da atuação estatal (v. g. princípio republicano e propriedade) não haverá uma concorrência horizontal e a consequente colisão, mas sim uma relação de complementariedade.35
Outrossim, rechaçando o pensamento que compreende que a aplicação dos princípios sempre ocorre numa relação paralela, defende a existência de um nivelamento entre os princípios, de modo que, às vezes, podem estar inseridos numa relação de subordinação (v.g. relação Estado de Direito e princípio da legalidade), onde um será a norma de concretização do outro. Nesses casos haverá uma relação de subordinação e não de concorrência.36
Destarte, alicerçado na premissa de que há princípios de naturezas distintas, Ávila conclui que os princípios estruturantes, aqueles que normatizam o modo e a atuação estatal, não são dotados do caráter prima facie, pois a eficácia deles não é gradual e afastável, mas sim linear e resistente. Desse modo, os princípios estruturantes deverão ser aplicados sem que sofram qualquer redução do seu conteúdo, ou seja, sem a utilização da ponderação. 37 Alerta, ainda, que a aceitação universal de que os princípios são normas “carecedoras de ponderação” gera um “relativismo axiológico”, acarretando, em última análise, em um fenômeno onde todo e qualquer princípio pode ser afastado no caso concreto, ainda que se trate de um princípio fundamental do ordeidnto jurídico.38 39
Nota-se, no entanto, que a perspectiva exposta por Alexy é outra, dado que o autor alemão não enxerga na teoria dos princípios a possibilidade de aplica-los senão através da ponderação. Na medida em que concebe que todo e qualquer princípio é um mandamento de otimização, advoga que entre princípios nunca existe uma precedência absoluta.40
Em outras palavras, a distinção defendida por Ávila quanto ao modo de aplicação dos princípios que prescrevem o “âmbito e o modo de atuação estatal” e os que se referem aos “conteúdos e fins da atuação estatal” não encontra guarida na teoria de Alexy, já que para o último a aplicação de princípios sempre implica a necessidade de um sopesamento com as razões antagônicas.41
Gize-se, porém, que a afirmação feita acima, de que a distinção traçada por Ávila não é reconhecida pela teoria de Alexy, não deve ser interpretada no sentido da teoria do jurista alemão ser conflitante com a do brasileiro. Isso porque os autores quando empregam o vocábulo “princípios” não estão se referindo ao mesmo significado. O objeto expressado por Ávila com a terminologia “princípios” possui uma dimensão maior do que a atribuída por Alexy.
Com efeito, a teoria desenvolvida por Alexy analisa os princípios enquanto normas de direitos fundamentais, o que é evidenciado em diversos trechos da sua obra “Teorias dos direitos fundamentais”.42 Aliás, o próprio título do estudo indica que a análise dos princípios está inserida numa investigação sobre direitos fundamentais. Já a teoria de Ávila apresenta um objeto de análise mais amplo, dado que não analisa princípios somente como espécie normativa que veicula direitos fundamentais, mas também como normas de organização estatal. Isso se verifica quando o autor brasileiro afirma que os princípios podem prescrever normas relativas ao “âmbito e modo de atuação estatal” (princípio republicano, federalismo, democrático, etc) e normas atinentes ao “conteúdo e os fins da atuação estatal” (liberdade, propriedade, etc)43 , ou seja, na primeira classificação dos princípios ele se refere às normas de organização estatal e na segunda as normas de direitos fundamentais.
Registre-se que Alexy ao discorrer sobre os princípios concentra-se apenas nas normas de direitos fundamentais, sem estender o estudo dessa espécie normativa para as normas que definem a organização do Estado. A propósito, na sua obra Teoria dos Direito Fundamentais, desenvolve toda a parte referente ao modo de aplicação dos princípios a partir da análise de dois casos de conflitos de direitos fundamentais julgados pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão (decisão sobre a incapacidade para participar de audiência processual e decisão do caso Lebach).44
Ademais, após construir a sua teoria de aplicação dos princípios que veiculam direitos fundamentais com base na ponderação, Alexy esclarece que normas de organização estatal não são direitos fundamentais:
Outros, ainda, como o princípio do Estado Social e o princípio democrático, podem ser atribuídos, sem que isso cause algum problema, a disposições constitucionais que não sejam dispositivos de direitos fundamentais. Problemática é, por outro lado, a atribuição de princípios como o da defesa militar a normas constitucionais de competência, pois o fato de algo ser da competência da União pouco diz sobre sua importância em relação aos direitos fundamentais.45
Desse modo, não se pode sustentar que há um conflito entre as teorias de Alexy e Ávila, haja vista que o autor brasileiro apresenta a sua crítica calcada na impossibilidade de aplicar a ponderação nos princípios estruturantes, isto é, aqueles que normatizam o “modo e o âmbito de atuação estatal”.46 Ocorre, entretanto, que o objeto da teoria de Alexy, na qual defende a aplicação dos princípios por ponderação, são os princípios de direitos fundamentais e não os atinentes à organização estatal. Aliás, o autor alemão é pontual ao dispor que normas de organização estatal não são direitos fundamentais, o que, em consequência, significa dizer que não estão inseridas no modo de aplicação indicado na sua teoria. 47
A par disso, impende reconhecer que há sim um alinhamento e não um conflito entre as duas teorias. Isso porque Robert Alexy defende vigorosamente que os princípios que expressam direitos fundamentais são aplicados mediante o sopesamento do seu conteúdo com as razões antagônicas (ponderação) enquanto que Humberto Ávila, ao seu modo, assevera que os princípios que apontam para a mesma direção estabelecem uma “relação paralela” entre si e, portanto, estão submetidos a uma “concorrência horizontal”, de sorte que serão aplicados mediante ponderação.
Destarte, verificado que os princípios de direitos fundamentais estudados por Alexy correspondem aos princípios que prescrevem os “conteúdos e os fins” da atuação estatal segundo a teoria de Ávila, não há que se falar em divergência entre os autores, pois ambos apontam como meio de aplicação desses princípios a ponderação.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância conferida aos princípios jurídicos pelo pós-positivismo acarretou numa série de mudanças na Teoria Geral do Direito, visto que eles não mais se resumem àquela função integradora de preencher ou suprir as lacunas da legislação e orientar a interpretação do ordeidnto jurídico. Na quadra atual os princípios são efetivos instrumentos de solução dos conflitos sociais, haja vista a atribuição de força normativa a eles, o que altera o seu papel na interpretação do direito, já que deixam de exercer uma função secundária (suprir lacunas legislativas) e passam a ser considerados uma espécie normativa com a mesma força das regras, porém com modo de aplicação diverso.
Posto isto, para compreender a função contemporânea dos princípios, buscou-se delimitar o objeto “norma”, demonstrando que as expressões texto e norma possuem uma ligação, via de regra, extremamente próxima, o que leva, na prática, ao equívoco de considera-las expressões sinônimas. O texto ou enunciado fornecem determinadas informações que reunidas e submetidas a um processo de interpretação dão origem a uma norma. Destarte, norma pode ser considerada o produto da interpretação de um texto. Frise-se que a autonomia de uma em relação à outra está comprovada nas hipóteses em que um texto não origina uma norma (por exemplo, o preâmbulo da Constituição) ou quando uma norma existe independentemente da existência de um texto que lhe sirva de matriz (por exemplo, o princípio da segurança jurídica no direito brasileiro).
Ademais, constatou-se que norma é um gênero que compreende duas espécies: as regras e os princípios. Assim, investigada essas espécies normativas à luz das teorias de Humberto Ávila e Robert Alexy, concluiu-se que os autores possuem inúmeros pontos em consonância. Isso porque há uma afinidade entre os pensamentos dos teóricos quanto ao modo de aplicação das regras e dos princípios. Ambos reconhecem que os princípios sofrem uma mitigação do seu conteúdo quando encontram no ordeidnto jurídico ou no próprio contexto fático razões antagônicas. Ávila atribui esse fenômeno ao caráter de complementariedade e parcialidade dos princípios, enquanto que Alexy imputa ao fato de serem mandamentos de otimização de caráter prima facie.
A afinidade permanece na análise das regras, posto que os dois autores concordam com a completude das regras na solução de casos ordinários, sendo uma consequência direta do caráter de decidibilidade dessa espécie normativa. Mais do que isso, os autores defendem que tal caráter de decidibilidade das regras pode ser afastado em circunstâncias excepcionais sem que esse afastamento afete o plano da validade da norma. Na teoria de Ávila esse afastamento decorre da “aptidão para o cancelamento” (defeasibility), ao passo que na lição de Alexy representa a necessidade da criação de uma “cláusula de exceção”.
No entanto, há uma aparente divergência entre os autores quanto ao modo de aplicação dos princípios que veiculam normas de organização estatal, pois para Ávila princípios dessa natureza não podem ser aplicados pela técnica da ponderação apresentada por Alexy.
O jurista brasileiro propõe que os princípios sejam classificados entre os que prescrevem o “âmbito e o modo de atuação estatal” e os atinentes ao “conteúdo e fins da atuação estatal”. Dessa forma, entende que entre princípios de diferentes aspectos da atuação estatal não há colisão, porquanto não estão inseridos numa “relação paralela”, o que impede a concorrência horizontal entre eles e a consequente aplicação por meio da técnica da ponderação. Em suma, Ávila defende que os princípios que normatizam o modo de atuação estatal, denominados de princípios estruturantes, nunca poderão sofrer ponderação, sob pena de se instaurar um “relativismo axiológico” marcado pela insegurança jurídica.
Nesse ponto pode-se pensar que a teoria de Ávila é conflitante com a de Alexy, já que o autor alemão não apresenta outra forma de aplicação dos princípios senão através da ponderação. Todavia, tal pensamento não pode prosperar, haja vista que não há um verdadeiro conflito entre as teorias dos autores, mas sim a análise de um objeto em dimensões distintas.
Alexy ao longo da sua teoria estuda os princípios como normas que veiculam direitos fundamentais, de modo que em nenhum momento se refere aos princípios como normas de organização estatal. Dessa forma, não há que se falar que o jurista alemão defende a ponderação dos “princípios estruturantes”, pois a técnica de aplicação por ele proposta diz respeito aos princípios com conteúdo de direitos fundamentais e não de organização estatal.
Considerando que Alexy coloca expressamente a ponderação como forma de aplicação dos princípios de direitos fundamentais e Ávila, por sua vez, defende que princípios que apontam para a mesma direção estão inseridos numa “relação paralela” e, consequentemente, estabelecem uma “concorrência horizontal”, o que exige a ponderação para serem aplicados, tem-se que os dois autores aceitam a ponderação como meio de aplicação dos princípios de direitos fundamentais, já que tais princípios sempre apontarão para a mesma direção, que é a proteção da dignidade humana, e, portanto, sempre estarão inseridos numa “relação paralela” passível de ponderação.
REFERÊNCIAS
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*Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Aluno especial do programa de mestrado em Direito da Universidade Federal de Pelotas. Advogado. E-mail: andreodsalmeida@gmail.com. Endereço Postal: Avenida Domingos de Almeida, 1807, Areal, Pelotas/RS, Brasil, CEP 96.085-470.