José Carlos Costa*
Eduardo Henrique Lopes Figueiredo **
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Correo: luiztarcisiopcosta@gmail.com
Resumo: Esta pesquisa objetiva analisar a crítica feita por Joseph A. Schumpeter sobre a teoria democrática, proposta na primeira metade do século XX, que mantém sua atualidade, diante da irracionalidade exposta nos processos eleitorais marcados por manipulações e notícias falsas, comprovando a inconsistência dos elementos fundamentais da teoria democrática clássica representados pelos conceitos de bem comum e vontade geral. Considerado a transição da democracia clássica para a moderna, Schumpeter procurou desenvolver um método teórico-analítico sobre o real funcionamento do sistema democrático, revelando a crise de representatividade da democracia contemporânea. O autor exterioriza que esse sistema não está voltado ao governo do povo, mas às elites que estão no poder.
Palavra-chave: democracia, elitismo, povo, bem-comum, Schumpeter.
Abstract: This research aims to analyze the criticism made by Joseph A. Schumpeter on the democratic theory, proposed in the first half of the 20th century, which maintains its current situation, given the irrationality exposed in the electoral processes marked by manipulations and false news, proving the inconsistency of the fundamental elements of classical democratic theory represented by the concepts of the common good and general will. Considering the transition from classical to modern democracy, Schumpeter sought to develop a theoretical-analytical method on the actual functioning of the democratic system, revealing the crisis of representation of contemporary democracy. The author exteriorizes that this system is not directed to the government of the people, but to the elites that are in the power.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
José Carlos Costa y Eduardo Henrique Lopes Figueiredo (2019): “O estudo crítico de Joseph Schumpeter sobre a democracia contemporânea: breves considerações”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (septiembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/09/democracia-contemporanea.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1909democracia-contemporanea
Tomando por fundamento o clássico “Capitalismo, socialismo e democracia”, de Joseph A. Schumpeter, cuja primeira edição foi publicada em 1942, quando o autor, de origem checa (então parte do Império Austro-Húngaro), já residia nos Estados Unidos da América, propõe-se o estudo das críticas que apresentou às teorias clássicas da democracia, cuja atualidade salta aos olhos diante da constatação da irracionalidade dos processos eleitorais, influenciados por noticiais falsas, das mais absurdas, promovidas em massa como expedientes de propaganda comercial, com a utilização de dados pessoais captados por redes sociais, pelo que, sua compreensão poderá contribuir ao debate democrático.
A pesquisa se desenvolverá tomando como ponto de partida a compreensão do conceito de democracia no ambiente histórico em que proposto e, em rápida exposição, sua trajetória no tempo até a consolidação das teorias clássicas que a definem, como obra do iluminismo e da Revolução Francesa.
Apropriando-se da breve notícia histórica buscará o presente estudo expor à compreensão os limites das teorias clássicas da democracia frente a conceitos como interesse público e bem comum, perfeitamente manipuláveis através de técnicas semelhantes às propagandas comerciais, diante da irracionalidade e incapacidade de julgamento do eleitorado, como demonstra a história recente do Brasil, para propor a atualidade da ideia de democracia como método.
O regime democrático, para Schumpeter se viabiliza não através da decisão popular sobre um interesse público, que lhe foge completamente, mas a partir da aceitação das regras do procedimento, que exigem o reconhecimento do pluralismo cultural com a existência de interesses e objetivos diversos. O procedimento, desta forma, vincula-se à existência e respeito por regras que protejam a competitividade entre as lideranças políticas e seus respectivos projetos, em um contexto em que as democracias liberais têm dificuldade em enfrentar e superar as desigualdades sociais (WOLF, 2019).
Na conjuntura do regime democrático, apresenta-se o paradigma digital, que produz profundo impacto sobre a produção e distribuição das informações com reflexos na democracia, nas escolhas da sociedade e no direito contemporâneo, a par das imensas possibilidades que o ambiente digital pode oferecer à consolidação dos valores democráticos, levando a uma revisão da teoria de Schumpeter.
A compreensão do conceito de democracia se ampara inicialmente no sentido e na genealogia do próprio vocábulo, cujo padrão de utilização ao longo do tempo constitui instrumento útil para percepção de sua hodierna utilização (SKINNER, 2011, p. 9), testemunha (HOBSBAWM, 2014, p. 17) que foi, nesse percurso histórico, das transformações ideológicas, sociais e discursivas que foram se sedimentando e construindo, para além da ciência política, de onde nunca se afastou, um senso comum, fim de toda ciência (SANTOS, 2018, p. 61-63), que permitiu o “desenvolvimento de um vocabulário, em termos do qual esse conceito pode então ser articulado e discutido de público” (SKINNER, 2006, p. 620).
A origem do termo “demokratía”, de aproximadamente 2.400 anos, refere-se a uma modalidade própria de organização social, característica de uma cidade-comunidade, koinonía (SARTORI, 1994, p. 35), pelo que, o conceito se vinculava ao que poderia ser classificado como democracia direta, presumindo a existência de igualdade política e de uma soberania popular; tomadas como pressupostos em instituições como o Conselho, a Assembleia Popular, a rotatividade do governo e o sorteio como método para ocupação de cargos públicos (MIGUEL, 2005, p. 5-42), em que o exercício da cidadania se vinculava especialmente à retórica e sua teorização à filosofia. Nesse ambiente histórico a concepção democrática se referia à participação direta, enquanto a ideia de eleição era recebida como um método oligárquico (MANIN, 1997, p 8-79).
O modelo republicano romano, teria adotado, sob a influência teórica de Políbio (em concepções próximas às de Aristóteles), a ideia de democracia, porém com limitações e divisões tais, que a democracia na República Romana é tomada como mera ilusão (ROULAND, 1997, p. 176-190).
Após esquecida ao longo da Alta Idade Média, somente a partir do Século XI, ressurgiu a forma republicana de governo, com o renascimento das primeiras cidades ao norte da Itália (Lombardia e Toscana), lastreadas pela Revolução Comercial, por transformações tecnológicas, econômicas e sociais, pelo surgimento das primeiras universidades (Bolonha – 1088), dos títulos de crédito, dos bancos, pela reabertura do comércio no Mediterrâneo, pela instituição de um mercado consumidor, pelas transações monetárias, que voltaram a ser praticadas, constituindo um contexto responsável pelo início da racionalidade pré-capitalista e do impulso criador da sociedade moderna (SKINNER, 2006, p. 25-34).
Este é o momento da criação da sociedade moderna, de uma civilização moribunda ou morta sob suas formas camponesas tradicionais, mas viva pelo que ela criou de essencial nas nossas estruturas sociais e mentais. Ela criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho e a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e finalmente a revolução. Entre o neolítico e as revoluções industriais e políticas dos dois últimos séculos, ela é – pelo menos para as sociedades ocidentais – não uma cunha ou uma ponte, mas um grande impulso criador – cortado por crises, graduado por deslocamentos de acordo com as regiões, as categorias sociais, os setores de atividade, diversificada nos seus processos (LE GOFF, 2013, p. 11).
Na conjuntura histórica de superação da cidade-Estado medieval, sobretudo, pela transformação do modo de produção, formaram-se os Estados Nacionais, essencialmente autoritários, sob o ambiente econômico instituído pelo mercantilismo, ainda amparado pelos privilégios estamentais, que sofreram, ao longo dos séculos, o fim do discurso único da Igreja Católica, a Reforma protestante, a consolidação econômica das colônias ultramarinas, resultando na constituição de novos interesses e grupos de pressão, que culminaram com a Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra; com a Revolução Americana, de 1776; além das revoltas na Irlanda (1782-1784), na Holanda (1783-1787), na Bélgica e Liège (1787-1790), em Genebra e na Inglaterra (1799) (HOBSBAWM, 1996, p. 10), e, mesmo no Brasil a Inconfidência Mineira, de 1789; a Conjuração Carioca de 1794 e a Conjuração Baiana (Revolta dos Alfaiates) de 1798.
Porém pelo impacto histórico que causou, foi a Revolução Francesa, sob a bandeira ideológica iluminista, que abarcava tudo o que se construiu ao longo do Renascimento, que se constitui o debate teórico e no cotidiano fático o discurso democrático.
O discurso democrático clássico associa nomes como Rousseau, Payne, John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville, condensando conceitos de bem comum e de vontade geral em torno dos atores coletivos, o povo, que seria capaz de defini-los e executá-los racionalmente, inserindo-se na definição clássica do século XVIII, “como arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo” (SCHUMPETER, 1984, p. 313), como representativa do complexo de instituições políticas reconhecidas hoje, como democracia (DAHL, 2012, p. 2).
Segundo a teoria clássica da democracia representativa, o povo, através de sua soberania, teria assegurada a garantia constitucional de poder expressar sua convicção racionalmente definida sobre assuntos de interesse público e de bem comum, através de representantes, ao que critica Schumpeter:
Em primeiro lugar não existe algo que seja um bem comum unicamente determinado, sobre o qual todas as pessoas concorrem ou sejam levadas a concordar através de argumentos racionais. Isso se deve, basicamente, não ao fato de algumas pessoas poderem desejar coisas diferentes do bem comum, mas ao fato muito mais fundamental de que, para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum está fadado a significar diferentes coisas (SCHUMPETER, 1984, p. 314).
No mesmo sentido, Norberto Bobbio afirma que ninguém tem condições de definir precisamente o interesse comum ou coletivo, a não ser confundindo interesses de grupo ou particulares com o interesse de todos (BOBBIO, 2015, p. 45), traduzindo a concepção de democracia ao exercício em público do poder (BOBBIO, 2000, p. 386). As relações sociais, entretanto, caracterizam-se pelo desejo particular de cada indivíduo de impor sua vontade aos demais, inclusive quanto ao entendimento do que seria uma demanda social, diluída em uma diversidade de outras demandas instauradas segundo interesses próprios, de forma que, se apresenta possível encontrar uma multiplicidade conceitual do que possa ser considerado como vontade comum, bem comum, consenso de interesses e atuação racional do povo.
Para podermos argumentar que a vontade dos cidadãos por si é um fator político merecedor de respeito, ela primeiro deve existir. Ou seja, ela deve ser algo mais que um feixe indeterminado de impulsos vagos que volteiam em torno de palavras de ordem ou de impressões equivocadas. Todos teriam que saber precisamente o que desejam ... Finalmente, dessa vontade precisa e desses fatos verificados ter-se-ia de tirar uma conclusão clara e pronta quanto às questões particulares ...E tudo isso o cidadão típico teria de realizar por si mesmo e independentemente de grupos de pressão e da propaganda, pois desejos e inferências impostos ao eleitorado não se qualificam, obviamente como dados últimos do processo democrático (SCHUMPETER, 1984, p. 317).
O chamado governo do povo, desta forma, constitui-se como uma ficção, pois, segundo Schumpeter, “o povo como tal nunca pode realmente governar ou dirigir” (SCHUMPETER, 1984, p. 308), admitindo apenas a existência de um governo aprovado pelo povo, sobretudo, pela observação que a conduta do povo é motivada por elementos irracionais, manipuláveis por meios de comunicação em massa, na decorrência da aglomeração, não necessariamente unida fisicamente e, da influência dos meios de comunicação, que alteram o senso de realidade do indivíduo, quanto a decisões sobre temas públicos, sobretudo, quando os problemas dele se distanciam. Assim, os eleitores “frequentemente corruptos e muitas vezes até mesmo são maus juízes dos seus próprios interesses de longo prazo, pois apenas a premissa de curto prazo diz alguma coisa politicamente e apenas a racionalidade de curto prazo se afirma de modo efetivo.” (SCHUMPETER, 1984, p. 326).
Oferece-se assim, várias evidências contra a racionalidade do comportamento do eleitor, ou seja, contra a hipótese de que a conduta do eleitor seja resultado de uma vontade independente, baseada na observação e na interpretação objetiva dos fatos e na capacidade de tirar, rápida e prontamente, conclusões racionais, sobretudo, em decorrência do despreparo intelectual e histórico para essa função. Sobre o tema:
O proletário, porém, não tinha formação e, mesmo quando veio a organizar sindicatos e opor-se de modo eficaz ao patrão, não possuía nenhuma tradição relacionada à responsabilidade que se requer de uma classe governante. Pouco sabia a respeito da história da sociedade, e pouco sabida sobre o resto do mundo; e raras oportunidades teve para aprender tais coisas. Seus patrões tinham interesse em mantê-lo ignorante (WILSON, 1988, p. 315).
Apresenta-se, nessa conjuntura, a vontade do povo não como o leitmotiv do processo político, mas como seu produto. Decorre daí a importância cada vez maior da publicidade política que, por meio de técnicas semelhantes às adotadas pela publicidade comercial, sob o impacto da tecnologia digital, em que a vida humana se apresenta interligada por acessos georreferenciados de alta velocidade, vinculando-se a lealdades construídas pelo marketing comercial e político, em que o indivíduo conduz seu raciocínio segundo os vieses cognitivos instituídos através desses compromissos que o prendem a marcas ou a ideias acríticas, difusas em senso comum, delimitado pela ordem neoliberal, em uma conjuntura em que algoritmos promovem a compreensão do humano, negociando e produzindo informações sobre o sujeito, direcionando suas escolhas por produtos e serviços, segundo suas próprias manifestações em rede de computadores, e, da mesma forma, as opões e discursos políticos adequados à sua adesão, muito mais voltada aos preconceitos pessoais do que à racionalidade da informação, de modo a formar, manipular e condicionar a vontade do eleitor, tornando vulnerável uma das hipóteses que sustenta a democracia, de que todo cidadão pode decidir a respeito de tudo, como se observou nas últimas eleições norte-americanas e brasileiras, em que os resultados foram intensamente produzidos pela mídia e por meios de comunicação, frequentemente amparados por notícias falsas, em grande parte absolutamente tolas, mas recepcionadas pelo eleitorado de forma acrítica.
A par dessas objecções, apresentadas por Schumpeter, ainda nos anos 1940, encontram-se os problemas políticos decorrentes de uma economia globalizada, cada vez mais complexa, tornando as decisões capazes de impactar seu funcionamento, cada vez mais distantes e incompreensíveis ao senso comum.
Tais circunstâncias se constituem como um paradoxo à concepção de democracia clássica, sobretudo, diante da constatação, que os cidadãos geralmente não se interessam por questões políticas, são mais ou menos indiferentes à participação, e, se juntam aos mal informados e frequentemente irracionais nas escolhas que fazem. O ideal democrático do cidadão que tem opinião e decide sobre todos os assuntos não pode, em consequência do que foi exposto, ser efetivamente cumprido.
Schumpeter vai além dessa constatação, ao afirmar que uma “decisão imposta por um órgão não democrático pode-se mostrar muito mais aceitável a todos” (SCHUMPETER, 1984, p. 319). Na visão de Schumpeter a democracia representa o reconhecimento de um procedimento que se funda na incompetência do cidadão de agir na política, razão pela qual, a democracia será exercida por homens com vontade política; com objetivos racionalmente definidos; com vontade de governar e com senso de responsabilidade (teoria do elitismo), tendo, segundo ele, sobrevivido a teoria clássica em razão de fundamentos retóricos, originários de conceitos religiosos, de ideais históricos e por conveniência política, porém sem qualquer sustentação perceptível na realidade.
Schumpeter desconstrói a teoria clássica da democracia, configurando-a como um acordo que conduzisse a vida política através de um “método democrático... acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população” (SCHUMPETER, 1984, p. 336), através de um conjunto complexo de regras e normas de atuação no modo de formulação da vida democrática.
A democracia deve ser reconhecida como um método ou procedimento político para se alcançarem decisões legislativas e administrativas, aprovadas pelo povo, através da luta pelos votos da população. Bobbio quando propõe preliminarmente um conceito mínimo de democracia também a vincula a um procedimento:
Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraproposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considera-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimento (BOBBIO, 2015, p. 35).
A permanência do regime democrático exige o respeito e a aceitação das regras do procedimento, de forma a permitir o pluralismo, ou seja, a existência de interesses e fins divergentes. Exclui-se a concepção clássica assentada na vontade do povo e no bem comum, pois, na teoria schumpeteriana, o procedimento democrático está assentado na luta competitiva das lideranças, no âmbito eleitoral, ao argumento da incapacidade intelectual do povo para se autogovernar, aliada à circunstância da vontade comum ser constantemente manipulada.
A característica da livre competição pelo voto livre tem forte similaridade com o mercado econômico, em que, empresários competem pela preferência do consumidor. Encontramos no mercado político, candidatos que disputam a preferência dos eleitores (consumidores de bens públicos). Nesse mercado, a contraprestação do eleitor é o voto, enquanto a do político é o oferecimento de uma vantagem ou serviço público, ou simplesmente a representatividade da carga de preconceitos que carregam em busca de quem lhes possa dar voz. Os partidos políticos e eleitores, à semelhança de empresários e consumidores, atuam racionalmente no sentido de que os partidos calculem a trajetória e os meios da sua atuação para maximizar os seus votos (lucros), enquanto os eleitores, da mesma forma, procuram maximizar as suas vantagens (serviços públicos), interesses ou preconceitos. Sobre o papel dos partidos políticos nesse mercado político Schumpeter esclarece:
Um partido não é, como a doutrina clássica (ou Edmund Burke) nos deseja fazer crer, um grupo de homens que pretendem realizar o bem comum... todos os partidos, é claro, em algum momento farão um estoque de princípios e plataformas; e esses princípios e plataformas podem ser tão característicos do partido que os adote e tão importantes para seu sucesso quanto são as marcas dos produtos vendidos em determinada loja... Um partido é um grupo cujos membros se propõem agir combinadamente na luta competitiva pelo poder político... Partido e máquina política são simplesmente a resposta ao fato de a massa eleitoral ser incapaz de qualquer ação que não seja o “estouro da boiada” e constituem uma tentativa de regular a competição política que é exatamente semelhante às práticas correspondentes de uma associação comercial (SCHUMPETER, 1984, p. 313).
A noção de mercado político remete à uma questão importante: o tipo de concorrência que aí se desenvolve. Schumpeter, adverte que não se trata de uma concorrência perfeita, mas sim, tal como no mercado econômico, de uma concorrência imperfeita ou oligárquica, em que elites políticas competem entre si pelo poder. Para Schumpeter a característica de um governo democrático não é, portanto, dada pela ausência de elites.
Nesse sentido se tem Norberto Bobbio:
que a permanência das oligarquias ou das elites no poder esteja em contraste com os ideais democráticos é algo fora de discussão. Isto não impede que haja sempre uma diferença substancial entre um sistema político no qual existem diversas elites concorrendo entre si na arena eleitoral e um sistema no qual existe apenas um único grupo de poder que se renova por cooptação: a existência de grupos de poder que se sucedem mediante eleições livres permanece, ao menos até agora, como a única forma na qual a democracia encontrou a sua concreta atuação (BOBBIO, 2015, p. 25-26).
O método democrático para selecionar as lideranças que tomarão as decisões legitimadas pelo voto do povo, vincula-se à existência de uma elite preparada que possua alto grau de vocação política, ou de profissionais da política, pois, as decisões precisam ser técnicas, exigindo um corpo burocrático treinado na administração pública, regida por normas de autocontrole. Portanto, para Schumpeter, a primeira condição é o capital humano, pois, “as pessoas que dirigem as máquinas partidárias, são eleitas para o parlamento, chegam ao gabinete – deve ser de qualidade suficiente alta. Isso significa que deve haver um número suficiente de indivíduos de capacidade e caráter adequados” (SCHUMPETER, 1984, p. 361).
O elitismo pode ser reproduzido como uma convicção de que sempre haverá um grupo mais capacitado que outro, isto é, naturalmente, seria impensável crer em plena igualdade social, formando vanguardas segundo seus interesses e consciência de classe. Outro ponto que não se pode ignorar é que o elitismo pode ser proveniente do racismo culturalista, que se trata de uma “dimensão não refletida do comportamento social, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um mesmo país” (SOUZA, 2017. p. 19). A premissa elitista pode estar fundamentada, espontaneamente, na própria consciência da massa popular. A imposição do pensamento elitista coloniza o subconsciente do povo, o qual se encontra em uma situação de passividade perante o Estado “democrático”.
O conjunto de críticas de Schumpeter à democracia clássica, sob a ótica da incapacidade do povo exercer uma participação direta nas instituições democráticas, parecem extremadas pela percepção da utilização da mídia de massa e de algoritmos para fixar conceitos e manipular opiniões, valorizando a importância da competição como procedimento democrático e reavivando sua proposta de experimento mental.
Schumpeter vê a necessidade de demonstrar os pressupostos de sua teoria da democracia procedimentalista e para isso procura construir um experimento mental, baseado na teoria empírica histórica de argumentos. Propõe o autor que nem sempre a estratégia política baseada na vontade do povo, culmina em democracia, pois, os governos, para satisfazerem a opinião pública, praticam coisas indesejáveis segundo uma noção de maioria.
as primeiras execuções de cristãos eram certamente aprovadas pela opinião pública e provavelmente não seriam mais amenas se Roma fosse democracia pura. A caça às bruxas nos dá outro exemplo. Cresceu da própria alma das massas e era qualquer coisa menos uma invenção diabólica dos padres e príncipes que, pelo contrário, a suprimiram logo que se sentiram capazes de fazê-lo. A igreja católica, é bem verdade, punia a feitiçaria. Mas se compararmos as medidas realmente tomadas com aquelas tomadas contra a heresia, que para Roma significava negócios, vem imediatamente a impressão de que, na questão da feitiçaria, a Santa Sé mais cedia à opinião pública do que a instigava ... No final do século XVII e no século XVIII – ou seja, quando o absolutismo monárquico já estava plenamente estabelecido no continente – as proibições governamentais acabaram por prevalecer. A maneira curiosamente cuidadosa com que uma regente tão forte quanto a Imperatriz Maria Teresa procedeu na proibição dessa prática mostra claramente que ela sabia estar lutando contra o desejo de seu povo (SCHUMPETER, 1984, p. 302).
Assim certos procedimentos, apesar de parecerem democráticos, porque estão baseados na vontade do povo, na verdade, não o são; ainda que tomadas a partir do desejo da maioria. Portanto, na construção mental de Schumpeter as estruturas e procedimentos políticos que se baseiam unicamente na opinião do povo são antidemocráticas, propondo uma experiência hipotética para demonstrar seu argumento:
Transportemo-nos a um país hipotético que, de maneira democrática, pratica a perseguição dos cristãos, a queima de feiticeiras, o massacre dos judeus. Certamente não aprovamos essas práticas apenas porque foram decididas de acordo com as regras do procedimento democrático. Mas a questão crucial é: preferiríamos a própria constituição democrática que produziu tais resultados a uma não-democrática que os evitasse? Se não preferirmos, estaremos nos comportando exatamente como os socialistas fervorosos, para quem o capitalismo é pior que a caça às bruxas e que, portanto, não dispostos aceitar métodos antidemocráticos que os suprimam. Até aqui, nós e eles estamos no mesmo barco. Há ideias e interesses últimos que o mais ardente democrata colocará acima da democracia, e que ele quer dizer ao professar uma adesão total a esta última é que está convencido de que ela garantirá tais ideais e interesses, tais como liberdade de consciência e de palavras, justiça, governo descente e assim por diante (SCHUMPETER, 1984, p. 303-304).
A construção mental de Schumpeter leva a entender que a teoria democrática antes de se pautar pela vontade da maioria, deve atender a um conjunto de regras e normas procedimentais:
A democracia é o método político, ou seja, certo tipo de arranjo institucional para se alcançarem decisões políticas – legislativas e administrativas -, e, portanto, não pode ser um fim em si mesma, não importando as decisões que produza sob condições históricas dadas. E esse deve ser o ponto de partida para qualquer tentativa de defini-la (SCHUMPETER, 1984, p. 304).
Com o experimento mental, argumenta Schumpeter que o sistema democrático é um método de resoluções efetivas a serem tomadas para regular a vida social, e não se confundiria com a opinião do cidadão comum, constituída sob a pressão de falácias democráticas, que são impulsionadas através de vieses cognitivos instituídos através da utilização dos meios de comunicação em massa, sobretudo, de redes sociais disponíveis na rede mundial de computadores.
O governo se forma na competição entre as elites, “o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população” (SCHUMPETER, 1984, p. 321). A democracia para Schumpeter, na prática, fica resumida ao processo eleitoral sujeito a manipulação capaz de fraudar a formação da vontade. Veja-se a esse respeito a atuação da mídia brasileira na midiatização instrumental da operação lava-jato destinada a viabilizar um determinado posicionamento eleitoral (GUIMARÃES, 2006, p. 17-32); ou no mesmo processo a divulgação maciça de fake-news, cuidadosamente implantada para viciar o resultado das eleições.
Certo, entretanto, que a par da utilização dos meios de comunicação em massa, para pressionar o resultado eleitoral, através de técnicas próprias da propaganda comercial, como já previa Schumpeter, formando maiorias com as possíveis consequências entabuladas no experimento mental, ao procedimento democrático afluem pressões das minorias, que constituem grupos de interesses, atuando como uma barreira à concentração de poder e à preponderância irracional de uma vontade da maioria (DAHL, 1989), não raras vezes constituída de forma artificial, para atender a interesses ideológicos e econômicos de grupos dominantes.
Na formação e mobilização dessas minorias cumpre a mesma rede social papel preponderante, que influenciou diretamente, para oferecer um exemplo, a denominada primavera árabe, que levou ao fim regimes totalitários da região e, tem se apresentado como instrumento de resistência democrática ao autoritarismo brasileiro.
Joseph Schumpeter se apresenta como um dos mais importantes economistas do século XX, que traz um importante legado, ao expor ao avesso a democracia dos regimes eleitorais do ocidente dos ideais de participação do povo nas decisões e legitimação na construção do que seja bem comum.
Demonstra Schumpeter a inviabilidade da democracia clássica representativa desconstruindo seus fundamentos básicos, centrados na capacidade de autodeterminação do povo e na impossibilidade de se determinar o que venha a ser realmente o interesse público ou comum, sobretudo, diante da complexidade das relações econômicas.
O interesse comum se vincula comumente a interesses específicos defendidos como se fossem gerais, através da manipulação e da pressão da propaganda, desqualificando a capacidade de autodeterminação, que exigiria uma utópica capacidade do povo analisar e decidir racional e prontamente sobre questões de elevada complexidade.
A partir de tais constatações, Schumpeter configura a democracia como um método institucional que estabelece as regras, que devem ser aceitas e observadas por todos, para permitir que a disputa eleitoral não exclua o pluralismo de ideias e interesses. O bem comum, poderá simbolizar uma coisa diferente para cada indivíduo, ou seja, a sociedade é formada por diversos grupos de indivíduos que não tem suas vontades representadas.
A livre disputa pelo voto, desta forma, assemelha-se ao próprio mercado econômico capitalista de competição em busca de acumulação, de um lado de riqueza e de outro de votos, através dos quais, oligarquias políticas são formadas e disputam o poder, pois, a democracia, segundo o Schumpeter pressupõe a formação de uma elite política. O ponto mais importante da crítica Shumpeteriana consiste na ignorância das pessoas não saberem apontar o que é melhor e mais relevante para elas, quando demandas públicas estão em pauta. O voto, na maioria das vezes, é decidido irracionalmente, os eleitores não buscam se informar e não se preocupam com as possíveis consequências de seus atos.
A teoria da democracia de Schumpeter é um retrato bastante fiel dos regimes políticos ocidentais, que se apresentam como verdadeiras democracias. Ao reduzir o ideal democrático, ao afirmar que o papel do cidadão no processo democrático é somente o ato de votar, expõe a crise de representatividade vivida atualmente nas democracias e a apatia dos eleitores, influenciáveis e manipuláveis, cumprindo as redes de comunicação em massa, destacada função de conduzir a disseminação de posicionamentos, nem sempre no interesse dos próprios eleitores que o absorvem.
Observa-se que através de experimentos mentais, Schumpeter demonstra a inviabilidade da teoria clássica da democracia, evidenciando que posições baseadas exclusivamente na opinião do povo, da maioria, frequentemente se apresentam antidemocráticas, concluindo que o sistema constitui um método de resoluções efetivas destinadas à regular a vida social, não se confundindo com as simples posições do cidadão comum.
A partir do experimento mental, que a formação de maiorias pode afetar a legitimidade democrática, pelo que, a formação organizada de minorias, mobilizadas através das próprias redes sociais, constitui elemento de limitação do poder e de recondução democrática.
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