Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


A ROÇA, O RETIRO E A “TAPERA”: DESCREVENDO OS SISTEMAS DE PRODUÇÃO FAMILIARES NO MUNICÍPIO DO ACARÁ, PARÁ, BRASIL

Autores e infomación del artículo

Éberton da Costa Moreira*

Estudiante

Heribert Schmitz**

Docente

Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém (PA), Brasil

Correo: costaeberton12@gmail.com


Resumo

As roças anuais são muito utilizadas para o cultivo da mandioca no Nordeste Paraense e, são estabelecidas a partir do sistema tradicional de corte e queima, constituindo-se em um importante sistema de produção usado por agricultores da Região. O objetivo deste trabalho: identificar e descrever tais sistemas usados por agricultores familiares praticantes da agricultura itinerante no município de Acará. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica junto a pesquisa de campo com observação direta e entrevistas a partir de roteiros semiestruturados. O subsistema da mandioca é o principal praticado pelos agricultores familiares locais, consistindo-se na principal fonte de renda e trabalho, todavia, não é suficiente para a manutenção da estabilidade da família no decorrer do ano. Assim, os agricultores utilizam-se de outros sistemas complementares: cultivos perenes em terra firme, nos quais são cultivados açaí (Euterpe oleracea Mart.), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) Schum) e pupunha (Bactris gasipaes Kunth), além de outras espécies frutíferas - estes cultivos em terra firme, os agricultores chamam de “taperas”. Somam-se a esses, os cultivos em igapó, onde plantam apenas açaí e preservam espécies de madeiras.

Palavras-chave: agricultura itinerante, práticas agrícolas, roça, retiro, sistemas de produção.

Resumen

Las rozas anuales son muy utilizadas para el cultivo de la mandioca en el Nordeste Paraense y, se estabelece a partir del sistema tradicional de corte y quema, constituyéndose en un importante sistema de producción utilizado por agricultores de la Región. Sin embargo, este no es el único, justificando así, el objetivo de este trabajo: identificar y describir tales sistemas utilizados por agricultores familiares practicantes de la agricultura itinerante en el municipio de Acará. Para ello, se realizó una investigación bibliográfica junto a la investigación de campo con observación directa y entrevistas a partir de guías semiestructurados. El subsistema de la mandioca es el principal practicado por los agricultores familiares locales, constituyéndose en la principal fuente de renta y trabajo, sin embargo, no es suficiente para mantener la estabilidad de la familia durante el año. Así, los agricultores se utilizan de otros sistemas adicional: cultivos perennes en tierra firme, en los que se cultivan açaí (Euterpe oleracea Mart.), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) Schum) e pupunha (Bactris gasipaes Kunth), además de otras especies frutales - estos cultivos en tierra firme, los agricultores llaman "taperas". Se suman a esos, los cultivos en igapó, donde plantan apenas açaí y preservan especies de maderas.

Palabras clave: agricultura itinerante, prácticas agrícolas, roza, “retiro”,  sistemas de producción.

Abstract

The annual crops are widely used for the cultivation of cassava in the Northeast of Pará and are established using the traditional slash and burn system, that constitute an important system of production used by farmers in the Region. However, this is not the only one, justifying the purpose of this work: identify and describe such systems used by family farmers that practice shifting cultivation in the city of Acará. For this, a bibliographical and field research with direct observation was carried out and interviews from semi structured scripts. The cassava subsystem is the main one practiced by local familiar farmers, being the main source of income and labor, but it is not enough to maintain family stability during the year. There for, farmers use other complementary systems: perennial crops (solid ground), in which açaí (Euterpe oleracea Mart.), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) Schum)  and pupunha (Bactris gasipaes Kunth) are cultivated, as well as other fruit species – that they called "taperas". Added to these, the crops in igapó, where they plant only açaí and preserve species of wood.

Keywords: agricultural practices, shifting cultivation, crops, “retiro”, production system.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Éberton da Costa Moreira y Heribert Schmitz (2019): “A roça, o retiro e a “tapera”: descrevendo os sistemas de produção familiares no município do Acará, Pará, Brasil”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (junio 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/06/sistemas-producao-familiares.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1906sistemas-producao-familiares


1. INTRODUÇÃO

A agricultura itinerante (shifting cultivation) é praticada nas regiões tropicais do planeta há milhares de anos. Consiste num sistema de cultivo para espécies anuais, marcado pela rotatividade das roças. A área é utilizada por períodos que variam de um a dois anos e em seguida, deixada em repouso (pousio) por um período variável que depende da disponibilidade de florestas para a abertura de cultivos novos. A agricultura itinerante comumente ocorre devido a sua baixa onerosidade ao agricultor (JESUS et al., 2015; SILVA; OLIVEIRA, 2014).
O método mais frequentemente utilizado para abertura das roças na floresta primária ou secundária (capoeira) é chamado de “corte e queima” (slash and burn) ou “sistema de corte e queima”, no qual, utilizam-se machados, facões e motosserras para a derrubada da vegetação, e após algumas semanas, o material orgânico seco será queimado (VIANA; STEWARD; RICHERS, 2016). Além das nomenclaturas já mencionadas até aqui, a agricultura itinerante recebe outras denominações. Ianovali et al. (2018: 222) apontam algumas dessas nomenclaturas: “cultivo/agricultura itinerante, roça de coivara, roça de toco, e agricultura de corte-e-queima, normalmente considerados sinônimos entre pesquisadores”, além de agricultura migratória. Apesar de as diversas nomenclaturas serem comumente usadas como sinônimas, é preciso distingui-las. Para Schmitz (2007: 46)

Na maioria dos estabelecimentos da agricultura familiar da Amazônia é usado o sistema tradicional da agricultura, chamado de sistema corte e queima, caracterizado pelo uso de uma área por um a dois anos, seguido por vários anos de pousio. Para esta forma de agricultura migratória com a rotação da área cultivada dentro dos limites do estabelecimento ocupado continuamente pelo agricultor, é usada a expressão agricultura itinerante. (SCHMITZ, 2007: 46).

Neste texto, usa-se, predominantemente, agricultura itinerante e sistema de “corte e queima”, ou apenas “corte e queima”, tendo em vista que analisa-se uma agricultura praticada dentro dos limites do lote, usado por gerações de uma mesma família de forma comum.
Até a década de 1980, a maioria dos estudos sobre agricultura itinerante preocupavam-se principalmente com as dinâmicas do uso do solo, bem como os danos decorrentes do uso do fogo no preparo das roças (NYE; GREENLAND, 1960; BOSERUP, 1972; SANCHEZ et al., 1982), estratégia usada para agregar nutrientes ao mesmo. Segundo Martins (2005),

A roça é representante do tipo de agricultura de derrubada e queima ou de pousio ou agricultura de coivara, em que o índio e o caboclo abrem uma clareira dentro da vegetação primária ou em diferentes estágios de sucessão e ateiam fogo. Dessa maneira, ele incorpora nutrientes ao solo e aí estabelece uma comunidade de plantas que apresenta heterogeneidade de espécies. (MARTINS, 2005: 209).

A partir dos anos 1980, os principais estudos realizados voltam-se para a discussão acerca da questão ambiental, muito em função do momento político da época, o sistema praticado milenarmente passa a ser questionado, apontado como o grande vilão do desmatamento. Por outro lado, alguns pesquisadores apontam que a principal causadora do desmatamento na Amazônia é a agropecuária, os grandes proprietários de terras e não os agricultores familiares que praticam agricultura itinerante (KITAMURA, 1982; FEARNSIDE, 1989; HOMMA et al., 1993; HURTIENNE, 2005).
No Nordeste Paraense, a agricultura itinerante é muito usada por agricultores familiares para o cultivo de culturas anuais como a da mandioca (Manihot esculenta), associada a outros cultivos semianuais (FONSECA; CASTRO, 2017). No entanto, o cultivo da mandioca não é o único, apesar da grande relevância para a região. De acordo com Hurtienne (2005), há uma grande diversidade de sistemas de produção que apesar do pouco uso de insumos externos aos estabelecimentos, apresentam eficiência relativa. Na Amazônia, sobretudo no Pará, “os sistemas de produção familiar oferecem também possibilidades de integrar cultivos (agro)florestais e pecuária, facilitando assim a tração animal (como substituto do uso de tratores)” (HURTIENNE, 2005: 31).
Antes de apresentar os objetivos deste trabalho, será discutido o conceito de sistema de produção usado no texto. A compreensão de sistema de produção adotada é aquela de Guanziroli et al. (2001: 116), e é entendido “como um conjunto coerente de combinações de culturas e criações dentro de uma unidade de produção [...] combinando várias culturas, criações animais e transformações primárias tanto para o consumo da família como para o mercado”. Para uma maior abrangência, é considerada também a perspectiva de Mazoyer e Roudart (2010: 72), segundo os autores diferentes formas de agricultura “podem ser classificadas em um número finito de categorias, como objetos complexos que podem ser analisados como sistema, a princípio, delimitando a fronteira entre o objeto e o resto do mundo, considerando-o como um todo”. Assim, analisar um objeto complexo enquanto sistema é “considerar seu funcionamento como uma combinação de funções interdependentes e complementares, que asseguram a circulação interna e as mudanças com o exterior de matéria, de energia e, tratando-se de um objeto econômico, de valor”. Deste modo, para análise da agricultura enquanto sistema, é preciso “decompor mesma agricultura em dois subsistemas principais: o ecossistema cultivado e o sistema social produtivo, estudando tanto a organização e o funcionamento de cada um desses subsistemas, como suas inter-relações”.
Levando em consideração a diversidade de sistemas de produção familiares, encontradas no Nordeste Paraense, àquela discutida por Hurtienne (2005), somados ao da mandioca e sua já discutida relevância cultural e econômica para a Região, o objetivo deste trabalho é identificar e descrever tais sistemas usados por agricultores familiares praticantes da agricultura itinerante no município de Acará.

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ADOTADOS

A pesquisa empírica foi realizada na Comunidade Nossa Senhora do Bom Remédio, em Acará, município localizado na Mesorregião Nordeste Paraense. O município possuía, em 2018, uma população estimada em 55.513 habitantes, tendo como principais atividades produtivas àquelas relacionadas à agricultura e a pecuária, tais como dendê, açaí e extração de madeiras além de produtos granjeiros e frutas diversas. O acesso pode ser feito via Rio Acará ou pela rodovia PA 252 e outras diversas estradas vicinais que recortam o município (IBGE, 2018; ACARÁ, 2019). Já a Comunidade, está localizada a 1°46'04.6" de latitude Sul e 48°14'39.8" de longitude Oeste no município. Conta com uma população de aproximadamente trinta pessoas integrantes de seis famílias agricultoras. As principais atividades produtivas lá desenvolvidas estão ligadas à agricultura, além da criação de animais de pequeno porte como galinhas e patos. O acesso à localidade pode ser feito por via aquática, através do Igarapé Araxiteua ou, via terrestre por uma estrada de chão.
Esta pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira, realizou-se pesquisa bibliográfica em portais de periódicos, a fim de caracterizar a categoria agricultura itinerante, levantando as principais questões relacionadas à temática e dados importantes sobre a mesma. A segunda etapa consistiu em pesquisa de campo, realizada na Comunidade, onde foram realizadas três visitas. Na primeira, foi realizada observação e uma entrevista teste a fim de identificar os principais problemas nos roteiros semiestruturados, de maneira que foi possível aperfeiçoá-los para a segunda e terceira etapas, nas quais os agricultores foram entrevistados, além da continuidade da observação nos ambientes de trabalho e sobre a organização local. As imagens e entrevistas usadas neste estudo foram cedidas aos autores, mediante termo de cessão de direitos sobre o uso das imagens e entrevistas gravadas por parte dos agricultores.
Todos os dados levantados tanto na primeira etapa, quanto na segunda, foram analisados qualitativamente. O entendimento de análise qualitativa seguido neste estudo é aquele defendido por Teixeira (2009: 137), segundo o qual, a metodologia qualitativa é aquela na qual “o pesquisador procura reduzir a distância entre a teoria e os dados, entre o contexto e a ação, usando a lógica da análise fenomenológica, isto é, da compreensão dos fenômenos pela sua descrição e interpretação.” A observação é um método utilizado sobretudo nas ciências humanas e sociais, consiste na utilização dos “sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade”, ajudando “o pesquisador a identificar e obter provas a respeito de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência [...] e obriga o pesquisador a um contato mais direto com a realidade” (MARCONI; LAKATOS, 2011: 76).

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados obtidos indicam a coexistência de diversos sistemas de cultivo complementares no decorrer do ano. O subsistema da mandioca é o principal deles, dada a já mencionada importância dessa cultura para os agricultores familiares não só do Nordeste Paraense, mas do País (HURTIENNE, 2005; SILVA; MURRIETA, 2014). Silva e Murrieta (2014) demonstram que antes da chegada dos colonizadores europeus, a mandioca já havia sido domesticada pelos povos americanos e que, ao longo da formação histórica brasileira assume papel importante sobretudo para a subsistência de populações locais. Além da mandioca, outras culturas importantes são complementos para a renda familiar ao decorrer do ano como o açaí (Euterpe oleracea), o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), a pupunha (Bactris gasipaes) e algumas de menor importância. Estas últimas são cultivadas em cultivos perenes, a maioria, mistos, que os agricultores denominam de tapera.
O trabalho em roças através do sistema de corte e queima existe há mais de setenta anos na comunidade. O lote foi herdado pelos atuais donos de seus pais, aos quais foi doado pelo antigo proprietário que, segundo os moradores, não tinha posse legal da área. Na ocasião da doação, a família trabalhava no lote em troca de dar uma parte da produção para o dono da terra. Os agricultores chamam esse processo de “trabalhar de meia”, isto é, como pagamento para cultivar a área, o agricultor dá metade da produção ao proprietário. Não se sabe ao certo o motivo da doação, mas a partir dela a área passa a posse da família cujos filhos e netos ainda ocupam e cultivam o lote até os dias atuais.
O período de abertura das roças marca o início do ciclo da mandioca, principal atividade produtiva da Comunidade. O trabalho de roçagem (ou derrubada) é feito exclusivamente por homens, com instrumentos simples como machados, facões e foices. Raramente é usado a motosserra, devido a capoeira fina (floresta secundária baixa) ser predominante no lote de 70 hectares compartilhado por seis famílias residentes na localidade. O trabalho em roças, a partir do sistema de corte e queima, acontece há aproximadamente setenta anos. Em decorrência disso, algumas técnicas precisaram ser adaptadas, entretanto, o método de abertura das roças sofreu poucas alterações.
Atualmente, em função do aumento do número de famílias trabalhando numa área limitada (deve-se destacar que dos 70 hectares do lote, aproximadamente 50% são de igapó e de áreas úmidas nas quais a mandioca apodrece). O pousio está reduzido a uma média de dois anos, impedindo a reposição de nutrientes e, consequentemente, menor produtividade da mandioca (RÊGO; KATO, 2017). Entre os meses de maio e novembro são abertas as roças, inicialmente, a área é marcada para reconhecimento dos demais moradores devido ao fato de se tratar, na prática, de uma área de uso comum de seis famílias. Este procedimento serve para alertar que ali será feita uma roça e que portanto, não está disponível para outras. Existem duas variedades de roças: 1) roças de verão: são abertas entre maio e o plantio é realizado até setembro; e, 2) roças de inverno: são chamadas de “janeiros”, pois o mês de janeiro é o último mês em que a maniva será plantada; são roçadas a partir de outubro. Algumas semanas após a abertura, o material orgânico seco está pronto para ser queimado.
É necessário que as roças sejam plantadas logo após a queima, pois, o crescimento de ervas daninhas é rápido. Para que este trabalho seja feito imediatamente, algumas famílias contratam mão de obra externa ou realizam troca de dias com os vizinhos, além de mobilizar todos os membros da família. As manivas são plantadas em covas abertas com enxadas num espaçamento de 1m x 1m, sendo recolhidas das próprias roças que onde são “arrancadas”, ou das roças de vizinhos, tal como demonstrado por Fonseca e Castro (2017). Nas roças de verão, o plantio acontece entre os meses de agosto e setembro; já nas de inverno, essa atividade pode se estender de novembro a janeiro. Além da mandioca, são cultivadas outras espécies alimentícias, sobretudo nas roças de inverno devido ao período de chuvas. Milho (Zea mays), arroz (Oryza Sativa) e melancia (Citrullus lanatus) são as principais culturas.
Algumas semanas após o plantio da maniva, é preciso “capinar”. Quando feita de maneira tradicional, são necessárias duas ou três capinas, no entanto, algumas famílias agricultoras, optam por usar herbicidas, outras, preferem o modo tradicional, pois consideram os herbicidas nocivos tanto a saúde quanto para o meio ambiente. Este trabalho demanda mão de obra externa ao estabelecimento, levando os agricultores a buscar empreiteiros (agricultores que realizam trabalhos a terceiros por um determinado valor monetário) disponíveis, aquelas pessoas que prestam serviço aos demais. Soma-se a isso, a “troca de dias”, um sistema de ajuda mútua, no qual os vizinhos ajudam-se para realização de determinadas atividades com mais rapidez, neste caso, capinar as roças.
Por volta de onze ou doze meses após o plantio, começa o período de colheita. Ao longo do ano o produto, será retirado em pequenas quantidades, uma ou duas vezes por semana, num procedimento chamado de “botar mandioca” pelos agricultores, geralmente feito pela manhã. As manivas são cortadas e as raízes arrancadas, em seguida, é feita a destoca e a mandioca é levada a um pequeno igarapé onde ficará submersa até amolecer completamente, a partir daí, iniciam-se os procedimentos do retiro, descritos na seção seguinte. Os agricultores locais produzem dois tipos de farinha: a “farinha d’água” e a “farinha seca”. Essa segunda, é aquela “onde as raízes são transportadas para a casa de farinha, e na sequência as cascas são retiradas (raspagem), as raízes são lavadas e colocadas para a ralação, a massa fresca é prensada, peneirada, escaldada, peneirada novamente e torrada” (FONSECA; CASTRO, 2017: 22).
O retiro é o espaço onde a mandioca é processada e armazenada até chegar a farinha d’água que será consumida na comunidade ou, vendida nas cidades. A maior parte da produção é destinada ao mercado, já que a principal parte da renda da família é obtida através da agricultura de corte e queima e seu principal produto na comunidade: a farinha de mandioca. O processo concernente a esta etapa da produção pode ser notado na fala de um agricultor local:

[...] A pessoa descasca, traz, bate. Agora já tem mais uma vantagem, o caititu né? Com motor, leva o motorzinho pra lá, a gente quebra toda no caititu a mandioca. Aí a gente só faz colocar no tipiti e coar. Aí depois vai pro forno. Aí eles mexem lá, até torrar acho que é uns trinta minutos, pra tirar uma fornada de farinha.
Olha, a farinha d’água é a que a gente trabalha, é melhor do que a farinha seca. A farinha seca é ruim demais. [...] a farinha d’água, a gente joga na água, passa aí quatro cinco dias, aí a gente vai descascar. Descasca e torra logo. A farinha seca é tirado duro na roça, raspado, quebrado e torrado assim mesmo duro. Por isso que ela é tratada como farinha seca. (Morador da Comunidade, 2018).

Na comunidade, a farinha d’água é a mais produzida. Após ser retirada das roças, as raízes ficam imersas em água corrente por quatro ou cinco dias, após isso, são descascadas, levadas a uma caixa de madeira onde é ralada através do catitu. A partir daí, será posta para secar com o emprego do tipiti, um instrumento rústico feito com talas ou fibras de plástico onde a massa é posta para secar por até cinco minutos. Em seguida, é peneirada e logo após irá ao forno, onde será torrada por até quarenta e cinco minutos.
A farinha de mandioca é vendida na comunidade ou em Belém, capital do estado do Pará. É transportada em barcos ou ônibus em pacotes que pesam trinta quilos. No entanto, antes de chegar ao barco ou ônibus nos quais será transportada até a sua venda, a farinha já empacotada é levada do retiro para as casas e só de lá, será embarcada, no caso dos barcos, ou ainda, levada até a comunidade de onde sairá o ônibus por volta de duas horas da madrugada.
O retiro é também um espaço de socialização, de trocas. As relações sociais são estabelecidas entre os vizinhos e famílias inteiras que dividem o espaço que vai além de um simples espaço de trabalho. É um espaço de convívio. Enquanto os mais velhos se ocupam da produção da farinha de mandioca, as crianças brincam, interagem entre si. Por outro lado, os adultos estabelecem trocas que vão desde frutas até mão de obra, ajudando-se entre si na realização da atividade. No ambiente de trabalho, toda a família é reunida na ocasião da produção da farinha de mandioca. Neste sentido, pode-se interpretar o retiro de acordo com o proposto por Linhares e Santos (2014):

[...] a casa de farinha não é um espaço onde se produz apenas a matéria (farinha) por meio do beneficiamento da mandioca, mas sim, a produção de uma cultura, na qual o ser humano está se reproduzindo coletivamente enquanto ser multiplicador desse saber construído e edificado. (LINHARES; SANTOS, 2014: 55).

Tapera é o nome dado pelos agricultores aos cultivos perenes, geralmente mistos. São estabelecidas em terra firme, em áreas de antigas roças, próximas às casas ou retiros. Ao redor dos retiros existe sempre uma plantação de culturas frutíferas diversas. Assim como em algumas roças, nas quais são plantadas também culturas perenes. Ao se deixar aquela área em pousio, no caso das roças, ou mudar o retiro de local, essas espécies continuam sendo cultivadas nas áreas chamadas de taperas. Em algumas áreas onde existem taperas, a vegetação é mais alta que nas demais.
No período chuvoso, as frutas provenientes das taperas são importantes para a composição da renda familiar, pois, no período de chuvas, não a mandioca ainda não está pronta para ser colhida. Assim, o cupuaçu e a pupunha são vendidos a fim de complementar a renda familiar. A pupunha é vendida em cachos na própria comunidade ou nas cidades. O cupuaçu, por sua vez, é vendido de duas formas: in natura e em polpa que é congelada e armazenada. De ambas as formas, é comercializado tanto na comunidade quanto nas cidades. Outro fator importante acerca deste último é que, quando em polpa, pode ser conservado congelado por longos períodos, assim, os agricultores podem comercializá-lo fora da safra, por preços mais altos.
Apesar de importantes, estes cultivos em terra firme não são de muita relevância se comparados aos cultivos de açaí em igapó. Apesar deste ser cultivado nas taperas como as demais culturas perenes, a maior parte dos cultivos de açaí está também localizada no igapó, onde, nos períodos chuvosos, o solo fica submerso. Um aspecto importante no estabelecimento de açaizais nesta vegetação é que a floresta não é derrubada completamente: aos poucos, os agricultores vão plantando mudas de açaí e preservam algumas espécies de madeira importantes.
Os açaizais são estabelecidos em áreas de igapó, cuja característica principal é a inundação das áreas em parte do ano, o que deixa o solo úmido e lamacento constantemente. Nessas áreas, a floresta é bem conservada e preserva algumas espécies de madeira importantes e, quando os agricultores plantam o açaí, deixam-nas entre os açaizais. Assim, nos cultivos de açaí no igapó, são mantidas e preservadas importantes espécies de madeira. Deve-se esclarecer que os agricultores locais não comercializam madeiras, retiram, quando necessário, apenas para suas próprias casas.
O açaí é sobremaneira importante para a manutenção das famílias. O período de colheita do mesmo começa por volta do mês de junho e estende-se até meados de setembro. Durante estes meses a mandioca deixa de ser a principal fonte de renda das famílias. O açaí assume esse papel. Para ser colhido, é necessário subir nas palmeiras, para tanto, utiliza-se um instrumento chamado de “peconha”, cuja função é afixar os pés ao caule das árvores. Ao ser colhido, retira-se os grãos dos cachos. O açaí será vendido em grãos na própria comunidade, a atravessadores, responsáveis por escoar a produção. Além disso, pode ser vendido em polpa nas comunidades vizinhas.
As taperas e os açaizais podem ser caracterizadas como sistemas agroflorestais (SAFs), pois, “combinam, de forma integrada, árvores, arbustos, cultivos agrícolas e/ou animais em uma mesma área” (PEZARICO et al., 2013). Segundo esses autores, os SAFs apresentam-se como uma alternativa viável para substituir o sistema de corte e queima no estabelecimento, entretanto, na comunidade é praticado apenas para o estabelecimento de cultivos perenes mistos. O fator que mais chama atenção é a preservação de espécies de madeira junto aos açaizais no igapó, que servem apenas para o uso dos moradores da própria comunidade, nunca são vendidas. Por outro lado, na terra firme, os cultivos perenes ou as taperas ou ainda, sistemas agroflorestais, são estabelecidos sem o uso do fogo e de forma gradativa, isto é, as culturas importantes são plantadas junto às nativas, que vão sendo retiradas de acordo com o crescimento das culturas domésticas.
É importante ressaltar a complexidade dos sistemas acima descritos, bem como, as conexões existentes entre os mesmos. Todos estão interligados e de forma lógica, complementam-se com a finalidade de manter a estabilidade econômica da família. É o caso do açaí, que passa a ser o principal produto comercializado no período de safra. Ou ainda, as frutas provenientes das taperas, que no período de safra, assumem esse mesmo papel. Soma-se a isso, a ligação dos agricultores com os sistemas. Toma-se como exemplos, a marcação das roças e o sistema de “troca de dias” para as capinas. Percebe-se então, que há uma complexa rede de relações sociais pelas quais os indivíduos mantém seus modos de viver e reproduzir-se. Corrobora-se, então, com a compreensão de sistemas de produção adotadas neste estudo, a saber, a denominação desenvolvida por Guanziroli et al. (2001), além da de Mazoyer e Roudart (2010).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Este trabalho tem como objetivo descrever os sistemas de produção usados por agricultores familiares, compreendendo a relevância da agricultura tradicional responsável por garantir a reprodução social das populações rurais no Nordeste do Pará. Para sua realização, tomou-se como locus de pesquisa empírica, uma comunidade do interior do município do Acará. Como demonstrado no decorrer do texto, a principal prática agrícola adotada pelos agricultores é a de corte e queima que, apesar dos danos ambientais decorrentes da prática, continua sendo eficaz e preserva características tradicionais, tal qual, os cultivos perenes e as casas de farinha. Neste sentido, vale ressaltar a utilidade de tais sistemas, pois, apesar das poucas alterações advindas de incrementos tecnológicos, preservam suas características rústicas. Percebe-se então, o significado efetivo desses sistemas de produção tradicionais, que prevalecem mesmo diante da chamada agricultura moderna.
Entende-se que as práticas adotadas para o cultivo de diferentes espécies importantes para a manutenção das famílias no campo baseiam-se na tradição. Ressalta-se, então, a importância de tais conhecimentos tradicionais, mediante a relevância dos produtos produzidos e comercializados pelos agricultores locais. Neste sentido, é importante compreender, primordialmente, como são estabelecidas as relações entre os agricultores e os sistemas a partir dos quais produzem os meios necessários para sua sobrevivência. Por fim, trata-se de uma forma de cultivo que exige bem menos recursos dos agricultores, o principal elemento para a persistência da prática nas regiões tropicais.

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*Graduando em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará, Belém-PA, Brasil. Desenvolve pesquisa sobre agricultura familiar e atua como residente (UFPA/CAPES).
** Doutor em Sociologia e Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia e Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas-UFPA, Bolsista de Produtividade CNPq.

Recibido: 16/06/2019 Aceptado: 24/06/2019 Publicado: Junio de 2019


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