Eduardo Henrique Lopes Figueiredo*
André Martins Tavares Scianni Morais**
UFPR, Brasil
Correo: figueiredoe07@gmail.com
Resumo
O presente artigo procura abordar o papel exercido pelo Direito na conformação do chamado direito à cidade. Parte-se da premissa de que o termo direito à cidade tem sido utilizado de maneira indistinta, tanto por movimentos sociais, quanto pelo próprios acadêmicos que se propõe a estudar o tema, criando, assim, um cenário de indeterminação conceitual e axiológica sobre seu alcance e proteção. O objetivo, então, reside em trabalhar o direito à cidade a partir de uma retomada das ideias pioneiras de Henri Lefebvre, aliando tais conhecimentos à noção e à história de atribuição dos direitos de cidadania no Brasil. Diante disso, propõe-se, através de pesquisa iminentemente bibliográfica, estabelecer a conformação do direito à cidade como, em essência, um direito fundamental coletivo e verdadeiro meio de alcance da cidadania plena dos indivíduos.
Palavras-chave: Direito à cidade; Henri Lefebvre; Cidadania; Produção Social do Espaço; Direitos fundamentais.
Abstract
The present article seeks to address the role of law in shaping the so called right to the city. It is based on the premise that the term "right to the city" has been used in an indistinct way, both by social movements and by the academics who intends to study the theme, thus creating a scenario of conceptual and axiological indeterminacy about its scope and protection. The aim, then, is to work on the right to the city based on a resumption of the pioneering ideas of Henri Lefebvre, combining such knowledge with the notion and history of the attribution of citizenship rights in Brazil. In view of this, it is proposed, through imminently bibliographical research, to establish the conformation of the right to the city as, in essence, a fundamental collective right and a true means of reaching the full citizenship of individuals
Key words: Right to the city; Henri Lefebvre; Citizenship; Social Production of Space; Fundamental rights.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Eduardo Henrique Lopes Figueiredo y André Martins Tavares Scianni Morais (2019): “A cidade como um direito: o papel do direito no direito à cidade”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (mayo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/05/papel-direito-cidade.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1905papel-direito-cidade
O termo “direito à cidade”, atualmente, tem se mostrado uma expressão versátil, plurivalente. De movimentos sociais e manifestações públicas aos simpósios e debates acadêmicos, o termo tem sido utilizado ora como pauta política, ora como objetivo de luta. Tem significado, ainda, uma forma de expressão por uma nova vida urbana, como mais um entre os demais direitos sociais a serem efetivados pelo Estado, e, até mesmo, como um conjunto aglutinador desses direitos sociais que se relacionam às vicissitudes da urbanização.
Todos esses caminhos, por certo, não se excluem, mas demonstram uma certa ausência de rigor em seu tratamento, variando conforme a reivindicação de cada grupo social ou de acordo com o espectro de análise de cada ambiente político ou acadêmico. Fato é, a partir de todas estas análises, que a expressão “direito à cidade” tem sido utilizada de forma indistinta e desmedida, dando azo a interpretações nem sempre uniformes sobre tal garantia.
Em razão desse iminente caráter polissêmico, o geógrafo brasileiro Marcelo Lopes de Souza propõe uma análise crítica quanto ao uso excessivo e incoerente do termo. No pensamento de Souza (2010), o referido conceito tem sido utilizado como expressão “guarda-chuva” por ONGs, institutos de pesquisa e, até mesmo, pelos próprios estudiosos da questão urbana, tal qual acontece com o vocábulo “sustentabilidade”. Wilson Levy, no mesmo embalo, alerta para o fato de que o acolhimento da compreensão que assume existir inúmeros significados para a noção de “direito à cidade” pode ser incompleta e, até mesmo, perigosa, uma vez que está exposta a interpretações nem sempre constantes ou uniformes (SILVA NETO, 2016).
A compreensão desta pesquisa segue os rumos acima delineados. A visão tida por progressista de que o conceito de direito à cidade pode ser aberto ou polissêmico, não leva em conta que tal opção pode mostrar-se arriscada e, inclusive, mais enfraquecer do que fortalecer a ideia que prega um direito progressivo, inclusivo e democrático. E nesse cenário de descompasso e imprecisão conceitual, emerge a necessidade de se estabelecer uma delimitação concreta sobre o direito à cidade que se mostre consentânea com a realidade de produção do espaço no Brasil e que, sobretudo, se apoie em determinados referenciais teóricos que deem supedâneo às conclusões que virão a ser extraídas.
O presente artigo, então, pretende dedicar algumas linhas à análise da questão urbana por aquela ciência que, segundo Wilson Levy, talvez tenha sido a “última a chegar” nos estudos urbanos, ou, em suas palavras, “sobre a área que por último se preocupou em produzir reflexão teórica sobre o território” (2016, p.199). Trata-se do estudo das vicissitudes do ambiente urbano através das nuances do Direito. Mais uma vez com Levy, durante muito tempo, o Direito manteve com a cidade uma relação meramente instrumental, qual seja: as leis, produzidas, em geral, pelo parlamento, relegavam o território como um mero espaço submetido à vontade estatal, que, em consequência, se materializaria através da regulação (SILVA NETO, 2016).
Diversos temas como o zoneamento da cidade, “o que” e “onde” construir, a influência prática dos planejamentos urbanos, dentre outros diversos pontos, estavam sob o domínio do Direito, sem que qualquer exame coberto de maior acuidade e propriedade dos temas que envolvessem urbanismo e geografia fossem devidamente levados em conta. Mais uma vez com Levy, o Direito apenas “viabilizava ações estatais sem, contudo, defini-las segundo sua gramática específica, em especial aquela ancorada na narrativa histórica dos direitos fundamentais” (SILVA NETO, 2016, p.199).
É daí que surge o mote para as linhas que a partir de agora se seguirão. Como debater o direito à cidade num cenário jurídico? Seria ele mais um direito dentre os direitos sociais conquistados ao longo dos anos e tratados como obrigações positivas do Estado? Ou seria ele, pelo contrário, um conjunto de diferentes direitos sociais a ser vislumbrado pelo Estado, abarcando, dentre outros, os direitos à moradia, ao transporte público e à mobilidade urbana? Sem embargo das questões acima levantadas, poderia o direito à cidade ser considerado uma plataforma política, um novo paradigma para se encarar o urbano face a atual sistemática de produção do espaço?
Como bem adverte a professora Ana Fani Alessandri Carlos, os direitos do homem, segundo noção extraída dos ensiidntos de Norberto Bobbio, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos. Isso quer dizer que os direitos do homem nascem em certas e determinadas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades e em oposição aos velhos poderes, bem como desenvolvidos de modo gradual no tempo (CARLOS, 2017). E se assim o são, resta saber qual o momento histórico que permitiu com que a sociedade pensasse na necessidade do estabelecimento de um “direito à cidade” apto a ser alçado como uma “nova esfera de proteção” (CARLOS, 2017), por meio de um direito juridicamente determinado.
O debate sobre o direito à cidade, segundo a geógrafa brasileira, se assentaria num momento em que a sociedade urbana “se constitui enquanto tal deslocando as contradições (nas quais se realizam as relações sociais) da esfera do trabalho para a esfera urbana, entrando na prática da vida cotidiana, mudando-a radicalmente” (CARLOS, 2017, p.52). A cidade, em sua visão, como obra civilizatória, acaba por mundializar-se ao longo do tempo, tornando-se tanto um modo de vida, como um destino do homem. E, simultaneamente, no mundo contemporâneo, ao tornar-se um produto do sistema capitalista, constitui-se como meio e produto de sua própria realização.
Quer dizer, a cidade, enquanto aprisionada ao universo da lógica do capital, acaba por se reproduzir ambicionando um processo de acumulação, o que, em verdade, se realiza contra o intuito social. O direito à cidade, desta forma, emerge das situações de conflito que brotam da cena urbana e, nas palavras da autora, “surge na esteira dos “novos carecimentos” em função da mudança das condições sociais e do sentido da história” (CARLOS, 2017, p.52).
A imprescindibilidade de um “direito à cidade”, nos dias correntes, se situaria, portanto, numa esfera de criação de novos direitos, que, por sua vez, se aplicam dentro de um movimento de reprodução da própria sociedade capitalista (CARLOS, 2017). Se Bobbio diria que a criação de direitos, por si só, não justificaria a sua existência, e que o importante seria definir as circunstâncias em que se nascem tais direitos, o direito à cidade, no Brasil, pode ser bem definido enquanto projeto histórico e como resultado de lutas por seu desenvolvimento.
O advento da Constituição de 1988, nesse percurso, foi um marco significativo no tratamento das questões urbanas e, em tese, na construção da ideia de direito à cidade no país. A nova Carta foi aplaudida por acolher importantes reivindicações dos movimentos sociais urbanos que, ao longo do processo de sua elaboração, na Assembleia Nacional Constituinte, tiveram participação ativa. E foi no capítulo “Da Política Urbana” que os artigos 182 e 183 vieram a dispor, em específico, sobre as questões que propriamente se detinham sobre o espaço urbano e suas diretrizes.
O início do século XXI, nesse embalo, apresentou-se “como um momento de expectativas de mudança para os movimentos sociais, para os urbanistas e estudiosos engajados com a pauta da reforma urbana” (MILANO, 2016, p.64). E, a rigor, o período é realmente marcado por atividades inéditas no sentido de uma “guinada de ressignificação da política urbana brasileira” (MILANO, 2016, p.64). Além de outros pontos históricos, o direito à cidade é oriundo do movimento pela reforma urbana iniciado na década de 1980, que veio a promover sensíveis mudanças no contexto de redemocratização do cenário brasileiro 1.
E o marco de tal virada progressista pode ser endereçado, em princípio, ao Estatuto da Cidade, que, em sua promulgação, inovou ao unir participação popular à ideia de cidade sustentável, bem como ao relacionar as diretrizes e os meios instrumentais para consecução de políticas públicas urbanas no Brasil. O Estatuto da Cidade, lei federal nº 10257 de 2001, como dito, foi uma das conquistas do movimento, vindo a criar uma nova estrutura jurídica para o desenvolvimento urbano, com perceptíveis mudanças, em especial, sobre o direito à propriedade, que passa, então, a incorporar a ideia de direitos urbanos e sua relação com a sustentabilidade, mas, sobretudo, “impondo limites ao livre e pleno desenvolvimento da propriedade privada do solo” (FERNANDES, 2013, p.212).
A nova lei, então, além de apresentar um notável caráter democrático nos planos político e social, mostrou-se como um veículo essencial na tentativa de remoção das desigualdades e de acesso à justiça social. Trata-se, assim, de um diploma que aspira uma teórica concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e eleva a indivisibilidade dos direitos fundamentais. Com o escopo de fomentar o exercício da cidadania e da democracia participativa, o estatuto da cidade dedicou um capítulo exclusivo sobre a gestão democrática da cidade, na busca de promover a construção, bem como a reconstrução do ambiente urbano, na medida em que se observe a opinião e a participação da população.
O diploma citadino, promulgado no ano de 2001, foi, em síntese, uma das mais importantes conquistas para a garantia de uma gestão democrática para política urbana nas cidades brasileiras. Através da promoção da justiça social, o estatuto travou um interessante caminho na tentativa de concretizar a participação do cidadão nos rumos dados à cidade em que habita. Mas apesar da retórica textual e do otimismo de diversos autores para com as orientações da lei, cerca de dezessete anos após o advento do Estatuto, muito pouco de suas disposições inovadoras vêm sendo cumpridas e efetivadas na realidade das cidades brasileiras, o que levou Édesio Fernandes a sacramentar que, em verdade, “o Brasil, e os brasileiros, ainda não fizeram por merecer o Estatuto da Cidade” (FERNANDES, 2013, p.233).
A luta e as ações em nome do direito à cidade, por tudo isso, muito embora sejam realizações que mereçam todo destaque, aparentam ser, na visão de Carlos, um empreendimento meramente formal. Tal questão, para autora, se encerraria no campo jurídico, uma vez que, ainda objetivando a diminuição das desigualdades socioespaciais, o direito à cidade, enquanto compatível à esfera de criação de novos direitos dentro de um conjunto de direitos sociais, tem sido testemunha do aprofundamento da segregação espacial e, ainda, espectador ativo da manutenção das práticas de concentração de riqueza no país.
Em razão disto, poderia o direito à cidade contentar-se em ser a reflexão dos objetivos contidos no Estatuto da Cidade e através dos direitos “urbanos” elencados pela constituição de 1988? A compreensão da obra de Henri Lefebvre, criador, propriamente, da ideia de direito à cidade, nesse momento, se faz essencial e será vista no subitem a seguir.
A tarefa de se conceber um conceito de direito à cidade a partir da retomada das ideias precursoras de Lefebvre deve se iniciar, na compreensão desta pesquisa, pelo raciocínio da produção social do espaço. Isso porque o entendimento de que o espaço é socialmente produzido, com o auxílio do estudo de Elisa Verdi e Denys Nogueira, direciona a análise da cidade e da crise urbana para a superação das simples aparências e de conhecidos fenômenos, tais como a segregação socioespacial, o crescimento desordenado dos centros urbanos, a especulação imobiliária, as questões de mobilidade e outras muitas consequências da ambiência citadina (VERDI & NOGUEIRA, 2017).
Além disso, a teoria que trata o espaço como um produto social revela, segundo os autores, as contradições vislumbradas ao longo dos processos, “preenchendo a reflexão sobre a sociedade urbana dos conteúdos sociais de sua produção” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.95). Esse argumento, portanto, reside no entendimento de que o direito à cidade não pode ser visto apartado da concepção de que o espaço é produzido socialmente e que, a partir daí, a análise dessa produção é capaz de revelar as dinâmicas de reprodução do próprio sistema capitalista. (VERDI & NOGUEIRA, 2017).
Nesse caminho, seguindo a linha defendida por Edward Soja (2009), é permitido concluir que nenhum dos escritores marxistas (e ele se inclui nesta lista) foi mais claro e explícito do que Lefebvre em sua fundamentação sobre a produção social de geografias injustas, bem como em reconhecer o espaço como possibilidade de ser um local igualmente opressivo e libertador. Ninguém mais do que Lefebvre, para Soja, deixa claro a necessidade de se intervir nesse processo espacial para transformá-lo, redirecioná-lo e torná-lo mais justo.
E, de início, é importante ter em mente a compreensão de que a relação existente entre o homem e a natureza é, em geral, mediada pelo trabalho, sendo, este último, “a atividade que realiza a transformação da natureza de acordo com as necessidades sociais” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.96). Esta mediação, segundo Verdi e Nogueira, indica que a produção social da natureza seja, verdadeiramente, um ato de produção da própria existência humana. E é neste cenário em que se situa a produção do espaço, ou seja, na “totalidade da produção social, que não é somente a produção de mercadorias, de objetos, mas sim a produção do homem em si” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.96).
A produção do espaço é, pois, intrínseca e indissociável à produção da própria sociedade. No modelo de modernização capitalista, por sua vez, o espaço e as cidades tornam-se não somente locais de reprodução da vida humana, mas, sobretudo, apresentam-se como locais e condições para reprodução do capital. Segundo David Harvey, nesse sentido, o estudo do processo urbano diz muito sobre os mecanismos bem-sucedidos de autorreprodução do sistema capitalista (HARVEY, 1989), e é daí que “o capital se esforça para produzir uma paisagem geográfica favorável à sua própria reprodução e subsequente evolução” (HARVEY, 2016, p.139). Mais valia, absorção do excedente de produção e acumulação do capital são, entre outros, os novos rumos da produção do espaço urbano.
O sistema capitalista, como modo de produção, tomou o espaço como sua condição de reprodução ao transformá-lo em verdadeira mercadoria. Precisa, nessa mesma percepção, a associação elaborada por Verdi e Nogueira, segundo a qual: em uma sociedade dividida em classes, cuja ideia hegemônica é a de reprodução do capital, uma contradição fundamental é expressada na atividade de produção do espaço, qual seja, “este (o espaço), uma produção coletiva – porque social – é apropriado privadamente – porque mercadoria” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.97)
Trata-se, para os autores, de um claro movimento de se alienar o produto do trabalho de seu produtor, o trabalhador (VERDI & NOGUEIRA, 2017). Quer dizer, a produção do espaço, sendo uma produção social e ao tornar-se mercadoria, converte-se em produto semelhante a todas as outras repercussões do trabalho humano. Logo, o trabalho “produz coisas no espaço (bens materiais e imateriais) e, simultaneamente, produz o espaço como mercadoria e capital fixo” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.96)
Diante do cenário acima apontado, Harvey sacramenta a morte da cidade tradicional, em razão de um vistoso, latente e desenfreado desenvolvimento capitalista. Para ele, a cidade é uma vítima do modelo de modernização capitalista, expressa por sua infindável necessidade de “dispor da acumulação desenfreada de capital capaz de financiar a expansão interminável e desordenada do crescimento urbano, sejam quais forem as consequências sociais, ambientais ou políticas” (HARVEY, 2014, p.20).
Desde o início dos anos 60, aliás, a cidade de Paris, como bem pontuou o autor britânico, já passara por uma severa crise existencial. Um cenário de invasão da cidade pelo capital empresarial norte americano, marcado pelos reflexos da guerra do Vietnã, definido por um vigoroso crescimento na construção de estradas e edifícios, bem como circunscrito pelo avizinhamento de um consumismo irracional e desenfreado que aportava nas ruas e lojas da cidade (HARVEY, 2014). Esse, também, um dos palcos e cenários da produção bibliográfica de Lefebvre.
A noção de “direito à cidade” foi concebida no final da década de 1960, no ensaio homônimo ao conceito de Lefebvre, Le droit a la ville. Publicada justamente na França no ano de 1968, a obra de Lefebvre discutiu, entre outros temas, “a multiplicidade de olhares que compõem o mosaico analítico do fenômeno da urbanização” (SILVA NETO, 2016, p.31), e deu prosseguimento ao tratamento de sua concepção das peculiaridades atinentes à questão urbana, em especial a partir da segunda metade do século XX.
E é importante, por essa perspectiva, que se contextualize o período e o local em que se deu a seminal publicação do autor francês. O ano de 1968, especialmente a partir do mês de maio, é marcadamente simbólico para o pensamento progressista no mundo, sendo apontado como o palco de atuação política de diversos movimentos estudantis, sindicais e sociais. Foi o mês em que todos esses movimentos tomaram as ruas de Paris através de uma pauta amplamente reformadora, que bradava contra as estruturas arcaicas e autoritárias vigentes à época. E, certamente, Lefebvre estava atento a tudo isso. Além disso, o ensaio de Lefebvre foi escrito como contribuição para as comemorações do centenário de publicação do primeiro volume de O Capital de Karl Marx, revelando, desde então, o caráter militante de sua exposição.
A obra reflete com fidelidade o pensamento de Lefebvre, filósofo marxista que, segundo Levy, manteve, historicamente, sua “postura crítica ao marxismo ortodoxo e ao pensamento fragmentado, incapaz de contemplar os problemas segundo a totalidade dos processos sociais” (SILVA NETO, 2016, p.31). Tomando de empréstimo mais uma vez as percepções de Wilson Levy, chama atenção o texto que acompanhou a orelha da edição brasileira de 1969 da referida obra, que definiu, com rigor, a orientação geral do conteúdo ali constante:
Este livro terá uma forma ofensiva (que alguns considerarão, talvez, chocante). Por quê? Porque muito provavelmente cada leitor já terá em mente um conjunto de ideias sistematizadas ou em vias de sistematização. Muito provavelmente cada leitor procura um “sistema”, ou encontrou o seu “sistema”. O sistema está na moda, tanto no pensamento quanto nas terminologias e na linguagem. Ora, todo sistema tende a aprisionar a reflexão, a fechar os horizontes. Este livro deseja romper os sistemas, não para substituí-los por um outro sistema, mas para abrir o pensamento e a ação na direção de possibilidades que mostrem novos caminhos e horizontes. É contra uma forma de reflexão que tende para o formalismo que um pensamento trava o seu debate. (SILVA NETO, 2016, p.31)
Sistematicamente, Lefebvre pretendeu, em Le droit a la ville, demonstrar como a cidade é modificada em sua estrutura e na própria teia de relações sociais subjacentes, a partir do processo de urbanização perceptível, em especial, através da Revolução Industrial. Muito embora seja certo que a cidade preexiste à industrialização, é a partir dela que o tecido urbano enfrenta as suas mais radicais e repentinas mudanças. E, com Levy, “o período novo não é menos opressor do que o anterior, mas a reordenação do conflito de classes ganha novo colorido, motivado pelas novas formas de reprodução do capital” (SILVA NETO, 2016, p.31).
A indústria, para Lefebvre, possibilitou um novo impulso da noção de mercadoria que já existia impregnada nas estruturas urbanas e agrárias que lhe antecediam. Para ele, Lefebvre, a indústria “permitiu uma ampliação virtualmente ilimitada do valor de troca. Mostrou, na mercadoria, não apenas uma maneira de pôr as pessoas em relacioidnto, como também uma lógica, uma linguagem, um mundo” (LEFEBVRE, 2001, p.128). E, assim, no decorrer de suas obras, Lefebvre demonstra como a indústria, pouco a pouco, apodera-se e reconstrói a cidade. Em outras palavras, o autor francês enuncia como a generalização da produção e circulação capitalista de mercadorias, em sua essência, opera verdadeira reconstrução e ressignificação da estrutura citadina.
De tal análise, é possível extrair que o cerne do diagnóstico de Lefebvre situa-se em uma crítica à cidade industrial, ou, propriamente, aos efeitos que o processo de industrialização causou na constituição da tessitura urbana. Essa crítica, para Levy, revela-se naturalmente marxista, na medida em que a industrialização radicalizou a luta de classes e “introduziu na análise política elementos econômicos que se converteram, nessa mesma tradição de pensamento, em verdadeiros bloqueios estruturais a qualquer forma emancipada de vida” (SILVA NETO, 2016, p.32).
O direito à cidade em Lefebvre, por tudo isso, consiste, ao mesmo tempo, em uma queixa e em uma exigência. A queixa diz respeito à resposta a uma dor existencial marcada por uma aniquiladora crise da vida cotidiana na cidade. A exigência, por sua vez, é, em verdade, “uma ordem para criar uma vida urbana alternativa que fosse menos alienada, mais significativa e divertida” (HARVEY, 2014, p.11). Mas, como bem destacado por David Harvey (2014), uma exigência conflitante e dialética, afeita ao futuro, proposta aos embates e disposta à eterna busca por uma novidade inatingível. Para Lefebvre:
O direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de regresso às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada. O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (LEFEBVRE, 1969, p.132)
O conceito de direito à cidade então estabelecido por Lefebvre viria a refletir de maneira incisiva na literatura internacional pelos anos que seguiram a sua publicação. E não só pelos estudos de teóricos como David Harvey, Edward Soja, Don Mitchel ou Peter Marcuse, mas também de maneira institucional, através, em especial, do V Fórum Urbano Mundial, que recebeu a alcunha de “O direito à cidade: unindo o urbano dividido”. Desta forma, justamente intitulado com a denominação do autor francês, o referido fórum cravou no cenário político e social a força com que o conceito talhado por Lefebvre passaria a influenciar os estudos da questão urbana no mundo.
A análise urbana, a partir de então, vem, conforme pontuou Ana Fani Alessandri Carlos (2017), paulatiidnte incorporando e dando atenção aos movimentos sociais que, em seu mote de atuação, enfocam os temas do direito à cidade e da justiça espacial. Em reiteradas vezes, o discurso sobre o direito à cidade vem acompanhado da análise lefebvriana, principalmente daquela exposta em seu livro de 1968. Mais uma vez com Carlos, importante mencionar que, em nome de tal conceito, atualmente “modeliza-se a dialética, justifica-se a elaboração de políticas públicas, planeja-se a participação de todos na “gestão democrática” da cidade contra o empreendedorismo urbano” (CARLOS, 2017, p.54).
Para Thiago Aparecido Trindade, o conceito de direito à cidade em Lefebvre é uma utopia, ou seja, “uma plataforma política a ser construída e conquistada pelas lutas populares contra a lógica capitalista de produção da cidade, que mercantiliza o espaço urbano e o transforma em uma engrenagem a serviço do capital” (TRINDADE, 2012, p.140). De tal perspectiva, Trindade salienta que, na proposição original de Lefebvre, o direito à cidade não se referiria a mais um específico direito a ser incorporado no arcabouço jurídico do Estado. E, por tal razão, o conceito cunhado à época carece de uma abordagem propriamente jurídica. Daí a inquietude de Edésio Fernandes que, muito embora reconheça a relevância do conceito proposto por Lefebvre, entende não ter havido um tratamento específico do autor francês para com as implicações legais e jurídicas atinentes ao termo direito à cidade. Para Fernandes:
[...] o fato é que o conceito de “direito à cidade” de Henri Lefebvre foi muito mais uma plataforma político-filosófica e não explorava diretamente como, ou em que medida, a ordem legal determinava o padrão excludente de desenvolvimento urbano. Aos argumentos sociopolíticos de Lefebvre, deve ser acrescentada uma outra linha, ou seja, argumentos jurídicos que nos permitam construir uma crítica à ordem legal não apenas na perspectiva de valores sociopolíticos ou humanitários, mas desde dentro da própria ordem legal. (FERNANDES, 2012, p.140).
Em que pese as proposições de Fernandes, a necessidade por uma determinação jurídica ao conceito de Lefebvre, de fato, não coaduna com seu o objetivo e com a força radical e transformadora de seu conceito. Em Lefebvre, o direito à cidade não deve representar uma simples nostalgia pela cidade do passado, ou seja, um desejo de regresso à cidade pré-capitalista industrial. A plataforma do direito à cidade para Lefebvre vai muito além. Ela visa a transformação total da vida urbana. Visa uma nova vida urbana caracterizada como “lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem entre os bens[...]” (LEFEBVRE, 2001, p.118). Quer dizer, o direito à cidade, nesse caminho, se constitui como a promessa de abertura para uma outra produção social do espaço, voltada, assim, “para o valor de uso e para a satisfação das necessidades dessa classe separada – alienada – (a classe operária) do produto de seu trabalho” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.99). Seguindo a concepção de Verdi e Nogueira:
É preciso, portanto, ultrapassar a estrita compreensão jurídica da noção de direito, que aprisiona a consciência e a prática daqueles que lutam pelo direito à cidade. Isso significa dizer que toda a noção de direito deve ser superada no processo de construção de uma outra sociedade urbana. O direito à cidade contém outros direitos sociais, concretos e coletivos (à instrução e à educação, ao trabalho, à cultura, ao repouso, à habitação), e se manifesta como a forma superior de tais direitos, mas este só pode se realizar – completar o seu devir – a partir da transformação completa da produção social da cidade, ou seja, da sociedade. (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.99)
Como já disposto na introdução de Espaço e política, para Lefebvre, “os “direitos” necessários, do habeas corpus ao direito à cidade, não se bastam. É preciso que o urbano se faça ameaçador”. (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.99). O horizonte do direito à cidade, a partir das ideias originais de Lefebvre, significa, pois, a busca por uma nova produção do espaço, visando, sobretudo, a possibilidade de constituição de uma outra sociedade, de uma outra vida urbana. E não somente como mais um direito a ser incorporado pelo ordeidnto.
Desta forma, como um direito à vida urbana renovada, transformada, o direito à cidade deve ir muito além de mais uma garantia dentro de um determinado rol de direitos parciais listados pela Constituição ou por suas leis derivadas. Entende-se, então, que a associação direta e nivelada do direito à cidade a outros direitos sociais acabaria, em consequência, por restringir o seu objetivo utópico tão caro a Lefebvre. Em conclusão, o direito à cidade, “se entendido como um dos caminhos rumo à revolução urbana, supera os direitos parciais, pois contém em si tanto a realização desses direitos, quanto o devir da produção de uma outra sociedade urbana” (VERDI & NOGUEIRA, 2017, p.104).
Um conceito de direito à cidade deve encetar algumas questões primordiais que caracterizam o seu objetivo progressivo e democrático. Não basta, se seguida a orientação original formulada Henri Lefebvre, ser um direito superior que preveja uma série de outros direitos parciais aos integrantes do tecido urbano. Tampouco pode ser visto somente como mais um direito humano social a ser listado em conjunto com os demais já delimitados pelo ordeidnto. No Brasil, um dos pensadores que tratam do direito à cidade numa forma mais próxima daquela proposta por Lefebvre e Harvey é Nelson Saule Júnior. Para ele:
O direito à cidade é um novo paradigma que fornece uma estrutura alternativa de repensar as cidades e a urbanização, com base nos princípios da justiça social, da equidade, do efetivo cumprimento de todos os direitos humanos, da responsabilidade para com a natureza e as futuras gerações, e da democracia local. O direito à cidade como um direito humano coletivo emergente cumpre esse papel de ser o coração da nova agenda urbana constituída por princípios, ações, metas, indicadores e formas de monitoramento destinados ao modelo de cidades inclusivas, justas, democráticas e sustentáveis. (SAULE JUNIOR, 2016, p.74).
Na seara da formulação de Nelson Saule (2016), verifica-se que o direito à cidade é considerado como um “direito humano coletivo”. A trajetória organizativa dos direitos fundamentais, aquela dividida em gerações ou dimensões, já é de notório conhecimento e possui farta literatura no sentido de sua elucidação. Aqui, vale uma rápida menção a tais dimensões, no intuito de melhor se compreender o direito à cidade como um direito fundamental de caráter coletivo.
Vale lembrar, ademais, que tal separação só é possível, como bem informa Levy, porque cada época traz consigo um “conjunto de demandas sociais que, inseridos, como dito, em processos – por vezes violentos – de luta e reivindicação, culminam na sua incorporação pelos ordeidntos jurídicos pátrios, através de sua positivação” (SILVA NETO, 2016, p.208). Outrossim, não olvidando das instigantes teses doutrinárias que advogam no sentido da existência de uma quarta ou quinta dimensão de direitos fundamentais, aqui serão apresentadas apenas as três clássicas dimensões, no intuito de não se fugir dos objetivos propostos por esta pesquisa.
Os direitos fundamentais de primeira geração foram os primeiros direitos solenemente reconhecidos, frutos das revoluções do século XVIII, bem como das primeiras constituições escritas surgidas no constitucionalismo ocidental. Estes direitos são, na proposição histórica francesa trabalhada por Pietro Costa (2006), correspondentes às liberdades públicas, compreendendo-se, por sua vez, os direitos civis, com destaque para os direitos de liberdade e propriedade. A sua vocação é individualista, quer dizer, os direitos civis visavam preservar a autonomia individual dos sujeitos frente ao gigantismo do Estado que, à época da revolução francesa, deixava de ser absolutista.
Já a segunda dimensão dos direitos fundamentais apoia-se nos direitos sociais. Aqui, conforme pontuou Levy, há uma ínsita ligação entre a emergência de tais direitos com as dinâmicas próprias do espaço urbano. Segundo ele:
O final do século XIX viu se acentuar o processo de industrialização, que provocou processos migratórios intensos em direção aos centros urbanos e trouxe o agravamento das desigualdades sociais típicas da cidade. Então além da proteção jurídica do trabalhador, a pauta reivindicatória de então englobava também direitos econômicos, culturais e, principalmente sociais. Nessa pauta, o Estado deixa de ocupar um papel de garantidor da máxima liberdade e assume um função ligada à concretização de direitos capazes de viabilizar a justiça social produto do sobredito processo de industrialização. (SILVA NETO, 2016, p. 413)
Tratam-se, portanto, de direitos prestacionais, ou seja, de uma obrigação positiva do Estado, “abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula” (BONAVIDES, 2000, p.518). Isto significa dizer que, ao contrário dos direitos de primeira geração, para cuja efetivação exige-se, apenas, que o Estado não permita o seu desrespeito, os direitos sociais não podem ser simplesmente facultados aos cidadãos, pois exigem do Estado uma verdadeira atuação positiva para sua implementação.
Finalmente, a terceira dimensão dos direitos fundamentais agrega a proteção do ser humano não como sujeito individual, mas verdadeiramente como membro de um grupo social. Em razão do intenso impacto tecnológico testemunhado em tempos recentes e como resultado das contemporâneas reivindicações do ser humano, os direitos de terceira dimensão qualificam a importância coletiva de suas garantias, sendo denominados, usualmente, como direitos de solidariedade ou fraternidade. São, portanto, os direitos de titularidade difusa e coletiva.
Por essa análise, a questão que inicialmente se coloca é se é o direito à cidade um direito fundamental. Os argumentos aqui trabalhados permitem a conclusão de que, realmente, trata-se o direito à cidade de um direito que revela cariz notadamente fundamental, ao trazer ao seu cerne de atuação o objetivo de promover a dignidade da pessoa humana. E estando a dignidade da pessoa humana na estrutura base dos direitos fundamentais, é possível concluir que o direito à cidade, como conjunto de direitos de cidadania, porque típicos do cidadão-portador-de-dignidade, é um direito fundamental. (SILVA NETO, 2016).
Os direitos de cidadania, dispostos em três diferentes dimensões segundo a concepção de Thomas H. Marshall, são bastante intuitivos para compreensão da ideia de direito à cidade. E foi nesse mesmo contexto que o termo em estudo foi mundialmente debatido ao final do século 20, com a apresentação da “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”, que destacou, entre outros diversos pontos, a necessidade de se tutelar os direitos humanos, inclusive, no âmbito urbano. Com o advento da Carta, houve um notório progresso no tratamento do tema e consequente regulamentação das questões urbanas, constituindo-se, o certame, como um verdadeiro guia de decisões dos gestores públicos de acordo com os anseios da coletividade2 .
Na seara dos ensiidntos de José Murilo de Carvalho, é imprescindível se iniciar o raciocínio com a compreensão de que a cidadania deve ser considerada como um fenômeno “complexo e historicamente definido” (CARVALHO, 2017, p.14). Isso quer dizer, em princípio, que o simples exercício de alguns direitos, como por exemplo o voto e a liberdade de pensamento, não gera, automaticamente, a fruição de outros direitos, como o direito ao emprego e à segurança. Da mesma forma, o exercício do voto não assegura, por si só, a existência de governos atentos e preocupados com as questões mais básicas da sociedade (CARVALHO, 2017, p.15). Nas palavras de Carvalho, em suma, “a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais” (CARVALHO, 2017, p.15).
Daí a informação do autor de que o conceito de cidadania pressupõe algumas variadas dimensões. Tais dimensões são comumente desdobradas em três garantias: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais. Seriam, então, cidadãos plenos, aqueles que fossem titulares das três dimensões de direitos; cidadãos incompletos, aqueles que possuíssem somente alguns dos três direitos; e não cidadãos, aqueles não privilegiados por quaisquer das três questões acima elencadas.
Na síntese de Carvalho, de início, seriam os direitos civis aqueles:
[...] direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos que cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual. (CARVALHO, 2017, p.15).
Para o autor, seria possível compreender a existência dos direitos civis ainda que diante da inexistência de direitos políticos. Os direitos políticos dizem respeito à participação dos sujeitos no governo da sociedade. Segundo Carvalho, seu “exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado” (CARVALHO, 2017, p.16). É, em geral, o direito de voto. No entanto, se é possível a existência de direitos civis sem direitos políticos, o contrário, na visão de Carvalho, não é praticável. Para ele, sem os direitos civis os “direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente, mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos” (CARVALHO, 2017, p.16).
Já os direitos sociais são aqueles que garantem a participação dos sujeitos no usufruto das riquezas coletivas. Neles se incluem, por exemplo, os direitos à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria. A garantia de sua satisfação, por sua vez, “depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo” (CARVALHO, 2017, p.16). Além disso, os direitos sociais, em tese, podem existir mesmo na ausência dos direitos civis e políticos. Podem, até mesmo, ser utilizados em substituição aos direitos políticos. Este cenário, todavia, - dos direitos sociais existindo na ausência dos direitos civis e políticos - tende a tornar arbitrários eles próprios, direitos sociais. Com José Murilo de Carvalho, os direitos sociais “permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos” (CARVALHO, 2017, p.16). E a chave mestra em que se baseiam os direitos sociais é a justiça social.
A distinção acima trabalhada, que separa a cidadania em três dimensões de direitos, foi inicialmente desenvolvida pelo sociólogo inglês Thomas H. Marshall. Neste momento, por sua vez, importa indicar a ressalva feita por José Murilo de Carvalho quanto à referida designação e sua relação com a evolução da cidadania e da atribuição de direitos no Brasil. E, nesse sentido, Carvalho ressalta algumas importantes distinções que devem ser levadas em conta quando de tal apreciação.
Na visão de Marshall, que teve como inspiração para o seu trabalho a evolução da cidadania na sociedade inglesa, o desenvolvimento e a atribuição das três dimensões de direitos ocorreram de forma lenta e gradual naquele local. Primeiro viriam os direitos civis no século XVIII. Em seguida, surgiriam os direitos políticos no século XIX. E, enfim, os direitos sociais viriam a ser conquistados no século XX. Conforme descreveu José Murilo de Carvalho, a distinção de Marshall, em sua essência, não se subsumia apenas a um caráter cronológico, mas também lógico. Quer dizer, “foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu país” (CARVALHO, 2017, p.17). E a referida participação foi essencial por permitir “a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais” (CARVALHO, 2017, p.17).
O referido advento sequencial na atribuição de direitos, segundo Carvalho (2017), preconiza que a própria noção de direitos e de cidadania seja, acertadamente, um fenômeno histórico. Os seus caminhos, todavia, podem ser bem distintos e ocorrerem de maneiras excepcionais em diferentes localidades. E o Brasil não foge a esta indagação. Nas palavras do autor3 :
Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na sequência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na sequência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa. (CARVALHO, 2017, p. 19)
Essa inversão foi considerada por Carvalho como uma das razões para as dificuldades enfrentadas no longo percurso de atribuição de direitos percebido no Brasil. Uma realidade que não consegue ocultar o drama que atinge a grande massa de pessoas pobres, de desempregados, analfabetos e vítimas da violência oficial e particular.
No Brasil, ao contrário dos exemplos Europeu e norte americano, primeiro vieram os direitos sociais, implantados num período de supressão dos direitos políticos e de intensa redução dos direitos civis por parte de um ditador que, não se admira, tornou-se notadamente popular. Em seguida, vieram os direitos políticos, “de maneira também bizarra” (CARVALHO, 2017, p.219). A maior extensão do direito de voto, seguindo as conclusões de Carvalho, se deu num outro período ditatorial, em que os órgãos de representação da política se mostravam apenas como vitrine ou peça decorativa de um regime autoritário. Por fim, ainda hoje, a grande parte dos direitos civis continuam inacessíveis à maioria da população no país, demonstrando, assim, a clara inversão da pirâmide dos direitos elaborada por Marshall e resgatada por Pietro Costa.
Já à época da Independência, por exemplo, a concepção de cidadania no Brasil era muito bem delimitada em seus termos previstos pela Constituição de 1824. Diferentemente da cidadania americana - que viveu por cerca de 100 anos em uma clara situação de indefinição -, e da cidadania francesa, cuja definição “foi torcida e revirada por dez constituições no mesmo período” (HOLSTON, 2013, p.96) a conceituação de cidadania no Brasil era bem disposta e, de certa forma, textualmente compreensível e includente.
No artigo 6º da Constituição do Império de 1824, era previsto que seriam cidadãos brasileiros aqueles nascidos no Brasil, quer tivessem nascido livres ou libertos, ainda que o pai fosse estrangeiro. O dispositivo constitucional também previa a cidadania brasileira àqueles que, nascidos em país estrangeiro, tivessem o pai brasileiro ou, se ilegítimos, que tivessem ao menos mãe brasileira, desde que viessem a estabelecer domicílio no império 4. Desta forma, a cidadania brasileira foi estabelecida sob duas formulações: a de um jus soli incondicional, pois bastava nascer no Brasil para ser considerado brasileiro; e de um jus sanguinis condicional, em razão da dependência do domicílio no território brasileiro daquele indivíduo que, filho de pai ou mãe brasileiros, havia nascido no exterior.
A compreensão brasileira do jus soli era frontalmente distinta, por exemplo, da interpretação norte americana. Como bem relatou James Holston, nos Estados Unidos, “condições de raça e de escravidão restringiam preventivamente o jus soli” (HOLSTON, 2013, p.97). Já no Brasil, uma sociedade até então marcada essencialmente pela exploração de escravos, a cidadania foi condicionada apenas pela liberdade, e, mesmo assim, não o fora de maneira absoluta. Nas palavras de Holston a “cidadania jus soli era includente e irrestrita para todas as pessoas livres do Brasil, independentemente de seu perfil racial” (HOLSTON, 2013, p.97).
Além disso, os índios não foram tratados, ao contrário do que fizeram os ingleses na América do Norte, como uma nação de estrangeiros. E muito menos pairou-se alguma dúvida sobre a condição de cidadão nacional daqueles negros libertos ou dos já nascidos livres. Em conclusão, no Brasil, “nunca ocorreu a negação da cidadania nacional por razões raciais ou religiosas, nem a imposição de definições locais de incorporação à cidadania nacional” (HOLSTON, 2013, p.97).
É possível notar, a partir de tais eventos, que a cidadania no Brasil revelava um status visivelmente includente, sem restrições de raça ou posição na sociedade. Mas, embora se mostrasse includente, a cidadania brasileira não era igualitária. Para James Holston, a cidadania no Brasil persiste, até os dias atuais, como um sistema de acesso desigual e diferencial a direitos, privilégios e poderes desde o período colonial (1500 a 1822), passando pelo Império (1822 a 1889), até chegar à República (1889 até os dias presentes), muito embora se mostre textualmente includente para aqueles que se enquadram dos ditames da redação constitucional. As referidas condições de direitos diferenciais e privilégios, no país, passaram pela monarquia, por ditaduras civis e militares e, também, pela democracia eleitoral, mantendo-se aparentemente intactas até os dias atuais. Nas palavras do autor:
Durantes meus trabalhos de campo nessas periferias5 , os moradores deixaram claro que se consideravam totalmente brasileiros, não menos do que outros membros do Estado-nação. Mas também se consideravam cidadãos discriminados e, nesse sentido, como membros de segunda classe. Em vez de concluir que essas considerações eram contraditórias, percebi que elas distinguem duas dimensões de cidadania. Uma é a incorporação nacional, um status formal de afiliação baseado no critério de pertencimento à nação. O outro é a distribuição substantiva, aos considerados partícipes nacionais, do pacote de direitos, obrigações e práticas vinculadas à afiliação. Ambas as dimensões, a formal e a substantiva, definem as trajetórias históricas de cidadanias específicas. (HOLSTON, 2013, p.68).
As conclusões de Holston são de todo pertinente para percepção da realidade da atribuição de direitos no Brasil. A condição urbana brasileira revela um cenário de intensa segregação socioespacial. Demonstra, sobretudo, que, ao longo da história, a distribuição de terras e o acesso à propriedade urbana foram questões reservadas às elites mais abastadas da sociedade. Desde a “conquista” do território brasileiro, do advento da famigerada Lei de Terras, até a conjuntura de um modelo de empresariamento urbano, a camada mais carente da sociedade, em especial a massa de pessoas negras e pobres, tem sido vítima das mais perversas práticas de exclusão social, gentrificação, perigo e desigualdade socioespacial, muito embora sejam, textualmente, consideradas cidadãs.
A questão política central que envolve a cidadania no Brasil, então, pode ser resumida na combinação de três elementos básicos: liberdade, participação e justiça social. Segundo Carvalho, “temos liberdade, alguma participação e muita desigualdade” (CARVALHO, 2017, p 19). Para sobreviverem, é preciso que liberdade e participação gerem igualdade. É preciso, sobretudo, que os três elementos caminhem de forma harmônica e encontrem um equilíbrio comum em suas atribuições. Mas, de fato, a aquisição atribulada e incompleta de direitos no país é um marco que faz com que se questione, no embalo do que indagou Milton Santos, se, realmente, há cidadãos neste país (SANTOS, 2014, p.19).
Uma demanda por direito à cidade, portanto, deve levar em conta todos esses aspectos e, sobretudo, ter como pedra de toque a busca por uma diferente forma de justiça, a justiça espacial. Quer dizer, o direito à cidade não pode se contentar em ser apenas um conjunto de melhorias na cidade capitalista. Tampouco pode se limitar a descrever uma série de direitos sociais tais quais previstos de forma programática pela constituição em vigor. Deve, em sua essência, ser mais do que um jargão popular utilizado por movimentos sociais de diversas causas. Ir além de um mero grito de desespero. Deve, acima de tudo, ser considerado como característica indispensável para a condição de cidadão pleno dos sujeitos integrantes da tessitura urbana, pautado, sempre, nas demandas afetas a uma nova produção do espaço e consentânea com as reivindicações por uma almejada justiça espacial.
Das conclusões que se podem extrair deste item em debate, a plataforma do direito à cidade não se limita a pleitear por elementos básicos para a sobrevivência dos sujeitos no ambiente citadino. Utilizando mais uma vez das percepções de Nelson Saule Junior, o direito à cidade é, portanto, “um direito coletivo existente, como o direito dos habitantes presentes e das futuras gerações de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas e sustentáveis como um bem comum” (SAULE JUNIOR, 2016, p.75), o que se dará por meio de uma interpretação que se mostre extensiva e analógica quanto a proteção da cidade enquanto local de encontro das pessoas e de desenvolvimento de suas capacidades de vida.
Os termos aqui propostos buscaram estabelecer o lugar e o papel do Direito no direito à cidade. E tal tarefa resgatou, em especial, o conceito de direito à cidade daquele que criou as bases de sua definição: Henri Lefebvre. A partir da retomada das ideias propostas pelo autor francês, é forçoso concluir que o direito à cidade não pode ser visto como uma simples nostalgia da imagem das cidades antigas e perfeitas que antecediam o advento da industrialização dos centros urbanos. Até porque, frise-se, tal cenário jamais existiu. O direito à cidade, então, como um direito fundamental e coletivo, deve ser considerado para muito além de um simples direito parcial, ou seja, deve significar um verdadeiro paradigma na construção de cidades mais justas, numa genuína renovação/transformação do espaço urbano.
E, desta forma, o direito à cidade, para além de sua configuração como mais um entre os direitos sociais ou, até mesmo, como um conjunto de direito sociais relativos às vicissitudes da urbanização, deve ser considerado como fiel condição para o estabelecimento de uma cidadania plena aos sujeitos integrantes da tessitura urbana. A plataforma do direito à cidade, por tudo isso, supera os direitos parciais e, em sua essência, requer muito mais do que a mera positivação no ordeidnto jurídico.
E, em frente a todo o exposto nesta pesquisa, o direito a cidade não deve refletir somente um jargão comum de melhorias na cidade capitalista. Deve, pelo contrário, se pautar na busca por uma verdadeira justiça espacial, proporcionando não apenas o acesso a fruição das pessoas a uma cidade melhor, mas conferindo a elas verdadeira condição de cidadãs. Deve, sobretudo, ser apreciado a partir do alcance global da economia capitalista e, igualmente, das motivações do sistema vigente na produção do espaço urbano.
Referências
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Notas de Rodapé
3 Édesio Fernandes, ao versar sobre a origem referido diploma, assim se manifestou: Culminando um lento e contraditório processo de reforma jurídica que começou na década de 1930, o que a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade propõe é uma mudança de “olhar”, substituindo o princípio individualista do Código Civil pelo princípio das funções sociais da propriedade e da cidade. Com isso estabelecem-se as bases de um novo paradigma jurídico-político que controle o uso do solo e o desenvolvimento urbano pelo poder público e pela sociedade organizada. FERNANDES, Edésio. ESTATUTO DA CIDADE MAIS DE 10 ANOS DEPOIS: razão de descrença ou razão de otimismo? Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, 2013, p. 212-233.
4 No viés do acima mencionado, vale transcrever trecho do que ficou estabelecido na referida Carta Mundial pelo Direito à cidade: O Direito a Cidade é definido como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições eqüitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes.
5 Na síntese de Carvalho: Na sociedade inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um judiciário cada vez mais independente do executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis. A participação política era destinada em boa parte a garantir essas liberdades.
6 Conforme apontou James Holston, o artigo 6º da Constituição de 1824 previa: “São cidadãos brasileiros os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam nascidos livres, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro [... e] os filhos de pai brasileiro, e os ilegítimos de mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no Império”. HOLSTON, James. Op. cit., 2013, p. 96.
7 É interessante ressaltar que o trabalho de James Holston buscou estudar o desenvolvimento de uma “cidadania insurgente” vislumbradas em diversos bairros periféricos em que o autor realizou suas pesquisas de campo. A sua intenção foi mostrar como o cenário delineado começou a apresentar mudanças significativas nas últimas décadas, “exatamente com o desenvolvimento das periferias urbanas autoconstruídas e seus movimentos de cidadania insurgente”. Para mais detalhes sobre tal estudo, ver: HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. Tradução: Cláudio Carina. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,