André Luís André*
Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Brasil
Correo: andreluis78@outlook.com
RESUMO
Neste trabalho buscamos fazer reflexões sobre a importância de investigar os territórios urbanos transfronteiriços para compreender a formação, condições e contradições que se instalam nos espaços urbanos, levando em consideração suas relações e correlações com a política, a geopolítica, os negócios e os dramas da vida cotidiana. Nosso esforço aqui foi o de entender os territórios urbanos em duas realidades distintas dentro de América do Sul: a fronteira Colombo-Venezuelana onde se localiza o Departamento de Cúcuta e o estado de Táchira, e a fronteira trinacional de Argentina-Brasil-Paraguai onde estão respectivamente as cidades de Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu e Ciudad del Este. Para tanto, foi necessário apontar os limites do aporte teórico da Geografia no que se refere a geopolítica, cidade e fronteira, e estabelecer correlações entre período geopolítico, política e urbanização, para então compreender os processos de transfronteirização e a fragmentação aos quais estão submetidos as populações dos territórios urbanos de fronteira. Nossa hipótese central é que estes espaços urbanos anunciam a integração perversa com os negócios mundializados e as novas formas de fragmentação do tecido social, radicalizando a blindagem, vigilância e militarização de parte do espaço urbano por um lado e a predação de espaços urbanos que não fazem parte dos espaços de decisão política, geopolítica e dos negócios.
PALAVRAS-CHAVES: Períodos Geopolíticos; Territórios Urbanos; Fronteira.
RESUMEN
En este trabajo buscamos hacer reflexiones sobre la importancia de investigar los territorios urbanos transfronterizos para comprender la formación, condiciones y contradicciones que se instalan en los espacios urbanos, teniendo en cuenta sus relaciones y correlaciones con la política, la geopolítica, los negocios y los dramas de la vida cotidiana. Nuestro esfuerzo aquí fue el de entender los territorios urbanos en dos realidades distintas dentro de América del Sur: la frontera Colombo-Venezolana donde se localiza el Departamento de Cúcuta y el estado de Táchira, y la frontera trinacional de Argentina-Brasil-Paraguay donde están respectivamente las ciudades de Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu y Ciudad del Este. Para eso, fue necesario apuntar los límites del aporte teórico de la Geografía en lo que se refiere a la geopolítica, ciudad y frontera, y establecer correlaciones entre período geopolítico, política y urbanización, para entonces comprender los procesos de transfronterización y la fragmentación a los cuales están sometidos las poblaciones de los territorios urbanos de frontera. Nuestra hipótesis central es que estos espacios urbanos anuncian la integración perversa con los negocios mundializados y las nuevas formas de fragmentación del tejido social, radicalizando el blindaje, vigilancia y militarización de parte del espacio urbano por un lado y la depredación de espacios urbanos que no hacen parte de los espacios de decisión política, geopolítica y de los negocios.
PALAVRAS CLAVES: Períodos Geopolíticos; Territorios Urbanos; Frontera.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
André Luís André (2019): “Por uma geografia ontológica! reflexões sobre os territórios urbanos transfronteiriços na América do Sul”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (mayo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/05/geografia-ontologica.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1905geografia-ontologica
INTRODUÇÃO
Neste trabalho vamos abordar especificamente o processo de transfronteirização e fragmentação dos espaços urbanos em áreas de fronteiras, considerando dimensões da formação, das condições e das contradições de duas realidades distintas separadas por mais de 4.500 km de distância dentro da placa sul americana: a fronteira trinacional de Argentina, Brasil e Paraguai, onde estão respectivamente as cidades de Puerto Iguazú (AR), Foz do Iguaçu (BR) e Ciudad del Este (PY), e a fronteira Colombo-Venezuelana de Cúcuta e San Antonio de Táchira. O que nos impõe o desafio de analisar duas áreas fronteiriças dentro do contexto político e geopolítico da América do Sul.
Estes territórios de fronteira juntas são responsáveis pelas maiores densidades demográficas das área de fronteiriças em toda América do Sul e por uma inigualável fluidez de mercadorias entre os respectivos países. Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu e Ciudad del Este formam o centro de uma rede urbana contígua em três países, conectando dezenas de cidades e aproximadamente 2 milhões de habitantes. O estado de Táchira na região andina da Venezuela e o Departamento Cúcuta na Colômbia contam juntos cerca de 3 milhões de habitantes, também numa rede urbana com dezenas de cidades conurbadas. Entendê-las implica em compreender como ocorre a urbanização no interior dos países até suas áreas fronteiriças e como cada Estado Nacional, constrangido em cada momento histórico pelas relações com os países hegemônicos e centrais, conduziram a formação de suas cidades.
Nosso objetivo aqui é problematizar esses territórios urbanos de fronteira a partir da correlação entre política, geopolítica e urbanização, levando em conta os sucessivos períodos geopolíticos vividos pela a América do Sul como região. O que implica em considerar a escala sul americana e não a escala latino-americana, algo que explicaremos mais à frente.
Tratar dos territórios urbanos de fronteira exige um esforço importante de compreender empiricamente como cada lugar a sua maneira se constituiu dentro dos respectivos Estados Nacionais, considerando o sistema interestatal regional e o processo de acumulação global. Além disso, exige uma triagem e uma crítica intensa, para não dizer radical, da Geografia Política e do Urbanismo aos quais estamos acostumados como repertório teórico. Em parte em decorrência da marginalização da América do Sul e mesmo da América Latina dos modelos da Geografia Política. Em parte em virtude das “raízes, troncos e folhas” do urbanismo estarem centrados geralmente nas cidades europeias e nas áreas metropolitanas como lugares de sua empiria embora a maior parte das pessoas do mundo experimentam suas vidas em cidades não-europeias e em pequenas e médias cidades. Não obstante, é importante situar as dinâmicas urbanas dessas cidades de fronteira nos processos correntes do mundo contemporâneo que, num momento de transição e disputas hegemônicas, representam a própria materialização dos processos de mundialização dos negócios, seus blocos econômicos, suas formas variadas de militarização geopolítica, política e social, bem como suas formas variadas de fragmentação espacial e sócio-política.
Os territórios urbanos de fronteira anunciam um mundo novo, ainda perverso e com novas perversidades. Um mundo vigiado e militarizado, de áreas sofisticamente blindadas e áreas dramaticamente predadas. Um mundo em que a agricultura altamente capitalista redefine a relação campo-cidade e intensifica seus conflitos. Um mundo em que os pobres das áreas de fronteira em processo de urbanização deixam de ser subordinados e marginais no campo para viver processos de marginalização nas cidades. Um mundo em que o legal e o ilegal historicamente definidos se cruzam como nunca no espaço de fluxos mundializados, cujas áreas de fronteira oferecem mecanismos de fluidez e velocidade para reproduzir o capital atado ao corpo de cada mercadoria - de eletrônicos à combustíveis, de armas à drogas e gentes. Um mundo em que os operadores estão na alta política dos Estados Nacionais e podem ter nacionalidade diversa, mas cujos subalternos persistem nos corpos indígenas e de pessoas ascendência africana - negras e negros -, e nos corpos e na psique de crianças e mulheres (CARNEIRO, 2012; ANDRÉ, 2016).
Elucidar os territórios urbanos de fronteira em seus processos de transfronteirização aos quais também trataremos mais à frente, nos ensina sobre o melhor e o pior da vida cotidiana do nosso tempo e em nossos lugares. Nos ensina o que é realidade e o que é possibilidade. Nos ensina sobre o que é sobrevivência e o que pode ser existência, porque não se vive senão a partir do próprio corpo, da própria psique e do seu entorno. A cidade, o Estado Nacional e o sistema interestatal-internacional podem ser veículos de uma ordem que se impõe cada vez mais distante, mas tem que se deparar com as necessidades, desejos e contradições das pessoas em suas segmentações de classe, raça, gênero e qualquer outra identidade e condição na vida cotidiana.
O debate e a reflexão sobre os territórios urbanos de fronteira podem nos ajudar a compreender os limites da Geografia Política e do Urbanismo, das possibilidades efetivas de integração regional sul americana e latino-americana, das contradições do que de fato são para as sociedades pós-coloniais produzirem e reproduzirem cidades capazes de dar vazão aos direitos das gentes. Para tanto, para atingir o centro das discussões sobre estes lugares, da perspectiva metodológica, entendemos por bem discutir a necessidade de pensar a Geografia a partir da materialização de cada lugar, o que nos leva a uma Geografia que tenha perspectiva ontológica. O que nos obriga estabelecer um esforço de periodização, que chamaremos aqui, como em outro trabalho, de período geopolítico (ANDRÉ, 2016), uma vez que cada período detona dinâmicas particulares de urbanização. O que por sua vez exige um esforço geográfico multiescalar (SMITH, 2015) para relacionar geopolítica, política e urbanização e, nesse caso, como adiantamos, nossa empiria é a América do Sul.
Uma outra questão, que desdobra dessas anteriores, é a importância de fazer a crítica do que a Geografia Política, o urbanismo e a própria Ciência Geográfica no que se refere às suas perspectivas sobre a urbanização e fronteira.
Com estes elementos como base epistemológica de reflexão sobre os territórios urbanos em áreas de fronteira, buscamos fazer a correlação entre os sucessivos períodos geopolíticos e a consolidação dos processos de urbanização na fronteira trinacional Argentina-Brasil-Paraguai e na fronteira Colombo-Venezuelana, evidenciando os elementos de suas condições de transfronteirização (CARNEIRO, 2012; 2013), para então chegar a suas formas de fragmentação urbana com características de militarização em diferentes dimensões (SOUZA, 2012).
Geografia Ontológica e a América do Sul como escala geográfica
Para compreender os processos urbanos no que chamamos neste trabalho de territórios urbanos de fronteira é necessário antes de tudo situar quais serão algumas das perspectivas epistemológicas, teóricas, conceituais e metodológicas, no que aqui será reunido no que estamos denominado a seguir como Geografia Ontológica. Obviamente que este não será o espaço para desenvolver este debate profundamente, mas é importante esboçá-lo para que seja possível compreender qual é exatamente o ponto de partida e onde queremos chegar no que se refere às análises das cidades desta parte do mundo que experimentamos hoje como região política, geopolítica e territorial que é a América do Sul, em particular seus espaços urbanos localizados em áreas de fronteiriças.
Por Geografia Ontológica deve-se entender mais do que o termo, escrevemos sobre um caminho de elaborar conhecimento, considerando a formação e organização espacial dos lugares e territórios a partir de dois pontos distintos, embora conectados: em primeiro lugar, a reflexão geográfica desta perspectiva é condicionado pela herança colonial e a permanente colonialidade das relações de poder (QUIJANO, 2000), cuja dimensão espacial é uma de suas instâncias (M. SANTOS, 2002). Segundo, no plano da organização espacial, implica reconhecer a posição subalterna para a América do Sul nas relações interestatais (GULLO, 2012) e, na vida cotidiana dos sistemas agrários e das cidades, nos quais a divisão técnico-racial-sexual do trabalho moldou as condições de segmentações de classe e segmentos de classe com nuances e intersecções indissociáveis, marcadas por mediações étnico-raciais e mediações de gênero-sexualidade, que, numa dialética serial (PROUDHON, 2017), produz e reproduz da escala do corpo, lugar da psique, da dor e do prazer (SMITH, 2015), até a escala do contramercado, lar da promiscuidade de Estados Nacionais e Corporações (BRAUDEL, 1986), relações e espaços com sobreposições de violências e ultraviolências (ANDRÉ, 2015).
Não trata-se apenas de uma epistemologia do sul (DE SOUZA SANTOS, 2018a; 2018b) e consequentemente de um olhar geográfico a partir do sul. Por Geografia Ontológica entendemos a necessidade de denunciar as histórias e geografias que constituíram formações socioespaciais brutalmente predadoras, impondo sucessivos processos de marginalização na vida, na cidade, no campo, do Estado, do mercado, no e do território, que sobrepõem as experiências e existência das classes, dos segmentos de classe, das etnias, das construções raciais, das construções de gêneros e identidades aí inscritas, dentre outras coisas. Simultaneamente, é mais do que importante e significativo relativizar em certa medida, a capacidade das Geografias Acadêmicas - perpassando a Geografia Política e o Urbanismo - com as quais estamos habituados de tornar legível nossas condições, contradições e dramas, bem como contribuir com profundidade com o repertório de ideias à disposição das ações transformadoras.
As bases epistemológicas das Geografias Acadêmicas até aqui, da Geografia Colonial Franco-Prussiana à Geografia Crítico-Radical de matriz francesa e anglo-saxônica, estas últimas a quais sem dúvida temos grande apreço, surgiram para instrumentalizar diferentes formas de poder, dos quais não podem escapar. ao contrário, mesmo numa versão terceiro mundista reafirmaram a divisão interestatal a que fomos historicamente submetidos e sua materialização na vida cotidiana, marcada por hierarquias racializadas principalmente. A Geografia Crítico-Radical, não conseguiu romper com suas predecessoras. Sua limitação é flagrante! (GODOY, 2010; MOREIRA, 2010).
Assim, por Geografia Ontológica, não tratamos de negar o conhecimento acumulado pela Geografia Acadêmica em suas escolas e vertentes, prussiana, francesa, anglo-saxônica e a própria Geografia brasileira, cujo figurino francês a constrange a se tornar uma Geografia Criolla. Assim, tratamos apenas de procurar reconhecer o óbvio: elas, estas Geografias, nos serve pouco! Assim, afirmamos desde logo que, uma Geografia que vislumbre colocar o espaço na perspectiva de uma teoria social crítica deve assumir a posição daqueles que o colonialismo e as demais etapas da acumulação sistêmica que resultaram do conluio entre Estados Nacionais e Corporações condenaram à situações de marginalização. A Geografia, geógrafos e geógrafas, precisam fazer a crítica radical ou ao menos a dissecação, sem rodeios e sem receios, das teorias e conceitos marcadamente geográficos ou que se valem dos repertórios da Geografia. À esta altura, não é possível abrir mão de uma perspectiva radicalmente crítica da Geografia e a que nestas linhas se esboça não pode ser outra coisa senão ontológica!
Outra questão que decorre das perspectivas que expomos acima são os motivos de definir como uma das escalas a América do Sul e não a América Latina. Considerando a geopolítica do mundo contemporâneo, a América do Sul vem constituindo uma arquitetura institucional, desde o Acordo de Cooperação Amazônico, passando pelo Mercosul, Comunidade Andina e a mais recentemente esvaziada UNASUL, que colocam o conjunto de países sul americanos como região geopolítica como apontaram Wanderley Messias da Costa (2009) e Franklin Molina (2007), este último com um olhar para as ondas de integração regional e o regionalismo como projeto político e geopolítico.
Não obstante, diferentemente das relações de hierarquia no cenário internacional da América Central e o próprio México, a América do Sul no atual ciclo de acumulação sistêmica (ARRIGHI, 1996) no qual os Estados Unidos ainda é a grande hegemonia, a influência hegemônica é mediada pelas elites políticas e econômicas locais enquanto na América Central e no México houveram situações de intervenção político-militar direta de forma ordinária e sistemática.
É a partir deste caminho, que não deixa de apontar um caminho político e geopolítico, uma perspectiva de cidade, bem como um caminho epistemológico, nos propomos a considerar que cada lugar é o mundo a sua maneira em condições e contradições. Daí a necessidade da perspectiva ontológica.
Por uma crítica ontológica das cidades e da fronteira
O que são as cidades e as fronteiras nas Geografias Acadêmicas? Por que uma abordagem Ontológica?
Começando pelas cidades, do pré-urbanismo ao urbanismo (CHOAY, 1998), da escola de Chicago (EUFRÁSIO, 1999), passando pela teoria das localidades centrais (SANTOS, 2003) e a tentativa de pensar a cidade reivindicando-a para a luta anti-capitalista (LEFEBVRE, 2001; HARVEY, 2012), o olhar das Geografias para a cidade transitou invariavelmente de uma perspectiva eurocêntrica para uma perspectiva de imposição da teoria sobre a realidade concreta das regiões que tiveram sua formação marcada pelo processo de colonização, que ao final, enquadrou as contradições das cidades sul americanas dentro do repertório das teorias das quais a empiria esteve muito distantes, salvo algumas exceções mais recentes (SOUZA, 2000; SPOSITO e GÓES, 2013).
Em boa parte do século XX, a teoria das localidades centrais se tornou a principal teoria de análise das cidades, dela decorrem conceitos como rede urbana e hierarquia urbana, formulada ainda na década de 1930 no círculo de Viena, pelo alemão Walter Christaller. Esta teoria vislumbrou entender aspectos econômicos das cidades no sul da Alemanha, dos quais a seus precursores, Christaller deve tributo, são engenheiros franceses e banqueiros britânico que oferecem a Christaller a base empírica de suas análises, como demonstrou Kelly Bessa (2012). Numa tentativa de adaptar esta teoria a realidade do então terceiro mundo, Milton Santos (2003) formulou a concepção de circuitos da economia urbana e curto circuito da rede urbana ainda na década de 1970 .
A escola de sociologia urbana de Chicago (EUFRÁSIO, 1999), por outro lado, inaugurou uma série de pesquisas sobre os problemas urbanos, foram temas centrais a delinquência juvenil, a pobreza, as gangues, a violência e a imigração, dentre outras coisas. Num contexto de metropolização no nordeste dos EUA, os intelectuais da sociologia urbana de Chicago, financiados pelos Rockfeller, viram nas contradições das cidades enfermidades e patologias sociais, que ainda hoje alimentam narrativas de “revitalização” e haussmanização do espaço urbano (DAVES, 2015), inclusive entre nós.
A seu tempo, a chamada Geografia Radical e vertentes da Geografia Crítica, a primeira de raiz anglo-saxônica e a segunda de origem francesa, alimentaram debates sobre a justiça social e a cidade. O ponto de partida destas vertentes foram as reflexões realizadas por Henry Lefebvre em A Cidade do Capital (1999a), O Direito à Cidade (2001) e, dentre outros trabalhos importantes, A Revolução Urbana (1999b) Lefebvre foi o primeiro intelectual-filósofo a buscar referências sobre a cidade no pensamento de Marx e Engels. Neste último encontrou em A Situação da Classe Operária na Inglaterra elementos para desenvolver a partir do marxismo o que chamou de filosofia das cidades. Lefebvre considerou a cidade uma obra de arte, espaço por excelência de realização do reino da liberdade de que falou Marx e Engels. No entanto, seu olhar estava embriagado por Paris, como o olhar de tantos intelectuais na periferia do mundo, que são capazes de oferecer referências de Paris mas são incapazes de conhecer as dinâmicas das cidades de seu próprio entorno.
Obviamente que a filosofia das cidades lefebvreana é um avanço epistemológico para as reflexões sobre a ou as cidades, mas receio que a filosofia das cidades lefebvreana não é capaz de se aproximar da leitura necessária das cidades sul americanas, seja pelas diferenças entre as cidades de colonização espanhola das cidades de colonização portuguesa, seja pela industrialização subsidiária e concentradas dos países da América do Sul, seja pelo tipo de segmentação de classe que está na origem de nossas contradições, condicionada por uma intensa herança agrária e colonial, seja pela interiorização urbana nos territórios alavancada pela agricultura mundializada, seja pelo nosso sucessivo padrão de segregação urbana racializado.
As análises urbanas da Geografia Criolla são tributárias em grande medida destas três vertentes que se iniciam no século XX. O legado delas é uma visão fetichizada das cidades, um olhar centrado geralmente no espaço metropolitano, uma concepção de desigualdade mais ou menos naturalizada, que decorre da abordagem, quando dialética, formal: inclusão-exclusão, planejamento-falta de planejamento, urbano-suburbano, regular-irregular, formal-informal, letrada-iletrada, lentos-rápidos, dentre tantos outros binômios. Sobre as cidades nas áreas de fronteira, ou mesmo sobre as cidades em contextos não-metropolitanos, via de regra há um silêncio ensurdecedor que teima em persistir!
Ainda hoje a Geografia está enterrada na perspectiva nacional-colonizadora de Friderich Ratzel, para quem a fronteira é o órgão periférico do Estado, que como organismo vivo, tem na fronteira a pele do Estado-Ser que luta por espaço vital, cujo território, como espaço sitiado por um poder, avança sobre Estados-Fracassados, de povos ou nações fracassados, por sua debilidade técnica em relação a natureza (MERCIER, 1995).
Decorre desta leitura a ideia de povos naturais - com baixo ou nenhum desenvolvimento técnico-científico - e povos culturais - com sofisticado desenvolvimento técnico-científico, o que está na raiz dos sucessivos períodos técnicos de Milton Santos. Partindo desta perspectiva, o precursor da Geografia Acadêmica Francesa, Vidal de La Blache, assim como Ratzel, buscou na Antropologia Colonial a concepção de gênero de vida, cujas diferenças decorrem também da capacidade técnico-científica de intervenção na natureza materializada na paisagem e nas regiões, mas também na concepção política de superioridade nacional-racial. Para ambos, o Estado-Nação e as fronteiras decorrem do sentimento nacional que resulta das trocas materiais e simbólicas entre as regiões, sem jamais considerar a divisão de classes, a divisão regional-territorial-internacional do trabalho, a violência generalizada que está na origem dos Estados Nacionais, aquilo que hobbes, em seu fetiche do Estado Moderno-Eurocêntrico-Absolutista, chamou de guerra de todos contra todos.
Da Geografia Colonial Franco-Prussiana do final do século XIX até hoje, o debate e o entendimento sobre as fronteiras geográficas negligenciaram o óbvio sobre as fronteiras, elas decorrem do alcance do poder de uns sobre outros, sejam elas fronteiras nacionais, sejam elas fronteiras de outra natureza.
Assim, uma abordagem ontológica deve reconhecer o gangsterismo territorial que tomou cada palmo de chão impulsionado pela empresa colonial e ratificada pelos Estados Dependentes. A Geografia Ontológica que nos fundamenta aqui deve enxergar o quanto a fronteira geográfica pesa sobre a cabeça de uns para controle de outros, deve reconhecer que a fronteira ou as fronteiras delimitam o exercício do poder e dos poderes, delimitam os níveis de exploração e acumulação, de integração e marginalização. Sua permeabilidade, transfronteirização (CARNEIRO, 2012) ou interdição, não responde a outra coisa senão aos fluxos de apropriação desigual dos recursos, da riqueza e a superexploração do trabalho.
Não é por acaso que nas fronteiras geográficas da América do Sul, ser, de forma superposta, indígena, negra ou negro, pobre, mulher e ainda viver do trabalho e não da apropriação do trabalho, implica estar alijada ou alijado dos direitos e estar em luta permanente pela existência e pela segurança contra a incerteza, a vulnerabilidade extrema, violência ou contra o medo da violência. O que está além de poucos ganhos para aqueles e aquelas que vivem do trabalho, está na moradia precária, na ausência de lazer, na predação dos serviços de saúde, educação e transporte no esvaziamento do espaço público, das relações públicas e republicanas, na instalação de um mal-estar que se prolonga e se torna cada vez mais permanente.
Período Geopolítico, Urbanização e Transfronteirização
O mundo contemporâneo passa por um momento de transição de hegemonia no sistema interestatal que para se materializar na vida cotidiana perpassa as regiões geopolíticas, a alta política dos Estados Nacionais, as sub regiões nacionais, as cidades em contextos metropolitanos e não-metropolitanos, e os sistemas agrários organizados principalmente para relações acumulação de capital em escala mundializada. Neste sentido, é necessário um esforço intelectual de grande monta para estabelecer a relação entre período geopolítico, espaço urbano e os processos de transfronteirização que daí decorrem (ANDRÉ, 2016).
Os sucessivos períodos geopolíticos marcam disputas hegemônicas no sistema interestatal e no sistema internacional, estruturam a divisão internacional do trabalho, isto é, quem são os países que irão liderar e que são os países que serão liderados, quem produzirá riqueza e quem se apropriará da riqueza, quem produzirá as técnicas e tecnologias, quem estará submetido às técnicas e tecnologias, como vão se comportar os Estados Nacionais, como se dará o processo de urbanização e os sistemas agrários, e, no limite, como se configuram a exploração do trabalho e as formas de consumo.
O período geopolítico atual, em franca fase de transição de hegemonia, é marcadamente um período de mercantilização generalizada dos territórios e seus recursos, dos Estados Nacionais - suas normas, políticas, programas, regimes e tributos -, das cidades - seus objetos e instituições urbanas -, do campo - sua terra e produção -, do trabalho - da psique e do corpo daqueles e daquelas que vivem de vender sua força de trabalho. Não obstante, o período atual, diferentemente do que ocorreu ao longo de boa parte do século XX, se destaca pelos processos de urbanização em contextos não-metropolitanos decorrentes da capilaridade territorial das formas de capitalismo no campo.
Os sucessivos períodos geopolíticos que experimentou a América do Sul nos últimos cinco séculos implicaram primeiramente numa subordinação nas relações interestatais e internacionais, um padrão de concentração fundiária, agroexportação e vulnerabilidade alimentar, processos sucessivos de segregação urbana e, em última instância intensa exploração do trabalho. Neste contexto, as áreas de fronteira cumpriram papéis de limite do projeto nacional, de fronteira agrícola, fronteira demográfica e fronteira geopolítica, num contexto em que geralmente o processo de urbanização se concentrou próximo às áreas litorâneas para administrar a vazão de mercadorias, gentes e capitais entre as hegemonias de cada momento e os nossos territórios.
A urbanização do interior e das áreas de fronteira nesta parte do mundo é algo particularmente recente e responde ao atual período geopolítico e sua transição hegemônica (SORJ e FAUSTO, 2010). Período em que os sistemas agrários da região incorporaram as técnicas da revolução verde, ampliando a fronteira de produção, urbanizando o campo, criando novas dinâmicas de êxodo rural e processos de recampenização decorrente das tensões no campo (CHONCHOL, 1994; VAN DER PLOEG, 2008). A fronteira neste contexto passa a contar com uma densidade urbana em certos lugares e a se incorporar ao espaço de fluxos mundializados, deixando de ser epiderme do Estado para ser parte de sua dinâmica de reprodução num mundo absolutamente mercantilizado.
Aquilo que chamamos aqui de fronteira trinacional Argentina-Paraguai-Brasil, formada pelas cidades de Puerto Iguazú, Ciudad del Este e Foz do Iguaçu, e a fronteira entre Cúcuta na Colômbia e San Antonio de Táchira na Venezuela, resultam de processos de formações históricas que embora já tinham contornos no período colonial, que chamamos aqui propositalmente de período de despossessão de terras e trabalho indígena e sequestro do trabalho e dos corpos africanos, se consolidam seguramente no século XIX, momento em que uma onda de independências varreram o continente a partir da Revolução Haitiana e da Revolução Americana.
Ao deixarem o status de colônia para se tornarem independentes, os países recém criados saíram da dominação colonial ibérica para ingressarem na área de influência britânica, a principal hegemonia do século XIX (ARRIGHI, 1996). Este momento marca o que Martin Canoy (1986) chama de Estados Dependentes e o que chamaremos aqui de Estados Agroexportadores .
A hegemonia britânica condicionou o mundo a partir de um processo duplo: primeiro sua orientação para o desenvolvimento industrial e, por sua fragilidade em se tratando de soberania alimentar, uma vez que estamos nos referindo a uma grande ilha, usou seu poder e liderança para fomentar um nacionalismo econômico nas áreas pós-coloniais da América Latina, em diferentes projetos nacionais junto às oligarquias fundiárias e mineradoras da região, para transformar esta parte do mundo num grande complexo agroexportador de alimentos, minérios e fertilizantes, capazes de incorporar as técnicas da primeira revolução técnico-científica tanto no campo quanto na cidade (CHONCHOL, 1994). Aquilo que Milton Santos e Maria Laura Silveira (2008) chamaram de mecanização do território e o que Marcel Mozayer e Laurence Roudart (2008) chamou de primeira revolução agrícola dos tempos modernos.
Neste contexto a fronteira trinacional Argentina-Brasil-Paraguai experimentou sua consolidação mediante a transformação da região num complexo agroexportador da erva-mate, cujos latifundiários argentinos foram os operadores da perspectiva da Economia Política e cujos sujeitos em processo de subordinação e marginalização foram os e as indígenas de origem guarani. Não obstante, Foz do Iguaçu, do lado brasileiro da fronteira foi transformada em colônia militar em 1881 como forma de ratificar o domínio territorial brasileiro. O legado deste período para a fronteira trinacional foi um processo de urbanização militarizado, a consolidação de um modelo agrícola latifundista-exportador em que as pequenas e médias cidades mantêm funções de suporte técnico-financeiro às atividades da agroindustriais ou as atividades do agronegócio, num alto grau de marginalização dos povos guaranis que habitavam este lugar à medida em que foi se construindo os múltiplos territórios nacionais (ANDRÉ, 2016; CARNEIRO, 2012; 2013).
Na fronteira Colombo-Venezuelana, entre o que é atualmente a região metropolitana de Cúcuta na Colômbia, com mais de 1,1 milhão de habitantes e o estado de Táchira com cerca de 1,9 milhões de habitantes, o processo de consolidação ocorre ainda no início do século XIX, especificamente em 1813. A cidade de San Antonio de Táchira foi ponto de partida das campanhas militares de Simón Bolívar pela independência e formação do que são atualmente os Estados Nacionais de Colômbia e Venezuela. Foi em Táchira que se iniciou o que ficou conhecido entre os militares venezuelanos como La Campaña Admirable. A cidade ganhou posteriormente o nome de Villa Heroica dado pelo próprio Simón Bolívar. Nas ruas de Táchira morreram os primeiros mártires das campanhas de independência na América do Sul (POLO ACUÑA, 2005; JIMÉNEZ AGUILAR, 2008).
Ambas as fronteiras mantêm dinâmicas de fronteira geopolítica, fronteira agrícola e fronteira demográfica, não obstante, como discutido por Roberto França Silva Junior (2016), elas mantêm dinâmicas intensas de fluxos de mercadorias, cargas, gentes e capitais, o que nos obriga a pensar a fronteira em três dimensões ou escalas: a fronteira geopolítica - as relações internacionais no nível regional e os Estados Nacionais -, as cidades de fronteira como espaço de fluxos ou da fluidez - mercadorias, gentes e capitais - e as cidades de fronteira como entorno da vida cotidiana.
Embora a dimensão geopolítica de ambas as fronteiras se iniciam no processo de formação dos Estados Dependentes-Agroexportadores sob a hegemonia britânica e suas técnicas de modernização agrícola e mecanização do território, da perspectiva urbano-demográfica, ou seja, de efetiva ocupação e reprodução da vida cotidiana considerando os espaços urbanos, e da perspectiva da fronteira como lugar vida urbana, em ambas as fronteiras esses processos ocorreram apenas com a mudança hegemônica do sistema interestatal e internacional, que fez com que a liderança do mundo passasse aos comandos dos Estados Unidos e, por sua vez, da necessidade deste de fomentar um nacional-desenvolvimentismo subsidiário na região até os anos de 1980.
Este processo tem particularmente dois momentos: o primeiro é a formação de zonas industriais que durou até o fim da segunda guerra mundial para que pudessem complementar a industrialização estadunidense em seu esforço industrial-militar, num tipo de keynesianismo de guerra (ARRIGHI, 1996); e, segundo, na consolidação da America do Sul como área de influência estadunidense a partir principalmente dos anos de 1960, dentre da polarização com a potência soviética.
Este momento geopolítico fez com que os países de todos os lados da fronteira, tanto na fronteira Argentina-Brasil-Paraguai e na fronteira Colombo-Venezuelana, realizassem fortes investimentos em infraestrutura, para consolidar suas presenças geopolíticas e ao mesmo tempo incorporar as áreas de fronteira em seus fluxos econômicos, permitindo ainda uma certa expansão demográfica. É neste cenário que surgem os parques nacionais do Iguaçu no Brasil e do Iguazú na Argentina ainda no final dos anos de 1930, e a Itaipu Binacional (brasileira e paraguaia), as pontes ligando os países - ponte da amizade, ponte da fraternidade e ponte Simón Bolívar -, os inúmeros aeroportos, e a área metropolitana de Cúcuta como parte do ordeidnto territorial Colombo-Venezuelano.
Brasil e Paraguai utilizaram a construção de Itaipu para seus planos políticos e geopolíticos. O Brasil além de consolidar sua área de fronteira cuja colônia militar foi estabelecida ainda no final do século XIX, impôs na geopolítica regional o que Mário Travassos chamou de pressão Amazônica em contrapartida da pressão platina da Argentina e transformou a região em extensão de sua fronteira agrícola mediada pela formação, expansão e crescimento de uma série de cidades pequenas e médias ligadas à agricultura capitalista mundializada, aparelhada com as técnicas da revolução verde oriundas principalmente dos Estados Unidos.
O Paraguai, por sua vez, sob a ditadura de Alfredo Stroessner, usou a mega infraestrutura de Itaipu para negociar com o Brasil uma saída de fluxo de mercadorias para o mar, de tal maneira a criar as condições da estratégia conhecida como re-exportação, isto é, importar mercadorias principalmente dos países asiáticos e exportar as mesmas mercadorias para o mercado brasileiro em troca de ceder parte do seu território oriental para a fronteira agrícola brasileira. O que por sua vez ensejou os conflitos agrários entre brasileiros vivendo no Paraguai e os povos indígenas locais que vivem da agricultura campesina, o que provocou a escalada da militarização e da violência no campo paraguaio e nas pequenas e médias cidades que oferecem suporte às operações da agricultura capitalista.
Já a Argentina, embora tenha criado o parque do Iguazú ainda nos anos de 1930 como parte do seu ordeidnto de fronteira, entrou no processo de urbanização da fronteira com maior intensidade apenas nos anos de 1980, após perder a Guerra das Malvinas, seja com o aparelhamento do aeroporto de Iguazù, seja com a inauguração da ponte da Fraternidade, ligando a Argentina ao Brasil - Puerto Iguazú à Foz do Iguaçu.
Na fronteira Colombo-Venezuelana, de acordo com Rosalba Linares e Heriberto Gomes (2012), houve a criação da área metropolitana de Cúcuta na década de 1960 como parte do ordeidnto territorial entre os dois paísese a tentativa de oferecer maior fluidez à circulação de alimentos e combustíveis. Assim, a área metropolitana de Cúcuta como concepção político-estatal criou as condições para o surgimento e o crescimento das cidades na área de fronteira e a utilização dos espaços urbanos e das pessoas na vazão do fluxo de mercadorias legais e contrabandeadas entre Colômbia e Venezuela - alimentos, combustível e armas. O que ganhou ainda maior fluidez com a operação e o funcioidnto de três aeroportos nesta área de fronteira. Um outro forte elemento de tensão aí, a partir também dos anos de 1960, foram a formação das guerrilhas e já nos anos 1980 a formação das milícias paramilitares ligadas sobretudo ao comércio da cocaína e ao contrabando de combustíveis da Venezuela para a Colômbia, acirrando a militarização na fronteira, no campo e nas cidades.
Podemos afirmar que o efetivo processo de urbanização destas fronteiras ocorreram efetivamente nas três últimas décadas do século XX, que no cenário dos diferentes países corrobora com um processo de interiorização da urbanização. Contudo, o que ficou deste período de formação destas fronteiras para os respectivos processos de urbanização atual foram a militarização, a segregação residencial que mais recentemente se transforma em efetiva fragmentação, e a consolidação de um intenso espaço de fluxos de mercadorias.
A militarização passa a ocorrer com a presença efetiva das forças armadas de todos os países, de todos os lados da fronteira1 , com uma sociabilidade em que os conflitos urbanos, seja os de classes ou segmentos de classe, sejam os conflitos entre pessoas ou grupos ligado ao comércio legal e ilegal de produtos, são tratados com extrema violência, aquilo que chamamos de violência do poder (envolvendo agentes dos diferentes Estados Nacionais), o que de certa maneira antecedeu o que é vivido nas grandes metrópoles sul americanas sobretudo a partir dos anos de 1990. A militarização nestas áreas de fronteira com a presença legal das forças armadas e das polícias, com a formação de grupos milicianos ou paramilitares, ou mesmo com organizações que operam os fluxos ilegais, precedeu a militarização dos conflitos urbanos nas áreas metropolitanas de toda América do Sul.
Não obstante, a segregação residência nessas áreas tem um tipo diferente das cidades que experimentaram os eventos do período colonial. Estas cidades de fronteira são tipicamente cidades do nosso modo de se inserir no capitalismo mundializado, são cidades em que os poucos espaços públicos e instituições de bem-estar público são radicalmente esvaziadas em detrimento do espaço, serviços e instituições privadas, embora blindadas pelas instituições públicas, sobretudo as de seguranças, controle e vigilância. Assim, desde o princípio de seus processos de urbanização, a paisagem urbana é marcada por extrema segregação residencial de ricos e pobres, cujos corpos destes últimos são marcadamente negras, negros, indígenas, mulheres, crianças e despossuídos das áreas rurais sob a organização da agricultura capitalista mundializada (ANDRÉ, 2016).
Isso é algo importante uma vez que os estabelecidos de todos os lados das fronteiras geralmente são militares ou servidores públicos ligados a administração estatal e a alfândega, comerciantes e no caso da fronteira entre Argentina-Brasil-Paraguai de diferentes origens nacionais: coreanos, chineses, árabes, e latifundiários ligados a agricultura altamente capitalizada e de fluxos mundializados, sem contar os operadores dos diferentes tipos de contrabando e de tráficos de armas, drogas e pessoas.
Contramercado, Militarização e fragmentação urbana
Neste ponto é importante retomar um conceito há muito esquecido nas ciências humanas e na teoria social crítica, o conceito de Ferdinand Braudel (1986) denominado de “contramercado”, mencionado por nós em outros trabalhos de forma mais tangencial (ANDRÉ, 2017). Para o autor o “contramerchant” ou o contramercado é de fato a camada superior das sociedades capitalistas e seus respectivos Estados corporativos. Braudel entende que a realidade deve ser compreendida em três dimensões: a vida material - o que podemos chamar aqui de vida cotidiana -, o mercado - espaço de trocas de bens econômicos e simbólicos - e o contramercado - no qual atuam os operadores da alta política estatal e os agentes corporativos, cujos objetivos são controlar as trocas econômicas - sua oferta e demanda - e interferir na dinâmica da vida material, da vida cotidiana, de tal modo a reproduzir seus planos e interesses, reproduzir seu capital e controlar as dinâmicas do mercado de trabalho e do mercado de consumo..
Feito este resgate, a presença geopolítica nas diferentes fronteiras desde o século XIX e a implantação de infraestrutura ao longo do século XX transformando as área de fronteira em espaço da fluidez (SILVA JUNIOR, 2016) dos mais diferentes tipos de mercadorias a partir da consolidação da urbanização, é um típico processo de formação de contramercados para áreas de fronteira, nas quais os diferentes Estados Nacionais, a sua maneira, com suas estratégias geopolíticas e políticas, colocam os territórios urbanos de fronteira à disposição dos grandes operadores econômicos em consonância com os interesses mais gerais da hegemonia do momento para a região. Não há espaço para abordar este tema aqui, no entanto vale lembrar do Plano Colômbia e das ações de vigilância na fronteira sul após o ataque de 11 de Setembro de 2001, desdobrando na intensificação da militarização e da vigilância difusos na vida cotidiana destes espaços urbanos.
Enquanto Cúcuta funciona como um dreno de combustível da Venezuela para Colômbia principalmente (GARZÓN BAUTISTA, 2016), Ciudad del Este funciona como um dos principais portais de entrada de cigarros, armas e drogas para Brasil e Argentina, com a vantagem de ainda permitir a compra de produtos eletrônicos importados da Ásia, Estados Unidos e Europa (CARNEIRO, 2012).
Assim, os territórios urbanos de fronteira abordados aqui entram no atual período de transição e disputas hegemônicas entre Estados Unidos e China, com a infraestrutura para a fluidez de mercadorias e capitais necessárias para se incorporarem no espaço de fluxos de mercadorias mundializados.
Esta transição de hegemonia ou disputa hegemônica traz consigo processos de mundialização dos negócios, dinâmicas de regionalização como a formação dos blocos regionais, o espalhamento da urbanização pelos territórios e a respectiva conexão das fronteiras, a transfronteirização e processos de fragmentação territorial e do tecido sócio-político.
As forças armadas garantem as fronteiras, a geopolítica, a política, e os negócios, a velocidade da fluidez das mercadorias legais e ilegais. Não obstante, garantem o exercício do poder Estatal e Corporativo, produzindo uma sensação de incapacidade e uma incapacidade real das pessoas destas diferentes fronteiras de decidir sobre a governança dos seus lugares de entorno, de decidir a política da fronteira como lugar de existência, contribuindo com a blindagem dos fixos ligados à política, à geopolítica e aos negócios e negligenciando os fixos ligados ao bem estar da vida cotidiana - moradia, transporte, serviços de saúde, serviços de educação, dentre outros - o que intensifica a segregação urbana e a transforma em fragmentação do tecido-sócio-político uma vez que, a não ser como força de trabalho de todos estes negócios, aqueles que operam política, geopolítica e negócios na fronteira, vivem apartados daqueles que vivem de vender sua força de trabalho na fronteira, sobretudo para dar maior fluidez a mercadorias legais e ilegais, podendo dar a própria vida em se tratando de negócios em conflito com a lei - contrabandeando cigarros, armas ou drogas em Foz do Iguaçu ou contrabandeando combustível em Cúcuta.
Neste sentido, há um padrão urbano em todas estas cidades em que os objetos urbanos mais sofisticados estão efetivamente ligados ao exercício do poder sobre as áreas de fronteira e aos negócios mundializados, o que no caso de Foz do Iguaçu e Puerto Iguazu incluem redes de hoteis e concessionárias que prestam serviços turísticos enquanto a infraestrutura e os objetos urbanos ligados ao transporte coletivo, à moradia, aos serviços públicos de saúde e educação, e ao uso das cidades em suas diferentes funções por seus habitantes, é propositalmente precarizado para transformar o espaço urbano em algo além do veículo da política, da geopolítica e dos negócios, para que o espaço urbano seja ele mesmo uma mercadoria a ser consumida e que tenha frações customizadas segundo o gosto dos turistas e não dos seus habitantes, ainda que considerando suas segmentações. Assim, o transporte aéreo destas cidades altamente sofisticados contrastam com o transporte público, os hotéis internacionais contrastam com a precariedade habitacional e as ocupações urbanas, os serviços privados contrastam com os serviços públicos, a cidade da política e dos negócios contrasta com a cidade dos habitantes.
Os espaços dedicados à política, à geopolítica, os negócios e seus respectivos operadores, formam uma cidade blindada da cidades dos segmentos que vivem de vender seu trabalho no comércio, no turismo, no contrabando e no tráfico. Assim, as cidades de fronteira neste momento de mercantilização de tudo, estão completamente integradas às dinâmicas dos fluxos de mercadorias e gentes que permeiam as fronteiras a todo tempo, naquilo que Camilo Carneiro Filho chamou de transfronteirização (2013). Contudo isso não se faz sem a fragmentação vertical, isto é, sem promover a incapacidade de governança na vida cotidiana e sem promover uma intensa fragmentação horizontal, a completa separação, salvo os negócios, entre os estabelecidos de toda natureza nas diferentes cidades e entre aqueles em franco processo de marginalização.
A fronteira Colombo-Venezuelana ainda enfrenta intensa militarização provocada pelo conflito entre as forças armadas, o Ejército Popular de Liberación, o Ejército de Liberación Nacional e as Autodefesas Gaitanista, todos contra todos, pelo controle do território da fronteira e de seus fluxos comerciais - legais e ilegais (GARZÓN BAUTISTA, 2016). Como paradoxo, estes conflitos da fronteira Colombo-Venezuelana que ocorrem desde os anos de 1960 se replicaram, como uma espécie de mimetismo na fronteira entre Brasil e Paraguai, com a formação de pequenas guerrilhas camponesas e grupos de autodefesas comandados por brasiguaios (GAGLIARD e STOCKLER, 2011). Este ambiente de militarização em diferentes dimensões e sentidos alavanca o crescimento das cidades de fronteira, fazendo dos pobres do campo, pobres urbanos, mão de obra necessária dos fluxos em conflito com a lei em ambas os territórios de fronteira e suas respectivas cidades.
Soma-se a isso a penetração das grandes organizações criminosas como Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho no controle dos fluxos de armas e drogas da fronteira Brasil e Paraguai para o restante do Brasil.
Da negação do direito à cidade ao direito à fronteira
A maior parte das questões levantadas aqui mantêm características de grande complexidade que somente a compreensão de como estes territórios urbanos de fronteiras corresponderam em cada momento histórico à política, à geopolítica e aos negócios de seus respectivos países. Contudo, nos parece impressionante como estes lugares se integram à mundialização dos negócios de maneira extremamente sofisticada e ao mesmo tempo fragmentam os espaços urbanos na medida em que blindam os espaços dos negócios, negligenciam, abandonam e haussmanizam os espaços dedicados a reprodução social na vida cotidiana.
Nestes contextos é quase impossível reivindicar qualquer direito à cidade inclusive porque os diferentes Estados Nacionais e os operadores empresariais, políticos e geopolíticos utilizam os limites das fronteiras como forma de criar condições de acumulação a partir das diferenças de infraestrutura, normas, impostos e valor da força de trabalho. Daí a superexploração do trabalho de domésticas paraguaias do lado brasileiro da fronteira, daí as maquiladoras brasileiras que buscam menos impostos do lado paraguaio, daí a especulação com os preços dos alimentos em Cúcuta e as empresas colombianas que fazem o comércio de combustíveis a partir de Táchira.
Em nossa realidade, na realidade sul americana é importante compreender que o direito à cidade proclamado por Henry Lefebvre jamais se realizou, que nossas cidades não são obras de artes, que elas, desde a colonização até os dias atuais, foram veículos de sucessivas ordens geopolíticas em que nossos territórios foram e são sucessivamente espoliados. Nossas cidades jamais esboçaram a conjunção do direitos que configuram o que Lefebvre chamou de direito à cidade, como uma forma de direito superior, capaz de transformar a vida urbana no lugar do reino da autonomia e da liberdade: o direito ao trabalho decente, à moradia salubre, à educação capaz de garantir a autonomia, o transporte coletivo confortável, o lazer capaz de oferecer situações de prazer e alegria. Nossas cidades, para uma parte importante dos seus habitantes é o lugar da insegurança social, econômica e psicológica, é o lugar da superexploração, do medo da violência e da morte violenta.
Se nossa hipótese estiver correta, os territórios urbanos de fronteira anunciam um novo tipo de sociedade, um novo tipo de política e geopolítica, e um novo tipo de urbanismo e urbanização, em que há uma radicalização da apartação entre os estabelecidos e aqueles em processos de marginalização de cada um desses lugares, uma apartação entre as frações urbanas ligadas aos fluxos de mercadorias, à política, à geopolítica e às frações de reprodução social da vida cotidiana, cujas espaços de um e de outro estão mediadas pela militarização de todos os tipos e pela vigilância de instituições legais e grupos em conflito com a lei.
Se nossa hipótese estiver correta, os territórios urbanos de fronteira podem nos ajudar a pensar como reivindicar a conjunção de direitos e de forma real pensar o que é o direito à cidade na realidade urbana sul americana. O direito à cidade nos territórios urbanos deve enfrentar a fragmentação vertical provocada pela política, geopolítica e pelos fluxos de mercadorias, tornando parte da governança destas cidades algo que seja próximo e acessível aos seus habitantes. Isto não quer dizer que não haverá contradições, que não haverá segmentações. Todavia, se instrumentalizar de mecanismo de governança para o entorno da vida cotidiana é o primeiro passo para minimizar a vulnerabilidade territorial, para evitar a compartimentação fragmentada problematizada por Milton Santos (2003) e então submeter os fluxos mundializados ao bem-estar da vida cotidiana.
Embora pressionados pela política de cada país, pela geopolítica que fazem e que estão submetidos e pelos negócios que operam, o potencial multicultural dos territórios de fronteira tornam latente o surgimento de ativismos sociais e ações urbanas que podem enfrentar a fragmentação do tecido sócio-político e assim ensinar a todos nós, em todos os contextos de cidades, as pequenas, as grandes e as metropolitanas, o quanto é possível que nossas cidades, ainda que de forma temporária, ainda que em pequenas frações, podem também ser, como nunca foram, o lugar por excelência da liberdade e da vida digna.
Este debate ficará para outro trabalho, no entanto, uma concepção ontológica e atualizada do que vem a ser os ideias de direito à cidade, devem começar pelo direito à fronteira, porque a fronteira hoje não é mais epiderme dos seus respectivos Estados Nacionais, ela é parte dinâmica de sua própria condição.
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