Luciana Rachel Coutinho Parente*
Universidade de Pernambuco, Brasil
Email: luciana.coutinho@upe.br
RESUMO
O presente artigo decorre do interesse de indagar como o recebimento do estatuto de patrimônio cultural da humanidade, conferido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, transforma a dinâmica e o funcionamento do território, a partir da adoção de instrumentos e regulamentações bastante peculiares e exteriores à realidade dos lugares. A classificação de determinados recortes espaciais, enquanto patrimônio da cultura mundial pela Unesco, provoca impactos não somente positivos, mas também negativos, que são responsáveis por gerar alterações na dinâmica e no funcionamento do território. Partindo desta premissa, o presente trabalho busca perceber como os lugares com marcas de tempos passados se inserem na dinâmica global, considerando, para tanto, a confrontação entre o caso brasileiro – Olinda – e os exemplos portugueses – Sintra, Évora e Guimarães. Pauta-se na abordagem crítica à questão da patrimonialização, tendo como objetivo geral verificar as transformações sócio-espaciais promovidas pelo recebimento do estatuto de patrimônio cultural da humanidade. Enquanto procedimentos metodológicos principais foram realizados: levantamento bibliográfico e documental, aplicação de inquéritos por questionário aos residentes de Olinda e entrevistas semiestruturadas com agentes e/ou entidades vinculadas a temática do patrimônio no Brasil e em Portugal. Os resultados da investigação teórica e, principalmente, da pesquisa prática indicaram enquanto principais tendências presentes nos sítios patrimoniais: a cenarização dos lugares da memória, a focalização no turismo, a desertificação populacional, a estandardização da cultura, entre outros. Em resumo, a investigação apresentada constatou a existência de sérios desafios a serem enfrentados, tanto no sítio brasileiro, como nos portugueses, no que se refere ao processo de gestão e ordenamento do território dos lugares da memória classificados como patrimônio da cultura mundial pela Unesco.
PALAVRAS-CHAVES: Patrimônio, Identidade, Cultura, Unesco, Gestão do território.
ABSTRACT
The social-spatial transformations promoted by the Cultural World Heritage status: the case of Olinda (Brazil) and the case examples of Sintra, Évora and Guimarães (Portugal)
This article aims to understand the impacts arising from the Humankind Cultural Heritage status. This status is given by Unesco (United Nations for Education Science and Culture Organization) has the capacity of changing territorial dynamics and functioning, due to the adoption of specific tools and legal frameworks which are significantly different from those found pre-status. It is important to mention that the classification of certain spatial areas as cultural heritage sites by Unesco can cause both positive and negative impacts. Aside from touristic backgrounds, the changes occurring within classified territories are causing spatial differentiation. On this premise, this thesis seeks to understand how the places with marks of past times are fitting into the global dynamics, which are the causes and consequences to those areas. Considering the confrontation between the Brazilian example case - Olinda - and examples of Portuguese cases - Sintra, Évora and Guimarães, the method used was a critical approach. Using the critical approach, we were able to verify the socio-spatial transformations promoted by the humankind cultural heritage status. The methodological procedures were the following: extended bibliographic and documental analysis; application of a survey to Olinda residents; to compliment, there were conducted semi-structured interviews, focusing local actors (agents and entities), representative of the cultural heritage issues in Brazil and Portugal. The results of the theoretical research and the empirical results indicate as the main trend that can be found in the cultural heritage places are: scenario building around heritage places; focusing on tourism; residents’ desertification; standardization of culture, among others. In summary, the research presented herein, found that there are serious challenges to be faced, both in the Brazilian site, as in the Portuguese, especially regarding the process of planning and management of the sites classified as cultural heritage of humankind.
KEYWORDS: Cultural Heritage, Identity, Culture, Unesco, Territorial management.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Luciana Rachel Coutinho Parente (2019): “As transformações sócio-espaciais decorrentes da classificação enquanto patrimônio cultural da humanidade: o caso de Olinda (Brasil) e os recortes espaciais de sintra, évora e guimarães (Portugal)”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (abril 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/04/patrimonio-cultural-humanidade.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1904patrimonio-cultural-humanidade
1. REFLEXÕES INICIAIS
Deve-se pontuar, primeiramente, que o patrimônio é resultante dos diversos elementos constituidores da cultura. É o espelho da “evolução” da existência humana, na medida que “conserva” as heranças imateriais ou materiais resultantes dos vários modos de existir. Se origina da memória coletiva, dos valores que os grupos sociais atribuem tanto aos elementos concretos (palácios, igrejas, monumentos, entre outros), como aos abstratos (ritos, crenças, danças, músicas, lendas, etc.).
Nesta direção temos as observações de Folgado (2010, p. 323):
O património cultural – imóvel, móvel ou imaterial – é sempre uma versão da memória colectiva em permanente construção. A necessidade sentida pelas sociedades modernas em legitimar uma identidade dependeu de múltiplos actores, circunstâncias e contextos, que conjuntamente validam práticas e actuações que através da seleção, perda, omissão ou proteção de objetos, saberes, actividades ou locais legitimaram uma história reconhecida pelas suas diversas produções.
Importa, também, quando tratamos de lugares classificados enquanto patrimônio da humanidade, refletir sobre a espacialidade frente às transformações na dinâmica geopolítica do mundo. É preciso pensar nas questões apontadas por Moraes (2005, p. 35) quando diz que:
Numa abordagem geográfica, a história humana pode ser vista como uma progressiva apropriação da superfície terrestre pelos diferentes grupos sociais. Neste movimento, tais grupos imprimem nos espaços que acolhem características das relações que ordenam seu modo de vida. [...] Tratam-se de riquezas naturais transformadas em objetos de consumo e de formas construídas que se agregam ao solo sobre o qual estão erguidas. [...] Em outras palavras, trabalho materializado na paisagem, valor depositado nos lugares – é em função disto que os espaços passam a se diferenciar por características humanas e não apenas por condições naturais variáveis.
Assim, pode-se notar que os lugares patrimônio apresentam, de forma bastante nítida, todo esse acúmulo de tempo, são o espelho desse processo onde houve a sobrevivência de marcas de outros tempos. Configuram-se, então, como testemunhos das transformações nos modos de existir.
De acordo com as ideias de Claval (2007), podemos afirmar, de forma sintética, que todo esse processo de transformação é resultante da(s) cultura(s), constituída(s) por uma criação coletiva e em constante renovação a partir das necessidades/intencionalidades humanas, a serviço da organização, bem como pela dominação do espaço.
Desta maneira, adentramos no universo do conceito de patrimônio, fazendo-se necessário perceber o significado etimológico da palavra, que deriva do latim patrimonium, e tem como significados: herança paterna; bens de família; bens necessários à ordenação e sustentação de um eclesiástico; quaisquer bens materiais ou morais, pertencentes a uma pessoa, instituição ou coletividade.
Quando observamos o senso comum, percebemos que o termo, é comumente utilizado como sinônimo de riqueza e bem material. Destaca-se, ainda, que traz consigo a noção de bem, proveniente de herança ou fruto do trabalho que um indivíduo ou uma empresa possui.
Deve-se ressaltar que, no processo de construção e evolução do conceito de patrimônio a concepção e valorização das heranças remontarem as civilizações antigas. Nestes termos, temos:
Muitos são os estudos que afirmam constituir-se essa categoria em fins do século XVIII, juntamente com os processos de formação dos Estados nacionais, o que é correto. Omite-se no entanto, o seu caráter milenar. Ela não é simplesmente uma invenção moderna [...] estamos diante de uma categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana [...]”. (GONÇALVES, 2002, p. 21)
É preciso ilustrar que a preocupação, de modo mais “estruturada”, com o patrimônio remonta ao século XVIII. Segundo Zanirato e Ribeiro (2006, p. 252):
A preocupação com a definição de políticas para a salvaguarda dos bens que conformam o patrimônio cultural de um povo remonta ao final do século XVIII, mais particularmente à Revolução Francesa, quando se desenvolveu uma outra sensibilidade em relação aos monumentos destinados a invocar a memória e a impedir o esquecimento dos feitos do passado.
Choay (2010) aponta que ainda no século XIX, em 1837, na França, ocorre a primeira ação de valorização dos monumentos com a criação da primeira comissão em defesa dos monumentos históricos, onde se considerava necessário preservar três categorias: os remanescentes da Antiguidade, os edifícios religiosos e alguns castelos. A autora destaca ainda que após a Segunda Guerra Mundial os números de bens monumentais catalogados multiplicam-se por dez, seguindo os mesmos princípios da época de criação da referida comissão.
De acordo com Vecco (2010), o processo de evolução do termo patrimônio se apresenta comumente ligado a ideia de monumento, contudo, aponta a existência de confusões no entendimento e emprego do referido conceito.
In the last decades of the 20th century, the term “heritage” was characterised by expansion and semantic transfer, resulting in a generalisation of the use of this word, frequently used in the place of another, such as, monument and cultural property. However, all these terms are not able to cover the same semantic field. (Ibid., p. 321)
Chama-nos a atenção também as observações de Scifoni (2011, p.1) quando afirma que a definição dos lugares patrimônio mundial pela Unesco, inicialmente, se apresentaram pautados em critérios que:
Fundamentavam-se, principalmente, em experiências ocidentais de preservação, tendo em vista que a gênese da proteção institucional do patrimônio deu-se na França. Baseavam-se em valores como a monumentalidade e a excepcionalidade para os bens naturais e a autenticidade para os bens culturais.
Na atualidade, o patrimônio, é foco da abordagem dos mais diversos ramos do conhecimento científico, sendo visto como um recorte de análise de extrema relevância para a gestão e o ordenamento do território.
Assim, de acordo com Martins (2004, p. 1): “o patrimônio assim, não é algo sem importância, fruto de convenções sociais. É dinâmico, serve para proporcionar um aprofundamento nos contextos sociais, históricos, econômicos etc.”
Deve-se enfatizar que a construção da noção de patrimônio é resultante do processo de evolução dos seres humanos no sentido de perceber que os elementos concretos, e até mesmo os imateriais, construídos ao longo da história dos povos, se configuram enquanto um retrato de suas próprias histórias, com valor único e responsável pela diferenciação entre os grupos humanos.
Deste modo, Martins (2004, p. 1) afirma que:
O conceito de patrimônio cultural então, envolve em grande escala o feito humano atrelado a um contexto. Uma vez que todo o espaço ocupado pelo ser humano, pressupõe uma atuação que significa a busca de sobrevivência e bem-estar, o espaço natural está impresso pelo resultado da ação humana, o que nos leva a inferir que tudo que representa a impressão seja no nível material, ou simbólico, representa uma interferência humana que significa cultura, que por sua vez também é patrimônio cultural.
Importa mencionar que as áreas definidas como patrimônio da humanidade transcendem, mesmo que de forma impositiva – uma vez que é instituído por uma organização mundial – o valor atribuído por um dado povo. Deve-se pensar que o título de patrimônio da humanidade conferido de maneira a fragmentar/selecionar alguns lugares do mundo se apresenta enquanto uma criação da cultura ocidental, nascida da tentativa/anseio de salvaguardar, ou quem sabe, fazer com que essas áreas ganhassem maior visibilidade e valor econômico, a partir da preservação de sua “identidade”.
Marques e Martins (1998, p.125) esclarecem que: “a noção de patrimônio é cada vez mais abrangente, tendo-se alargado do material ao imaterial, do objeto localizado ou do simples monumento evocativo, a conjuntos territoriais mais vastos, às paisagens e até mesmo, aos códigos genéticos e à biodiversidade”.
Deve-se observar que o patrimônio, em sua dimensão cultural, se apresenta como legado para humanidade na medida em que possui elementos tangíveis (e.g. museus, palácios, monumentos, igrejas, paisagem) e intangíveis (estilos de vida, aspectos ambientais, tradições, entre outros) com características singulares que despertam o interesse, a curiosidade e o reconhecimento dos grupos humanos.
Vecco (2010, p. 323) chama a atenção para a necessidade do pensamento acerca do patrimônio ser pautado a partir da articulação entre os elementos materiais e imateriais, vejamos:
The next step is the awareness that conservation can no longer be based on the object’s intrinsic quality. It must be founded on our ability to recognise its aesthetic, historic, scientific, social values etc., or rather, it is society, the community that must recognise these values, upon which its own cultural identity can be built. Gradually, talk is about a heritage that is not just tangible but also intangible, and therefore is not closely linked to the physical consistency of the heritage.
Deste modo, apontamos o patrimônio enquanto coletividade, haja vista os lugares patrimônio mundial serem fruto de um processo, conjunto de construção, ou ainda por se configurarem como marcas de outros tempos, deixadas pelos grupos humanos em seu próprio processo evolutivo, proveniente de múltiplas interações, resultante de avanços e recuos da vida em sociedade.
Em síntese, o patrimônio cultural se apresenta como uma ferramenta útil na busca pela equalização entre o uso do “velho” frente aos anseios do “novo”, isto é, a depender do modo como as heranças de tempos passados – sejam estas materiais ou imateriais – são inseridas nas dinâmicas impostas pela contemporaneidade, o patrimônio cultural pode significar um lugar seguro para o acúmulo do tempo no espaço.
2. RECONHECIMENTO, ESTATUTO E CRITÉRIOS DA UNESCO – A DINÂMICA DOS SÍTIOS PATRIMONIAIS
Importa mencionar que, a classificação dos lugares como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco tem a sua história começada a ser escrita na década de 1970, há aproximadamente vinte e cinco anos da fundação da referida instituição, ocorrida no dia 16 de novembro de 1945, após o final da Segunda Guerra Mundial.
Deve-se ressaltar que a Unesco se define como instituição que trabalha com o objetivo de criar condições para um genuíno diálogo fundamentado no respeito pelos valores compartilhados entre as civilizações, culturas e pessoas. Afirma que o mundo requer urgentemente visões globais de desenvolvimento sustentável com base na observância dos direitos humanos, no respeito mútuo e na erradicação da pobreza. Temas esses que estão no cerne da missão da Unesco, e em suas atividades.
Cumpre apontar que o patrimônio se constitui enquanto heranças do passado presentes nos dias atuais ou, ainda, elementos de referência da identidade dos povos. Neste sentido, a Unesco (1992, p. 14) considera três variáveis na definição do patrimônio cultural:
Os monumentos. – Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
Vale referir que somente no século XX é que são tomadas medidas práticas de repercussão mundial. Deve-se destacar que o processo de valorização mais efetiva do patrimônio se dissemina após a Segunda Guerra Mundial, principalmente em função dos estragos resultantes do referido conflito.
Enfatiza-se, dos diversos documentos elencados, a Carta de Atenas, da década de 1930, enquanto um “ponto de partida” de alcance em caráter mais global e, sobretudo, a Convenção da Unesco de 1972, onde foram definidas as diretrizes para o patrimônio cultural e natural do mundo.
Assim, no ano de 1972, na 17ª sessão da conferência geral da Unesco é aprovada a Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial e em 1977, a Unesco define os critérios para o estabelecimento de espaços com significados e interesse mundial, sendo em 1978 divulgada uma lista com os primeiros sítios definidos como patrimônio da humanidade.
Partindo do pressuposto de que as convenções, recomendações e resoluções internacionais sobre a propriedade cultural e natural são de extrema importância para todos os povos do mundo - haja vista se apresentarem enquanto uma possibilidade de salvaguardar dessas propriedades únicas e insubstituíveis, já que a definição do patrimônio apenas a nível nacional muitas vezes pode se apresentar incompleta devido a escala dos recursos que ele necessita, em razão da insuficiência dos recursos econômicos, científicos e tecnológico locais - é que a Convenção de 1972 estabelece a proteção de duas categorias de bens os naturais e os culturais.
É necessário observar que os requisitos focam essencialmente a criação, a troca de influências, os testemunhos da história e da cultura e o significado universal, conjugando assim a originalidade e a especificidade com o significado e reconhecimento globais.
Importa referir que os processos de solicitação de inclusão dos bens brasileiros na lista do patrimônio mundial remontam a meados da década de 1980, quando Ouro Preto foi declarada a primeira cidade brasileira patrimônio da humanidade. A mais recente inclusão ocorreu no ano de 2016, com a classificação do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, no estado de Minas Gerais.
Quanto à Portugal possui 14 bens culturais e 1 natural, sendo o Centro Histórico de Angra do Heroísmo, nos Açores, em 1983 um dos primeiros sítios a ser reconhecido como patrimônio mundial da humanidade, em função sobretudo da preservação de sua arquitetura militar.
Destaca-se ainda, no mesmo ano de 1983, o recebimento do título por parte de Portugal pelos monumentos do Convento de Cristo, em Tomar, Mosteiro dos Jerônimos e Torre de Belém, em Lisboa e, o Mosteiro da Batalha, na cidade de mesmo nome.
Outro ponto a observar, no que diz respeito ao estatuto e ao reconhecimento, consiste no fato de perceber que a definição de lugares patrimônio da humanidade pela Unesco se apresenta enquanto “possibilidade” de preservação das heranças deixadas por outros tempos, gerando de um lado possibilidades/oportunidades, e de outro, a classificação pode gerar ameaças para a vida dos lugares a partir de um processo de estandardização, degradação e banalização.
Neste sentido, visando minimizar os impactos, a Convenção de 1972 estabelece em seu artigo 13.º, que o Comité deve buscar cooperar com organizações governamentais e não-governamentais nacionais e internacionais, desde que tenham objetivos semelhantes aos desta Convenção. Afirma que, para a execução dos seus programas e projetos, a Comissão pode recorrer a essas organizações, particularmente ao Centro Internacional para o Estudo da Preservação e Restauração de Bens Culturais (Roma), ao Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) e à União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), bem como aos indivíduos e entidades públicas e privadas.
Nesta direção, temos as considerações de Choay (2010, p. 223), que realiza uma crítica, na medida que aponta para o fato da Convenção de 1972 se apresentar enquanto uma estratégia para criar um modelo de mundialização dos valores e referências da cultura ocidental, o que acaba por colocar em xeque as especificidades de outras culturas, a partir da imposição de um sentimento de pertencimento à uma “cultura universal”.
Este processo planetário de conversão à religião patrimonial não se desenrola, contudo, sem dificuldades, de naturezas, por vezes opostas. Recordo-me de um amigo magrebino que se indignava por ver atribuir valor de arte e de histórias a monumentos cujo significado devia ser, aos seus olhos, exclusivamente religioso. (Ibid., p. 224)
Importa referir ainda o posicionamento de Costa (2013, p. 9) que afirma sobre a questão: “é a ruptura entre o passado e um presente desenhado sem o concurso do desenho, mas desenhado pelas leis de mercado […].” Ou seja, os lugares definidos como patrimônio surgem sob a égide do conflito entre uma vertente dita preservacionista e outra com intencionalidades mais profundas e complexas, que diz respeito a dinâmica da exploração capitalista.
Em suma, importa esclarecer que não podemos a cada nova “necessidade”, novo padrão de organização espacial, ir destruindo o que levou muito tempo para ser edificado, como também não é aceitável que os lugares classificados fiquem congelados no tempo, sem articulação com as demandas locais atuais.
O espaço não pode ser desprovido de memória, pois essa é uma das suas constituintes. De outro lado, não se pode deixar que os elementos concretos, o acervo do patrimônio material, estejam desconectados da vida e do contexto atual, reduzindo-os a mero instrumento de exploração, isto é, o patrimônio edificado/classificado não pode viver sem que se realize um sólido casamento com elementos invisíveis da(s) identidade(s) e da cultura(s).
3. SOBREUTILIZAÇÃO, SUBUTILIZAÇÃO, DEGRADAÇÃO E BANALIZAÇÃO
No tocante às ameaças que rondam os espaços declarados patrimônio cultural do mundo, apontamos os processos de sobreutilização, subutilização, degradação e banalização enquanto questões centrais da dinâmica e do funcionamento desses territórios.
Primeiramente, temos o processo de sobreutilização que aparece em muitos sítios que recebem o título de patrimônio na medida que passam a ser demandados de forma incisiva, seja pela especulação imobiliária, seja pelo turismo. Em outras palavras, se pensarmos que somente no Brasil, existem mais de cinco mil cidades, e que a Unesco conferiu em todo mundo “apenas” 1007 títulos, esses fragmentos do território tornam-se então alvo dos interesses de diversos setores da economia. O título, a princípio, se apresenta como uma “mais-valia” no processo de comercialização dos lugares.
Importa mencionar que contrário a sobreutilização existe, também, a ameaça promovida por um processo de subutilização, nascido em muitos casos pela proteção excessiva ou pelo descaso dos gestores, que em ambas as situações dificultam a integração desses recortes com a dinâmica do entorno. Recortes esses marcados, ou melhor dizendo, transformados em “ilhas”, sem conexão com a vida do lugar.
Assim, chegamos, então, às outras duas ameaças decorrentes das duas primeiras (sobreutilização e subutilização) que são: a degradação e a banalização
A degradação configura-se em algo relacionado com a perda das características primárias, aquelas ligadas a gênese do lugar, associada a ideia de tornar algo pior do que era “originalmente”. É possível verificar indícios de que quanto mais o turismo e a especulação imobiliária demandam os lugares patrimoniais maior é o risco de degradação, pois cria-se uma tendência de abandono por parte dos atores locais na medida à proporção que são encurralados por interesses exteriores ao lugar.
Deste modo, cabe destacar o papel dos gestores que, se não estiverem atentos para a questão e não regularem o processo de apropriação após o recebimento do título, poderão favorecer a degradação dos sítios patrimoniais.
Já a banalização, muitas vezes associada a sobreutilização e, em algumas circunstâncias, vinculada a degradação, consiste no desgaste da imagem do lugar, seja pelo uso excessivo, ou mesmo, por este ter perdido sua “essência”.
Apontamos, ainda, para o risco da repetição de padrões de ordenamento urbano, isto é, esses lugares tornam-se marcados por invólucros, semelhantes em todo mundo, na medida que são impostos aos sítios patrimoniais um mesmo ritmo de existir, com regras e leis que privilegiam a preservação dos elementos concretos em detrimento das pessoas que fazem os lugares. Destarte, os sítios tendem a se tornarem banais, muito parecidos em qualquer parte.
Cumpre mencionar que quando pensamos na banalização dos lugares do patrimônio temos o viés de pensamento, em que a própria “popularização” da concessão do título estimula ao desgaste da representação imaginária dessas áreas.
Deve-se enfatizar que a definição de um lugar enquanto patrimônio mundial traz profundas modificações na dinâmica sócio espacial, sobretudo em razão destas áreas apresentarem possibilidade para a sobreutilização por parte das atividades turísticas. Isto é, ao receberem o título de patrimônio, estes recortes espaciais passam a ser alvo do interesse e do investimento do setor do turismo. De tal modo, é preciso pensar como essa atividade é desenvolvida e de que modo estas áreas organizam as demais atividades econômicas, além de examinar como os atores locais passam a lidar com a questão.
Porter (2008, p. 270) chama a atenção para os conflitos e as divergências de interesses no gerenciamento do turismo em áreas patrimônio:
One implicit problem when defining heritage tourism is that producers and consumers are not easily segmented into discrete groups. Rather, we find a convergence of different actors that together or in conflict project their identities onto places, natural landscapes, or cultural objects, for reasons ranging from nation building and monetary gain to nostalgia and a lust for preservation.
Sobre o temática, Warnier (2000, p.63) aponta para o fato do patrimônio se apresentar como meio a ser sobreutilizado pelas políticas culturais, na medida em que, como diz o autor: “o patrimônio cultural, sob a forma de museus, monumentos, locais históricos, paisagens, é certamente uma dimensão da identidade, mas é, também, um recurso turístico, por vezes importante.”
Assim sendo, podemos afirmar que são os valores culturalmente construídos, de forma diversificada, que permitem a definição de alguns lugares como patrimônio da humanidade em detrimento de outras tantas áreas na superfície da Terra. O recebimento do título torna-se, deste modo, uma consequência de um constante jogo entre forças dos interesses locais confrontados com os globais e, vice-versa.
Por conseguinte, devemos refletir sobre a multiplicidade de interesses dos diversos grupos sociais e agentes econômicos, articulando esses interesses com as especificidades naturais, além de considerar as construções culturais e identitárias na elaboração dos espaços na contemporaneidade. Reduzir os espaços considerados patrimônio, apenas aos interesses de sobreutilização do setor do turismo é, no mínimo, realizar uma abordagem simplista, sobremaneira quando vivemos tempos de um mundo globalmente articulado.
Enfatiza-se que o título conferido pela Unesco representa efetivamente uma possibilidade de “mais-valia” para a preservação dos espaços e, também, da identidade e da memória coletiva de um lugar. Contudo, por outro lado, importa ter em conta que a identidade e a cultura local convivem, igualmente, com uma tendência a descaracterização ao passo que são pressionadas por um processo de sobreutilização imposto por relações de poder e por interesses econômicos mais invasivos.
Ressalta-se, assim, que ao invés de ser gerado um favorecimento para a preservação das heranças pode ocorrer a transformação do patrimônio em mais uma estratégia de marketing político e empresarial, onde tudo passa a ser visto como marca e mercadoria em potencial.
Neste sentido, McDowell (2008, p. 44) destaca o fato do patrimônio ser estabelecido por segmentos “dominantes” da sociedade atrelados à interesses e finalidades bem específicas:
Heritage is often defined by a dominant group within a particular society which, in many cases, tends to be national governments. Sites of memory such as monuments, plaques, museums and symbolic architectural spaces, as static and permanent reminders of the past concretized in the present, are often constructed by national governments to represent hegemonic values that cultivate notions of national identity and frame ideas and histories of the nation.
Desta forma, o desafio consiste em perceber que os lugares patrimônio não podem ser espaços sobreutilizados, com sua identidade ameaçada, como também não podem se constituir em espaços subutilizados, desconectados dos interesses dos atores locais, fechados em sim mesmos, ou ainda, marcas concretas nas paisagens, contudo, sem uso e sem vida.
Deve-se enfatizar que havendo tantos lugares no mundo com valor histórico, arquitetônico e cultural, a definição de lugar como patrimônio da humanidade está pautada em interesses direcionados e pré-estabelecidos.
De acordo com Almirón, Bertoncello e Troncoso (2006, p. 104):
Se hay observado que este proceso de selección expresa la relaciones de poder en la sociedad actual, y es llevado a cabo por individuos concretos e intencionados. El patrimonio es, por lo tanto, resultado de un proceso de selección definido por valores, ideas e intereses contemporáneos [...] y llevado a cabo por actores sociales con poder suficiente para lograrlo [...].
Já Tweed e Sutherland (2007, p. 62) apontam para o fato do patrimônio se constituir enquanto um elemento importante para a vida das cidades na contemporaneidade, se este for visto e articulado com o núcleo identitário dos indivíduos:
Increasingly, however, governments recognise the contribution that built cultural heritage makes to the social well-being of different groups living within increasingly cosmopolitan towns and cities. Heritage is seen as a major component of quality of life, but the two main methods of identifying and protecting built heritage – the listing of individual monuments and buildings and designation of conservation areas – are unable to deal with less tangible features of townscape, such as street patterns. Yet it is often precisely these features that give a city its unique character and provide the sense of belonging that lies at the core of cultural identity.
Outra questão que devemos enfatizar é que, muitas vezes, a definição de um lugar enquanto patrimônio traz impactos negativos para os atores locais, haja vista promover uma espécie de “empacotamento” dos lugares, onde as ações são voltadas para atender a demanda exterior dos turistas, ao invés de considerar as necessidades da comunidade que nestes espaços habitam. Segundo Evans (2002, p. 133):
Whilst the ‘historic value’ and ‘pride’ in the built and natural heritage rank highly amongst residents, the negative impacts from tourists offset these benefits, including the ‘touristification’ and seasonality of local services (e.g. shops) and, for a significant minority, indifference to WHS status is indicated.
Desta forma, quando pensamos nas possíveis ameaças para os sítios patrimoniais faz-se importante refletir sobre as formas de abordagem que a noção de patrimônio foi adquirindo ao longo do tempo. Essa, muitas vezes, vista e trabalhada por uma perspectiva redutora, onde os elementos concretos se sobressaem em relação aos fatores construídos pela(s) identidade(s) dos seres humanos que os fizeram nascer. Ainda, por vezes, encarado como algo desconectado dos anseios da modernidade e da vida dos atores locais ou visto como uma mina de ouro a ser explorada.
Em síntese, as perspectivas de abordagem, em muitas situações, podem se apresentar enquanto meios de reprodução e de exploração do patrimônio, ora servindo para estimular uma sobreutilização, ora apontando para uma subutilização, bem como favorecer a degradação e a banalização.
4. OLINDA E OS SEUS COADJUVANTES PORTUGUESES
Diante do exposto, cumpre esclarecer que buscamos pensar Olinda, enquanto cidade brasileira, pertencente ao grupo de sítios declarados patrimônio mundial no processo de apropriação e “reinvenção” frente ao processo de imposição de uma “economia-mundo”. Do mesmo modo, torna-se pertinente confrontar a realidade vista em Olinda com o que é vivenciado em Portugal, diferente do ponto de vista cultural, social e econômico, mas que possui vínculos históricos, além de ter sítios igualmente classificados pela UNESCO, a partir de uma matriz urbana “comum”.
Assim, vale referir que Olinda, na atualidade, de acordo com os dados do IBGE (2010), se constitui na terceira maior cidade de Pernambuco, abrigando em seus 41,7 Km2 de extensão territorial uma população de 377.779 habitantes. Desses 41,7 Km², 10,4 Km² constitui o polígono de preservação municipal de Olinda, onde inclui-se 1,2 Km2 referente a Zona Especial de Proteção Cultural e Urbanística do sítio histórico – ZEPEC 1.
A cidade de Olinda, declarada, em 1982, patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO, a partir dos critérios (ii) e (iv), se encontra situada no litoral do nordeste brasileiro, no estado de Pernambuco, a 08°01’42” de latitude sul e 34°51’ 42" de longitude a oeste de Greenwich. Apresenta como limites territoriais o município de Paulista ao norte, ao sul e a oeste a Cidade do Recife e a leste o Oceano Atlântico.
Já em relação a Sintra, se apresenta enquanto uma vila de Portugal, localizada na área metropolitana de Lisboa. É sede de um município suburbano com 317 km² de área e 379.963 habitantes (INE, Censo Demográfico, 2011), subdividido em 20 freguesias. O município é limitado a norte pelo Concelho de Mafra, a leste por Loures e Odivelas, a sueste pela Amadora, a sul por Oeiras e Cascais e a oeste pelo Oceano Atlântico.
Quanto ao Concelho de Évora, está localizado no Alentejo Central com uma área de 1.309 Km2, que corresponde a 5% do total da região alentejana e com uma população absoluta de 56.596 habitantes, distribuídas por dezenove freguesias (INE, Censo Demográfico, 2011). Deve-se ressaltar que cerca de 41 mil habitantes vivem nas áreas urbanas do Concelho, onde a densidade demográfica média é de 43 habitantes por quilômetro quadrado, sendo no centro histórico onde existe a maior concentração, com 50 habitantes por quilômetro quadrado.
No que diz respeito ao município de Guimarães, situa-se no norte de Portugal, no Distrito de Braga, limitado a norte pelo município de Póvoa de Lanhoso, a leste por Fafe, a sul por Felgueiras, Vizela e Santo Tirso, a oeste por Vila Nova de Famalicão e a noroeste por Braga. O município possui 158.124 habitantes distribuídos por 69 freguesias (INE, Censo Demográfico, 2011). Deve-se destacar que a cidade de Guimarães, denominada de “Cidade Berço”, possui mais de 50 mil habitantes em 20 freguesias.
No que se refere ao processo de ocupação e povoamento de Olinda, foi iniciado em 1535, como fruto da expansão do colonialismo português, quando o donatário da Capitania de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, deslocou-se de Igarassu e caminhou para o Sul pelo litoral, onde descobriu as colinas habitadas pelos índios da tribo Caetés, erguendo uma fortaleza em seu ponto culminante para se defender dos ataques dos indígenas e poder ocupar a área.
Silva, K. V. (2010, p. 25) aponta que:
O desenvolvimento urbano de Olinda data de finais do século XVI, e em 1593, ela já possuía uma população heterogênea em um espaço urbano bem definido. A Freguesia da Sé, que era o centro da cidade no alto do morro, o Cais do Varadouro, às margens do rio Beberibe, e a Freguesia de São Pedro Mártir, próxima ao Varadouro, eram as divisões urbanas principais da vila.
Torna-se necessário destacar que, na atualidade, Olinda conserva um traçado irregular, de influência portuguesa medieval, adaptado de acordo com a declividade do terreno, com uma arquitetura barroca na qual se destacam mais de vinte igrejas: Igreja do Rosário dos Homens Pretos de Olinda a Catedral de Olinda, a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, a Basílica e o Mosteiro de São Bento, o Convento de São Francisco, a Igreja de Nossa Senhora das Neves, e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, entre outras.
Quanto ao casario, destacamos a influência de Portugal, pois é possível observar construções com sacada em pedra ou madeira, fachadas contíguas e grandes quintais.
Zancheti e Milet (2007) apontam para o fato de Olinda ter sido nos primeiros séculos de colonização, um dos mais importantes núcleos urbanos da Coroa Portuguesa. Afirmam que seguiu os critérios de estruturação urbana aplicada na metrópole, onde a topografia elevada, enquanto elemento facilitador da defesa e controle das vias de comunicação, a proximidade com o porto natural, dentre outros fatores, tornaram Olinda a sede da Capitania de Pernambuco.
Ao analisar a história de Sintra, pode-se observar, de forma bastante sintética, que devido a uma série de fatores, sobretudo em função de sua localização proximidade do mar e da foz do rio Tejo - aspectos naturais favoráveis à presença humana, a região se apresentou atrativa a intensa ocupação. Destaca-se que Sintra é fruto de diversas temporalidades, passando pela presença romana, pelo domínio muçulmano, pela presença regular da Corte Real, espaço de exílio dos nobres durante o domínio espanhol, entre outros importantes momentos da evolução do território português. Local dedicado as atividades agrícolas, ao longo do tempo foi também se configurando enquanto espaço da nostalgia e do romantismo, sendo declarada em 1995 patrimônio da humanidade, de acordo com os critérios (ii), (iv) e (v).
Já com relação a Évora importa referir que possui uma estruturação espacial bastante interessante, resultante do acúmulo de séculos de história onde algumas marcas do tempo resistem até os dias de hoje. Évora permite visualizar a superposição de camadas, das fases de apropriação do espaço, haja vista a cidade moderna ser o resultado da presença romana, árabe e do período medieval. Importante rota comercial da Península Ibérica conserva desde monumentos romanos, como o Templo de Diana, até conventos e palácios renascentistas, maneiristas e barrocos. Deve-se mencionar ainda que o padrão urbano de Évora configurou-se enquanto influência decisiva para a constituição das vilas e cidades coloniais brasileiras.
Em resumo, diante de toda a riqueza histórica e arquitetônica, no ano de 1986 o Centro Histórico de Évora foi declarado patrimônio cultural do mundo pela UNESCO, na 10ª Sessão da referida instituição pelos critérios (ii) e (iv).
Dentre as áreas em estudo o Centro Histórico de Guimarães se constitui enquanto o sítio que recebeu mais recentemente o título de patrimônio mundial, declarado no ano de 2001, na 25ª sessão do comitê da UNESCO, a partir dos critérios (ii), (iii) e (iv).
Deve-se destacar que o título é conferido em função das técnicas de construção adotadas ao longo do tempo, ou seja, o rico processo de evolução de uma cidade de assentamento medieval que foi adaptando as formas de construir e se tornando uma cidade moderna, configura-se em um exemplo específico de se apropriar do espaço, que posteriormente veio a influenciar a arquitetura das colônias portuguesas. Um outro fator importante diz respeito ao papel desempenhado por Guimarães na formação de uma identidade nacional a partir do século XII, já que foi palco dos primeiros acontecimentos que conduziram a independência de Portugal.
Importa perceber a dinâmica e o funcionamento de Olinda, enquanto sítio patrimonial, a partir das transformações ocorridas na vida dos residentes com o recebimento do estatuto de patrimônio, é questão central da presente abordagem, haja vista os atores locais serem decisivos para efetiva existência de vida nos lugares da memória.
Deve-se ressaltar que o recebimento de um título de validade e reconhecimento mundial afeta a vida do lugar, provocando transformações das mais diversas ordens para aqueles que habitam esses recortes espaciais.
Em resumo, o contato com a população olindense traz à tona velhas questões ligadas a gestão e ao ordenamento territorial que permeiam não só a vida destas pessoas como também de boa parte dos brasileiros, sendo agregados a estes os problemas, as especificidades inerentes a gestão dos lugares da memória. Desta forma, faz-se urgente pensar em estratégias de ação integradoras, onde os sítios patrimoniais não se tornem “ilhas”, desconectadas da vida do cidadão local e da dinâmica da cidade em sua complexidade e plenitude.
5. CONCLUSÕES
Após analisar o caso de Olinda e os exemplos portugueses classificados enquanto patrimônio da cultura mundial, de modo individualizado, torna-se interessante colocar os referidos recortes espaciais face a face - a partir da realização de uma análise confrontativa dos resultados obtidos com a presente investigação. Tal encaminhamento visa identificar as similitudes e as diferenças entre os sítios patrimoniais em questão, na tentativa de contribuir com a gestão e o ordenamento dos lugares marcados pelas heranças de tempos passados.
Ao realizar a confrontação dos resultados obtidos na pesquisa empírica realizada no Brasil e em Portugal resolvemos agregar ao debate o uso de um termo originário da língua japonesa katachi. De acordo com o Dicionário Básico Japonês-Português (2000, p.318), a referida palavra tem por significado forma, formato. Pode ser definida ainda como: modelo, marca, estilo.
Cabe indicar que katachi, em nossa análise, não é definida pelas variadas possibilidades para um mesmo objeto, mas sim como uma tendência de padronização “imposta” aos sítios patrimoniais – quer dizer, como uma maneira de formatar os lugares a partir de dinâmicas e interesses pré-estabelecidos.
Vale referir que, apesar de não termos ferramentas para estabelecer uma regra - em função das opções metodológicas adotadas e pela existência de exceções no que se refere as dinâmicas dos sítios classificados -, identificamos a partir da confrontação das entrevistas aplicadas no Brasil e em Portugal uma tendência de replicação dos impactos tanto positivos como negativos na sequência ao recebimento do estatuto de patrimônio da UNESCO. Assim, sendo apesar destes casos apresentarem arranjos espaciais diferenciados e especificidades locais, o fato é que a classificação enquanto patrimônio cultural da humanidade parece ter levado à constituição de cenários sócio-espaciais bem parecidos. Dito por outras palavras, parece ter se estabelecido uma tendência de padronização da(s) forma(s), criando-se um modelo a fim de atender, sobretudo, à interesses econômicos.
Também nesta direção, temos as considerações de Choay (2005, p. 35) quando afirma que é necessário: “[...] lançar um grito de alarme e um apelo à ação, a uma mobilização geral, já não pela preservação museológica do patrimônio reificado, mas pelo reencontro com o patrimônio vivo e o poder de continuar a produzi-lo.”
Assim, diante das ideias expostas ao longo do trabalho, trazemos, à título de síntese, as reflexões de Choay (2011, p. 51) no momento em que propõe três frentes de luta que reforçam o nosso posicionamento no que se refere às questões que devem ser consideradas para minimizar a tendência de padronização dos lugares da memória: “[...] primeira, a da educação e a da formação, seguidamente, a da utilização ética das nossas heranças edificadas (hoje comercializadas sob o vocábulo de «património»); e, finalmente, a da participação colectiva na produção de um património vivo.”
Desta maneira, podemos resumir que os lugares da memória não podem ser transformados em “ilhas”, nem em cenários. Isto é, não podem ser geridos de modo que fiquem isolados dos que dão vida ao lugar e, tão pouco, podem ser desarticulados da dinâmica do entorno. Também não podem virar um cenário para ser vendido pelo turismo, sob pena do abandono dos residentes e, mais tardiamente, sob o risco do próprio turismo encontrar em outros locais condições mais “favoráveis” ao seu desenvolvimento.
Cumpre esclarecer, por fim, que não são os lugares classificados como patrimônio cultural da humanidade que impõem ao ser humano um valor simbólico, mas que é o ser humano que, através das relações de identidade e cultura, elaboradas de acordo com a superposição de camadas do tempo, que lhes dá vida e os transforma em herança.1
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