CASTRO, Christiano Machado de*
CADETE, Matilde Meire Miranda **
UNA/BH, Brasil
Email: christianomcastro@gmail.com
RESUMO
Objetivou-se analisar, com base em revisão da literatura, a história do futebol amador e os resultados alcançados pelas crianças e adolescentes residentes em comunidades vulneráveis participantes dessa modalidade esportiva. Trata-se de uma revisão narrativa da literatura realizada de março de 2018 a fevereiro de 2019, com busca de artigos nas bases de dados da SciELO e da SPELL e Portal CAPES. Devido à escassez de artigos publicados nessas bases, foram pesquisados livros e leis que regem a temática, em estudo. Apreendeu-se das leituras realizadas que o futebol amador, invisível aos meios midiáticos, mas aplaudido pela comunidade que o assiste, propicia a crianças e adolescentes que dele participam: repensar o futuro de forma positiva; sonhar com modos diferentes de ser e existir; deslocar-se das armadilhas que os convidam no dia a dia para o arriscar-se em envolvimentos ilícitos; e sentirem-se cidadãos, sujeitos ativos, mesmo vivendo em vulnerabilidade social. Concluiu-se que é importante estudar e pesquisar mais sobre o futebol amador para contribuir com a qualidade de vida e abalizar as oportunidades de crescimento pessoal e profissional dele advindas.
Palavras-chave: Futebol amador. Crianças. Adolescentes. Vulnerabilidade social. Gestão Social.
ABSTRACT: The objective of this study was to analyze the history of amateur football and the results achieved by children and adolescents living in vulnerable communities participating in this sport. This is a narrative review of the literature from
March 2018 to February 2019, with search of articles in the databases of SciELO and SPELL and Portal Capes. Due to the scarcity of articles published in these bases, books and laws were searched that govern the subject, under study. It is clear from the readings made that amateur football, invisible to the media, but applauded by the community that assists it, allows children and adolescents who participate in it to rethink the future in a positive way, to dream of different ways of being and to exist, taking advantage of the pitfalls that invite them in their daily lives to risk illicit involvement and to feel themselves to be citizens, active subjects, even living in social vulnerability. It was concluded that it is important to study and research more about amateur football in order to contribute to the quality of life and to provide opportunities for personal and professional growth.
Keywords: Football amateur. Children. Adolescents. Social vulnerability. Social Management.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Christiano Machado de Castro y Matilde Meire Miranda Cadete (2019): “Da origem e história do futebol no Brasil ao futebol amador em comunidade de vulnerabilidade social: uma incursão na literatura”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (abril 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/04/origem-futebol-brasil.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1904origem-futebol-brasil
1 INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, define em seu artigo 217 que é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, determinando ser este um direito do cidadão brasileiro (BRASIL, 1988). Também nesse sentido, voltado para a proteção da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dispõe, por meio do artigo 59, que os municípios, apoiados pelos estados e pela União, devem estimular e facilitar a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude (BRASIL, 1990). Entretanto, essa não é a realidade que presenciamos; ao contrário, são raras as políticas públicas voltadas para as comunidades vulneráveis e materializadas.
Não se deixa, contudo, de referir que, no Brasil, desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, houve importantes progressos em relação à universalização do acesso e “efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. E, ainda, dispõe o Estatuto que “a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas” para que possam crescer e desenvolver de maneira saudável, em “condições dignas de existência” (BRASIL, 1990, p. 20 - grifos dos autores).
Essas assertivas convocam dizer que cabe à família, à comunidade e à sociedade criar possibilidades e estratégias para que esses direitos saiam da esfera da retórica e se concretizem e estruturem uma sociedade mais justa e saudável.
A criança e o adolescente encontram-se em fase de formação psicossocial, período em que o meio influencia diretamente nessa formação. E, quando em situação de vulnerabilidade, a atuação de liderança comunitária com incentivo à prática de esportes pode ser uma oportunidade para que os jovens possam desenvolver habilidades e talentos, além de se afastarem de situações comuns às áreas de risco, como envolvimento em atividades ilícitas ou prejudiciais.
A realidade é que em muitos bairros de periferia (só em Belo Horizonte são mais de 160 clubes de futebol amador, registrados na Federação Mineira de Futebol), o envolvimento dos líderes comunitários se destaca na condução de grupos de crianças e adolescentes, oportunizando o acesso ao esporte, lazer, cultura e seus inúmeros reflexos. Todavia, essa atuação, em sua maioria, não é acompanhada de incentivos estatais, estruturas organizadas e suficientes, além de falta de conhecimentos técnicos para o desempenho dessas atividades.
É nesses bairros de periferia e, muitas vezes, em aglomerados que se encontram crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, tendo como lazer e “resgate” da rua e consequências adversas o futebol amador. Vulnerabilidade social eleita neste trabalho, conforme explicitado por Silva e Silva (2015, p. 396), transcende apenas um ponto de vista ligado a indicadores quantitativos e convoca para uma compreensão “mais ampla, complexa e multifacetada, ou seja, em uma perspectiva sintética, em que são considerados também os diversos aspectos que influenciam nas condições de vulnerabilidade de uma pessoa ou grupo [...]”. Significa, assim, incluir nesse patamar o direito de acesso às estruturas “sociais, econômicas, culturais que proveem do Estado, do mercado e da sociedade”.
Silva e Silva (2015) asseguram que essa visão mais ampliada de vulnerabilidade social engendrou efeitos mais abrangentes, que inscrevem em seu campo de atuação diversas áreas como a Educação, Assistência Social e Psicologia.
A pobreza e a miséria presentes em diversas regiões no Brasil refletem a questão de o poder vigente estar centrado em um modelo econômico que, segundo Gomes e Pereira (2005, p. 6), “gera crescente riqueza para poucos e pobreza para muitos […] sem uma política de renda justa e de atendimento às necessidades básicas da maioria da população”. A família pobre entra então numa situação de vulnerabilidade social ligada à miséria estrutural; a situação socioeconômica empobrecida gera a desestruturação da família e recai sobre as crianças e adolescentes. Nessas circunstâncias de crise econômica, estes precipitam sua ida às ruas e o abandono da escola (na maioria das vezes) para que o orçamento familiar seja aumentado. E por meio disso o convívio sociofamiliar se torna distante (GOMES; PEREIRA, 2005, p. 360).
Em Belo Horizonte, Minas Gerais, os autores deste artigo, a partir do momento em que adentraram em uma comunidade com vistas à realização de atividades acadêmicas e sociais, conheceram projetos sociais entre os quais se destaca o jogo de futebol amador para crianças e adolescentes. Chama-se comunidade Santa Lúcia (Aglomerado Santa Lúcia/Vila Barragem Santa Lúcia) e é uma das quatro favelas formais que constituem o Morro do Papagaio. Localiza-se na zona sul de Belo Horizonte e contém população de 16.914 habitantes (segundo o último censo feito pela prefeitura), 3.848 residências e área de 477 mil metros quadrados (BELO HORIZONTE, 2018).
O futebol amador mostrou-se como uma ferramenta possível, viável e forjadora de construção de cidadania, autonomia, inclusão, lazer, visão ampliada e positiva de futuro promissor para esses jogadores infantis e adolescentes.
O assistir ao jogo, as risadas, o compartilhamento da bola e do espaço, o drible e o chute ao gol geraram indagações: o que a literatura tem publicado a respeito de futebol amador para pessoas residentes em comunidades vulneráveis? Que resultados são obtidos por meio do futebol amador nessas comunidades?
Diante desses questionamentos, este artigo objetivou analisar, com base em revisão da literatura, a história do futebol amador e os resultados alcançados pelas crianças e adolescentes residentes em comunidades vulneráveis participantes dessa modalidade esportiva.
2 METODOLOGIA
Este artigo usou como percurso metodológico a revisão narrativa que, segundo Rother (2007), identifica publicações amplas que permitem conhecer e discutir o que se tem exposto a respeito de determinado assunto, quer seja teórico quer seja conceitual. Permitem, ainda, fornecer informações e debates acerca de determinados assuntos ou temas, ampliando, dessa forma, o conhecimento em menos tempo.
O período de coleta do material iniciou-se em março de 2018 a fevereiro de 2019, sem determinação de espaço e de tempo, uma vez que a busca de artigos nas bases de dados da Scientific Electronic Library Online (SciELO), da Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL) com o descritor: “futebol amador” não identificou mais do que dois artigos. Posteriormente, foi agregado ao descritor futebol operadores boleanos: “futebol and vulnerabilidade social”, “futebol and criança”, “futebol and adolescente”, revelando grande escassez de publicações. Há, realmente, lacunas de publicações com esses descritores. Também se realizou busca no Portal Capes encontrando apenas um artigo publicado nos últimos cinco anos com o descritor “futebol amador”.
Esse contexto desvendado evocou a necessidade de busca aleatória de outras publicações como livros e leis.
Após reunião de todo o acervo encontrado, eles passaram por leituras exaustivas na íntegra, para posterior categorização e análise.
3 RESULTADOS E ANÁLISE
3.1 Futebol no Brasil: um pouco de história e o futebol amador
No Brasil, o esporte chegou a partir da escola, em 1894, quando Charles Miller (esportista do século XIX) trouxe da Inglaterra duas bolas de futebol e organizou os primeiros jogos que envolviam sócios do São Paulo Athletic Club. Miller foi o responsável pelo início do esporte como competição no país em campos esportivos. Mas o futebol já era praticado seguindo as normas inglesas; o papel de Miller foi impulsioná-lo para a sua organização. Desde os tempos da Colônia, os colégios jesuítas já realizavam os primeiros jogos de futebol acontecidos no Brasil (ALVES; GARCIA, 2000).
O futebol no Brasil, sendo oriundo da Europa, foi tomado pela elite brasileira como esporte, de certa forma nobre e exclusivo. DaMatta (1982) salienta que, no século XIX, o objetivo de tal atividade era o de modernizar o corpo por meio da competição.
Para Lever (1983), os clubes de futebol foram considerados como instituição do país, no final do século XIX. Segundo essa autora, em 1915 já existiam sete ligas provinciais; em 1941, a rede de clubes foi vinculada ao governo federal pelo Presidente Getúlio Vargas e, nesse momento, foi criado o Conselho Nacional de Desportos (CND), que funcionava dentro do Ministério da Educação e Cultura:
[…] com o objetivo expresso de orientar, financiar e estimular a prática do esporte em todo o Brasil. O CND tem supervisionado o esporte brasileiro através de diversas organizações, inclusive o Comitê Olímpico Brasileiro, a Comissão de Esportes das Forças Armadas, a Comissão de Esportes Universitários e a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – hoje CBF, para o futebol (LEVER, 1983, p. 84).
Tamanho o envolvimento do esporte, que Lever (1983) destaca como fatores mais importantes para o senso de unidade e identidade especial do Brasil a língua comum, o catolicismo intenso e a herança de mistura cultural, mas, ao se perguntar para os brasileiros o que melhor representa a sua cultura, nas respostas de alguns estará a palavra: o futebol. O brasileiro empolga-se com campeonatos, são torcedores “apaixonados”, reconhecem e têm orgulho do esporte, na concepção de Alves e Garcia (2000).
DaMatta (2006), acerca do futebol no Brasil, afirma que o “pé na bola” do jogo britânico, aqui no país, foi decodificado como a arte da “bola no pé”, criando uma relação entre ambos: bola e pé, sendo a bola um objeto feminino cobiçado e o pé um pedaço do corpo humano que segura, prende, acaricia, chuta, domina e controla a bola.
No futebol e pelo futebol, o povo aprendeu que pode vencer seus problemas sem salvacionismos messiânicos ou ideológicos. Com ele, o Brasil teve uma grata e apaziguante experiência com a vitória, com a excelência, com a competência, com a paciência e com o amor, esses valores sistemática e significativamente ausentes dos projetos políticos. [...] É, pois, o futebol que engendra essa cidadania positiva e prazerosa, profundamente sociocultural, que transforma o Brasil dos problemas, das vergonhas e das derrotas, no país encantado das lutas, da competência e das vitórias. Uma coletividade que pode finalmente contar com suas próprias forças e talento (DaMATTA, 2006, p. 124).
Há também ressalva de que o esporte só chegou aos grupos sociais mais pobres quando, por volta de 1900, crianças e adolescentes “aproveitavam cada bola que saía de campo para, antes de chutá-la de volta, experimentar a força de seus pés”. Daí o surgimento das famosas “peladas” (lugar onde os cabelos caíram; clareira, daí o nome popular dos campos de futebol não tratados dos subúrbios) que tiveram grande importância para o futebol jogado hoje pelos brasileiros, pelo fato de os jogadores serem adolescentes que não estudavam ou trabalhavam e, portanto, criaram sua própria técnica (ROSENFELD, 2013, p. 81).
Já Arantes (2003) discorre sobre a “origem” do futebol de várzea pelo fato de o Brasil passar pelo processo da industrialização.
[...] o liberalismo não teria no Brasil o mesmo significado, a mesma dimensão, a mesma amplitude que teve na Inglaterra ou na França. Essa discrepância entre as revolucionárias ideias liberais e a inércia na sociedade de costumes conservadores abria um descompasso tanto na vida pública como na vida privada. Em certo sentido, o esporte era um ingrediente a mais nas tensões que se instauraram com a transição para uma sociedade burguesa (PRONI, 2000 apud ARANTES, 2003, p. 100).
Arantes (2003, p. 15) expõe que a burguesia brasileira vivenciava a ideia de que, se os hábitos dos países desenvolvidos fossem imitados, ela seria como eles; “o mesmo ocorria nas periferias. Ao consumir, ao produzir e ao vivenciar as mesmas situações que os ‘ricos’ vivenciavam é como se também fossem ricos”.
A década de 1920 é considerada, para a maioria dos autores aqui citados, como a década em que o futebol se difundiu e conseguiu adentrar em outras camadas da sociedade.
Questiona-se: por que o esporte europeu se familiarizou tanto na cultura brasileira? Arantes (2003, p.16), para explicitar essa questão, baseou-se em DaMatta (1982), enfatizando que o futebol “permite expressar uma série de problemas nacionais, alternando percepção e elaboração intelectual com emoções e sentimentos concretamente sentidos e vividos”. Além disso, pode-se pensar no futebol como um esporte que promove a igualdade (pelas mesmas condições dos times em disputa), permite expressão individual (mesmo que exista uma estratégia para o jogo, um único jogador pode mudar a partida a partir de suas ações em campo) e, por último, e este fato pode ter sido o que estruturou o esporte no país, é a “malandragem”; isso é dito no sentido de o “malandro” ser estudado como parte da cultura do Brasil, como um estilo de vida da população (ARANTES, 2003).
Dando continuidade ao seu pensamento, Arantes (2003, p. 17) afirma que:
No futebol é da mesma forma, quando nos falta força, resistência ou agilidade, sobra-nos o jeito moleque de jogar, a esperteza de um drible. Quando todos pensam que este jogador passará a bola para aquele, pois seria o mais óbvio, é neste instante que surge uma tinta desconcertante de deixar zagueiro com dor na coluna, podendo resultar num gol de placa.
Damo (2005), em sua tese de doutorado, pelo fato de existirem diferentes maneiras da prática do futebol, concebe-o em quatro matrizes futebolísticas: espetacularizada, escolar, bricolada e comunitária. Neste artigo, em que pese a importância das duas primeiras matrizes, nosso destaque vai para as matrizes bricolada e comunitária.
A matriz bricolada tem alguns pontos idiossincráticos com o futebol amador: suas configurações sofrem diferentes variações, caracterizando-se por peladas. Joga-se com o que se dispõe, inclusive os recursos materiais; a duração do jogo se vincula ao espaço e tempos disponíveis. É praticada em ruas, terrenos baldios, parques (DAMO, 2005).
A matriz comunitária vai além da bricolada, porque, apesar de não seguir a ortodoxia dos campos oficiais, é mais conhecida como futebol de várzea e tem procedimentos mais definidos. Esse futebol é invisível para a grande mídia, é ignorado pelos meios de comunicação. O futebol “por asseptismo a várzea vira ‘amador’” (DAMO, 2005, p. 42)
“Todos os times de várzea têm um técnico e quase todos têm também um dirigente e um massagista, diferindo, portanto, de bricolagem. Entretanto, o técnico de várzea não é remunerado nem treina a equipe durante a semana”. Nos jogos, os papéis dos jogadores não são rigidamente definidos, não são fixos, ocorrendo mudanças quando necessárias (DAMOS, 2005, p. 42).
O artigo de Scifoni (2013, p. 132) explicita, a partir de um apanhado histórico a respeito de um patrimônio cultural da cidade de São Paulo e ligado à cultura popular, as justificativas que reconhecem a importância de se resguardar a última praça de campos de futebol de várzea. E expõe: “Mais que uma modalidade esportiva, o futebol de várzea é uma prática social historicamente vinculada às classes populares, tendo resultado da apropriação popular de uma modalidade esportiva que chegou ao Brasil, inicialmente ligada aos setores de elite”.
Sob a ótica do futebol de várzea jogado no Parque do Povo, Scifoni (2013, p. 134) declara:
Esse Parque do Povo é, hoje, o local que materializa, nos clubes que nele mantém suas sedes, aquilo que a História não pode reviver, o jogo puro do futebol “verdadeiro”: o jogo jogado, não a disputa competitiva e organizada, que gera lucros e quase determina a caminhada de um jovem que chega a um grande clube. No Parque do Povo [...] o básico de tudo é o lúdico.
O profissional de Educação Física, Antônio Roberto Cruz, conceitua futebol amador a partir da definição da palavra “amador” que, no dicionário de língua portuguesa, significa “aquele que se dedica a uma arte ou ofício por mero prazer” (CRUZ, 2003, p. 12). Além disso, ele preleciona sobre a organização do futebol amador, que exige:
[…] determinação, capacidade de trabalhar sem estrutura, disposição de atuar sem conforto, absoluta falta de divulgação, completa e curiosa falta de recursos, atuação com gente humilde, carente, campos poeirentos, descuidados, desconforto para os atletas, para as torcidas, com ausência de qualquer tipo de serviço moderno. […] O futebol amador do Brasil é um autêntico reduto de resistência das comunidades (CRUZ, 2003, p. 12).
De acordo com Gastaldo (2005), o futebol que inicialmente era uma atividade para ser “praticada” tornou-se, com o crescimento da comunicação em massa, um “espetáculo” para se ver e ser consumido. E faz referência sobre a porta aberta para a sociabilidade que o futebol permite. Essa é uma espécie de “jogo da vida social”, que propicia momentos de prazer, lúdicos e de bálsamo para os dissabores oriundos dos mundos do trabalho, da economia e da política.
Gastaldo (2005) ainda destaca que a sociabilidade procedente do futebol é hegemonicamente afeita ao gênero masculino, embora nas últimas décadas tenha ocorrido crescimento substancial da participação do gênero feminino.
Toledo (2010, p. 187) alega que desempenhamos papéis sociais, às vezes antagônicos, tendo em vista nosso interesse, estilos de vida, classe, constituição de referenciais simbólicos e identitários e motivações distintas. A mesma pessoa convive e exerce diferentes papéis constitutivos de sua biografia.
Por ser uma esfera periférica, afastado imediatamente das decisões mais prementes que comandam todas essas existências ditadas por essa plasticidade da condição urbana, é que o futebol pode iluminar certas condutas, práticas sociais e manejos simbólicos que nos libertam da barbárie e da violência a qual estamos imersos na vida cotidiana da cidade. Pois ele possui a qualidade de ser uma espécie de marcador zero da socialidade (TOLEDO, 2010, p. 187).
Os resultados da pesquisa de Campos (2015), realizada com Ligas Municipais e Copa dos Rios de Seleções, no estado do Amazonas, mostraram que por meio do futebol amador constrói-se uma ligação entre este e a vida cotidiana dos municípios do Amazonas. As ligas são fundamentais na organização de espacializações práticas e possibilitam conexão entre diversos municípios integrantes de um estado de grande extensão territorial e rede de transportes deficitária.
Campos (2015, p. 309) ressalta que a compreensão das ligas e das seleções ligadas à Copa dos Rios consente em “avançar no estudo do futebol amador, mas também no entendimento de aspectos culturais, sociais, econômicos e esportivos[...]
Apreende-se, por conseguinte, que o futebol amador ou de várzea ou “comunitário” praticado nos mais diversos recônditos das Minas Gerais convoca, para sua materialidade, além de seus jogadores, normas, disposição, desprendimento, força de vontade, espaços e tempos... Solicita, também, técnicos disponíveis idealizadores de sonhos que os concretizam, porque veem, principalmente, nas crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, futuros sujeitos cidadãos, protagonistas de histórias para além das vividas no cotidiano familiar e comunitário. O futebol tem, incrustado nele, dimensões espaciais e simbólicas. Gera perspectivas promissoras no imaginário dos jogadores mirins e adolescentes e os convida para serem autônomos, ativos e mudarem a própria história.
3.2 A prática desportiva não formal como meio de efetivar o direito legalmente garantido
A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e Adolescente fomentam, respectivamente, como direito do cidadão brasileiro, práticas desportivas formais e não formais (BRASIL, 1988) e o dever dos municípios, estados e União, o estímulo e a oportunidade de programações culturais, esportivas e de lazer, voltadas para a infância e a juventude (BRASIL, 1990).
Segundo o engenheiro e jogador de futebol amador, Raul Antônio Wilpert, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) publicou, em 1979, a “Carta Internacional de Educação Física e Esportes”. Nesse cenário, o esporte inicia um de seus períodos, considerado ideal e modelo. Ele acrescenta que essa carta traz o esporte como um direito de todos, e não só como rendimento, mas também como participativo, da pessoa comum, e um educativo para crianças e adolescentes (GEBARA et al., 1992 apud WILPERT, 2005, p. 29).
Esse momento histórico é importante para o entendimento da emergência do trato do futebol como participativo e educativo, no Brasil, como uma prática desportiva não formal que deve ter o seu direito garantido (ou futebol de várzea, que será tratado com mais profundidade em tópico posterior).
Wilpert (2005, p. 29) enfatiza que “o lazer e a disponibilidade de espaços públicos para as práticas da cultura corporal de movimento são necessidades essenciais ao homem contemporâneo e, por isso, direitos do cidadão”.
É de extrema importância entender a inclusão social e a garantia de direitos em relação ao desenvolvimento humano, para que seja possível compreender a sua necessidade quanto ao futebol de várzea/amador como esporte praticado em comunidades periféricas. O futebol é uma prática utilizada para o lazer e, sendo o lazer um direito de todos, pode-se inferir que o futebol tem como competência também ser de interação e inclusão social.
Cruz (2003), em seu livro “Futebol brasileiro: um caminho para a inclusão social”, apresenta a vertente de como o esporte, quando ligado às administrações profissionalizadas tem seus “benefícios”, o que transforma o futebol em um mercado, uma indústria lucrativa e poderosa. E isso se constitui um problema, por transformar uma atividade desportiva, grande paixão do povo brasileiro, em autuação empresarial que exclui grande parcela da sociedade.
A prática do futebol encontra-se intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento das comunidades e realidades socioculturais do país e segregá-lo é ampliar as questões de exclusão social e, por outro lado, implementá-lo nas comunidades vulneráveis pode ser uma forma capaz de alcançar mais inclusão.
O art. 16 do ECA (BRASIL, 1990) prevê o direito à liberdade, compreendido como direito de diversão, de praticar esportes e brincar, como direito a todas os destinatários daquele estatuto, sem exclusão ou discriminação. Assim, a prática do futebol não deve ser elitizada, excluindo especialmente as comunidades vulneráveis. Nessas comunidades, as crianças e adolescentes não possuem, em sua maioria, recursos financeiros para desenvolvimento de suas habilidades com esportes ou mesmo praticá-los a título de diversão.
Para falar sobre a prática desportiva não formal como direito garantido, é preciso falar também sobre legislação desportiva e suas implicações (ESPÍNDOLA, 2015). Serão aqui citados decretos de leis brasileiras que estabelecem bases de organização do futebol no país (Decreto de Lei 6.251/75), reconhecimento do esporte como profissão (Lei 12.395/11– Lei do Passe), financiamento (Leis 8.682/93 – Lei Zico e 9.615/98 – Lei Pelé), entre outras, que possam esclarecer ao leitor como o futebol é reconhecido no país (BRASIL, 1975; 1993; 1998; 2011).
Um bom exemplo do que aqui foi exposto, com o intuito de mostrar a relação dos assuntos que serão tratados com o futebol de várzea/amador, encontra se em um artigo produzido em 2008 pelo Núcleo de Formação e Pesquisa do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlago para a Revista “Psicologia, Ciência e Profissão”, intitulado “Futebol Literário: compromisso social na medida” (SILVA et al., 2008), que discorre a propósito de uma proposta materializada nas cidades de Capela do Socorro e em Parelheiros e que elegeu o futebol como resgate de cidadania:
[…] como meio que possibilita ao adolescente refletir sobre sua realidade e suas práticas cotidianas, reconhecendo suas possibilidades de se desenvolver como sujeito de direito e de se tornar protagonista no que diz respeito às ações que busquem sua promoção social e a construção e o exercício da cidadania ativa. É possível observar que, com esse tipo de linguagem, mais próximo do desejo desses jovens, os mesmos atribuem um novo sentido ao acompanhamento a que foram submetidos. Na lógica socioeducativa, procuram superar obstáculos no sentido de buscar cada vez mais seu protagonismo, sua autoria, para reafirmar o que o ato infracional revelou, que é a busca por ser sujeito (SILVA et al., 2008, p. 835).
3.3 Comunidades vulneráveis
Por comunidade, Goulart (2006, p. 21) assim a conceitua:
[…] a comunidade é um conjunto de pessoas agrupadas em um determinado espaço geográfico (local, regional, nacional, internacional), institucionalizado ou não, consciente ou não de pertencimento, em constante processo de interação política, cujas relações sociais e plurais dimensionam o sentido da vida interna e externa de seus membros e promovem modos de ver, sentir e pensar o mundo. Nesse sentido, a comunidade é uma realidade dinâmica, em constante construção e reconstrução.
Para o autor, determinadas noções são básicas quanto ao entendimento do que são as comunidades, entre as quais se destacam: a noção de um constante processo de interação política, a noção de que a comunidade é uma formação plural, de muitas ideologias, culturas, religiões, próprias de sua constituição, ou seja, um conjunto de pessoas que habitam um espaço geográfico que, sendo uma instituição ou não, pode gerar consciência de pertencimento ou não, processos de interação e modos de “ver, pensar, sentir e agir no mundo” (GOULART, 2006, p. 22).
Necessário se fez retornar à concepção de vulnerabilidade ligada às comunidades que se encontram em tal situação. Existem aquelas pessoas que são vulneráveis por causa da pobreza material ou capacidades mentais reduzidas, estas são prima facie vulneráveis. Outras pessoas que nem sempre foram vulneráveis, podem se tornar por causa de circunstâncias específicas. Vê-se necessário categorizar as diferentes expressões de vulnerabilidade, sendo elas intrínsecas e extrínsecas. Vulnerabilidade é “amplamente definida como a incapacidade de proteger os próprios interesses” (ROGERS; BALLANTYNE, 2008, p. 31).
Rogers e Ballantyne (2008) asseguram que crianças mais velhas e adolescentes, por exemplo, podem estar vulneráveis por meio de fatores intrínsecos (doenças graves ou deficiências), que podem fragilizá-los ou impedi-los de tomar decisões, podendo gerar consequências como: coerção, exploração, pressão psicológica, entre outros. E também por fatores extrínsecos, como pobreza e pouca escolaridade. Para que essas questões possam ser superadas, é preciso que se promovam compreensão, incentivos e oferecimento de benefícios justos às populações vulneráveis.
Gomes e Pereira (2005) mencionam as famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social e como políticas públicas podem ser o caminho para sanar tal cenário.
A família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da sua sobrevivência material e espiritual, o instrumento através do qual viabilizam seu modo de vida, mas é o próprio substrato de sua identidade social. Sua importância não é funcional, seu valor não é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade de ser social e constitui o parâmetro simbólico que estrutura sua explicação do mundo (SARTI, 2004 apud GOMES; PEREIRA , 2005, p. 358).
Para as autoras, a família integra as experiências dos seres humanos ao longo de suas vidas e carrega consigo significados afetivos e cognitivos.
Família remete a lembranças, emoções, sentimentos, identidade, amor, ódio, enfim, um significado único para cada indivíduo, que, como ser biopsicossocial, está inserido no seu meio ambiente, integrando a cultura e o seu grupo social de pertença, o que leva a se estudar a família de modo contextualizado, considerando a subjetividade de cada ser (GOMES; PEREIRA, 2005, p. 358).
É preciso destinar atenção às famílias em situação de vulnerabilidade, para entender suas representações e significados dentro das comunidades onde vivem. Essas famílias são caracterizadas, às vezes, por parcos recursos, com residências sofríveis e que representam instabilidade, além de em muitos lares ocorrer separação dos laços afetivos e solidariedade. Para Gomes (2003), quando a casa se torna um espaço de conflito, a família se vê superando tal situação de forma despedaçada por não dispor de apoio para o enfrentamento das dificuldades, e isso resulta em sua desestruturação. “A realidade das famílias pobres não traz no seu seio familiar a harmonia para que ela possa ser a propulsora do desenvolvimento saudável de seus membros, uma vez que seus direitos estão sendo negados” (GOMES, 2003, apud GOMES; PEREIRA, 2005, p. 5).
Necessário salientar, a partir do que foi dito anteriormente, a urgência em implementar programas sociais que tenham a família como alvo.
3.4 A inclusão social nas comunidades através do futebol, o desenvolvimento local e a gestão social
Antes de discorrer sinteticamente acerca de inclusão social, é imperativo abordar um dos fatores desencadeantes da exclusão social: a desigualdade promulgada de diferentes formas. “As mais abrangentes se referem aos níveis de consumo pessoal, de utilização dos serviços públicos, de posse de bens e recursos, de segurança, de dignidade pessoal e de autonomia”. No concernente à estrutura urbana, de praxe ela se associa à “má distribuição da renda e da falta de política habitacional adequada” (GONÇALVES; ANDRADE; PORTUGAL, 2014, p. 38).
Monteiro e Veras (2017), discutindo a respeito do processo de urbanização atual, afirmam que a exclusão social e a inclusão precária são uma das marcas no quesito moradia e, na falta de opções e escolhas, a população tem como alternativa de moradia as áreas mais periféricas. Há, portanto, ocupações irregulares de espaços normalmente instalados em espaços acidentados e/ou próximos deles, além de gerar crescimento desordenado da cidade.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2011) demonstram que ocorreu na, última década, significativo aumento de pessoas moradoras em periferias das grandes metrópoles se comparadas com a migração de pessoas para regiões metropolitanas.
Gonçalves, Andrade e Portugal (2014) destacam que, havendo aglomeração de pessoas, carência residencial e planejamento inadequado, pode-se inferir que, por falta de recursos financeiros, há dificuldade de mobilidade para os espaços, o que cria consequências para a população menos favorecida financeiramente.
É para os sujeitos moradores dessas comunidades consideradas excluídas, mas que acampam em seu cerne pessoas guerreiras e com visão ampliada de futuro e de ações promotoras de mudanças e inclusão social, como é o futebol, que voltamos nossos olhares.
Em relação ao futebol amador praticado nas comunidades, Silva et al. (2008) citam o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos, que é uma organização de assessoria aos movimentos populares, a serviço das lutas populares organizadas nas comunidades locais, associações de moradores, entidades de atendimento e movimentos específicos da Capela do Socorro. É voltado para a realidade da criança e do adolescente. Foi fundado em 1999, a partir da experiência de trabalhos comunitários em favelas de Interlagos e movimentos populares da Capela do Socorro, criando o Futebol Libertário, em 2005. Trata-se de um projeto que “utilizou o futebol como elemento educativo crítico, ou seja, sem fazê-lo perder a sua especificidade enquanto esporte/ jogo, mas aproveitá-lo como um instrumento de transformação social” (SILVA et al., 2008, p. 838).
Silva et al. (2008) destacam que o principal objetivo foi e dar ao esporte e ao relacionamento humano uma nova noção: a de que é preciso e possível combater o individualismo, o autoritarismo, a discriminação e o preconceito para que se forme uma sociedade mais justa e democrática.
Os resultados obtidos até o momento, provenientes desse futebol, são adolescentes que passaram a procurar informações sobre saúde, educação (aumento significativo do número de adolescentes matriculados) e profissionalização. “A grande maioria dos adolescentes inseridos no Futebol Libertário está matriculada e frequenta a escola, e os demais estão à procura de escolas para a realização da matrícula” (SILVA et al., 2008, p. 841). O futebol é visto como um esporte que contribui para melhorar a relação do indivíduo com outras pessoas, tanto por parte dos jogadores em campo, quanto dos torcedores que se “unem” por uma mesma emoção.
Em relação às crianças e adolescentes que vivem à margem da sociedade, o futebol pode evitar que se mantenha em suas vidas o tempo ocioso, o que pode também livrá-los do “mundo” da criminalidade. Essa modalidade esportiva é definida por Moreira (2003) como algo que contribui para o desenvolvimento da aprendizagem de atividades que proporcionam domínio do próprio corpo, desinibição e autoconhecimento.
Falar sobre o futebol amador na comunidade exige breve conhecimento sobre a popularização do esporte no Brasil, como introduzido no primeiro subtítulo. Segundo Tajes Júnior (2012, p. 19).
O futebol, desde a brincadeira e a atividade física até o esporte competitivo organizado, tem um papel importante em todas as sociedades. É uma força econômica significativa que gera emprego e que contribui para o desenvolvimento local. Além disso, reúne indivíduos e comunidades, servindo de ponte entre as diferenças culturais e étnicas.
Para o autor, o futebol também envolve a inclusão e a cidadania, unindo indivíduos e criando pontes entre diferenças culturais, atravessando barreiras que dividem as sociedades, sendo uma ferramenta que ajuda a prevenir conflitos dentro das comunidades (TAJES JÚNIOR, 2012).
O potencial do esporte pode atuar como caminho para o desenvolvimento da cidadania nas comunidades, pelo fato de alcançar espaços aonde o Estado não chega. Sendo assim:
[...] a massificação do esporte facilita os processos de socialização e aculturação, pois a prática desportiva é amplamente disseminada em todas as classes sociais, faixas etárias e comunidades. Há esportes para todos os gostos, preferências, idades, sexos, culturas, raças e localidades [...] o esporte, principalmente o futebol, é tema de papos e de discussões calorosas [...] o esporte é um veículo de educação. A sua prática implica a absorção de valores fundamentais como respeito ao próximo, regras de civilidade e convivência, disciplina e muitos outros. Através do esporte, aprendem-se novas atitudes, adotam-se novos comportamentos e adquire-se senso de responsabilidade. O esporte permite aos seus praticantes a fixação de metas de melhoria e visão de futuro (MELO NETO; FROES, 1999 apud TAJESJÚNIOR, 2012, p. 171-172).
Para entender ainda melhor sobre consequência da integração do futebol como inclusão social, Lever (1983) sugere:
O esporte ajuda a relacionar as pessoas nas complexas sociedades modernas. O caso do futebol no Brasil mostra que o esporte liga pessoas, grupos, cidades e regiões num único sistema nacional, assim como liga as nações num único sistema mundial. Através de círculos cada vez mais amplos de competição, há um renovado senso de coletividade.
Proporcionando uma estrutura para a lealdade humana, das raízes a níveis internacionais, o futebol consolida a cidadania do indivíduo em diversos grupos ao mesmo tempo (LEVER, 1983, p. 183).
Marques opina que “o futebol, quando incentivado, seja em periferias ou centros urbanos, faz com que os seus praticantes se sintam valorizados em relação ao local em que vivem, dando-lhes o sentimento de pertencerem a uma sociedade integrada” (MARQUES, 2008, p. 9).
Os relatos de resultados de pesquisa mostram que houve desenvolvimento local e gestão social das ações planejadas, programadas e concretizadas nas comunidades.
No que diz respeito à gestão social, Tenório (2005, p. 102) refere-se a ela como um “processo gerencial dialógico” cuja autoridade decretória é compartilhada entre todos os que participam da ação e, além disso, deve ser praticada como um processo em que todos têm direito à fala.
Tenório (2005, p. 102-103) expressa que:
O adjetivo social qualificando o substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de relações sociais em que todos têm o direito à fala, sem nenhum tipo de coação […] a gestão social deve ser determinada pela solidariedade, portanto, é um processo de gestão que deve primar pela concordância, em que o outro deve ser incluído e a solidariedade o seu motivo.
Cançado (2011, p. 314) complementa essa concepção ao acrescentar que “[...] gestão social é a tomada de decisão coletiva, sem coerção, baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e entendimento esclarecido como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação como fim último”.
Resultados da pesquisa realizada por Bauer e Carrion (2016, p. 833) nas ilhas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, apuraram que o exercício da gestão social organizado pela própria comunidade e que surgiu em razão de uma série de conflitos revela, ainda, diferentes espaços deliberativos, indicativos do potencial para o exercício da gestão social. Os membros da comunidade entenderam que a participação nesses ambientes “não ocorre sem ‘luta’". Busca-se, com a luta, tanto garantir espaços quanto ocupá-lo, para, posteriormente, transformá-lo “em uma esfera, de fato, pública, evitando seu esvaziamento e desvirtuamento”. Destacam que essa luta é coletiva, “a partir de uma organização própria do território”.
Sabendo que as políticas públicas constituem o Estado em ação, a governança é imprescindível para o alcance da qualidade de vida e do bem-estar de todos os cidadãos. Nesse sentido, Brant Carvalho (2013) defende gestão social como:
[…] governança das políticas e programas sociais públicos; intervém na qualidade de bem estar ofertada pela nação; na cultura política impregnada no fazer social; nas prioridades inscritas na agenda pública; nos processos de tomada de decisão e implantação de políticas e programas sociais; nos processos de adesão dos sujeitos implicados. Guarda, (assim) um caráter retotalizador no conjunto das variáveis, constrangimentos, oportunidades, processos e projetos políticos que dão direção e forma a gestão das ações sociais públicas (BRANT CARVALHO, 2013, p. 43).
O futebol, por intermédio de seus técnicos, líderes e familiares dos jogadores não estariam contribuindo para o desenvolvimento local (DL) da comunidade onde atuam? Sem uma concepção teórica do que seja DL, a prática social concretizada, por meio do futebol, possibilita germinar nas crianças e adolescentes competências e habilidades que estimulam a autonomia, o diálogo, o respeito, a disciplina e a inclusão social e melhoria da própria qualidade de vida.
O local onde o jogo de futebol é realizado é na própria comunidade onde habitam as crianças, adolescentes e familiares. Na concepção de Fragoso (2005), o “local” é constituído primariamente pelas pessoas que o habitam, pelas relações interpessoais construídas e pelo conjunto de redes sociais e culturais que também se inter-relacionam. Portanto, pode-se inferir que os líderes do futebol amador cumprem um papel que medeia e proporciona à comunidade mais ampliação de suas redes e anunciam um futuro mais humano e cidadão para seus moradores.
Os responsáveis pelo futebol amador/várzea/comunitário, mesmo de que forma insipiente e empírica, estão criando condições para que as crianças, adolescentes e famílias participem ativamente dos jogos aos finais de semana e provocam, assim, a apropriação local por todos eles, cada um a seu tempo. A semente foi implantada e está sendo regada.
Neste artigo, o “local” onde os jogos acontecem sob direção de dois líderes é a Comunidade Santa Lúcia, em Belo Horizonte, Minas Gerais. É conhecida como Aglomerado Santa Lúcia/Vila Barragem Santa Lúcia e compõe uma das quatro favelas formais que formam o Morro do Papagaio. Localiza-se na zona sul de Belo Horizonte e tem população de 16.914 habitantes (segundo o último censo feito pela prefeitura), 3.848 residências e área de 477 mil metros quadrados (BELO HORIZONTE, 2018).
A denominação unificada para todo o conjunto, Morro do Papagaio, era historicamente o nome do morro onde encontra-se a favela. Toda a região faz limite com áreas da cidade planejadas desde a inauguração da cidade no século XIX, como as ruas do bairro São Pedro e Santo Antônio. Durante o planejamento das vias da capital, foi mantida como uma área verde, e não uma área urbanizada, devido ao seu relevo muito íngreme (PREFEITURA BELO HORIZONTE, 2018).
O site G1 publicou em 2013 sobre a escolinha de futebol (Associação Atlética de Santa Lúcia) criada pelo morador da comunidade e um de seus líderes, com o objetivo de acolher jovens que vivem não só na comunidade em questão, mas também em outras favelas belo-horizontinas.
As aulas atendem crianças e adolescentes carentes e usa as regras do esporte para ensinar valores como a amizade e a disciplina. O fundador, mais conhecido como Robertão, conta que tudo começou quando resolveu aplicar na comunidade, há 30 anos, a experiência que teve em um colégio onde estudou. São cerca de 100 crianças inscritas, de 7 a 17 anos (MINAS GERAIS, 2013).
O jornal Estado de Minas, em sua plataforma digital, através do caderno Superesportes, fala sobre o torneio de futebol disputado na comunidade, que abre portas para jovens que vivem nas mesmas condições citadas anteriormente na capital. Segundo a fonte, a competição tem a participação de 32 equipes femininas e masculinas.
Um campeonato de futebol em sua primeira edição em Belo Horizonte pretende abrir portas para jovens das favelas da capital. Trata-se da Taça das Favelas “As favelas daqui possuem um grande potencial político, econômico e social, mas isso quase nunca é visto, então é uma oportunidade de fazermos as nossas favelas serem pautadas pelo potencial que elas têm e de se tornarem protagonistas de fato” [...]
[…] A ideia do campeonato surgiu no Rio de Janeiro em 2011 como forma de fortalecer os laços e transformar o contexto social dos jovens moradores de vilas e favelas, potencializando as oportunidades para os mesmos. Chegou a reunir 240 comunidades. Em Minas Gerais, o campeonato é realizado em Uberlândia, São Lourenço e na capital. “O projeto alcança as mães do jovem, um indicativo de que as pessoas já compreenderem o seu propósito” [...] (ESTADO DE MINAS, 2017).
Por fim, apreendeu-se que o futebol jogado nas comunidades vulneráveis abre caminhos para que crianças e adolescentes tenham rumos que os direcionem para caminhos de superação, de sonhar e realizar sonhos, de mudar o status quo e alcançar um devir promissor e feliz.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As leituras e releituras de todo material coletado, selecionado e analisado apresentam não apenas um pouco da história e das origens do futebol profissional e amador no Brasil.
Percebe-se que, no Brasil, o futebol amador/várzea/comunitário surge como uma forma de abrangência de classes sociais tidas como “inferiores” por uma paixão que é nacional. Dessa paixão materializada têm-se resultados positivos no tocante à inclusão de crianças e adolescentes de comunidades vulneráveis. Esses sujeitos tecem representações que alagam seu imaginário, fazem-nos sonhar e querer construir um novo mundo ao redor e, quiçá, para além do espaço que hoje ocupam.
Destaca-se, ainda, a corresponsabilidade dos líderes, técnicos dos times de futebol que, mesmo sem salários, criam relações fraternas, conseguem, muitas vezes, desconstruir agruras e construir visões de um mundo melhor.
Conveniente enfatizar a necessidade de mais pesquisas acerca do tema para que o entendimento sobre o esporte e suas origens no país seja expandido e possa alcançar todos que por esse assunto se interessem e para que o futebol amador/ várzea possa ser explorado e apoiado em seus objetivos inclusivos.
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*Advogado e pós-graduando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pela UNA/BH. E-mail: christianomcastro@gmail.com