Ederson Pinto da Silva*
Lucia de Fátima Socoowski de Anello**
Ana Paula Grellert***
Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Brasil
Email: ederson.tga@gmail.com
RESUMO
O presente artigo aborda o método em projetos sociais com povos e comunidades tradicionais, mais especificamente com pescadores artesanais. Trata-se de um estudo de caso realizado um projeto social, desenvolvido estado do Rio Grande do Sul – Brasil, mediante um convênio entre o governo brasileiro e uma cooperativa de pescadores. Ao colocar o método como elemento central na gestão de projetos sociais, a reflexão desenvolvida propôs com que o mesmo fosse observado, não como dinâmicas de grupo, roteiros e técnicas, mas com um olhar sobre a postura pedagógica adotada e sobre a intencionalidade das ações desenvolvidas. Neste sentido, contatou-se uma grande proximidade entre as práticas educativas desenvolvidas e a pedagogia emancipatória de Paulo Freire. Por fim, considerando as particularidades típicas dos povos e comunidades tradicionais, sugere-se que esta postura metodológica possa ser adotada em projetos sociais desenvolvidos junto a estes grupos sociais.
Palavras chave: método - projetos sociais - povos e comunidades tradicionais - pescadores artesanais - pedagogia emancipatória
RESUMEN
Este artículo aborda el método en proyectos sociales con pueblos y comunidades tradicionales, más concretamente con los pescadores artesanales. Se trata de un estudio de caso realizado en un proyecto social, desarrollado en el estado de Rio Grande do Sul – Brasil, a través de un acuerdo entre el gobierno brasileño y una cooperativa de pescadores. Al situar el método como elemento central en la gestión de proyectos sociales, la reflexión desarrollada propuso que se observaba lo mismo, no como dinámicas de grupo, guiones y técnicas, sino con una mirada a la postura pedagógica adoptada y a la intencionalidad de las acciones desarrolladas. En este sentido, se contactó una gran proximidad entre las prácticas educativas desarrolladas y la pedagogía emancipadora de Paulo Freire. Por último, considerando las particularidades típicas de los pueblos y comunidades tradicionales, se sugiere que esta postura metodológica pueda ser adoptada en proyectos sociales desarrollados con estos grupos sociales.
Palabras clave: método - proyectos sociales - pueblos y comunidades tradicionales - pescadores artesanales - pedagogía emancipadora
ABSTRACT
This article discusses the method in social projects with traditional peoples and communities, more specifically with artisanal fishermen. It is a case study carried out a social project, developed in the state of Rio Grande do Sul – Brazil, through an agreement between the Brazilian Government and a fishermen cooperative. By placing the method as a central element in the management of social projects, the developed reflection proposed that the same was observed, not as group dynamics, scripts and techniques, but with a look at the pedagogical posture adopted and on the intentionality of the actions developed. In this sense, a great proximity was contacted between the educational practices developed and the emancipatory pedagogy of Paulo Freire. Finally, considering the typical particularities of traditional peoples and communities, it is suggested that this methodological posture can be adopted in social projects developed with these social groups.
Key words: method - social projects - peoples and traditional communities - artisanal fishermen-emancipatory pedagogy
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Ederson Pinto da Silva, Lucia de Fátima Socoowski de Anello y Ana Paula Grellert (2019): “O método em projetos sociais com povos e comunidades tradicionais: uma experiência com pescadores artesanais”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (marzo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/03/projetos-sociais-pescadores.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1903projetos-sociais-pescadores
Em recente relatório, a organização não governamental internacional World Wide Fund for Nature (2016) apontou que seria necessária a capacidade regenerativa de 1,6 Planeta Terra para dar suporte à demanda anual por bens e serviços consumidos pela população mundial. Este relatório não deixa dúvida de que o mundo está diante de uma crise que se traduz em impactos ambientais cada vez maiores e mais complexos. Entretanto, conforme aponta Quintas (2009), a crise ambiental é apenas uma consequência do modelo de produção e organização social dominante.
O problema está na ordem social vigente que para garantir um determinado estilo de vida para uns poucos, tem necessariamente que destruir aceleradamente a base material de sustentação da população e condenar a maioria à pobreza, quando não à indigência. Em outras palavras é a sociedade que está em crise. Os danos e riscos ambientais decorrem de uma determinada ordem social, que se constituiu historicamente, e se mantém por meio de relações de dominação seja da natureza por seres humanos, seja de humanos por outros humanos (QUINTAS, 2009, p.37).
Em uma sociedade excludente, que destina aos grupos sociais mais frágeis apenas os resultados negativos do padrão de consumo adotado pelo modelo hegemônico, surgem diversas situações de injustiças ambientais. Estas situações são definidas por Acselrad como
el mecanismo por el cual las sociedades desiguales, desde el punto de vista económico y social, concentran los recursos ambientales bajo el poder de los grandes intereses económicos y destinan la mayor carga de daños ambientales del desarrollo a las poblaciones de baja renta, a los grupos raciales discriminados, a los pueblos étnicos tradicionales, a los barrios obreros, a las poblaciones marginales y vulnerables (ACSELRAD, 2003, pp. 95-96).
Neste sentido, Acselrad (2010) verifica a existência de um movimento em que as pautas tradicionais da luta por justiça social passam a se aproximar das questões relacionadas à temática ambiental. Tal aproximação tem feito com que questões relacionadas à justiça ambiental, cada vez mais façam parte das discussões realizadas no âmbito das arenas políticas que tradicionalmente tratam das questões voltadas à promoção de justiça social.
Neste contexto, projetos sociais são desenvolvidos no sentido de contribuir para o enfrentamento das injustiças socioambientais. Segundo Stephanou, Müller & Carvalho (2003, p. 25), os projetos sociais “se inscrevem num horizonte de construção de direitos e afirmação cidadã. Sua ênfase é a noção de justiça social, o que somente pode ser alcançado através da participação e do exercício da cidadania”.
Entretanto, promover a cidadania daqueles que são excluídos não é uma tarefa simples. Esta tarefa torna-se ainda mais complexa na medida em que se trabalha com grupos sociais como os povos e comunidades tradicionais, que se orientam por valores socioculturais específicos, que podem variar consideravelmente de um território para o outro. É neste contexto que o método se insere como elemento decisivo em projetos sociais que buscam transformar a realidade socioambiental enfrentada pelos povos e comunidades tradicionais.
Dentre os povos e comunidades tradicionais estão inseridas as comunidades de pescadores artesanais, as quais vêm sofrendo duros impactos socioeconômicos decorrentes de pressões fundiárias sobre seus territórios e da destruição dos ecossistemas fundamentais para garantir o suporte aos bens naturais necessários para a sua produção e reprodução social. Para se ter uma noção desta realidade, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (2019), dos 580 conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, 97 deles afetam pescadores artesanais.
Neste cenário de injustiças socioambientais, diversos recursos vêm sendo aplicados em uma ampla gama de projetos sociais desenvolvidos junto a comunidades de pescadores artesanais, tanto por meio de políticas públicas, como pela ação direta de organizações não governamentais nacionais e internacionais. Contudo não são raros os casos em que, devido a questões relacionadas ao método e às práticas pedagógicas utilizadas, os resultados alcançados acabam não promovendo a transformação da realidade que se quer mudar.
No campo da educação ambiental, por exemplo, em sua tese de doutorado Pereira (2011) aponta a existência de inconsistências nas práticas pedagógicas adotadas no âmbito de alguns projetos de educação ambiental que são desenvolvidos como condicionantes do processo de licenciamento ambiental das atividades de petróleo e gás na costa marítima brasileira. A Autora atribui a estas inconsistências o fato de alguns projetos não se constituírem como agentes de transformação social.
Assim, o presente artigo resulta de uma reflexão que teve o foco no estudo do método como orientador de práticas pedagógicas em projetos sociais desenvolvidos com pescadores artesanais. Para tanto, desenvolveu um estudo de caso tendo como objeto o projeto “Ações para consolidação da rede regional de comercialização solidária do pescado no sul do Rio Grande do Sul”, um projeto social desenvolvido entre 2007 e 2008, que teve como público alvo pescadores artesanais pertencentes organizações situadas em comunidades do estuário da Laguna dos Patos e da Lagoa Mirim.
Cabe registrar que o projeto estudado fez parte de um processo de organização regional em que, conforme Silva et al. (2008), os pescadores se desafiaram a enfrentar o tema do mercado por meio da articulação de uma rede regional de comercialização solidária do pescado, a qual deu origem ao nome do projeto. Assim, torna-se necessário explicar que ao longo do texto o termo “Rede” faz referência ao processo. Já o termo “Projeto da Rede” faz referência ao projeto que foi objeto deste estudo.
Como fontes de estudo foram utilizados dados secundários obtidos por meio de procedimentos e técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, conforme descrito por Gil (2008). A pesquisa documental centrou-se nos documentos relativos aos projetos relacionados à Rede (projetos, convênios, relatórios, etc.). Já a pesquisa bibliográfica contou com uma revisão sobre a produção existente em relação à Rede, bem como com a leitura de materiais científicos que fundamentassem teoricamente a reflexão e dessem suporte à analise, a qual foi realizada pelo método de triangulação de dados, conforme Minayo (2014).
Neste sentido, o artigo está estruturado de forma que na sequência é apresentada uma discussão que situa a pesca artesanal no contexto dos povos e comunidades tradicionais. Posteriormente é realizada uma apresentação do projeto estudado situando-o como projeto social, seguida de uma discussão que aproxima o método utilizado no projeto com uma concepção pedagógica emancipatória. Por fim, são apresentadas as considerações finais, indicando as possíveis contribuições da pesquisa para a área de gestão de projetos sociais.
As comunidades tradicionais possuem direitos assegurados tanto em níveis nacionais como internacionais. Em nível internacional, a Convenção n° 169 - Sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, é internalizada no país por meio do Decreto 5.051/2004 (Brasil, 2004). Assim, esta norma se deve ser observada em relação:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas (BRASIL, 2004, p.2).
Mais recentemente, através do Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, o Brasil instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Conforme o Artigo 3º desse Decreto, são compreendidos como Povos e Comunidades Tradicionais:
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007, p.1).
Neste contexto, inserem-se as comunidades de pesca artesanal. Na pesca, como uma atividade que vive da exploração da natureza, “há uma correlação importante entre a vida social e a reprodução natural... há uma correlação entre a vida social e a reprodução dos estoques de pescado” (Diegues, 1983, p. 95). Assim, o pescador artesanal é entendido como aquele que,
[...] na captura e desembarque de toda a classe de espécies aquáticas, trabalha sozinho e/ou utiliza mão-de-obra familiar ou não assalariada, explorando ambientes ecológicos limitados através de técnicas de reduzido rendimento relativo e que destina sua produção, total ou parcial, para o mercado. (Diegues, 1973, p.111).
Trabalhos como os de Diegues (1973; 1983), Silva (1988) e Diegues & Arruda (2001) demonstram que, mais do que uma atividade econômica, a pesca artesanal também se caracteriza por sua importância enquanto patrimônio cultural e histórico, sendo a perpetuação da atividade baseada em conhecimentos que são passados de geração em geração. Neste contexto, percebe-se as comunidades de pescadores artesanais como “grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e em relações próprias com a natureza” (Diegues & Arruda, 2001, p. 20). São estas características que situam a pesca artesanal no contexto dos povos e comunidades tradicionais.
Abrangendo organizações de pescadores artesanais de sete municípios da região sul do estado do Rio Grande do Sul (Arroio Grande, Santa Vitória do Palmar, Jaguarão, Pelotas, Rio Grande, São José do Norte e São Lourenço do Sul), a Rede Regional de Comercialização Solidária do Pescado no Sul do Rio Grande do Sul - Rede começou a ser articulada no ano de 2004 como “uma experiência inédita de organização social na pesca” (Silva, 2010, p. 915). Esta rede constituiu-se em um processo que teve grande relevância ao proporcionar com que os pescadores artesanais se assumissem como protagonistas ao discutirem seus problemas de forma coletiva, buscando soluções concretas relacionadas à “sua produção social, ao seu trabalho e produtividade na pesca” (Silva et al., 2008, p. 423).
Ao discutir a formação da Rede, em pesquisa realizada entre 2006 e 2008, Costa (2014) identificou que o processo envolvia aproximadamente 700 famílias de pescadores artesanais pertencentes a 12 organizações. Este processo foi implementado por meio de projetos de suporte, executados a partir de convênios firmados entre órgãos governamentais, sociedade civil e universidades. Neste contexto, insere-se o projeto “Ações para consolidação da rede regional de comercialização solidária do pescado no sul do Rio Grande do Sul”, executado entre setembro de 2007 e dezembro de 2008, por meio de um convênio firmado entre a Cooperativa dos Pescadores Profissionais Artesanais Lagoa Viva LTDA – Cooperativa Lagoa Viva e a então Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República – SEAP/PR.
Costa (2014, p. 59) destaca ainda a constituição de um arranjo institucional de apoio à Rede, "formado por organizações de classe, entidades da sociedade civil organizada, poderes públicos municipais e instituições de ensino”. No caso do projeto estudado, este arranjo contou com dezenove parcerias de organizações e instituições que o subscreveram, não só prestando apoio, mas também assumindo responsabilidades perante o mesmo.
Stephanou, Müller & Carvalho (2003) destacam que projetos sociais são projetos que organizam ações que buscam atuar no sentido de transformar determinada realidade social ou institucional. Neste sentido, intenção transformadora do projeto estudado pode ser constatada em um trecho da sua justificativa.
Através do trabalho em rede, as organizações passaram a ter importantes conquistas no que se refere a políticas públicas, como é o caso do Pronaf Pesca, do Programa de subvenção econômica do óleo diesel para pescadores artesanais e da recente conquista de uma reivindicação histórica de um programa de moradia para pescadores artesanais...A necessidade de qualificar ainda mais a gestão das organizações e, conseqüentemente, dos empreendimentos adquiridos; o fortalecimento da Rede frente ao mercado; a preocupação com a questão ambiental; a possibilidade, e a necessidade, de se ampliar a participação de mais pescadores e pescadoras neste processo; a necessidade de se desenvolver ações que atendam as mulheres e os jovens das organizações e também das comunidades onde estas estão inseridas; e a necessidade de incorporação de ações voltadas ao desenvolvimento social, são alguns dos desafios que as organizações buscam apoio para superar (Lagoa Viva, 2007, p. 10).
Assim, o projeto teve um objetivo geral que articulou duas componentes: uma contendo ações focalizadas nos jovens e mulheres; e outra contendo ações que visavam o fortalecimento da organização social, econômica e política dos pescadores e pescadoras vinculados aos grupos pertencentes à Rede. Desta forma, excetuando-se as atividades administrativas e de suporte, conforme descrito em Silva et al., (2017), o projeto foi estruturado em 89 (oitenta e nove) ações formativas, as quais foram articuladas a objetivos específicos.
No que se refere à gestão do projeto pode-se verificar um arranjo que se articulou em dois processos simultâneos. Um processo de caráter político-institucional, em que os diversos parceiros discutiam e deliberavam coletivamente a estratégia da Rede. Um processo gerencial-executivo realizado por uma equipe multidisciplinar coordenada por um membro da direção da Cooperativa Lagoa Viva, responsável jurídico pelo convênio que financiou o projeto. Esta equipe multidisciplinar, Pereira (2008, p. 11) classificou como “coordenação ampliada”.
Inicialmente, cabe destacar que este item não se propõe a aprofundar uma avaliação sobre os resultados do projeto, mas sim trazer alguns dos elementos centrais identificados no relatório técnico produzido por Pereira (2008), intitulado “Impactos do projeto de ações para consolidação da rede regional de comercialização solidária do pescado no sul do RS”. Este documento, produzido por uma avaliação externa, teve como objetivo desenvolver uma análise qualitativa acerca dos impactos causados pelo projeto, “buscando identificar se houve ou não efetividade nas ações previstas em consonância com os objetivos que o mesmo se propunha a alcançar” (Pereira, 2008, p. 4).
Utilizando-se de técnicas da pesquisa social, Pereira (2008) desenvolveu um percurso metodológico que combinou avaliação dos objetivos e metas com participação em atividades do projeto, entrevistas com pescadores e reuniões com a equipe do projeto. Neste sentido, em linhas gerais a avaliação realizada apontou para o atendimento, em grande parte, dos objetivos do projeto.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a analise indica que alguns resultados não foram alcançados de forma integral, aponta um conjunto de resultados positivos que inicialmente não estavam projetados. Esta constatação vai ao encontro de Carvalho (2001, p. 64) que diz que “os resultados de uma dada ação social podem ser múltiplos e derivados de múltiplas causas ou fatores. Os projetos podem ter resultados e impactos esperados e não esperados, tangíveis e intangíveis, imediatos ou de médio prazo”.
Neste sentido, como impacto adicional, Pereira (2008) identificou que durante as entrevistas os pescadores demonstravam compreender a importância das ações do projeto para o fortalecimento dos grupos (cooperativas, associações e grupos informais) contemplados pelo mesmo. Esta compreensão aparece nitidamente sistematizada em um conjunto de falas descritas por Pereira (2008, p. 29).
O projeto contribuiu para a conscientização dos pescadores e organizações; Deu suporte à união dos grupos e participação das pessoas; Saiu da teoria e partiu para a prática; Trabalhou para qualificar cada organização para o comércio de pescado; Ajudou a aprimorar o gerenciamento das organizações através do ensino de informática, as planilhas do Excel e também das formas de organizar a papelada; Identificou pessoas chaves nas organizações para articular com o projeto; As reuniões e encontros promovidos pelo projeto deram suporte e fortalecimento das bases.
Ao concluir seu relatório, Pereira (2008), reafirma a grande relevância do projeto em questão para apoiar os grupos organizados de pescadores artesanais. Destaca ainda como fundamental para o alcance dos resultados do projeto, fato de ao longo do mesmo, as ações estarem ancoradas em um método orientado por uma “intencionalidade pedagógica calcada nos princípios de movimento social” (Pereira, 2008, p. 38).
Ao discutir o a temática da gestão social, Carvalho (2001, p. 17) afirma direito social como uma premissa fundamental das políticas sociais, destacando a necessidade de uma pedagogia emancipatória que “potencializa talentos, desenvolve a autonomia e fortalece vínculos relacionais capazes de assegurar inclusão social”. Neste sentido, considerando que os projetos sociais buscam a transformação de determinada realidade, o método não pode ser resumido a um conjunto de procedimentos e técnicas que se aplica a determinado grupo de indivíduos com o objetivo de gerar um produto.
O método reflete a visão de mundo do educador e se expressa na postura e na intencionalidade do mesmo frente a uma determinada realidade. Em uma perspectiva transformadora da realidade social, a ação pedagógica deve ser entendida como um caminho a ser percorrido conjuntamente, por educador e educando, na construção de uma leitura crítica da realidade que se quer transformar, constituindo-se como um percurso para a consciência.
A tomada de consciência não se dá nos homens isolados, mas enquanto travam entre si e no mundo relações de transformação, assim também somente aí pode a conscientização instaurar-se... Este esforço da tomada de consciência em superar-se a alcançar o nível da conscientização, que exige sempre a inserção crítica de alguém na realidade que se lhe começa a desvelar, não pode ser, repitamos, de caráter individual, mas sim social...a conscientização, que não pode dar-se a não ser na práxis concreta, nunca numa práxis que se reduzisse à mera atividade da consciência, jamais é neutra. (Freire, 1977, p. 77)
Assim, é imprescindível que o educador que atua em projetos sociais compreenda os educandos, e a si próprio, como sujeitos de sua práxis que “atuando, transforma; transformando, cria uma realidade que, por sua vez, envolvendo-o, condiciona sua forma de atuar” (Freire, 1977, p. 28). Desta forma, é importante que o educador comprometido com a transformação da realidade social tenha clareza de que seu papel enquanto sujeito constitui-se em “agir conscientemente em processos sociais que se constituem conflitivamente por atores sociais que possuem projetos distintos de sociedade, que se apropriam material e simbolicamente da natureza de modo desigual” (Loureiro, 2003, p. 42).
Neste sentido, quando se analisa os documentos referentes ao projeto estudado, verifica-se que, ao estabelecer como sujeitos das ações educativas, os pescadores artesanais das organizações que compunham a Rede, o método foi estruturado de forma a criar os meios para dar voz aos pescadores artesanais em um processo de construção participativa que possibilitou que os mesmos assumissem o protagonismo na construção e condução de um processo para a transformação de sua realidade. Entretanto, quando se fala em construção participativa, é necessário que se compreenda a participação na perspectiva de Demo (2009), ou seja, como conquista de um processo de luta que resulta, não só na participação em si, mas em alterações na estrutura das desigualdades. Neste sentido, a participação não ocorre de forma pacífica. Pelo contrário,
[...] a redução das desigualdades só pode ser fruto de um processo árduo de participação, que é conquista, em seu legítimo sentido de defesa de interesses contra interesses adversos. Não há porque enfeitar ou banalizar esse processo, ainda que não deva em si ser necessariamente violento... a liberdade só é verdadeira quando conquistada. Assim também é a participação. E isto fundamenta a dimensão básica da cidadania (Demo, 2009, P.23).
Neste contexto, é preciso que o método garanta a participação como uma premissa fundamental na definição das ações pedagógicas. Neste sentido, Pereira (2008) relata que no projeto
A metodologia utilizada nos encontros regionais proporcionou que os participantes construíssem coletivamente saídas para suas crises e problemas... Em todos os espaços formativos foram valorizados os conhecimentos dos participantes e incentivado o descortinamento da realidade contribuindo para a formação da consciência crítica dos mesmos (Pereira, 2008, p. 13).
Freire (1982, p. 48) afirma que “a consciência crítica dos oprimidos significa, pois, consciência de si, enquanto “classe para si”. Nesta perspectiva, o método que permeou as atividades do projeto possibilitou com que os pescadores e pescadoras, pela sua práxis, construíssem uma unidade enquanto sujeito coletivo e se reconhecessem como capazes de apontar os caminhos para a transformação de sua realidade. Ainda na mesma linha, Freire (2011, pp. 42-43) aponta a seguinte reflexão:
Quem melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá melhor que eles os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade de libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento de sua necessidade de lutar por ela.
Diante do exposto, destaca-se o fato de que o projeto resultou no reconhecimento do grupo enquanto um sujeito coletivo que passou a orientar o posicionamento dos indivíduos. Assim sua palavra deixou de ser em seu nome enquanto indivíduo, ou ainda apenas em nome de sua comunidade ou organização, e cada liderança passou a falar em nome do grupo maior, da Rede. Tal unidade possibilitou o acesso a diversas políticas públicas, que antes, de forma individual, eram inacessíveis. Um exemplo foi a articulação de um programa federal de apoio a comercialização, programa este que só foi viabilizado por meio de uma articulação entre os diferentes grupos participantes do projeto. Outro exemplo, diz respeito à viabilização de um programa, adaptado às necessidades regionais, para a construção de habitação para pescadores.
Inicialmente cabe destacar que o presente artigo não se propõe a esgotar as questões levantadas ao longo do texto. Seu objetivo esteve mais relacionado ao levantamento de questões para aprofundamentos futuros. Neste sentido, uma primeira contribuição que pode ser destacada está associada ao o seu caráter inovador, na medida em que propõe o debate acerca da importância que as questões relacionadas ao método têm para a gestão de projetos sociais.
Retirar o método do reducionismo imposto pelo senso comum, que normalmente o resume a procedimentos, roteiros e técnicas, colocando-o no centro do debate relacionado a projetos sociais, certamente é uma importante contribuição que fica desta reflexão. Da mesma forma, a dificuldade encontrada no que se refere ao encontro de bibliografia relacionada ao método em projetos sociais, alerta para a necessidade e importância de que novas pesquisas com este tema sejam realizadas.
No projeto analisado, embora não houvesse no mesmo uma menção explicita, pôde-se constatar que o método orientador das ações educativas esteve estreitamente ligado à pedagogia emancipatória de Paulo Freire. Esta postura foi de extrema importância para garantir que os caminhos a serem seguidos fossem traçados pelos próprios pescadores.
Por fim, observando-se o necessário cuidado com a existência de particularidades que variam consideravelmente, de acordo com cada realidade, pode-se dizer que esta concepção metodológica pode ser de relevante importância no planejamento de ações em projetos sociais desenvolvidos com povos e comunidades tradicionais. Porém, como o método não é apenas procedimento, mais do que estar presente no planejamento, é importante que se construam mecanismos que garantam com que esta postura também se faça presente no momento da execução das ações educativas.
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