Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


A MODERNIDADE ENTRE AS VISÕES SECULARES E RELIGIOSAS: A PERSPECTIVA DE JÜRGEN HABERMAS

Autores e infomación del artículo

Jorge Alberto Ramos Sarmento*

Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil

Email: jsarmento50@gmail.com


Resumo
o presente trabalho tem por objetivo mostrar no contexto da modernidade o processo de secularização e o lugar reservado às visões religiosas, as quais, juntamente com as visões tradicionais sempre foram vistas pelos teóricos, a partir de Max Weber, como superadas a partir do processo de racionalização que caracteriza o espírito moderno. Nesse sentido, procuramos mostrar uma linha de raciocínio que se inicia no limiar do movimento renascentista, com Nicolau de Cusa, passando por Maquiavel, Galileu, Hobbes e Kant, que como pensadores modernos, estabeleceram teoricamente concepções bem definidas sobre o papel da religião no pensamento moderno, estabelecendo-se no pensamento kantiano uma síntese bem elaborada, onde a religião e a moral integram uma dimensão comum. Nesse ponto de vista, procuramos mostrar a proposta formulada por Habermas, filósofo atual que estabelece novas perspectivas para a compreensão do papel a ser desempenhado pelas religiões num contexto marcado pelo pensamento pós-metafísico
Palavras-chaves: modernidade, secularização, Religião. Habermas, pós-secularismo

Resumen
El presente trabajo tiene por objetivo mostrar el contexto de la modernidad el proceso de secularización y el lugar reservado a las visiones religiosas, las cuales, junto con las visiones tradicionales  siempre han sido vistas por los teóricos, desde Max Weber, como superadas desde   el proceso de racionalización que caracteriza el espíritu moderno. En este sentido, buscamos mostrar una línea de raciocínio que comienza en el umbral del movimiento renacentista, con Nicolau de Cusa, pasando por Maquiavelo, Galileo, Hobbes y Kant, que como pensadores modernos, teóricamente han establecido concepciones bien definidas sobre el papel de la religión en el pensamiento moderno, establecendose em el pensamento de  Kant una síntesis bien elaborada, donde la religión y la moral integram una dimensión común. En ese punto de vista, buscamos mostrar la propuesta formulada por Habermas, un filósofo actual que establece nuevas perspectivas para entender el papel que deben desempeñar las religiones en un contexto marcado por el pensamento postmetafísico.
Palabras clave: modernidad, secularización, religión, Habermas, pós-secularismo.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Jorge Alberto Ramos Sarmento (2019): “A modernidade entre as visões seculares e religiosas: a perspectiva de Jürgen Habermas”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (marzo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/03/modernidade-seculares-religiosas.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1903modernidade-seculares-religiosas


    1. Introdução
                A modernidade, enquanto um amplo e profundo espectro de grandes transformações ocorridas  na Europa e que se manifesta, sobretudo, nos movimentos intelectuais, a começar pelo Renascimento, passa a apresentar uma nova perspectiva para a compreensão do mundo e do próprio homem, dando ênfase a uma visão da qual Nicolau de Cusa, já no século XIV pode ser considerado o pioneiro, na medida em que estabelece as primeiras críticas ao modelo teocêntrico e transcendente do medievo e apontando para o campo da imanência como o locus privilegiado da certeza e do rigor que deve ser buscado pela razão humana. A esse movimento que procura colocar o homem no centro do universo e que terá a exaltação da pessoa humana sua referência primordial, será continuado por personagens como Maquiavel, Galileu Galileu, Thomas Hobbes entre outros, cujas visões seculares enfatizam um distanciamento das tradições, e por conseguinte, da própria religião, em relação a uma nova ordem política, social e econômica que passa a se estabelecer. Immanuel Kant, no apogeu do movimento iluminista, procura mostrar que existe uma relação muito íntima entre religião e moral, na medida em que ambas coincidem quanto ao conteúdo, havendo distinção apenas no que concerne a forma como se estabelecem os deveres, visto que na religião os deveres surgem como mandamentos divinos.
            No processo de secularização que se desenvolve a partir de uma racionalização crescente, as visões religiosas passam a ser relegados a um plano inferior, contexto em que Jürgen Habermas, a partir de sua concepção fundamentada no agir comunicativo, apresenta um papel de importância para a religião no mundo contemporâneo, tendo em vista que a forma como as religiões mantém viva a sensibilidade para o que falhou no mundo secular, buscando preservar na memória, as dimensões de nosso convívio pessoal e social, as quais foram prejudicadas pelo processo de racionalização social e cultural.
2. O espírito moderno e a ruptura com as tradições e o pensamento religioso
No processo de pensar que se instituiu a partir da modernidade, entendida esta como um amplo espectro de fatos que deram ensejo a uma nova visão de mundo, estabeleceu-se paulatiidnte um divisor de águas entre Estado e religião, em contraposição ao modelo medieval, cuja estrutura estava erguida nas bases do pensamento cristão, perdurando cerca de mil anos, o que proporcionou a Igreja Católica a hegemonia do poder, anteriormente perdido pelo Império Romano na Europa. O assim chamado “período das trevas” consolidou-se no atrelamento do poder temporal ao poder espiritual,  a partir de uma cosmovisão construída pelas autorictates,1 das quais Agostinho e Tomás de Aquino se tornaram as principais personagens, na Alta e Baixa Idade Média respectivamente, em função dos trabalhos desenvolvidos na interpretação dos textos das Sagradas Escrituras tomando por base a filosofia clássica. Essa instrumentalização da filosofia, que passa a servir de base para a religião cristã, parece constituir o que muitos teóricos mencionam como um desvirtuamento do pensar filosófico, na medida em que o mesmo estabelece uma nova realidade (Deus) em suas reflexões, tornando-se um serviçal da religião, o que será questionado com todo vigor a partir no final do período medieval, no surgimento dos movimentos intelectuais, a começar pelo Renascimento.

2.1 – As críticas de Nicolau de Cusa e as bases do pensamento moderno
E. Cassirer (2001) ao enfatiza que Nicolau de Cusa, a partir do Quattrocento já evidencia um tipo de pensamento que concebe a totalidade dos problemas fundamentais da época a partir de um só princípio metodológico, a partir do qual, consegue se assenhorar deles.
Sua reflexão abrange ainda, de acordo com o ideal medieval da totalidade, o conjunto formado pelo cosmos espiritual e físico, e não se detém diante de particularidades. Ele é um teólogo especulativo, da mesma forma como também é um matemático especulativo; a paleta de suas áreas de estudo abrange problemas de estática e teoria geral do movimento, história eclesiástica, história política, história do direito e história geral das ideias. (CASSIRER, 2001: 13-14).
A construção teórica elaborada por Nicolau de Cusa, no limiar do Renascimento, tal como desenvolvida a partir do conceito de docta ignorantia e coincidência dos opostos, além de procederem uma renovação das ideias de um universo medieval fechado, parecem refletir na impossibilidade de uma certeza absoluta da razão humana acerca do transcendente, apontando para uma certeza que se estabelece no imanente, a qual deve ser procurada nos princípios da matemática. Nessa perspectiva, o tratado De docta ignorantia parte do pressuposto de que todo conhecimento se define como medida; e nesse sentido passa a se estabelecer no conceito de proporção, que traz consigo a condição da possibilidade de medir, o meio por excelência do conhecimento.
A noção de medida transforma-se, assim, em elo de ligação que une o pesquisador da natureza e o artista, o criador de uma “segunda natureza”. A proporção – conforme a define Lucas Paciolli, amigo de Leonardo da Vinci – não é apenas mãe do conhecimento, mas também “mãe e rainha da arte”. No conceito de proporção compenetram-se, então as tendências técnico-matemáticas, especulativo-filosóficas e artísticas da época; e justamente graças a essa confluência e inter-relação, o problema da forma se transforma numa das questões centrais do Renascimento (CASSIRER, 2001: 88).
Ao apresentar uma nova atitude frente ao problema do conhecimento, Nicolau de Cusa pode ser considerado o precursor do pensamento moderno, uma vez que o seu trabalho não somente se apresenta como um questioidnto sobre Deus, mas também sobre a possibilidade de se conhecer Deus. Tais aspectos nos proporcionam uma clara noção do processo de “secularização” que se desenvolve a partir do pensamento renascentista e se desdobra vinculado a temática religiosa medieval. Nicolau de Cusa, seguindo uma tradição platônica apresenta uma visão da religião como dinâmica do universo enquanto desdobramento da causa primeira, sendo parte essencial do processo instintivo e pré-reflexivo de autoconservação e auto-aperfeiçoamento.
À guisa de esclarecimento, o conceito de secularização encontra-se relacionado ao processo de desagregação ou gradual abandono das formas tradicionais de estruturação social que se encontram baseadas na religiosidade. Tal fenômeno é denominado por Max Weber na expressão “desencantamento do mundo”, no qual o sujeito moderno despe-se de costumes e crenças baseadas nas tradições, herdadas ou apreendidas e cujos fundamentos basilares encontram-se nas religiões ou na magia.

2.2 - Maquiavel: o temor à Deus como elemento para a coesão social
Ainda no Renascimento encontramos um bom exemplo desse processo de desencantamento no pensamento de Maquiavel, o qual procede um rompimento com o pensamento medieval ao atribuir toda convulsão política e social de seu país ao domínio cristão, devido a religião encontrar-se vinculada ao serviço da política.
À religião pagã, Maquiavel opõe a religião cristã, tendo em vista que ao defender uma vida contemplativa e passiva, a religião cristã torna enfraquecida a sua ação, impossibilitando, dessa forma, o processo de instrumentalização das classes sociais. Ao glorificar os humildes e desprezar as glórias e as grandes conquistas, fragiliza as almas, o que se constitui para Maquiavel o maior erro da religião, tendo em vista que a humildade e a fragilidade contidas no discurso cristão, não oferecem nenhuma utilidade ao príncipe.
Por outro lado, a religião pagã se apresenta aos olhos desse autor como um bom instrumento de governo, o que pode ser atestado durante o período do Império Romano, onde a religião se tornou o instrumento manipulador do povo romano. Em virtude de se fundamentar na crença e no castigo, instrumentalizando e motivando a ação do homem, contribui de forma decisiva para o bem comum. A esse respeito, o referido autor destaca a estratégia utilizada pelo sucessor de Romulo, durante a fundação da Roma, para manter a integração social.
Este, encontrando um povo ferocíssimo e pretendendo conduzi-lo à obediência civil de forma pacífica, voltou-se para a religião como coisa de todo necessária para manter um clima de civilidade; e fê-lo de tal modo que por muitos séculos não houve, em parte nenhuma, tanto temor de Deus como naquela república, o que facilitou a qualquer empresa a que o Senado ou os grandes homens romanos entendessem meter os ombros. (MAQUIAVELl, 2010: 67).
O progressivo afastamento da religião cristã em relação aos princípios da Igreja Romana, teria sido, de acordo com Maquiavel, a causa de seu declínio, o qual poderia ser evitado se esta mantivesse o conteúdo e o culto da matriz romana.
Muito embora reconheça a virtude da religião Católica, Maquiavel dirige suas crítica principalmente aos padres e papas de sua época, cujos comportamentos considera indignos, prejudicando, dessa forma, o compromisso e o respeito do povo, fazendo com que a religião se corrompa e perca sua eficácia.
Pelos exemplos negativos daquela corte, a Itália perdeu toda devoção e toda a religião, o que tem provocado infinitos inconvenientes e infinitas desordens, porque, assim como onde há religião se pressupõe todo bem, também onde ela está ausente, se pressupõe o contrário. (MAQUIAVEL, 2010: 71).
O pensamento de Maquiavel reflete em todo o seu conteúdo, um testemunho do processo de secularização no qual o distanciamento da religião em relação às demais instituições sociais, em particular à política se torna uma característica fundamental, e mais do que um afastamento, a religião se torna na verdade um instrumento de manipulação por parte do poder político, tendo em vista que o temor à Deus passa a ser ingrediente importante na busca e condução da ordem social humana.

2.3 – Galileu Galileu e a nova leitura do mundo moderno
O processo de secularização, impulsionado pelo movimento renascentista, através de Nicolau de Cusa, irá se destacar no caráter da experimentação enquanto um mecanismo de pesquisa no campo das artes, migrando posteriormente para o campo das ciências com Galileu Galilei e Francis Bacon, sendo este último responsável por ter fundamentado o campo teórico da experimentação.
(...) foi o Renascimento que elevou o experimentação ao nível de um princípio da pesquisa como tal. Sem dúvida nenhuma, os precursores foram os grandes inovadores do domínio da arte: Leonardo da Vinci e seus companheiros e, particularmente e de maneira característica no domínio da música, aqueles que se dedicaram à experimentação com cravo, no século XVI. Depois disso, a experimentação passou para o campo das ciências, por causa, principalmente, de Galileu e alcançou o domínio da teoria, graças a Bacon. (WEBER, 2002: 41).
Se analisarmos esse processo de “desencantamento do mundo” tal como se desenvolve a partir dos movimentos intelectuais da Europa, podemos concluir que o acontecimento mais significativo talvez esteja vinculado à Revolução Científica, protagonizada por Galileu, o qual, a partir dos princípios da observação, experimentação e utilização dos conceitos da matemática estabeleceu um divisor de águas entre o saber religioso, teocêntrico e tradicional e um novo discurso que paulatiidnte passará a ser a expressão mais forte das representações do mundo. O embate entre o pensamento religioso e o novo saber científico e a consequente condenação de Galileu pelo Tribunal da Santa Inquisição, representa, na verdade, a problemática de uma assimetria entre o pensar religioso e a necessidade de sua auto certificação pela razão, o que aliás desde cedo foi colocado como o principal tema no pensamento medieval, no caso a relação entre a fé e a razão. A nova leitura do mundo, apresentada por Galileu deve ser fundamentada numa linguagem matemática, que pelo seu caráter abstrato, indutivo, dedutivo e rigoroso, tal como exposto por Nicolau de Cusa, nos dá uma certeza sobre o universo.
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o Universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humaidnte as palavras: sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (GALILEU, 1973: 119).
O reconhecimento por parte da Igreja Católica do erro que cometeu ao condenar Galileu por ter apresentado uma leitura do mundo em contraposição àquela visão estática, somente se deu em 31/10/1992 pelo Papa João Paulo II, segundo o qual “os erros dos teólogos da época quando mantinham a centralidade da terra era de pensar que o nosso entendimento da estrutura física do mundo era, de algum modo, imposto pelo sentido literal da Sagrada Escritura”. Esse modo de compreender a realidade de acordo com uma interpretação dos livros sagrados e visões religiosas tem sido historicamente a problemática maior da convivência da fé com a razão, pois ambas, apesar de buscarem uma verdade, passam a apresentar uma distorção de perspectivas em detrimento a determinados interesses, fato que pode ser bem exemplificado na  própria mutação sofrida pelo pensamento grego onde a partir de uma visão mítica predominante e vinculada aos interesses de uma aristocracia dominante, paulatiidnte assistimos a uma forma de pensar atrelado à retórica, a autonomia da palavra, à publicidade e uma forma de organização social determinada pela razão, onde os interesses passam a estar canalizados para uma nova classe social: a dos comerciantes. A Grécia Antiga é um bom exemplo de sociedade onde a religião em determinado momento não predomina em relação às demais instituições sociais, conforme bem assinala Vernant
As aspirações comunitárias e unitárias vão inserir-se mais diretamente na realidade social, orientar um esforço de legislação e de reforma, mas remodelando assim a vida pública, elas próprias vão transformar-se, laicizar-se; encarnando-se na instituição judiciária e na organização política, vão prestar-se a um trabalho de elaboração conceptual, transpor-se ao um plano de pensamento positivo. (VERNANT, 1992: 56).
Observa-se que a partir do século XVII o pensamento ocidental passa a tomar a razão como referência na tarefa de reconstrução da unidade que se perdeu, tornando-se imprescindível o desenvolvimento de um método rigoroso, fato que irá efetivamente fundamentar as bases constitutivas do pensamento moderno, o qual, por sua vez tomará como referência a simplificação do linguagem da matemática e a resolução de vários problemas, a essa herança, situa-se o pensamento de Galileu.
O pensamento de Galileu em sua versão mecânica de mundo, tem uma importante influência nos pensadores modernos, destacando-se nesse sentido Thomas Hobbes, figura de relevância na configuração de um modelo político e jurídico marcadamente dessacralizado.
2.4 - Thomas Hobbes
Thomas Hobbes, a partir da hipótese do contrato social fundamenta uma nova visão para a compreensão da sociedade, da ordem jurídica e da política, cristalizando nesse pensamento fundamentos importantes no processo de desencantamento do mundo. As bases constitutivas de sua concepção encontram-se ligadas ao modelo mecanicista de Galileu e a clara distinção que deve haver entre o Estado e a Igreja já transparece no subtítulo da obra principal de Hobbes: Leviatã, ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.
Numa perspectiva similar à de Maquiavel, Hobbes critica, principalmente, a religião católica e a postura de alguns sacerdotes, assim como as vantagens do papa ao interferir no poder político dos reis e príncipes de países europeus, tal como ocorrera na Inglaterra, pátria de Hobbes. As críticas do referido autor também se estendem às novas religiões, implantadas com a Reforma protestante, em resposta a toda uma corrupção religiosa, não sendo somente a Igreja Católica a única a desviar sua doutrina para atingir determinados interesses.
Em sua concepção apresentada no Leviatã, Hobbes defende uma aliança política entre governo civil e igreja como algo imprescindível, pelo fato de tentar conduzir um apaziguamento entre esses poderes. A intenção seria acabar com uma possível disputa, que não resulte na divisão do Estado. Nesse ponto de vista, o Estado Leviatã, serve-se tanto do poder civil de mando, quanto da importância do poder da religião, respaldado nas Sagradas Escrituras, o que reforça tão somente o medo e a obediência dos súditos em relação ao Estado. Existe, portanto a necessidade do Estado controlar os indivíduos para que não surjam interferências externas capazes de desestruturar a tríplice aliança estabelecida por Deus (revelação, profecia e razão), sobre a qual o poder civil, também se apodera, para garantir a representação desse poder divino na Terra.
Portanto, tudo o que pode ser feito entre dois homens que não estejam sujeitos ao poder civil é jurarem um ao outro pelo Deus que ambos temem, juramento ou jura que é uma forma de linguagem acrescentada a uma promessa; pela qual aquele que promete exprime que, caso não a cumpra, renuncia à graça de Deus, ou pede que sobre si mesmo recaia a sua. (HOBBES, 1979: 85).
Na verdade, a grande preocupação de Hobbes visa impedir que a religião ameace a soberania civil, isto é, evitar que os representantes religiosos distorçam o que foi escrito nas Sagradas Escrituras, na tentativa de influenciar e manipular a consciência religiosa das pessoas.
Hobbes pretende impedir que os clérigos, com suas interpretações pessoais sobre os escritos sagrados, desviassem a obediência que os súditos deviam prestar ao soberano, pois, o soberano é quem deveria exercer o poder religioso, a obediência tanto a lei civil quanto a religiosa deveria emanar de uma única fonte. Nesse ponto de vista o referido filósofo apresenta uma crítica ao modelo predominante em todo o período medieval, quando o Estado se encontrava subordinado ao poder da Igreja, sendo esta última um poder sobrenatural que deveria aperfeiçoar o poder natural (Estado) além de ser o instrumento único e possível para a salvação da alma. A concepção de Hobbes fundamenta a união e a centralização política do Estado, onde o poder civil (da espada) serve como poder coercitivo e instaurador da ordem, e nesse momento, o poder eclesiástico se torna aliado desta política monárquica e concede ao soberano manter a preservação da vida dos súditos de acordo com a temporalidade em que vivem.
Na visão laica do estado, Hobbes menciona o contrato civil intermediado pelos homens, ressaltando que a figura terrena do soberano está acima de qualquer outra e, em sua representação está depositado o poder jurídico, político e religioso, o que confirma o elo de ligação entre as doutrinas instituídas pelas leis civis e naturais, estabelecendo uma legitimidade transferida a este governante pelo direito natural, o Estado é o mediador dessa relação entre os poderes.
2.5 - Immanuel Kant: a relação íntima entre moral e religião
Immanuel Kant, considerado um dos principais filósofos do movimento iluminista, apresenta um pensamento no qual o processo de secularização parece atingir o seu momento mais significativo, ao propor um tribunal para julgamento da razão no sentido de estabelecer as suas bases de sua legitimidade para falar da verdade do mundo. No ponto de vista da concepção kantiana, o ultrapassamento das visões metafísicas e tradicionais se tornam evidentes no mundo moderno, onde tudo deve ser submetido a uma rigorosa crítica e rigor, cabendo às ciências teóricas da razão a função mostrar a certeza sobre a realidade sobre o mundo. No prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant chama atenção para o fato das pretensões da metafísica a terem levado a um infeliz desfecho na modernidade, tendo em vista as obscuridades e contradições que formaram suas conclusões.        
Pois então, a razão humana emaranha-se em obscuridades e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Em verdade, os princípios em que se baseia, uma vez ultrapassados os limites de toda experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindáveis chama-se metafísica.
Há um tempo a metafísica era chamada rainha de todas as ciências e, se tomarmos a intenção pela realidade, merecia amplamente este título honorífico, graças à importância capital do seu fim. Em nosso tempo tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo. (KANT, 2003:15).
Os iluministas estabeleceram uma perspectiva de autonomia que em todos os aspectos apresenta uma antítese em relação àquela apresentada pela Escolástica, pela tradição e pela religião, assim como pelo Antigo Regime. Tal concepção encontra-se fundada em evidências empíricas e matemáticas, as quais passaram a ser o pressuposto para a libertação do homem moderno de todas as superstições e ignorância. Nesse sentido, Immanuel Kant destaca em sua concepção o importante papel da nova visão de mundo que é dada ao homem moderno para o atingimento de sua completa autonomia.
É em Kant que o problema da autonomia ganha maior força e centralidade, ele faz uma transposição filosófica e crítica da autonomia religiosa de Lutero para a autonomia moral. Ainda Kant combina os dois sentidos usados por Maquiavel numa explicação de determinação da vontade. Autonomia, para ele designa a independência da vontade em relação a todo objeto de desejo (liberdade negativa) e sua capacidade de determinar-se em conformidade com sua própria lei que é a da razão (liberdade positiva). (ZATTI, 2007: 8).
O processo de desencantamento do mundo pelas luzes da razão transparece na síntese bem elaborada da visão kantiana em particular na forma como o referido pensador apresenta o papel da religião. Moral e religião em Kant encontram-se intimamente relacionadas, e se diferenciam apenas na linguagem utilizada para expressar os deveres, os quais são praticados como princípios fundamentais de todo ser racional, que age como membro de um sistema universal de fins, enquanto a religião, ao invés de conceber o dever como aquilo que ordena de acordo com a moral, passa a ter o seu conteúdo resumido na ideia de um ser supremo, em outras palavras, tais deveres passam a ser considerados como mandamentos divinos. Nesse sentido, o conteúdo da moral coincide com o da religião, do qual se distingue apenas segundo a forma.
2.6 - Habermas e a perspectiva da religião na contemporaneidade
Uma discussão sobre a importância do fenômeno religioso e o espaço a ser ocupado pelo mesmo no mundo contemporâneo, sem dúvida que se torna uma tarefa árdua e complexa, a qual perpassa por uma série de elementos que envolvem as mutações impostas pelos credos das grandes religiões como o cristianismo e islamismo dentro de um contexto socio-político e econômico da contemporaneidade, marcado por conflitos e guerras que tem como resultante a afirmação de ideologias fundamentalistas de um lado e até mesmo a projeção das religiões, na figura de seus representantes nas forças político-partidárias de muitos países, inclusive o Brasil. Nesse ponto de vista, não podemos ignorar o fenômeno religioso como importante elemento para a compreensão do modus operandi das sociedades atuais, em particular nas sociedades de modernidade tardia.
Habermas, seguindo uma linha de raciocínio cujo ponto central encontra-se na possibilidade de reacender as propostas iluministas que constituem o ideário da modernidade, leva em consideração que o grande problema que originou o fracasso dessas propostas está localizado no tipo de razão utilizada pelo pensamento moderno, o qual Max Weber tão pontualmente pôde identificar, ao que chamou de razão instrumental, a qual colonizou o mundo da vida, devendo a mesma ser substituída pela razão comunicativa, no sentido de que a modernidade possa cumprir seu papel. No panorama apresentado pelo referido pensador, a religião ainda possui um lugar nas sociedades modernas, na medida em que reconhece que que a mesma conserva a sensibilidade de tudo que fracassou no mundo secular, assim como a memória dos elementos de convívio pessoal e social que sofreram grandes prejuízos no processo de racionalização das sociedades, além do fato de que a solidariedade dos cidadãos é elemento imprescindível nos modelos políticos atuais, e que suas fontes podem “secar no caso de uma secularização descarrilhadora da sociedade como um todo” (HABERMAS, 2007:116). Situação em que as religiões passam a adquirir importância vital.
A grande problemática que se depreende na concepção habermasiana está relacionada à possibilidade de se traduzir o conteúdo semântico religioso para um nível de discurso da razão comunicativa, a qual foi elaborada no sentido de colocar a razão a ser implementada socialmente no processo de interação dialógica dos atores envolvidos, através do que Habermas chama de discurso. Nesse tipo de ação, cada interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se refere a fatos, normas e vivências e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada, isto é, com argumentos.
À guisa de esclarecimento, Habermas considera a religião em um nível de compatibilidade com as estruturas de pensamento pós-metafísicos, e a religião por sua vez, encontrando-se vinculada ao pensamento metafísico teria sido superada no pensamento moderno, cuja visão de mundo sustentada por uma racionalidade crescente, não apresentaria mais potencial de importância nas visões de mundo modernas. A esse respeito Habermas sustenta um posicioidnto segundo o qual, muito embora o papel da metafísica esteja superado, o mesmo não ocorre com a religião, situando-se esta numa trajetória de pertencimento à genealogia do pensamento pós-metafísico.
A proposta formulada por Habermas vai de encontro as teses que vinculam o secularismo a uma corrente que acredita que as formas de pensamento arcaico contidas nas doutrinas religiosas foram superadas e desvalorizadas através do processo de desencantamento do mundo ocorrido no ocidente.
Habermas (2007) desenvolve um esforço teórico no sentido de demonstrar historicamente todo um legado do cristianismo que o coloca como precursor dos direitos humanos e de um ideal de justiça que se estendeu ao legado do pensamento moderno e contemporâneo, fato que não pode ser desconsiderado nas pretensões de colocar o legado das religiões como um resíduo arcaico. O referido autor reconhece que tanto as Escrituras Sagradas como as tradições religiosas não podem ser desconsideradas num processo de esfacelamento dos ideias de superação da salvação, o que melhor pode ser compreendido por um apelo cada vez maior ao consumo e a uma existência que cada vez mais sofre influxo de valores negativos, orientando os indivíduos para um individualismo exacerbado, não podendo, portanto, a formação da opinião e da vontade se colocarem como um obstáculo para a linguagem religiosa, mesmo considerando a exigência de uma fundamentação pós-metafísica e discursiva das normas.
Na contemporaneidade existem muitas questões que exigem reflexões profundas, em particular aquelas que envolvem a liberdade, a vida humana, o meio-ambiente, etc., nas quais é importante que as religiões apresentem nas discursões no parlamento a sua visão, traduzindo sua linguagem de uma verdade revelada, para uma linguagem acessível, contribuindo para que as mesmas possam adquirir espaço no âmbito das agendas institucionais.
Habermas (2007) defende a ideia de que o Estado enquanto instituição secular não deve professar nenhuma religião, o que não significa que ele seja antirreligioso. A questão aqui, longe de ser contraditória, se justifica pelo fato de que numa sociedade pluralista, fundada pro um processo de ação comunicativa, tanto a visões religiosas quanto as seculares devem ser justificadas através de suas pretensões de validade.
Ao tomar o conceito “pós-secular”, Habermas (2007) leva em consideração uma forma de consciência pública em que os indivíduos atingiram um nível de compreensão normativa mais elevada, tornando possível uma relação harmoniosa entre crentes e não-crentes na busca de um ideal.
A expressão “pós-secular” foi cunhada com o intuito de prestar às comunidades religiosas reconhecimento público pela contribuição funcional relevante prestada no contexto de reprodução de enfoques e motivos desejados. Mas não é somente isso. Porque na consciência pública de uma sociedade pós-secular reflete-se, acima de tudo, uma compreensão normativa perspicaz, que gera consequências no trato político entre cidadãos crentes e não crentes (HABERMAS, 2007:126).
O conceito “pós-secular” encontra-se fundamentado, portanto, a uma evolução do processo de racionalização enquanto pressuposto de um auto-entendimento secularista das sociedades, as quais compreenderam nas instituições religiosas um elemento relevante para a vida política e social.
Ressalta-se que Habermas não apresenta de forma muito clara um aprofundamento a respeito da temática da religião em si, seu argumento se limita a mostrar que as religiões possuem intuições fundamentais e conteúdos indispensáveis, que não podem ser desprezados pela razão secular. A esse respeito, autores como Rudolf Siebert (1985) sustentam que a concepção habermasiana parece carecer de um pressuposto que lhe permita estabelecer um nível de reflexão mais profunda sobre a religião, como por exemplo os temas existenciais que se encontram nas obras de autores como Hegel, Kierkegaard, Benjamin e Adorno, entre outros. De qualquer forma, ao formular sua concepção a respeito do papel das visões religiosas, propõe que as mesmas aprendam juntamente com o espírito secular as regras de convivência universal, no sentido de que ambas as visões encontram mecanismos capazes de resolver as suas próprias patologias, em um processo que leve em conta o aperfeiçoamento da dignidade e da liberdade humana.

3. Conclusões
            Ao longo de um processo histórico, a religião sempre exerceu um papel de extrema importância na integração e coesão social das sociedades antigas e medievais, fato que irá se reverter a partir da Modernidade quando o processo de desencantamento do mundo provoca um ultrapassamento das visões tradicionais e religiosas através de um novo modelo de compreensão do mundo, o qual passa a se estruturar e se fortalecer a partir do Renascimento, o que pode ser compreendido em seus primórdios na concepção de Nicolau de Cusa ao eleger a matemático como possibilidade de uma certeza sobre o imanente, assim como a crítica a toda especulação transcendental que se estabeleceu em toda a Idade Média. Esse processo de secularização é continuado no pensamento político de Maquiavel e Galileu, estabelecendo as bases constitutivas para o novo modelo político-jurídico moderno de Thomas Hobbes, onde a religião deve ser melhor compreendida enquanto elemento que deve fortalecer a estrutura do Estado moderno e não mais como principio que fundamenta o mesmo. Na síntese mais bem elaborada do pensamento moderno, Kant procura ressaltar que moral e religião encontram-se em uma relação muito estreita diferindo-se apenas no que concerne à forma como ambas se estabelecem. Na contemporaneidade, a tentativa de dar uma resposta para a proposta da modernidade, Jürgen Habermas desenvolve sua concepção não desconsiderando o papel das visões religiosas num período pós-tradicional, rompendo, portanto, com toda uma tradição de autores que considera que o processo de secularização rompeu com as visões tradicionais e religiosas. Para Habermas, em função das religiões manterem viva a sensibilidade para o que falhou no mundo secular, preservando na memória dimensões de nosso convívio pessoal e social, nas quais o processo de racionalização social e cultural provocaram danos irreparáveis, elas constituem um ingrediente importante para o aperfeiçoamento e evolução de nossas sociedades, daí a introdução, pelo referido autor do conceito pós-secular, para caracterizar uma nova mentalidade frente a necessidade da persistência da religião e a importância da mesma para a vida social e política. Dessa forma, a concepção habermasiana, quando direcionada à temática da religião procura resgatar o papel de importância que a religião sempre exerceu ao longo da história e que não pode ser desconsiderado nos dias atuais.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cassirer, E. (2001): “indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Ed. Martins Fontes, São Paulo.
Galileu, G (1973): “O Ensaiador”. Editora Abril Cultural (Coleção os Pensadores), São Paulo.
Habermas, J (2007): “Entre Naturalismo e Religião. Estudos Filosóficos”. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.
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*Docente da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA) com atuação na área de Filosofia Contemporânea, Ética e Lógica. Doutor e mestre em Ciências Sociais, Licenciado em Filosofia e Especialista em Educação.
1 As autorictates na Idade Média eram consideradas de forma hierárquica da seguinte forma: 1) As Sagradas Escrituras; 2) Os padres e doutores da Igreja Católica; 3) Os filósofos e pensadores gregos e latinos, dos quais Platão e Aristóteles se destacam como os mais importantes no trabalho de interpretação das Sagradas Escrituras tanto na Patrística como na Escolástica.

Recibido: 20/11/2018 Aceptado: 15/03/2019 Publicado: Marzo de 2019


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