Rute Tavares dos Santos *
Cleber José de Oliveira **
UEMS, Brasil
Email: cleber101578@gmail.com
Resumo: A literatura, não raro, tem sido utilizada por escritoras/escritores como instrumento de denúncia, crítica social e espaço de reflexão sobre a condição humana. Considerando esse pressuposto, o presente artigo discute a trajetória de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo pelo direito à literatura, pelo direito de escrever. Nesse sentido, entende-se que tanto Carolina como Conceição, são escritoras emblemáticas no tocante à inserção da mulher negra na esfera dos bens simbólicos, mais especificamente na literatura. Essa presença, não sem luta, no mundo das letras que elas criaram a possibilidade de dizer não ao destino que historicamente está pré-estabelecido para as mulheres negras no Brasil. Por certo, que o desejo de Carolina em se tornar escritora reconhecida e o fato de Evaristo, hoje, estar na academia e na carreira literária podem ser vistos como um ato de engajamento sociopolítico-cultural das autoras. Para tanto, traça-se um panorama comparativo de passagens/trechos das obras Quarto de despejo e Becos da Memória onde há referências diretas ao fazer literário como sendo uma manifestação libertadora e humanizadora. Como norteadores teóricos serão utilizados os pensamentos, sobre a temática abordada, de Antônio Candido (1995), Regina Dalcastagnè (2005; 2012), entre outros.
Palavras-chave: Direito à literatura. Maria Carolina de Jesus. Conceição Evaristo. Humanização. Resistência.
Abstract: Literature, not infrequently, has been used by writers as an instrument of denunciation, social criticism and space for reflection on the human condition. Considering this assumption, the present article discusses the trajectory of Carolina Maria de Jesus and Conceição Evaristo for the right to literature, for the right to write. In this sense, it is understood that both Carolina and Conceição are emblematic writers regarding the insertion of black women in the sphere of symbolic goods, more specifically in literature. This presence, not without struggle, in the world of letters they have created the possibility of saying no to the destiny that historically is pre-established for black women in Brazil. Of course, Carolina's desire to become a recognized writer and Evaristo's being in the academy and in the literary career today can be seen as an act of sociopolitical-cultural engagement by the authors. To do so, a comparative panorama of passages / excerpts from the Works of eviction and Alleys of Memory is drawn, where there are direct references to the literary making as a liberating and humanizing manifestation. As theoretical guides will be used the thoughts, on the subject addressed, by Antônio Candido (1995), Regina Dalcastagnè (2005, 2012), among others.
Key-words: Right to literature. Maria Carolina de Jesus. Conceição Evaristo. Humanization. Resistance.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Rute Tavares dos Santos y Cleber José de Oliveira (2019): “Literatura e periferia: María Carolina de Jesús e conceição evaristo, reinvindicações socioliterárias”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (marzo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/03/literatura-periferia.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1903literatura-periferia
Introdução
Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. O livro me fascina. Os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei à conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é a bussola que há de orientar o homem no porvir.
Carolina Maria de Jesus
Eu não nasci rodeada de livros e, sim, rodeada de palavras. Desde pequena, em minha casa, se mantinha o hábito da contação de histórias, inclusive, as de tradição africana.Tudo que eu escrevo é profundamente marcado pela condição de mulher negra.
Conceição Evaristo
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista. O artista cidadão. A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Sergio Vaz
A literatura brasileira ao longo de sua existência, tem sido utilizada por autores e autoras como instrumento/veículo eficaz de manifestação de seus posicionamentos sócio-artístico e ideológicos. Partindo desse pressuposto, discutir-se-á aqui a importância da literatura na vida de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946-), isso sob a perspectiva das seguintes obras: Quarto de despejo (1960) e Becos da Memória (2006), respectivamente. Além disso, lança luz sobre o posicionamento engajado das referidas autoras que, não raro, está centrado na crítica social e vinculado à uma estética de essência periférica. Ressalta-se que tal estética ainda está em plena construção.
De modo mais especifico expõe-se a transformação nas histórias de vida dessas mulheres/autoras proporcionada pelo contato com a literatura. Pensar criticamente o rumo que suas vidas tomaram posteriormente ao referido contato e o reconhecimento de ambas como escritoras no campo literário, é um dos objetivos centrais desse texto.
Carolina e Conceição, de fato e à revelia de muitos, tomam de assalto a literatura e a constituem como instrumento de mudança positiva nos seus destinos que historicamente estavam fadados ao trabalho braçal em detrimento ao labor intelectual. É importante pensar que na história literária brasileira a representação desses grupos e os locais onde vivem foram constituídas, de modo geral, por autores que não pertenciam a mesma classe socioeconômica e cultural da qual as autoras, aqui analisadas, são oriundas, como nos informa Candido
A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada vez mais o lado social, como aconteceu no Naturalismo, que timbrou em tomar como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão, o desvalido, a prostituta, o descriminado em geral (CÂNDIDO, 1995, p.254).
Cabe considerar que em paralelo a perspectiva apontada por Candido, nas últimas décadas do século XX, grupos minoritários rechaçam os estereótipos vinculados pela representação literária de si produzidas por autores provenientes dos extratos sociais periféricos, isto é, agora autores/autoras originários das periferias reivindicam o poder de se autorrepresentarem, de falarem de si. Ao fazerem isso, (de) marcam seu lócus de enunciação social e demográfico. Ademais, configuram-se como produtoras de um viés literário capaz de retratar com mais legitimidade suas comunidades. Nessa perspectiva, as obras de Carolina e Conceição, podem ser entendidas como exemplos concretos dessa reivindicação/demarcação, isso na medida em que (re)apresentam os modos de vida dos sujeitos na periferia, agora, porém, não sob uma perspectiva de um outro externo, e sim, sob a de quem está dentro dele, inserido.
Desse modo, essa literatura promove uma consciência de coletividade. Mais ainda, busca criar uma espécie de “sentimento de pertença” (HALL, 2003; 2004) em seus interlocutores que, a priori, trazem as mesmas cicatrizes históricas de seus produtores. Ao se verem retratados pelas/nas escrevivências de Carolina e Conceição que, ao falarem da fome, não é só à fome delas que se referem, mas sim do sentimento de impotência de milhares de pessoas que passam por situações de miséria, humilhação e desprezo por parte do corpo social.
Como se sabe, a realidade social brasileira, configura-se a partir de uma desigualdade gritante entre as classes sociais que a compõem, como apontam dados recentes do IBGE, 2017 (os quais serão apresentados mais a frente). Nesse sentido, a produção de Carolina e Conceição possibilitou e ainda possibilita a aproximação de outros periféricos ao fazer literário. Mas não daquele que por séculos foi utilizado como instrumento de dominação e segregação, e, sim de uma na qual projeta esse sujeito ao centro da cultura nacional, ainda que à revelia de muitos. Por certo, que essa postura pode se tornar algo mais próximo da realidade dos periféricos, podendo ser de grande valia para que surjam novos talentos vindos das partes desprezadas das cidades, com as mesmas experiências das autoras. Talentos que podem servir de grande auxílio para um povo que no momento está praticamente mudo, com pouca voz, pouca chance de dizer que também sabe escrever, que sabe falar, que possui capacidade de ocupar lugares de destaque nas prateleiras das bibliotecas. Mas para isso é preciso ser visto, ouvido e respeitado.
Nesse sentido, a pesquisa vem expor a maneira como as pessoas de um devido corpo social podem apoderar-se da literatura para fazer com que suas vozes sejam ouvidas. Este trabalho é significativo porque apresenta a modificação que a literatura é capaz de realizar na vida das pessoas da periferia. E mostra o quão são grandes e ricas as produções que ocorrem nestes espaços sociais. As obras de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo abordadas aqui são exemplos disso.
Para tanto, traça-se um panorama comparativo de passagens/trechos das obras Quarto de despejo e Becos da Memória nas quais as autoras explicitam o seu fazer literário como manifestação libertadora e humanizadora. As reflexões desenvolvidas ao logo deste artigo serão norteadas pelo pensamento teórico de Antônio Candido (1995), Regina Dalcastagnè (2005; 2012), entre outros.
Autoras e obras
Carolina Maria de Jesus, mulher negra, catadora de lixo nas ruas de São Paulo, solteira, mãe de três filhos, pouquíssima escolaridade, nasceu em 1914 em Minas Gerais. Com sete anos, ingressou no colégio Alan Kardec onde cursou a primeira e a segunda séries do ensino fundamental. Sempre teve vontade de escrever, guardava boa parte das revistas e jornais que recolhia como lixo, lia tudo que conseguia, começou a escrever em papeis velhos que vinham nos materiais que ela juntava nas ruas.
Um dia, recebeu a visita do repórter Audálio Dantas, do jornal Folha da Noite, que fazia um trabalho sobre a favela do Canindé em São Paulo onde ela estava morando em 1947. Ele ficou surpreso ao ter contato com as escritas de Carolina. Em 1960 foi publicado Quarto de Despejo: diário de uma favelada com tiragem inicial de dez mil exemplares. Neste trabalho, Carolina conta de maneira pura e sem maquiagem, a rotina da favela do lugar onde mora e como é conviver com a fome. É narrado em primeira pessoa, abordando também o cotidiano de outros moradores que ali viviam. Durante a narrativa são apresentadas situações de humilhação que os favelados sofrem e também personagens como Arnaldo dono da venda onde ela compra pão para seus filhos, sua filha Vera Eunice, entre outros.
Conceição teve muitos problemas de ordem pessoal para conciliar o trabalho de empregada doméstica com seus estudos e aos 25 anos de idade terminou o curso normal que hoje corresponde ao Ensino Médio. Não parou mais de estudar, se formou em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Publicou seu primeiro poema em 1990, no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, editado pelo grupo “Quilombohoje”, de São Paulo. Foi tema da Ocupação do Itaú Cultural de São Paulo em 2017. Uma das principais expoentes da literatura Brasileira e Afro-brasileira atualmente, Conceição Evaristo tornou-se também uma escritora negra de projeção internacional, com livros traduzidos em outros idiomas. Entre tantas obras publicadas Becos da Memória é a que será abordada aqui por entendermos que ela, de modo geral, é uma espécie de metonímia (parte pelo todo) do fazer literário de Conceição.
A referida obra foi publicada em 2006,em sua narrativa é apresenta, em vários momentos, uma alternância da primeira para terceira pessoa do discurso. É marcada por uma prosa poética que traz à tona as memorias de pessoas, lugares, fatos ocorridos, sentimentos, etc. Ademais, Conceição apresenta personagens como Maria Nova que é a protagonista e narradora da história, Nazinha sua amiga, tio Tótó, Vó Rita, Maria Velha tia de Maria Nova, mãe Joana, mãe de Maria Nova, Negro Alírio, um rapaz que chega na favela e é bem recebido e ajudado por grande parte das pessoas dali, Bondade, entre tantos outros personagens que dão vida ao romance.
Nesse sentido, portanto, ao nosso modo de ver, tais obras e autoras estão em linha com uma reivindicação histórica feita pelas classes populares, a saber: o direito à literatura, isto é, reivindicam o poder de produzirem sua própria literatura, de falarem por si e sobre si ao passo que também falam do/ao outro.
O sujeito periférico e o direito à literatura
Como se sabe, historicamente no Brasil, as classes populares foram e ainda são cerceadas de participarem das decisões que norteiam os rumos do país. Essas classes são compostas em sua grande maioria por negros e pardos, os quais foram e ainda são interditados no seu espaço individual e coletivo pelo sistema escravocrata.
Os resquícios da escravidão são explicitados nos dados publicados pelo IBGE (2017), e apontam que a realidade vivida pelas comunidades periféricas é de muita miséria e pouca diversão. No tocante à desigualdade social no Brasil, os dados apontaram que esta vem aprofundando gradativamente nas últimas décadas, embora o instituto reconheça que houve um momento de avanço no que diz respeito a acessibilidade aos bens de consumo e o ingresso dos mais pobres no ensino superior. No entanto, isso não se deu em relação à esfera cultural, e por isso não promoveu mudanças positivas na vida das camadas sociais mais vulneráveis.
Segundo o instituto, quando se olha sob a perspectiva étnico-racial: os trabalhadores pretos ou pardos respondem pelo maior número de desempregados, têm menor escolaridade, ganham menos, moram mal e começam a trabalhar bem mais cedo, exatamente por terem menor nível de escolaridade. Estão entre as pessoas com os 10% menores rendimentos do país, a parcela da população de pretos ou pardos chega a 78,5%, contra 20,8% de brancos. No outro extremo, dos 10% com maiores rendimentos, pretos ou pardos respondiam por apenas 24,8%. Outro recorte relevante é dos arranjos domiciliares, no qual a pobreza - medida pela linha dos US$ 5,5 por dia - mostra forte presença entre mulheres sem cônjuge, com filhos de até 14 anos (55,6%). O quadro é ainda mais expressivo nesse tipo de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64%), o que indica, segundo o IBGE, o acúmulo de desvantagens para este grupo que merece atenção das políticas públicas.
Estes dados ao explicitar a condição espoliante e subumana em que vivem as comunidades periféricas, explicitam também a necessidade da literatura em suas relações socioculturais. Nesse sentido o fazer literário tornar-se um ato de resistência e revide contra essa condição, ao passo que se configura também num espaço de acolhimento para produtores e leitores.
Nesse sentido, concordando com Candido (1995), a importância da literatura para o ser humano é inegável. Para os sujeitos periféricos torna-se ainda mais potente e necessário o acesso ao mundo da escrita. Exemplo disso pode ser entrevisto no trecho a seguir de Becos da Memória:
A menina ia à procura, à caça de algo e não queria voltar de mãos vazias. Olhou a tia, Maria velha, a mãe e os irmãos, e sentiu que era preciso caminhar junto com eles, arrumando, consertando, melhorando a vida. [...]. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria Nova um dia escreveria a fala de seu povo (EVARISTO, 2006, p. 177).
Aqui o narrador manifesta o desejo da personagem em registrar as próprias histórias. A autorrepresentação, o poder de falar por si é um poder que a muito tempo foi negado os sujeitos periféricos, causando assim uma segregação física como simbólica. Como se sabe, após o fim da escravidão, muitos brasileiros, sobretudo os negros, não tiveram garantias de condições reais de trabalho, moradia, alimentação e vestuário.
Na contramão dessa segregação, Antônio Candido (1995) afirma que a literatura deve ser entendida como um direito humano, isto é, de todos os grupos humanos em todos os tempos, pois todos sem exceção são capazes de produzi-la. Aponta ainda que a literatura é instrumento poderoso de conscientização e humanização, pois ajuda a pensar dialeticamente sobre nossas relações internas e externas com o outro e com o mundo ao redor. Nas palavras do autor
A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas (CANDIDO, 1995, p.243).
Como se vê, Candido faz uma aproximação entre direitos humanos e literatura. Nesse sentido, aceitar que a literatura pode ser entendida como um direito é indispensável entender que ela não seja apenas um direito de alguns. Mais ainda
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza (CANDIDO, 1995, p. 256).
Ao enfatizar que a literatura é uma necessidade universal de todos os seres humanos e que esta tem o poder de humanizá-lo e libertá-lo do caos, o referido autor nos dá uma chave para pensarmos sobre como a desigualdade social, tão avassaladora em nosso país, acaba sendo uma das principais dificuldades para concretizar como direito de todos.
No entanto, mesmo com essa constatação cruel, há aqueles que à revelia da miséria e dos procedimentos de exclusão a que são expostos reivindicam para si o direito à literatura, o direito de acessar esse “capital cultural” (BOURDIEU, 1989). Nesse sentido,entendemos que esse efeito poderoso de transformação, ao qual Candido faz referência, fez toda diferença na vida de Carolina e de Conceição. Mulheres com diferenças e semelhanças entre si, que se serviram da arte de escrever para se colocarem na condição de elemento principal de suas histórias ao invés de simples personagens secundárias das escritas, como acontece na maioria das vezes com o negro pobre. Mulheres que fizeram da literatura uma arma contra o destino de miséria.
Na contramão dessa realidade, a obra Becos da Memória mostra que é impossível apagar a trajetória dos africanos e de seus descendentes no Brasil, porque por meio da recriação de uma fatia dessa história, ela retira o negro da invisibilidade. Além disso, o próprio processo de escrita da obra, no qual uma narradora negra assume a escrita, pode ser pensado como resultado de um ato de transformação da marginalização em poder, na medida em que encena uma situação em que o periférico se apodera da palavra artística e por meio dela se revela.
Por certo que o mesmo acontece com Quarto de Despejo. Já que a mulher negra e favelada, com pouca escolaridade, registra o cotidiano de pobreza que rege seus dias, bem como a humilhação social e moral a que estão sujeitos os habitantes da favela do Canindé. As anotações feitas, embora com descontinuidades cronológicas, não apresentam quebras na estrutura narrativa: cada dia é igual a todos os outros, e o que conduz o fluxo da vida é a fome e a luta contra ela. Nelas se pode constatar que o trabalho, precário, não traz mais do que a condição mínima da sobrevida e a reprodução da pobreza. Nos apontamentos de seu dia-a-dia, Carolina Maria de Jesus oscila entre desânimo e alegria, sentimentos norteados pela carência de condições materiais para manter-se e a seus filhos em situação digna. Ao tratar dos outros moradores da favela, Carolina busca diferenciar-se e deixa documentada, em tom de denúncia ou de moralização, a perda da honra daqueles que, excluídos, estão no "quarto de despejo" da cidade.
Nessa perspectiva, escrever sobre a favela não é apenas uma forma de tentar dar sentido à própria vida, mas também de revelar a miserabilidade implicada nas relações sociais e nos modos de vida que se configuram a partir das comunidades periféricas e também fora delas. Os relatos do cotidiano, contidos nas narrativas das referidas autoras, é direto, é nu, é cru. Como se pode constatar no trecho a seguir de Becos da Memória:
Nazinha sentia dor, sangue, sangue, sangue... Era como se a vida lhe estivesse fugindo, a começar por aquele ponto entre as pernas. O homem tapou-lhe a boca e gozou tranquilo. [...] Tetê do Mané vendeu a filha. O homem comprou com dinheiro roubado (EVARISTO, 2006, p. 38).
Aqui o que se revela nesse trecho é um estupro permitido pela mãe de Nazinha, amiga de Maria Nova. O ambiente de violência a qual estão inseridas as personagens é também revelado. A violência física, sexual e psicológica é retratada de forma nua e crua. Numa espécie de dialética do horror as personagens são movidas a cometerem atrocidades e serem vítimas dela, algumas vezes movidas pela necessidade financeira, outras por uma certa ausência de caráter. Nesse sentido, pode-se dizer que a narrativa não se isenta de pôr em debate temas que ainda são tabus na sociedade, tais como a ocorrência de incestos e de relações promíscuas, bem como o horror que a fome pode produzir.
Além disso, observamos que há momentos em que as personagens são inundadas de uma comiseração de alteridade. Um sentimento “lírico coletivo” (OLIVEIRA, 2012), característico das obras periféricas, toma espaço e aparece como fator de humanização, como espaço de remissão e, sobretudo, de resistência em contraponto ao estado de miserabilidade a que são confinadas as comunidades periféricas, como pode ser constatado no trecho a seguir:
escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, [...] aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. [...] Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela (EVARISTO, 2006, p. 17).
Aqui novamente se vê, de modo geral, que nas narrativas periféricas, falar de si é falar do e ao outro. Até porque, expor o que pensa e sente é algo inerente e necessário ao ser humano. Por certo, que a literatura pode e deve ser utilizada para esse fim (CANDIDO, 1995).
As referidas obras podem servir, quando lidas por habitantes da periferia, como um espelho para esses. Assim, elas não escrevem por escrever, elas relatam o cotidiano de milhares de brasileiros e brasileiras que não raro se veem imersos a problemas de ordem física, psíquica e social, por certo a fome, a discriminação, o racismo e a exclusão são os mais graves. Entendendo que “periferia é periferia em qualquer lugar”, ao narrarem suas dores e a miséria que viveram elas configuram em suas narrativas aquele sentimento de pertença apontado por Hall (2003). Assim, como dito anteriormente, ao falarem de si, falam também ao/do outro.
Portanto, pensar em Maria Carolina de Jesus e Conceição Evaristo como escritoras, é pensar numa produção que tem no seu cerne a luta pelo direito de ser sujeito da escrita, e não apenas tema dela. Nesse sentido, fazem valer, ainda que à revelia do cânone, a liberdade de suas vozes literárias. Tonaram-se enunciadoras de suas próprias histórias.
O fazer literário como espaço de resistência
O corpo social periférico está e sempre esteve repleto de vozes ansiando por ouvidos atentos. As pessoas que representam este espaço social, e que apreciam literatura, sabem que tem o direito de escrever e estão carregadas de experiências prontas para serem contadas. Por vezes, a produção literária oriunda dos periféricos, vem para quebrar o silêncio (DALCASTAGNÈ, 2012).
As produções que emanam desse espaço representam as singularidades e as urgências de suas comunidades ao passo que denunciam o sistema que lhes oprimem. Sua estética é constituída a partir de uma linguagem própria a qual acentua dicção de seus representantes. Por isso, a formula literária desenvolvida por Carolina e Conceição estão para além de serem apenas um retrato da desigualdade social e/ou relato testemunhal. É estética literária. É arte. Entendendo com Dalcastagnè sobre tal produção
Ler Carolina Maria de Jesus como literatura, colocá-la ao lado de nomes consagrados, como Guimarães Rosa, Clarice Lispéctor, em vez de renegá-la ao limbo do “testemunho” e do “documento”, significa aceitar legitima, sua dicção, que é capaz de criar envolvimento e beleza, por mais que se afaste do padrão estabelecido pelos escritores da elite (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 21).
Na citação, a autora aponta que o valor estético da produção de Carolina, que por certo pode ser estendida para a de Conceição. A representação das relações sociais, culturais, políticas e econômicas em obras como Quarto de despejo e Becos da Memória é feita agora a partir da perspectiva daqueles que, por vezes, foram limitados historicamente do poder de participar das decisões que norteiam os rumos da nação. Com isso, resgata e reimprime, atualmente, na estética literária nacional o caráter de resistência e engajamento (SARTRE, 1989).
Ademais, as produções literárias periféricas apresentam uma gama de temáticas que estão intrinsecamente ligadas à vida cotidiana de suas comunidades. Entre os temas abordados pela literatura periférica, a fome ganha destaque. Tal tema tem presença constante na obra de Carolina de Jesus Quarto de Despejo
15 de julho de 1955 Aniversário de Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. [...] Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu levei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. 16 de julho Levantei. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar água. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão" (JESUS, 1960, p.09).
Na vida da periferia, tudo se torna amargo quando o assunto é a fome, a miséria, o descaso. Essas são situações que trazem aos habitantes da comunidade experiências únicas, que só pessoas em condições extremas de pobreza, podem apresentar à literatura. Carolina e Conceição são pessoas que representam esses moradores. Suas obras englobam todos os lados da periferia. Cada beco, cada rua escura, cada barulho na calada da noite, os crimes e os criminosos.
A condição subumana vivida também é retratada na obra de Carolina, como nos mostra o trecho a seguir
Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados (JESUS, 1960, p. 29).
Como se vê nesse trecho, a autora foge das estruturas formais dos cânones, isto é, aquilo que se considera "literatura" nos meios acadêmicos. Ressalta-se que, ao nosso modo de ver, Quarto de Despejo é mais do que um simples depoimento. Trata-se de uma obra em que, a despeito das condições materiais e culturais de sua autora, constrói-se uma forte e única representação da dinâmica social urbana, vista pelo ângulo dos que são lançados à margem. Carolina escreve para denunciar a favela e para sair dela; escreve também para, diferenciando-se dos outros moradores, lutar contra o rebaixamento a que estão sujeitos os miseráveis, num momento em que se anuncia novo salto modernizador de São Paulo e do Brasil da década de 1960. Mas não é só isso que as obras das referidas autoras, e também de outros autores, são capazes de fazer positivamente pelos desassistidos sociais.
Outra questão benéfica é a capacidade de humanização que ela – a literatura – tem com relação a esses sujeitos. Ademais, mostra que dentro da favela existem muitas cabeças pensantes, inúmeras pessoas com talento para o cunho artístico, seja no campo literário ou em outros, e não apenas criminosos como muitas vezes é repassado por meio da mídia.
Na maioria das vezes, as classes desfavorecidas não têm esse acesso à palavra literária, e suas necessidades, angústias, seus eventos corriqueiros, opiniões e tantas outras expressões são adiadas e até mesmo esquecidas por aquele que detém o majoritário poder de representar, por meio do discurso literário, o social. É nessa dialética que a literatura produzida por Conceição e Carolina caminharam e caminharão. Isso na medida em que nos possibilita observarmos dialeticamente a problemática social brasileira na atualidade. Portanto, a estética literária de ambas está para nós como um espelho está para a imagem que nele se reflete.
Considerações finais
Embora a literatura brasileira, como se viu, foi consolidada desde sua origem como privilégio das classes sociais letradas e abastadas, isso por gozar do status de bem cultural intelectual (BOURDIE, 1989; CANDIDO, 1995); vimos que nas últimas décadas artistas oriundos das periferias urbanas brasileiras reivindicam o poder de produzirem sua própria representação. Reivindicam o direto à literatura.
Mais ainda, constatamos que a literatura atuou na vida de Carolina e ainda atua na de Conceição como instrumento de humanização e resistência frente a excludente realidade a qual estão inseridas. Não obstante, tornou-se uma espécie de ferramenta amplificadora de suas visões de mundo que, não raro, se materializa como um retrato realista da condição de milhares de pessoas oriundas das periferias. Nesse sentido, é possível entrever que produzir literatura, para tais autoras, vai além de ser um simples desejo de escrever, isto é, o fazer literário é uma oportunidade de se manifestar como sujeito sócio-histórica pleno em sua individualidade e coletividade.
Diante do que foi posto ao longo do texto, podemos concluir que a prática da leitura e o ato da escrita desempenham um papel transformador para Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. É através da escrita que elas formulam e reformulam sua realidade periférica, processam e reprocessam suas dores e angústias. É na leitura que elas transcendem a sua condição; é através da escrita que elas alcançam o sonho da casa de alvenaria. Escrever é denunciar, é trazer à tona o subalterno. Ler é uma forma de imaginar-se outra, em outro lugar. Escrever é uma prática constante, forma de desabafo. Em última análise, Quarto de despejo e Becos da Memória são frutos de um processo duplo: leitura e escrita.
Por fim, tomando como exemplos a produção literária de Carolina e Conceição, entendemos ser extremamente necessário (re) conhecer e validar a literatura que está sendo produzida nas margens da sociedade. Com suas histórias ricas de resistência e invisíveis aos olhos das classes dominantes. Nesse sentido, autoras e obras são relevantíssimas para uma compreensão mais ampla e profunda da vida brasileira e suas mazelas. Assim, é preciso reconhecer que não podemos mais negar o direito à literatura para as classes populares.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand,1989.
CANDIDO, Antônio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
_____________. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.
DALCASTAGNÈ, Regina. “Constrangimento Discursivo e Estratégias de Legitimação na Literatura Brasileira Contemporânea”. Brasília- DF, 2005.
_____________. Literatura Brasileira Contemporânea um território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte, 2006.
HALL, Stuart. A questão multicultural. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
___________. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo diário de uma favelada. Rio de Janeiro, 1960.
OLIVEIRA, Cleber José de. “A poesia contemporânea do rap: entre o eu (individual) e o nós (coletivo)”. Terra roxa e outras terras revista de estudos literários PPG-UEL. Londrina, 2012, p. 17-31.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. São Paulo: Ática, 1989.
Sites consultados:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza.
https://www.ebiografia.com/carolina_maria_de_jesus/.
http://www.palmares.gov.br/conceicao-evaristo