Emerson Silva Meneses*
Martin Jayo**
Cláudia Regina Garcia Vicentini***
Universidade de São Paulo, Brasil
Email: emer.meneses@gmail.com
Resumo: O artigo discute a relação entre vestuário e homossexualidades masculinas ao longo da história do Brasil, evidenciando diferentes formas pelas quais a moda contribuiu, ao longo do tempo, tanto para a construção como para o silenciamento de identidades homossexuais. Propõe uma periodização, distinguindo quatro momentos característicos dessa relação. A análise torna possível ver como o vestuário: (i) desde o século XVI já desempenhava um papel na construção de identidades sexuais dissidentes; (ii) teve atribuído um papel relevante no discurso médico e jurídico sobre a homossexualidade do final do século XIX e início do XX; (iii) foi um vetor importante na criação do homem gay hegemônico enquanto identidade homossexual bem aceita no final do século XX; e, finalmente, (iv) tem cumprido função central como instrumento de afirmação de identidades homossexuais contra-hegemônicas no início século XXI.
Palavras chave: Homossexualidade; masculinidade; gênero; vestimenta; moda; história.
Resumen: El artículo discute la relación entre vestimienta y homosexualidades masculinas a lo largo de la historia de Brasil, evidenciando diferentes formas por las cuales la moda ha contribuído tanto para la construcción como para el silenciamiento de identidades homosexuales. Propone una periodización, distinguiendo cuatro momentos característicos de esa relación. El análisis hace posible ver cómo la ropa: (i) desde el siglo XVI, ya desempeñaba un papel en la construcción de identidades sexuales disidentes; (ii) ha tenido un papel relevante en el discurso médico y jurídico sobre la homosexualidad, en fines del siglo XIX e inicio del XX; (iii) fue un vector importante en la creación del hombre gay hegemónico como identidad homosexual bien aceptada, a finales del siglo XX; y finalmente (iv) ha cumplido una función central como instrumento de afirmación de identidades homosexuales contrahegemónicas a principios del siglo XXI.
Palabras clave: Homosexualidad; masculinidad; género; vestimienta; moda; historia.
Abstract: The paper discusses the link between dress and male homosexualities throughout Brazilian history, highlighting different ways in which fashion has contributed both to the construction and to the silencing of homosexual identities. It proposes a periodization, identifying four representative moments of such relation. The analysis makes it possible to see how clothing: (i) since the sixteenth century has played a role in the construction of dissident sexual identities; (ii) had a relevant role in the medical and juridical discourse on homosexuality of the late nineteenth and early twentieth centuries; (iii) was an important vector in the creation of the hegemonic gay man as a well-accepted homosexual identity in the late twentieth century; and finally (iv) has played a central role as an instrument for the affirmation of counter-hegemonic homosexual identities in the beginning of the 21st century.
Keywords: Homosexuality; masculinity; gender; dress; fashion; history
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Emerson Silva Meneses, Martin Jayo y Cláudia Regina Garcia Vicentini (2019): “Entre demonstrar e dissimular: notas sobre o papel do vestuário na expressão de homossexualidades masculinas na história do Brasil”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (marzo 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/03/homossexualidades-masculinas.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1903homossexualidades-masculinas
Introdução
Este artigo pretende discutir a histórica vinculação entre o vestuário e homossexualidade masculina ao longo da história do Brasil, evidenciando as diferentes formas pelas quais as vestimentas contribuíram tanto para a construção como para o silenciamento de identidades homossexuais. Para tanto, o trabalho aborda a evolução do papel dos códigos vestimentares na demonstração e dissimulação da homossexualidade masculina, em uma sociedade que, em diferentes momentos históricos e em diferentes graus, se caracterizou por tolerar ou aceitar a homossexualidade desde que esta se encaixasse em padrões heteronormativos ligados à imagem de um corpo masculino idealizado, subalternizando masculinidades contra-hegemônicas ou dissidentes.
A análise se baseia em fontes bibliográficas e documentais. A partir dela distinguimos quatro momentos característicos da relação entre indumentária e homossexualidade masculina no Brasil: (i) as relações entre travestimento e "sodomia" no período colonial e no Brasil Império; (ii) o “homossexual patologizado” do final do século XIX e início do XX, (iii) o “gay aceito” do final do século XX, e (iv) a “nova bicha” do início do século atual.
Estes momentos, que compõem uma proposta de periodização para a relação entre vestuário e homossexualidade masculina no Brasil, correspondem às quatro seções que, juntamente com esta Introdução e as Considerações Finais, definem a estrutura do artigo.
1. Travestimento e sodomia na colônia e no império
As primeiras manifestações da histórica relação entre vestuário e homossexualidades no Brasil datam do período colonial. Um dos primeiros registros, que encontramos em Vainfas (2010), é o de “Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro na Bahia do século XVI", denunciado à Santa Inquisição por "‘usar o ofício de fêmea’ nas relações que mantinha com outros negros." (VAINFAS, 2010, p.218, grifo no original).
Embora a historiografia costume retratar Manicongo como homem homossexual, parece certo que, hoje, a personagem não seria considerada como tal mas sim como uma travesti. Para Vainfas (2010), Manicongo era um "homem que causava espécie circulando naqueles trajes pelas ladeiras de Salvador (p.220), Para Mott (2005), Francisco era um "quimbanda [...] escravo na Bahia [que] certamente já vivenciava no continente negro sua orientação homoerótica" (Mott, 2005. p.14). Apenas mais recentemente a sua identidade tem sido revista, e hoje a personagem é chamada por alguns de Xica Manicongo (VIEIRA, 2017), como forma de reconhecer-lhe uma provável identidade feminina silenciada por séculos. Seja como for, o registro torna possível depreender a adoção da vestimenta feminina por indivíduos de sexualidade dissidente desde o Brasil colônia, época em que as categorias atuais de identidade e orientação sexual estavam muito longe de se desenvolver.
Mas é nas artes cênicas que a relação entre moda, homossexualidade e travestimento se manifestará mais intensamente, nos primeiros séculos da história do Brasil. Até fins do século XIX, por ser uma atividade extremamente marginal, a cena teatral no país caracterizou-se por ser um território eminentemente masculino, interdito a mulheres – ao menos as de “boa fama".
Relegadas à reclusão doméstica, mulheres gozavam de “má fama ao se exporem à curiosidade pública, do alto de um palco” (TREVISAN, 2018, p. 222). Mesmo após a chegada da família real portuguesa em 1808, que começou a conferir ao teatro um maior valor sociocultural, a presença de atrizes era escassa, e os papéis femininos, com raras exceções, continuaram sendo desempenhados por homens (MENESES e JAYO, 2018). Nesse contexto, o travestimento cênico era uma prática comum, estendendo-se do século XVII ao século XIX (TREVISAN, 2018). O uso de indumentária feminina por atores homens, embora não implicasse necessariamente a homossexualidade destes, podia em muitos casos ser uma chance de se exercer essa homossexualidade em público, ao menos em atividade artística. Trevisan (2018) conta que “consagrada no ambiente teatral, a prática profissional do travestismo ocorria num contexto social nada inocente de disseminação da pederastia, que com certeza lhe adicionava conotações não exclusivamente profissionais (TREVISAN, 2018, p.229).
O médico higienista José Ricardo Pires de Almeida, sobre quem discorreremos mais detalhadamente a seguir, também reportou exemplos de pederastas célebres do século XIX, muitos deles artistas, que faziam uso de indumentária feminina. Entre eles o chapeleiro Traviata, “efeminado ao extremo, sempre mostrando seu rosto bexigoso pintado de branco-pérola e carmim” (TREVISAN, 2018, p.229), e o ator Telles, “uranista provecto” que se cercava de “artistas noviços, aos quais vestia de dama nos espetáculos” (TREVISAN, 2018, p.230). Percebemos com isto que as formas indumentárias há muito tempo têm uma vinculação com a sexualidade, desempenhando, desde o Brasil colonial, um papel na construção e na compreensão de identidades homossexuais.
2. Fins do século XIX e início do XX: o homossexual patologizado e a roupa do doente
Nos séculos XIX e XX, a homossexualidade e as formas vestimentares a ela associadas ingressam na agenda das ciências médicas, passando a ser vistas como transtorno ou patologia. Estudos de caráter científico, como os do médico brasileiro José Ricardo Pires de Almeida (1843-1913), descrevem os modos de ser, comportar-se e também de vestir dos homossexuais.
Em 1872, outro médico, Francisco Ferraz de Macedo (1845-1907), desenvolve um dos primeiros trabalhos que abordam a homossexualidade masculina sob esta nova ótica. Está presente nele o discurso médico que conecta a homossexualidade à doença, mas também a preocupação em relação ao vestuário homossexual. Ferraz de Macedo descreve um padrão de vestuário típico dos homossexuais masculinos:
"Assim, não é raro encontrarmos pelas ruas da cidade, especialmente nas portas dos teatros, quando há espetáculo, rapazes de 12 a 20 anos, trajando fina bota de verniz, calça do mais fino tecido unida ao corpo, feita assim expressamente para desenhar-lhe as formas, paletot justo, elegante e curto, fina camisa bordada, tendo para ornato olhos de mosca de brilhante e pendente lencinho de seda de cor (geralmente vermelho ou azul); chapéu alto de castor branco, colocado por cima da frisada e perfumada cabeleira; cavour de custoso pano forrado de seda, pendendo do braço; rica bengala, luneta relógio e corrente de ouro, luvas de pelica e aromático charuto de Havana: eis o que completa o arreamento de um bagaxa dos mais encantadores, dos mais frequentados do Rio de Janeiro” (Ferraz de Macedo, 1872, apud GREEN e POLITO, 2004, p.28-29).
Há nessa descrição um recorte de classe, sugerindo que o homossexual masculino mais visível do Rio de Janeiro do século XIX, ainda que se prostituísse (o que nos é indicado pelo termo "bagaxa") tinha nível socioeconômico condizente com a manutenção de gostos tão refinados. Ao mesmo tempo, o médico estudioso do “homossexualismo” parece entender que essa era a forma vestimentar apropriada para seduzir e arregimentar parceiros. Interessa-nos, porém, perceber o possível tom político dessas escolhas indumentárias: ao decidir sobre essa maneira no vestir-se para explicitar sua sexualidade em um contexto em que a homossexualidade era vista com enorme censura social e recebia a repressão de órgãos do Estado, essa escolha não estaria calcada apenas na busca de parceiros sexuais, mas também representava uma explicitação da identidade social por meio da moda, além de ser reconhecido para pertencer a um grupo.
Além de médicos, também juristas tentaram caracterizar a homossexualidade a partir dos modos de vestir. Um estudo de Edmur de Aguiar Whitaker, intitulado O Crime e os Criminosos à Luz da Psiquiatria e da Psicologia (1942), refere-se à indumentária homossexual, que seria desenhada para facilitar as práticas sexuais. O homossexual típico usava “calça alta, não apresentando abertura anterior e sim lateralmente, simulando bolsos, porém sem fundos”, o que faria supor tratar-se de um recurso para facilitar o acesso ao órgão sexual. De forma análoga, caso se desabotoassem “os suspensórios posteriormente, a parte respectiva da calça cai, deixando as nádegas à mostra” (Whitaker, 1942, apud GREEN e POLITO, 2004, p.103).
Finalmente, vale o registro de que a indumentária, neste período, não foi usada apenas para diagnosticar e criminalizar homossexuais, mas também foi pensada como instrumento para auxiliar na “cura”. O já citado médico Pires de Almeida, em seu livro Homossexualismo (1906), recomendava que os homossexuais passassem por um tratamento que consistia em “provocar o coito do invertido com mulheres vestidas de homem” (Pires de Almeida, 1906, apud GREEN e POLITO, 2003, p.106).
3. Final do século XX: o “gay aceito”
Se a até meados do século XX a moda reservava para homens e mulheres vestimentas marcadamente distintas, na passagem entre as décadas de 1960 e 1970 as fronteiras entre indumentária feminina e masculina se tornaram menos rígidas. O fenômeno estava ligado à revisão do papel da mulher na sociedade, no contexto da chamada revolução sexual dos anos 1960. É neste contexto que surge na indústria da moda a ideia da moda “unissex”, termo cunhado na França em 1969 e que não tardou a ser trazido ao Brasil. O que se propunha era um rompimento das barreiras entre os padrões de indumentária masculina e feminina (MENESES e VICENTINI, 2017).
Fora da indústria da moda, a proposta era reforçada pelo show business, na figura de artistas internacionais, como David Bowie, e também brasileiros, como Ney Matogrosso, Caetano Veloso e o grupo teatral Dzi Croquettes, entre outros, que cultivaram imagens marcadas pela androginia e pelo desafio às normas tradicionais de gênero na indumentária (MENESES e VICENTINI, 2017; SIMÕES e FACCHINI, 2009). Eram artistas que construíram figuras que dialogavam com uma feminilidade para muitos estranha. Poses, roupas, olhares, eram o oposto daquilo que se esperava vir de um homem segundo um padrão de masculinidade hegemônica. Crane (2013) ao mencionar David Bowie e sua “subversão de gênero”, mostra como o cantor atacava os códigos vestimentares que estipulavam gêneros, “ao usar vestidos, maquiagem nos olhos, perucas extravagantes e bijuterias – estabelecendo um novo conjunto de ícones visuais, copiados por muitos grupos posteriores e por seus fãs” (CRANE, 2013, p. 367).
Essa androginia em corpos masculinos influenciou o lançamento de roupas unissex na indústria da moda, no final dos anos 1960 e início da década seguinte. Mas o fenômeno não foi muito além das revistas de moda e do meio artístico, com limitada influência prática no consumo de moda. Como previu Silva (1970) por ocasião do desembarque da proposta no Brasil, o avanço da moda unissex dependeria do grau de consolidação dos novos comportamentos de gênero na sociedade brasileira, e da reação dos segmentos mais conservadores da sociedade: “Não faltarão cocorocas que pretendam manter seus esquemas mentais bem organizadinhos na base de velhos rótulos” (SILVA, 1970, p. 74). O que se viu foi, justamente, essa manutenção de esquemas: a proposta unissex exerceria pouca influência no mercado de moda, seja entre heterossexuais, seja entre homossexuais.
Entre homossexuais masculinos, o final dos anos 1970 e a década de 1980 marcaram uma tendência oposta: um retorno à valorização da masculinidade, com o surgimento de uma polaridade entre dois tipos homossexuais: de um lado o “bofe", que Levine (1998) chama de “gay macho”, socialmente mais aceito; de outro a “bicha pintosa”, como a denomina Fry (1982), menos "discreta" e mais discriminada. Os dois tipos fazem, claramente, usos diferentes de indumentária.
Esta dicotomia parece ter surgido no movimento gay norte-americano, em que nos anos 70 os “estilos de indumentária e apresentações corporais passaram a celebrar um culto crescente ao ‘macho’”, valorizando-se a masculinidade estampada imageticamente na figura de homens de “bigodes, cabelos curtos, músculos definidos” (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p.47). Essa imagem, cultivada por exemplo no trabalho do desenhista finlandês Tom of Finland (1920-1991) e na estética visual do grupo musical norte-americano Village People (Figura 1), valorizava a virilidade e a agressividade como atributos masculinos.
O que não significa que os homossexuais menos virilizados - e seus usos de moda - tenham desaparecido. Os centros urbanos ofereceriam, mesmo que em alguns casos clandestiidnte, bares, boates, espaços de "pegação" e de sociabilidade homossexual, que permitiam alguns exageros de moda. No documentário São Paulo em Hi-Fi (2013), dirigido por Lufe Steffen, diversos entrevistados relatam suas experiências nas boates gays de São Paulo. Mesmo no início da década de 1970, momento de auge da repressão e policiamento de costumes imposta pela ditadura militar de 1964-1985, as boates gays ofereciam espaço para a expressão de homossexualidade, e as escolhas vestimentares decerto cumpriam um papel:
“Era uma sensação libertária indescritível. [...] A gente usava umas calças de boca larga. E era aberto aqui (aponta para a pélvis). A gente andava com o pentelho à mostra. Porque tinha um pano que cobria o pentelho e a gente, frequentemente, tirava o pano para ficar com o pentelho (à mostra); sobretudo quando ia para a boate dançar. Isso em 1972!” (João Silvério Trevisan, in: SÃO PAULO EM HI-FI, 2013)
Mas foi a aids, a partir dos anos 1980, o que mais contribuiu para essa valorização da imagem masculina entre homossexuais, a partir de uma “matriz heteronormativa” (BUTLER, 2003), que hierarquiza as sexualidades e suas expressões, assim como as expressões de gênero, tendo a heterossexualidade como o padrão. A necessidade de livrar-se do estigma trazido pela epidemia reforça a necessidade de criação de uma imagem vigorosa e hipermasculinizada, para maior aceitação na sociedade. O homossexual valorizado e socialmente bem aceito é aquele que, por meio de uma estudada virilidade, “passa por” heterossexual. À indumentária cabe, em boa parte, o papel de ressaltar os atributos físicos deste homem e disfarçar sua homossexualidade. Mesmo sendo o começo da década de 80 um período de celebração no Brasil, uma vez que deixávamos uma ditadura militar, é nele também que percebemos um retrocesso na liberação sexual dos anos 70. A o vírus da aids trazia consigo uma nuvem de pânico e conservadorismo. Um ataque aos homossexuais – as primeiras vítimas do vírus à época – regulava a vida e o comportamento sexual dessa comunidade (SCALZO, 2009).
A moda dos anos 80 se rendia, de certa forma, ao conservadorismo também. O poder estava em voga. Um pouco menos de ousadia, típica dos anos 70, e mais ostentação, afinada com a tendência yuppie dos 80. O importante era que as etiquetas fossem visíveis. Elas agora eram estampadas no “lado externo das roupas” (SCALZO, 2009). O homossexual passa a ser aceito como gay por meio de uma política de nomeação assertiva e de uma higienização inclusive imagética, em que a moda contribui para uma aceitação quase plena, porém específica a uma homossexualidade ideal. O próprio termo "gay" passa a ser usado para denominar o homem branco e com poder aquisitivo, em oposição termos depreciativos tais como bicha ou viado, destinados aos demais segmentos homossexuais, o que se acentuaria na década de 90.
A partir dos anos 90, a chamada cena GLS 1 torna-se foco de interesse de investimentos e exploração comercial, tendo como primeiros expoentes o Mercado Mundo Mix, uma feira anual que reunia “expositores e público GLS” (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 148), além do Festival de Cinema Mix Brasil da Diversidade Sexual, e do portal Mix Brasil. Esses novos espaços de sociabilidade se caracterizavam como uma abertura do gueto gay para todos que dele quisessem participar, e nele quisessem investir e lucrar. De acordo com Adriana Nunan, o comportamento dos consumidores de culturas e subculturas são analisados desde os anos 70, porém o consumo do mercado homossexual viria a sofrer “um boom na década de 90” (NUNAN, 2003, p.55). Esse boom da cultura de consumo seria também o responsável pela “concomitante pluralização de possibilidades para a masculinidade a partir da quebra de um padrão único e hegemônico de homem heterossexual“ (MONTEIRO, 2013, p. 337). A partir daí, conforme destaca Nunan (2003), há o aumento expressivo de serviços e produtos oferecidos ao segmento homossexual com a criação de bares, clubes, saunas, festivais de cinema, lojas, feiras de moda alternativa.
Porém, como Nunan (2003) detalha, “aceitar homossexuais como consumidores não é a mesma coisa que aceitá-los como cidadãos” (NUNAN, 2003, p. 197). Podemos derivar daí que um certo grupo homossexual (branco, classe média, viril, heteronormatizado, padronizado) via-se aceito pelo seu poder de consumo – inclusive de moda – e a partir de uma estética palatável para a grande maioria. Sendo assim, a aceitação homossexual pela sociedade heteronormativa, a “reivindicação dos direitos homossexuais” existiria mais facilmente desde que de acordo com um padrão hegemônico. Os gays masculinos aceitos/normificados, com vidas reguladas pelas estruturas sociais (BUTLER, 2003) seriam aqueles “que são, apesar da reputação de que gozam as pessoas de seu tipo, ‘desviantes cavalheiros’, pessoas tão gentis quanto nós mesmos. ” (Goffman, 1963, apud NUNAN, 2003. p. 199).
4. Século XXI: a “nova bicha”
Em paralelo a esse processo, o homossexual efeminado, identificado por seus trejeitos e por suas criativas formas vestimentares, não é socialmente bem aceito ou quisto. Mas o final do século XX – especialmente a década de 1990 – é também a época da "montação"2 , em que a vida noturna nas grandes cidades proporciona a este homossexual a oportunidade de expressar sua extravagância no modo de vestir, criando “territórios por meio das roupas e da composição da aparência” (MESQUITA, 2015, p.3). No exterior desses territórios, a homossexualidade contra-hegemônica da bicha pintosa tem pouco espaço para se expressar, sujeita que é a punições por meio de violências físicas e simbólicas.
Essa inferiorização de certas orientações sexuais, como disse Gayle Rubin (2017), explicita a existência de uma pirâmide hierárquica de respeitabilidade, em cujo topo residem os homens gays hegemônicos, masculinizados, e em cujos estratos inferiores estão “as classes sexuais mais desprezadas” (RUBIN, 2017, p. 83), tais como travestis, transgêneros e toda uma vasta gama da população LGBTQI em que se incluem os homossexuais masculinos efeminados que questionam os padrões de masculinidade e também são vistos como abjetos.
Mas mesmo em tempos de proibições e punições, este homossexual nem sempre aceita se invisibilizar. É o que parece tornar-se claro no início do século XXI, em que vemos, em cada vez maior número, homossexuais contra-hegemônicos orgulhosos de seus traços efeminados, modos de vida e escolhas indumentárias. Se a bicha da década de 1980 era marginalizada e a dos anos 90 tinha sua aceitação restrita aos territórios de montação, surge agora uma bicha nova, orgulhosamente efeminada, que faz questão de desafiar os valores heteronormativos arraigados na sociedade, inclusive entre os gays "machos", ou padrão.
São indivíduos que assumem uma estética frequentemente hostilizada pela sociedade, na medida em que é preterida em relação à imagem padronizada, “discreta” dos gays aceitos. Questionam e desafiam esse padrão, inclusive no que diz respeito ao consumo de moda: muitos passam a utilizar peças de vestimenta femininas, as quais jamais seriam usadas por aqueles homossexuais masculinos padronizados e aceitos socialmente.
Ao depararmo-nos com este sujeito (Figura 2), cuja indumentária parece bastante excêntrica, parece cabível interpretá-lo a partir de uma analogia com a figura do dândi. Dândi é um termo historicamente usado para designar o homem (homossexual ou heterossexual) com grande preocupação estética e de gostos por vezes extravagantes – figura que tem no escritor inglês Oscar Wilde sua mais conhecida expressão. De acordo com Echaverren (2010), o dândi costuma carregar a pecha de excentricidade, causando mal-estar ao desafiar o modo burguês de vestir.
Devemos lembrar que os dândis, enquanto personagens reais, transitavam entre a total discrição (em sua maioria) e o exagero – como no caso das atitudes extravagantes de Oscar Wilde, que por meio da arte, ironia e feminilização, além do uso da moda, nos permite traçar um paralelo com o que aqui chamamos de novos dândis. Ambrose (2011) descrevendo Wilde, refere-se a esse uso extravagante da moda pelo famoso dândi, dizendo que ele e suas escolhas vestimentares provocavam a ira das classes respeitáveis “com seu casaco de veludo bordejado com galão 3, calças até os joelhos, compridas meias de seda pretas, camisa macia folgada com largo colarinho mole, luvas lavando e cravo verde” (AMBROSE, 2011, p. 108). É esse aspecto do dândi que nos leva a pensar em uma exploração de identidade fluida entre o “parecer masculino e feminino ao mesmo tempo”. (MIRÒN, 2015, p. 42).
A “nova bicha” do início do século XXI talvez possa ser vista como uma versão atualizada desse dândi, ao fazer uso de moda e de escolhas vestimentares para carregar em sua figura o oposto do esperado de um homossexual “discreto”, heterocentrado e aceito, e afirmar, não sem certo caráter político, a sua homossexualidade dissidente, contra-hegemônica.
Junto com seus traços de dândi, também parece possível identificar, nas escolhas vestimentares desta nova bicha, uma certa estética camp, traduzida em sua predileção pelo exagerado e pelo estranho. O termo camp (do inglês, "levantar acampamento" ou "acampar") relaciona-se a uma atitude de estranhamento e de provocação questionadora dos valores tradicionais, como define Susan Sontag em artigode 1964: “o camp é comumente relacionado ao exagero, à afetação, a uma estética especial que ironiza ou ridiculariza o que é dominante" (SONTAG, 1987, p.329). Neste caso, ele ajuda a desafiar os limites de gênero no uso de indumentária e promove questioidntos aos que cercam ou observam a nova bicha. Questioidntos sobre visibilidade e identidades homossexuais, tão importantes em uma sociedade tradicionalmente heteronormativa como a nossa.
O uso da estética camp carrega na sua imagem um questioidnto da norma com bastante ironia. Evidencia a recorrente maneira com que muitos gays se utilizam da linguagem camp e “das vestimentas e de outras formas de adornos corporais para sinalizar à outros homens gays”. (ENTWISTLE, 2000, p. 206). Toma para si as convenções impostas e as utiliza para livrar-se das amarras virilizadoras.
Considerações finais
A discussão empreendida nas seções anteriores, ressaltando quatro momentos representativos da relação entre indumentária e homossexualidade masculina no Brasil, nos fornecem um esboço de periodização, a ser refinado em trabalhos futuros – por meio da qual podemos ver as formas pelas quais o vestuário esteve vinculado à expressão da homossexualidade masculina em diferentes períodos da história do Brasil, ora evidenciando, ora dissimulando, identidades homossexuais.
Importante salientar que compreendemos os sujeitos, suas identidades e as passagens do tempo como algo fluido e sempre intercambiável e não como tempos, costumes e sujeitos monolíticos. Entretanto, para maior clareza, decidimos por pontuar os tempos históricos enfatizando relações do vestir com as expressões de homossexualidades diversas. Nesse sentido, como em toda periodização, o resultado a que chegamos é uma simplificação da realidade, “cheio de armadilhas, condicionado pela ideologia, prioridades e lugar social de quem periodiza” (JAYO, RODRIGUES e MENDES, 2015, p.643).
Ainda assim, pudemos ver como o vestuário: (i) desde o Brasil Colônia já desempenhava um papel na construção e na compreensão de identidades homossexuais; (ii) teve um papel relevante no discurso médico e jurídico do final do século XIX e início do XX, de patologização e criminalização da homossexualidade; (iii) novamente foi um vetor importante na criação do gay “discreto” e hegemônico enquanto identidade homossexual relativamente bem aceita a partir do final do século XX; e, finalmente, (iv) tem cumprido função central como instrumento de afirmação de identidades homossexuais contra-hegemônicas, identificadas aqui na “nova bicha” do início século XXI com sua estética com componentes de dândi e de camp.
Esperamos que a análise aqui apresentada possa contribuir em alguma medida para discussões acerca da história do vestuário no Brasil sob a perspectiva do gênero e da sexualidade.
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