Marina da Silva Schneider*
Universidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil
msshis@outlook.com
RESUMO
Esse artigo fará uma análise dos discursos de feminilidade e das representações que estão presentes no Jornal Tribuna do Sul, que circulava na região do grande Araranguá, no estado de Santa Catarina, Brasil. Analisaremos alguns textos presentes no jornal, no ano de 1955, articulando questões tocantes à imprensa, à história e aos estudos de gênero. Tal jornal, durante o período em que circulou, propagou em seus escritos discursos normativos de feminilidade, na tentativa de homogeneizar o destino das mulheres, determinando seus limites de atuação e produzindo subjetividades normatizadas. Dessa forma, o presente artigo apresenta como objetivo analisar esses discursos que buscavam construir a imagem de uma boa mulher e todos os estereótipos tocantes a elas, percebendo como essas estratégias de controle vinham se modificando e se adaptando na década de 50, conforme oscilações nos costumes, nas vivências sociais e cotidianas.
Palavras-chave: Discursos-Gênero-Feminilidade-Mulheres-Imprensa.
ABSTRACT
This article will make an analysis of the femininity speeches and representations that are exposed in the newspaper Tribuna do Sul, which circulated in the region of Araranguá, in the state of Santa Catarina, Brazil. We will analyze some texts on the newspaper, year of 1955, articulating issues related to the press, history and gender studies. The mentioned newspaper, during activity period, published normatives speeches of femininity, trying to homogenize women’s destiny, determining their limits of performance and producing normalized subjectivities. Therefore, this article aims to analyze speeches that sought to construct good women’s image e all their sterotypes, realizing how these control strategies were changing and adapting in the 50’s, according to the changes of customs, of everyday and social experiences.
Keywords: Speeches-Gender-Femininity-Women-Press.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Marina da Silva Schneider (2019): “O gênero na interface com a imprensa escrita: representações de feminilidade na década de 50 nas páginas do jornal tribuna do Sul (1955)”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (febrero 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/02/genero-imprensa-escrita.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1902genero-imprensa-escrita
Refletir sobre o campo de análise da história das mulheres e, mais precisamente, o gênero como uma categoria de análise no campo historiográfico e na pesquisa histórica, é trilhar por um espaço que ainda está se constituindo e se legitimando. Nesse sentido, os estudos de gênero estão, em suma, estritamente alinhados as discussões teóricas vigorosamente atreladas a uma concepção política dos sujeitos que reivindicaram espaços, lugares, direitos e participação na história. Neste cenário, como apontam as historiadoras, Rachel Soihet e Joana Maria Pedro, as dificuldades para legitimar as discussões sobre o estudo das mulheres e as relações de gênero se deram, em grande medida, ao caráter universal atribuído ao sujeito da história representado pela categoria “homem” (SOIHET; PEDRO, 2007: 284).
Na academia, e principalmente na disciplina de história, como aponta à historiadora Joan Scott, a historiografia desmereceu os estudos das mulheres alegando que elas já estariam inseridas no sujeito universal. Ainda de acordo com a autora, tal concepção implicaria em um posicioidnto parcial dos historiadores sobre o passado, que não enxergavam o quanto de ausências havia na história e o quanto suas escolhas por um sujeito universal implicavam exclusões e negavam outras formas de existência (SCOTT, 1992).
Foi no contexto norte-americano dos anos 60 que as feministas passaram a reivindicar uma escrita da história que contemplasse a participação feminina nos processos. A partir da década de 70, segundo Scott (1992), houve um afastamento dos movimentos políticos, como estratégia do campo para inserir as mulheres na história, o que acabou categorizando o campo Mulher, entendendo-se que mulheres possuíam experiências e identidades comuns, construindo uma problemática e que, no entanto, no final da década se firmou a certeza na existência de múltiplas identidades (SOIHET; PEDRO, 2007: 287). Além disso, foi apenas no final do século XX que se introduziu a categoria gênero no campo historiográfico ainda de forma “neutra” e descritiva, o que representava um problema, uma vez que essa abordagem não questionava os conceitos dominantes no seio da disciplina ou, pelo menos, não os questionavam de forma a abalar o seu status e talvez transformá-los (SCOTT, 1989: 05). Essa abordagem seria também a-histórica, já que compreenderiam as construções sociais do gênero como universais e imutáveis. Ainda, para a autora, pensar o gênero nas relações sociais, nos processos históricos, nas experiências humanas e nas práticas atuais constitui um desafio teórico que pode ser respondido utilizando-se o gênero como uma categoria de análise histórica.
O gênero como uma categoria relacional e de análise histórica compreende as relações entre os sujeitos em grande medida, a partir de diferenças biológicas percebidas em diferentes sociedades, em diferentes culturas, variando de acordo com o tempo e o espaço.
Os estudos de gênero consideram que a vida social e os vetores que organizam como, por exemplo, tempo, espaço ou a diferença entre os sexos, são desenvolvidos e estabelecidos socialmente através de um sistema de representações. (KUAMOTO; LOSNAK, 2015: 08)
Assim, é de fundamental importância sistematizar debruçar-se sobre estes estudos, pois eles visam desconstruir a maneira como essas relações socioculturais são percebidas e interpretadas pelos sujeitos, haja vista que podem se transfigurarem em desigualdades, violências e invisibilidades. A categoria gênero arquiteta uma análise na qual enfatiza que as condições biológicas não podem e não devem ser capazes de predeterminar papéis, espaços, características e identidades dos sujeitos. O que se atribui de maneira sistemática aos sexos como algo natural e imutável é, portanto, passível de análise histórica e social e, dessa forma, alvo de questioidntos. A partir deste entendimento, a utilização do gênero como categoria analítica permite perceber o modo como cada cultura em dissemelhantes espaços e tempos coloca no campo da normalidade o que seria uma mulher e o que seria um homem, criando seus próprios mecanismos na sustentação.
Além disso, “gênero” dá ênfase ao caráter fundamentalmente social, cultural, das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; dá precisão à ideia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; dá relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado. (SOIHET; PEDRO, 2007: 288)
A análise de gênero, segundo Joan Scott (1989), precisa ser desmantelada de uma visão binária das construções sociais de sujeitos homens e mulheres 1, dando historicidade às múltiplas experiências dos indivíduos, já que as condições são variáveis. Desse modo, a análise não pode ser polarizada, precisa ser significativa e pensada em suas interrelações.
Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder [...] Como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, o gênero implica quatro elementos relacionados entre si [...] (SCOTT, 1989: 21)
Scott (1989) coloca que a análise de gênero passa por quatro categorias consideráveis, sendo elas discurso, norma, instituição e subjetividade. Nessas categorias, os discursos são criados como representações. Eva e Virgem Maria, por exemplo, são símbolos culturalmente disponíveis sobre o que significa ser mulher (SCOTT, 1989). Tais elementos vão constituindo o sujeito, símbolos que são aceitos. Esses símbolos tornam-se discursos normativos, percorrendo a segunda etapa, que irão traduzir as possibilidades de existência para homens e mulheres.
A terceira etapa seria a ampla perpetuação desses símbolos, discursos e normas, que para Scott (1989) são difundidas pelas instituições, escolas, igrejas, mercado de trabalho, estado, sistema político e econômico, nas próprias relações de modo geral e claro, não podendo faltar, a mídia, e mais especificamente nesse caso de análise de pesquisa e escrita, a mídia impressa que concomitantemente constrói, projeta e estabiliza identidades sociais (SGARBIERI, 2006: 388). Os discursos, normas e instituições são subjetivados pelos indivíduos que se reconhecem nesse processo constitutivo das relações de gênero. Scott (1989) chama a atenção para o quarto aspecto, a identidade subjetiva, no qual o gênero torna-se implicado na concepção e na construção do poder em si (SCOTT, 1989: 23). Desse modo, as relações hierárquicas e em grande medida, violentas alicerçam-se sob uma generalização natural e imutável sobre o que é ser homem ou ser mulher, atribuindo expectativas aos sujeitos a partir do corpo ligado ao sexo. Essas atribuições surgem a partir da infância e em grande medida, justificam controle e dominação do feminino 2. A face dessas atribuições é quase sempre sútil e silenciosa, o que pode naturalizar a opressão, dificultando uma superação no que diz respeito à restrição dos papéis de gênero e as determinações biológicas.
No cotidiano, essas percepções e representações do feminino e do masculino, em um sentido binário, aparecem como as únicas possibilidades de existências aceitáveis, construindo nos sujeitos e no imaginário coletivo padrões e concepções de mundo. Ao agir desta forma, a norma social anula outras existências e a própria historicidade, reforçando estereótipos desmedidamente, reproduzindo uma homogeneidade e normatizando as condutas no corpo social.
A maternidade, por exemplo, como uma das principais atribuições as mulheres e talvez seu principal destino, aparece em quase todas as representações do feminino, como uma imposição e condição natural das mulheres traçando regras universais sobre as responsabilidades sociais femininas voltadas a educação dos filhos e a garantia da reprodutividade biológica. O instinto materno estaria dado nos ideais de feminilidade. Assim, se opera na constituição dos sujeitos, ditos femininos, a imagem de um sentimento único, o amor materno (BADINTER, 1980: 71). O amor materno seria então um atributo naturalmente feminino, um código de comportamento inquestionável no seio familiar e social. Corroborando com a estruturação dos estereótipos de gênero, esse conceito de mulher/mãe, tornar-se-ia uma referência de civilidade e de controle.
Outras características são também impressas nos corpos das mulheres baseadas na ideia de que são resultantes do próprio sexo. Às mulheres está destinado um espaço subalterno na participação social. O lugar das mulheres, neste contexto, aparece em contraposição ao espaço público. Para elas, o lar, o privado, o doméstico e os cuidados. Em contrapartida, aos homens se destina um discurso legitimado e baseado em sua participação no espaço público, nas relações exteriores ao lar e no trabalho produtivo. Essas relações estruturam-se e dão sentido as relações hierárquicas do gênero.
Ainda nesse sentido, são dadas as mulheres e aos homens, uma grande quantidade de características desejáveis, símbolos que representam modelos a serem seguidos. A partir dos discursos, normas e instituições como coloca Scott (1989), se forjam essas identidades homogêneas e sem caráter histórico. As possibilidades ao feminino e ao masculino aparecem limitadas a padrões peculiares, ressaltando a hierarquia existente. A virilidade ao masculino, o dócil ao feminino, a dominação ao masculino, a submissão e a fragilidade ao feminino. Aos homens cabe prover o lar, as mulheres a maternidade, os cuidados com filhos e maridos. Esses modelos únicos formam aquilo que estaria no campo do civilizado, constituindo as representações de homens e mulheres como aceitáveis socialmente.
(...) É a forma como o gênero tem sido construído e representado em nossa sociedade. Especificamente no que se refere as mulheres temos representações muito estreitas e que geralmente estão circunscritas em valores como graça, encanto, delicadeza. Aliás estes são elementos que nossa sociedade tem usado para definir o que é próprio das mulheres. Cabe portanto uma demonstração destes elementos e uma discussão que desnaturalize tal associação (...) (OLIVEIRA, 2012: 14)
Ao desnaturalizarmos essas associações que parecem imutáveis e de dimensão eterna, que acentuam espaços, limites, traços e relações de poder, seria possível construir relações de gênero em seu caráter profundamente histórico, demonstrando como aspectos de um contexto social formaram e forjaram estereótipos e padrões como únicas formas possíveis de existência e de aceitação (SCOTT, 1989: 17). No tocante a essas relações, problematizar o que parece fixo, o que “sempre” teria feito parte de um universo feminino ou masculino, é a chave para superar essas determinações a-históricas.
(...) historicizar os conceitos, nuançá-los no tempo e relativizá-los no seu devir temporal, ou seja, “lidar com problemas teóricos de mudança, ruptura e descontinuidades históricas”. Libertar a mulher do limite do espaço doméstico tem sido a tônica dos estudos feministas. Portanto, se faz necessário ultrapassar as explicações redutoras ao binômio dominador/dominado e entender a diferença à luz de uma perspectiva que considere as práticas culturais, informando as representações sociais, uma vez que é a partir da cultura que cada sujeito (re)interpreta e consolida a realidade e constrói a identidade do grupo e a sua própria.(ARAS; MARINHO, 2012: 98)
O modo de ver o mundo e as reprodutibilidades simbólicas se fizeram presentes, e de forma exaustiva, no Jornal “Tribuna do Sul” de 1955. O Tribuna do Sul, que se intitulava também como “O espelho fiel dos fatos”, circulou em Araranguá em meados do século XX. Os recortes do jornal são de 1955, um período entre maio a agosto e também foram preservados pelo Arquivo Histórico de Araranguá. O Jornal teve como diretor A. César Machado e como gerente Agilmar Machado. As publicações ocorriam uma vez por semana, aos domingos.
Os escritos analisados faziam parte do que o jornal denominou de “O ABC da Mulher Moderna”, uma coluna exclusiva para mulheres que se dedicavam a uma suposta autonomia doméstica. A escritora da coluna se chamava Maria Luiza, no entanto, não foi encontrado nada a respeito da mesma, podendo ser apenas um pseudônimo.
O “ABC” se dividia em tópicos que eram basicamente “para você meditar”, “para sobremesa”, “para o seu lanche”, “pensamento”, “saiba que...”. Todos relacionados a questões domésticas, receitas de comidas, maternidade, cuidados, felicidade conjugal e comportamentos femininos. A assinatura do Tribuna custava Cr$ 70,00. A redação se localizava na Praça Hercilio Luz, no centro da cidade de Araranguá.
A mulher a que se dedicava a coluna do jornal tinha um perfil bastante específico e atrelado a padrões normativos que supostamente representavam o feminino, que naturalizados se dirigiam ao encontro do que era aceitável para às vivências femininas. No entanto, cabe ressaltar que este perfil não contemplava todas as mulheres da sociedade de Araranguá, levando em conta que nem todas se identificavam com esses discursos. Algumas precisavam trabalhar fora, assumir o sustento da casa e dos filhos, trilhar rotineiramente por caminhos talvez não considerados ideais para uma mulher e que nesse sentido essas não estavam contempladas nessas publicações da “mulher moderna” do jornal, por desviarem do considerado normal.
Carregado de um discurso normatizador, o jornal, como expressão de seu tempo, em nada contribuiu para romper com as barreiras do gênero presentes na década de 50, mas assim como outros jornais do período, padronizou, definiu e delimitou o lugar das mulheres na sociedade araranguaense.
“As mulheres dos anos dourados” nas palavras de Carla Bassanezi (2004), sofreram outras formas de coerção, agora camufladas em diferentes discursos que sugeriam o retorno ao lar. O contexto Pós-Segunda Guerra no Brasil proporcionou novas práticas sociais, ampliando as pessoas novas formas de sociabilidades e possibilidades de acesso às informações, no entanto, os papéis de gênero continuaram muito demarcados, incitando um controle sobre as mulheres que estava camuflado em um ideal de modernidade.
No entanto, o Tribuna, refletindo o contexto social vigente, supostamente mostrava-se preocupado com as mudanças sociais elaboradas a partir do final de Segunda Grande Guerra. Assim, de caráter um pouco menos conservador, o jornal Tribuna, por meio de seus escritos, difundia um discurso sobre a “mulher moderna” que precisava manter-se bem informada e ter “noções elementares”. Manter-se bem informada e ter noções elementares na década de 50, remetia-se a uma mulher que dominava os saberes domésticos, os cuidados com filhos e marido e que, além disso, soubesse conversar sobre assuntos que agradavam aos homens (BASSANEZI, 2004: 509). Contudo, assim como outros veículos de comunicação nacionais o que se queria fazer chegar às leitoras era uma mudança controlada de comportamento. A mulher moderna que se queria era aquela instruída, mas não o suficiente para romper com os paradigmas patriarcais de confiidnto no espaço doméstico.
As distinções entre os papéis femininos e masculinos, entretanto, continuaram nítidas; a moral sexual diferenciada permanecia forte e o trabalho da mulher, ainda que cada vez mais comum, era cercado de preconceitos e visto como subsidiário ao trabalho do homem, o “chefe da casa”. Se o Brasil acompanhou, à sua maneira, as tendências internacionais de modernização e de emancipação feminina – impulsionada com a participação das mulheres no esforço de guerra e reforçadas pelo desenvolvimento econômico –, também foi influenciado pelas campanhas estrangeiras que, com o fim da guerra, passaram a pregar a volta das mulheres ao lar e aos valores tradicionais da sociedade. (BASSANEZI, 2004: 509)
Esses discursos bem demarcados sobre papéis femininos e masculinos não estavam descolados do contexto vigente e refletiam a necessidade de uma emancipação controlada. Nas publicações semanais do “ABC da mulher moderna”, reforçava-se que as mulheres modernas deveriam estar sempre atualizadas em assuntos que estivessem relacionados à servidão familiar, a moral social e aos parâmetros ideais para o casamento e a maternidade. Nesse sentido, solidificando elementos da cultura, o Tribuna formulava um discurso de mulher moderna e autônoma voltado para a “autonomia doméstica”, priorizando as mais diversas atividades voltadas ao lar e, formando nas palavras do jornal, a dona de casa “hábil e capaz”.
O “ABC”, compactuando e refletindo a organização social dos anos 50 no Brasil, defendia um ponto de vista da moral que exaltava supostas virtudes femininas. Desse modo a primeira publicação que justificaria a criação dessa coluna apareceu enaltecendo a importância para as mulheres de serem autônomas no espaço doméstico, sabendo lidar com os problemas que o mesmo provocava, numa tentativa de traçar modelos comportamentais e aceitáveis para a sociedade de 1950. Assim em seu primeiro texto o “ABC” argumentava:
Autonomia Doméstica: O velho provérbio “quem quer faz, quem não quer, manda, tem validade, até certo ponto. Não basta querer fazer: é preciso, também “saber fazer”. E uma dona de casa, não obstante hábil e capaz, não pode substituir quem dedica todo o seu tempo a um determinado gênero de atividade, como tinturaria, trabalhos de passar, costura, chapelaria, sapataria e peleteria em geral. Pode, no máximo, aprender as noções elementares desses misteres e manter em ordem o ser guarda-roupa e o de seus familiares, evitando, assim, recorrer sempre a dispendiosos auxílios. Visando êsse propósito, é que iniciamos hoje nossa modesta secção, onde abordaremos assuntos, os mais variados, relacionados com pequenos problemas domésticos. [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 15/05/1955)
O moderno apresentado em suas páginas e a suposta autonomia feminina em nada colaborou no difícil processo de emancipação feminina, mas assim como outros meios midiáticos do período assessoravam essa abstração de um aparente consenso social sobre a moral e os bons costumes (BASSANEZI, 2004: 509). Assim, o discurso da subordinação feminina e do único espaço de existência e permanência das mulheres prevalece tão somente. Ainda segundo a autora, havia diversos outros meios de comunicação e propaganda que favoreciam esses discursos:
As páginas das revistas que tratavam de “assuntos femininos” nos levam ao encontro das ideias sobre a diferença sexual predominantes nessa sociedade. Jornal das Moças, Querida, Vida Doméstica, Você, as seções para mulher de O Cruzeiro traziam imagens femininas e masculinas, o modelo de família – branca, de classe média, nuclear, hierárquica, com papéis definidos – regras de comportamento e opiniões sobre sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal. (BASSANEZI, 2004: 509)
Encharcado de construções binárias, nos escritos do jornal Tribuna do Sul, em consonância com outros periódicos que circulavam no mesmo período em diferentes localizações do território brasileiro, o feminino ainda era naturalizado a partir de concepções que destinavam às mulheres ao casamento e a maternidade. No que concerne aos discursos que foram produzidos pelo “ABC da mulher moderna”, pode-se afirmar que eles foram balizadores da feminilidade tentando enquadrar as mulheres em um paradigma ditado socialmente, ditado por homens. Essa perspectiva pode ser verificada no recorte a seguir:
“Para você meditar...: Lar é o riso da criança, a candura materna, a autoridade do pai, calor de corações dedicados, luz dos olhos felizes, afeto, lealdade, camaradagem...Lar é a primeira escola, o primeiro templo das crianças. Aí aprendem o que está certo, bom, o justo. Lar é para onde os jovens voltam à procura de conforto, quando estão feridos ou doentes, onde a alegria é dividida e a tristeza partilhada, onde pais são amados e as crianças desejadas e queridas. Onde o dinheiro não é tão importante quanto a ternura. Onde até a chaleira canta de felicidade. Isso é lar. Que Deus o abençoe!” [sic] (Tribuna do Sul, p. 2, 19/061955)
“Dos Grandes sôbre os pequenos “O futuro de uma criança é sempre obra de sua mãe” [sic] (Tribuna do Sul, p. 2, 19/06/1955)
De modo geral, o “ABC da mulher moderna” procedeu nessas asserções, com tópicos “para você meditar”, “saiba que...”, “lê e medita”, “para seu lanche”. Frequentemente atuando na defesa de um tipo de feminilidade os assuntos abordados ficavam circunscritos a receitas de comidas, manuais de cuidados com os filhos e a casa, além de pequenos textos sobre o lar e a função da mulher na humanidade.
No texto acima destacado, intitulado “para você meditar”, um tipo padrão de lar foi retratado pelo Tribuna, contribuindo para os discursos de uma dimensão única de constituição e formação familiar e de limitada possibilidade de vivência no privado, invisibilizando quaisquer outras formas não tradicionais e patriarcais. Ainda operando nesse discurso, o lar retratado, configurava uma proporção eterna, como se suas vivências tivessem que ocorrer sempre da mesma maneira, não sendo influenciado por mudanças do contexto social. O lar não era retratado como histórico, fruto das condições humanas e inserido em um meio que se modifica o tempo todo, mas como sempre agradável, sempre confortável e sempre o produto de alegria e felicidade, uma constituição pronta e imutável.
A partir desse ponto, o discurso criado pela mídia, de um modo geral, assume formas de regulação social que produzem e constroem identidades e que exercem uma função pedagógica (SALERNO; CUNHA, 2011: 132). Desse modo, a constituição do lar retratado pelo Tribuna foi aquele onde tudo deveria ser tratado na dimensão do compreensível e sem lugar para tristeza. As questões financeiras nesse lar não foram colocadas como um problema, excluindo as problemáticas que envolviam as desigualdades de classes.
Assim, regulando social e pedagogicamente, o Tribuna apesar de estar inserido em um contexto de suposto desenvolvimento e com ares de modernidade e progresso, não abria mão de ideários conservadores que orientavam as mulheres a dedicarem-se aos maridos, aos filhos e aos trabalhos domésticos, enquanto ao homem caberia a tarefa de sustentar este lar (SALERNO; CUNHA, 2011: 128).
O amor era naturalmente posto no discurso do lar, o que desconsiderava quaisquer possibilidades de conflitos familiares, do não desejo pelos filhos e dos abandonos paternais. O amor materno nessa concepção de lar era apresentado como vital para a constituição da família, indo ao encontro com as palavras de Elizabeth Badinter, o mito do amor materno:
A compreensão do significado do papel de mãe em nossa cultura passa por esses dois fios condutores que tecem o imaginário e definem a moralidade e ética da maternidade. Construída na dimensão simbólica como fato biológico, e interpretada como decorrência natural do ato sexual e da gravidez, a idéia de maternidade reflete as mesmas crenças que orientam as relações de gênero e os valores atribuídos a cada sexo. (PORTO, 2011: 56)
A função da maternidade no contexto do pós-guerra, em que as forças conservadoras defendiam a família, a moral e os bons costumes são reafirmados e centrados no suposto destino das mulheres. Para a mentalidade da época essas eram características tidas como naturais e determinavam quais os espaços onde homens e mulheres deveriam atuar (MATOS, 2010: 02). O caráter domesticador do papel de mãe é bastante evidente já que somente por meio dele as mulheres cumpriam sua função social (PORTO, 2011: 61).
Nesse último recorte, os papéis sociais dentro do lar representavam a característica amável e inocente da mãe que estava em contrariedade com a autoridade do pai. A autoridade masculina no período analisado constituiu essa formação familiar patriarcal e se apresentava como naturalmente dada. As funções maternas, essa vocação prioritária era a marca da feminilidade da época e estava impregnado no processo de educação das mulheres (MATOS, 2010: 03), o que certifica como o Tribuna refletia essa sociedade, estando inserido nesse quadro geral.
A condição masculina corroborou com esse suposto lar feliz e agradável, onde tudo ocupava seu lugar e função. O pai exercia o poder supremo nas relações familiares. Isso também significa dizer que há partes sexuadas no lar (BOURDIEU, 2014), antagonizando, cozinha e escritório, por exemplo. No entanto, é importante refletir que apesar de as mulheres não deterem o poder absoluto do lar frente a autoridade masculina, elas detinham poderes pulverizados que cotidiaidnte enfrentavam a força masculina (PERROT, 1988). São essas as mulheres, que no privado e longe da participação do patriarca, são consideradas as responsáveis únicas pelo futuro dos/as filhos/as e nesse sentido são encarregadas dessa “difícil missão” da educação das crianças.
A maternidade aqui colocada é supervalorizada. As mães possuem “os destinos do gênero humano” (PERROT, 1988). Assim, é admissível afirmar, recaia sobre as mulheres uma normatização de seu comportamento, disciplinando suas mentalidades, já que eram as responsáveis únicas pelo futuro da nação. Ser mãe era sinônimo de civilidade, o que consolidava a maternidade como um ideal feminino. É concebível ponderar, que a fala do jornal era baseada em fundamentos religiosos, cristãos e em um tom bastante moralizador.
Outro recorte analisado em outra coluna do “ABC da mulher moderna” trazia uma reflexão para mulheres em sua relação com a maternidade:
“Para você meditar... Ser mãe é uma tarefa tão complexa e maravilhosa, que ilumina tôda a vida da mulher, a qual, na Criação, recebeu a melhor parte, poís o palpitar do filho dentro de si encerra a afirmação de seu amor, a realidade, a doçura de sua obra. Ser mãe é ser perfeita, não se contentar com a mediocridade, com os caprichos do momento; pensar antes de tudo na repercussão que suas ações terão no seu filho; no dever que tem para com a sociedade e para consigo própria de educá-lo bem.” [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 29/05/1955)
Nos anos 50 e no Tribuna, a maternidade era exaltada como fim último da vida feminina, que era privilegiada por ter recebido a melhor parte da criação divina, a de carregar dentro de si o destino da humanidade. Nos anos 50 a vocação natural para a maternidade correspondia aos ideais de um sistema político, social e cultural que delegava às mulheres a função reprodutora de forma universal e a-histórica. (SALERNO; CUNHA, 2011: 133). A esse respeito, Porto afirma:
Portanto pensar a maternidade, as estratégias sociais que valoram comportamentos e validam políticas e técnicas de reprodução humana, passa, necessariamente, pela análise da forma como é partilhado o poder entre os sexos. O simbolismo que confere sentido ao sexo e à reprodução e delineia o comportamento revela a assimetria sexista. Sobre essa desigualdade são construídas as relações sociais que alimentam a hegemonia, acentuam a concentração de poder (...) (PORTO, 2011: 59)
O amor materno era dado como consequência da maternidade, imutável e como condição primordial. Ser mãe era uma tarefa inquestionável no seio social, sendo reforçado esse papel por demasiadas instituições e também pelos meios midiáticos, que era o caso do Tribuna.
A mulher considerada perigosa e sorrateira, a potência sedutora da eterna Eva foi transfigurada na representação feminina de Maria com a maternidade, um símbolo ideal feminino. (PERROT, 1988) A maternidade representava então, um referencial de civilidade, uma porta de entrada ao que era imprescindível a felicidade feminina e de quem estivesse próximo a ela.
A interpretação do mito mostra que a desobediência, a mentira, a lascívia, perfídia e a corrupção, associadas à Eva, estendem-se ao gênero feminino e escondem-se no íntimo de todas as mulheres, que carregam desde então esse estigma. Sendo a própria tentação é delas a culpa por induzir o homem ao pecado original. Por isso recai sobre elas o ônus da maternidade, que as condena a procriar de forma dolorosa. (PORTO, 2011: 60)
Por meio deste debate podemos aferir que as mulheres tornaram-se as únicas responsáveis pelo futuro e educação de seus filhos, utilizando para tal empreendimento valores cristãos e conservadores, não podendo ser a responsável por maus hábitos que estavam pairando no tecido social. A condição feminina foi cristalizada nessa concepção de sociedade. A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas de feminilidade (...) (BASSANEZI, 2004).
Em outro recorte, é possível analisar o discurso da “boa esposa” e as tentativas de convencer as mulheres da sua suposta condição. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da essência feminina (BASSANEZI, 2004: 510). Sendo assim, o Tribuna também operava sob essas recomendações:
“Para você meditar Como espôsa deves proporcionar a teu espôso o que torna um lar agradável: tu mesma e a tua casa sois o mundo no qual se abrigou o marido. Nêle quer o espôso achar sossêgo, nêle constituir sua familia e nêle ser feliz. Quanto homem anda em caminhos errados e se perde, porque aquela da qual havia de tudo esperar, não lhe quis dar um verdadeiro lar. Onde a espôsa oferece espírito doméstico, desvêlo, ordem, asseio, providência, onde vive de coração e alma para o marido, onde êle se sente amado, compreendido, se vê seguro. Quem forma o lar é o coração da mulher. Constituir êste templo de felicidade, formar um santuário de teu lar, é teu dever de honra peculiar.” [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 12/06/1955)
O trecho acima evidenciado dedicou-se exclusivamente a orientar as mulheres casadas a agradarem e servirem seus maridos. O matrimônio foi para norma social vigorante, uma tentativa de civilizar o feminino na subordinação ao masculino. Nesse sentido é possível perceber que “civilização” significa, em grande medida, a dominação da mulher (PORTO, 2011: 60). Nos anos 50 atribuiu-se uma significativa importância ao matrimônio, ao lar e a família como elementos constituintes da felicidade da mulher, indiferente de classe social e raça/etnia. De acordo com esta perspectiva o espírito doméstico apareceu aqui como características da plena dedicação feminina para garantir que o marido se sentisse amado e seguro.
O discurso se assemelhava a uma antiga pregação de “segurar o homem”. Nesse sentido, esmiuçando nas entrelinhas, o texto justificava que o triunfo e o andamento do bom matrimônio recaíam exclusivamente as mulheres. Corroborando com essa afirmação, Carla Bassanezi afirma:
Essas afirmações não surpreenderiam uma esposa comum criada nos moldes das mulheres de classe média dos anos 50 no Brasil. Sendo herdeira de ideias antigas, mas sempre renovadas, de que as mulheres nascem para ser donas de casa, esposas e mães, saberia da importância atribuída ao casamento na vida de qualquer mulher. Teria aprendido que homens e mulheres veem o sexo de maneira diferente e que a felicidade conjugal depende fundamentalmente dos esforços femininos para manter a família unida e o marido satisfeito. (BASSANEZI, 2004: 508)
Nos anos 50, era comum ser tolerada a traição matrimonial masculina e desse modo o Tribuna compactuando com os padrões sociais, argumentava que se o marido “caminhar por caminhos errados”, não seria culpa dele, mas sim da esposa que não soube lhe dar um verdadeiro lar. As mulheres casadas desse período compreenderiam que homens e mulheres viam o sexo de maneira diferente, quase sempre propagados nos conselhos de uma mãe à sua filha, nos romances para moças e em outros discursos (BASSANEZI, 2004: 508). Assim, a poligamia masculina foi construída historicamente como uma esfera do biológico, incapaz de fazer parte de uma construção cultural, mas sim como uma verdade que tem uma dimensão que ultrapassa tempos e barreiras territoriais. “Qual mulher inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma infidelidade? O temperamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto, é inútil combatê-lo”. (BASSANEZI, 2004: 508). Assim operavam as práticas sociais da década de 50, que estavam presentes também no jornal Tribuna do Sul.
A imprensa aqui caracterizava perfis, funções e ações que estavam em conformidade com o próprio encadeamento dos anos em que atuava. As mulheres, metade da população de Araranguá do século XX, precisavam estar em conformidade com os padrões morais vigentes, aceitando seu compromisso de educadora moral. Seguindo nessa análise do compromisso social das mulheres que estava em harmonia com os pressupostos sociais, o Tribuna publicou em sua coluna “ABC da mulher moderna” uma dica para as mães sobre o dia dos pais:
“Um lembrete para você: o dia dos pais - Uma das alegrias que a família nos proporciona é o fato de que, pelo menos enquanto nossos filhos forem pequenos, seremos considerados como a pessoa mais importante do mundo. E você, mãezinha, já notou como seus filhos admiram o “papai”? A hora de sua chegada à casa é uma festa, o que êle diz, o que êle faz é o que de mais importante há para o seu garotinho ou a sua garotinha que irá esperá-lo para lhe dar o seu abraço o seu beijo de boas-vindas. quando volta do serviço. No próximo domingo, dia 14, comemora-se o “DIA DO PAPAI”. Prepara-lhe uma pequena surpresa com seus garotos [...] terão um significado todo diferente. Você verá a alegria do seu marido, a satisfação dos seus filhinhos por poderem proporcionar ao seu “PAPAI” essa manifestação de sua estima, de seu amor.
Algumas sugestões: Uma gravata (...), uma cinta, uma camisa, um isqueiro, um cinzeiro diferente, algum objeto para sua escrivaninha. Se êle gosta de charutos, dê-lhe uma caixa de boa marca. Um chaveiro também não ficaria mal. Quem sabe, até uma xícara bonita que use diariamente.
Mas creia que seja qual fôr o presentinho de suas crianças, num bonito pacotinho e com um cartão alusivo à data, deixará seu marido alegre, sabendo que valeu a pena ter sacrificado a sua “liberdade” em troca do “lar, doce lar”...” [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 07/08/1955)
As datas comemorativas também corroboram na construção social e hierarquizante do gênero. As datas, como dia dos pais e dia das mães estão saturadas de representações do que seriam masculinidades e feminilidades aceitáveis. Tais datas foram exaustivamente comemoradas, lembradas e incentivadas principalmente nas escolas, onde alunas e alunos oferecem pequenas lembranças para seus progenitores.
Em grande medida, os utensílios presenteáveis as mães e aos pais determinam espaços e funções, demarcando os limites ocupados. De modo muito sútil, ou não, as escolas e a mídia propagam presentes de uso doméstico as mães, que se destinam exclusivamente ao privado como lembranças ideais para a data. Em contraponto, o dia dos pais é marcado por presentes de uso exclusivo ao ambiente público e ao trabalho, formalizando a condição paternal como provedora do lar. Além disso, o papel paternal representa aquele que é o mais importante, justificado no recorte, onde as crianças “admiram o papai”. Com relação aos modelos familiares, o Tribuna repetidamente sustentava a existência exclusiva da família nuclear, que por sua vez era retratada também como modelo de felicidade, o que não estava descolado do modelo/família de forma geral da coletividade social dessa metade do século XX.
É possível analisar uma invisibilidade gritante quanto a outros modelos de famílias, onde em grande medida, nas classes subalternas, as mães assumiam o sustento da família e precisavam circular por lugares considerados masculinos.
Outro ponto questionável nesse escrito do “dia dos pais” condiz com o marido ser agradado e saber que valeu a pena ter sacrificado sua liberdade em troca do lar. Tão somente, o marido era construído no discurso como aquele que estava fazendo um grande feito, honroso em trocar sua liberdade (atribuição considerada natural ao masculino) pelas “algemas” do casamento, ideia tão difundida ainda no século XX por boa parte da sociedade brasileira.
Recaia sobre o feminino essa imensa responsabilidade de convencer o homem a abrir mão de sua liberdade em favor de um lar feliz. A mulher ideal deve ser santa, casta, abnegada e pronta a servir ao marido e à família (PORTO, 2011: 61). Historicamente no Brasil, a dedicação exclusivamente ao lar cabia ao feminino. Ao masculino cabia a soberania. No entanto, nessa sociedade, aquela mulher que conseguisse reverter o destino masculino e convencê-lo dos prazeres do lar, da qualidade paternal e do ambiente familiar, teria cumprido sua função de boa mulher, boa esposa e boa mãe. Nesse seguimento, constatou-se outro discurso que instigava inclusive, uma disputa entre as mulheres:
Um marido ideal é aquêle que tôda mulher pensa que a outra tem. [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 15/05/1955)
Para você meditar...É uma ilusão acreditar que um povo possa ser bom e virtuoso, sem que as mulheres não o sejam. A família é a verdadeira base da unidade social. Se o pai é a cabeça, a mãe é o coração da família; e os grandes pensamentos e as grandes ações surgem do coração. (Tribuna do Sul, p.2 15/05/1955)
Na tentativa de convencer as mulheres de sua importância no corpo social, utilizavam-se recursos discursivos que de maneira bastante estereotipada lhes era atribuído lugar de importância. Nesse discurso, as grandes ações surgiriam do coração, mas certamente, cabe analisar e problematizar que essas ações estariam limitadas ao espaço privado e novamente a imagem da mulher não como a que realiza, mas aquela que “instiga e convence nos bastidores”, revalidando o jornal, aquilo que pensava e assentia esse círculo social nesse contexto.
Na outra colocação desse mesmo recorte, foi uma tentativa de colocar mulheres como “rivais”, umas contra as outras, consolidando a impressão de que elas eram responsáveis por disputar um marido ideal, na ideia de que “vença a melhor”. Assim, as mulheres interiorizavam a obrigatoriedade de se encaixar em padrões comportamentais que agradariam futuros maridos, aperfeiçoando suas feminilidades. Aqui, a mulher está impotente para refletir acerca de, sua própria condição (ARAS; MARINHO, 2012: 102)
O Tribuna também utilizou de uma concepção religiosa, o que era bastante comum nos anos 50 para explicar e justificar a condição do feminino:
“SÔBRE A MULHER – A coisa maior e mais bela que o eterno DEUS TRINO infundiu na natureza da mulher como reflexo se seu próprio ser que exprime a essência é o “ETERidNTE FEMININO”, servidão singela, forte e divinizada.” [sic] (Tribuna do Sul, p.2, 05/06/1955)
Nessa concepção religiosa e cristã/católica, historicamente o feminino foi visto como sinônimo de servidão, sob um pilar divinizado. Essa servidão além de naturalizada foi posta como algo singelo, algo aceito pelas mulheres sem maiores complicações. É em um sentido ingênuo, banal e sem resistências que a sujeição feminina foi instituída no imaginário. Dessa forma, o Tribuna acompanhou aquilo que era constituído no corpo social e o reproduziu em seus escritos.
Essa submissão das mulheres foi ainda estabelecida sob um parecer de algo íntegro, sempre estável, atestando e, vale dizer, exteriorizando algo que não estava passível de questioidntos. A disseminação dessa estratificação das mulheres foi pautada em uma “natureza feminina”. Assim, se reverbera um [...] “ideal” de mulheres e homens com elementos da ideologia católica, quando a mulher é comparada a elementos místicos e religiosos, reforçando e cristalizando uma sociedade hegemonicamente masculina. (FERNANDES, 2014: 74). Conforme coloca a autora:
[...] para a Corrente Católica, as mulheres passam a ser consideradas valiosas na implantação de um projeto reformador e educativo da sociedade, mas de cunho conservador, expressando-se de forma rígida e restritiva em relação a elas. Para a Corrente Católica, a hierarquia familiar deveria constituir-se por um marido que decide e governa o lar, abaixo dele uma esposa fiel e respeitosa, e por último, os filhos submissos e obedientes às decisões paternas; em relação ao trabalho, defendia que o homem deveria ser o responsável pela manutenção econômica da família e pelo trabalho externo, enquanto a mulher cuidaria do lar, da procriação e da educação dos filhos. (FERNANDES, 2014: 46)
Finalizando a análise dos recortes e retomando o contexto dos anos 50 e a tentativa de se criar novas formas de disciplinar as mulheres a partir de um discurso modernizante, se inseriu no “ABC”, o que era uma preocupação social do período, uma investida para controlar e regular o comportamento das mulheres mais jovens também, tendo em consideração que os/as jovens estavam experimentando outras formas de sociabilidades a partir de novas mudanças e experiências sociais. Assim, destacamos a seguinte publicação do “ABC”, dessa vez destinada as “mocinhas”:
Para você, Mocinha: Uma pequena consideração... Os rapazes se aborrecem com as mocinhas frívolas que só cuidam de tualetes (mesmo que estas sejam para agradá-los). Se uma moça tem um corpo bonito, ótimo para ela” Nós também o apreciamos. Se ela tem bom gôsto para vestir-se... melhor ainda. Mas... se deixa transparecer a idéia de que as roupas são a coisa mais importante do mundo, o efeito é desastroso. Incrível como pareça, por bonita que seja a pequena, êste modo de pensar e vestir-se (com a única preocupação de roupa) torna-a cacête. Instrua-se um pouco e procure conversas que condigam com os seus companheiros. [sic] (Tribuna do Sul, p.02, 03/07/1955)
Cientes das oscilações culturais e sociais, o jornal cooperou nesse processo de fazer as críticas que julgavam necessárias, e dessa vez às meninas mais jovens, ainda solteiras. Essas deveriam ser o arquétipo da moça bem comportada, bonita e discreta; uma moça que é digna para se investir num relacioidnto duradouro (MULLER; SCHMIDT, 2017: 07). Essa preocupação com o destino das jovens era ocasionada pelas supostas influências externas, que alteravam os hábitos da juventude no Brasil e se fazia necessário supervisionar aquilo que chegava a juventude e principalmente às meninas. Era grande o medo de que as mocinhas se desviassem do bom caminho, a educação moral e a vigilância sobre elas se faziam necessárias (BASSANEZI, 2004: 510).
Assim, o discurso operado tanto socialmente, quanto pelo Tribuna, foi aquele que buscou julgar o comportamento feminino e moldá-lo de acordo com aquilo que era esperado pelo masculino. No espaço do privado já havia um comportamento dito ideal, e nesse novo contexto, a vivência do feminino no público também foi controlada. Assim, segundo a autora:
(...) já estava fora de moda casar sem afeto, apenas pela vontade dos pais – então, a ênfase na educação para o autocontrole das moças tornou-se ainda mais uma preocupação social. Os pais já não poderiam ser tão rígidos e as jovens deveriam aprender a controlar-se a si mesmas, distinguir o certo do errado de forma a conservar suas virtudes e a conter sua sexualidade em limites bem estreitos: dando-se ao respeito. (BASSANEZI, 2004: 510)
As meninas interpretadas nesse contexto por todo um aparato social como ingênuas e menos inteligentes, precisavam ser colocadas no “caminho certo”, repreendendo seus possíveis comportamentos subversivos. Assim, para os autores:
Na década de 50 predominava a ideia da “mulher ideal”, isto é, a normatização que definia quem era socialmente adequada. Na juventude, a moça deveria ser bela, recatada, casta e doce, tudo para construir a imagem certa para os outros e, principalmente, para os rapazes. Afinal, um deles se tornaria seu futuro marido. (MULLER; SCHMIDT, 2017: 02,03)
No caso desse último recorte do Tribuna sobre as “mocinhas”, o comportamento recriminado foi aquele que não agradava ao masculino, que “aborrecia” os rapazes. Aquilo que se esperava das meninas é que tivessem outras preocupações além daquelas voltadas a aparência, no entanto, essas inquietações deveriam ir ao encontro daquilo que agradava os rapazes. O bom comportamento era uma regra fundamental para a mulher que desejava ser apontada como um bom partido (MULLER; SCHMIDT, 2017: 02).
Apesar de haver um esforço da sociedade de vestir-se de outro discurso sobre as atribuições das mulheres, novamente essas foram colocadas em relação ao homem, a aquilo que deleitava os interesses masculinos. Essas meninas deveriam então, se enquadrar perfeitamente nessas virtudes. Nesse período e nessa representação de relações sociais, não importavam os desejos femininos ou a vontade de agir espontaneamente, o que contavam eram as aparências e as regras (BASSANEZI, 2004: 514).
Foram analisados ainda nos escritos do Tribuna do Sul, outras colunas do “ABC da Mulher Moderna”. Todos os impressos referentes remetiam a representações de feminilidade hegemônicas, restringindo os interesses das mulheres a outras temáticas que ainda são uma extensão do mundo privado.
Refletindo sobre as publicações do Tribuna, além de perceber seu caráter representativo de uma sociedade que se consolidou em regras patriarcais, foi plausível identificar traços que permanecem, ainda na atualidade, pautados em outros e novos discursos. A normatização do feminino e a hierarquia entre homens e mulheres ainda é algo sólido.
O Tribuna representou uma parcela de um novo contexto no século XX e de novas formas de designações as mulheres, no entanto, essas novas formas foram aceitas associadas novamente aos limites das condições femininas, sem que isso afetasse sua premissa de mãe, esposa, rainha do lar, valores arquitetado na boa conduta e nas formalidades sociais vigentes.
FONTE CONSULTADA:
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LUIZA, Maria. O ABC da mulher moderna. Tribuna do Sul, Araranguá, 29 mai. 1955. P.02.
LUIZA, Maria. O ABC da mulher moderna. Tribuna do Sul, Araranguá, 12 jun. 1955. P.02.
LUIZA, Maria. O ABC da mulher moderna. Tribuna do Sul, Araranguá, 07 ago. 1955. P.02.
LUIZA, Maria. O ABC da mulher moderna. Tribuna do Sul, Araranguá, 05 jun. 1955. P.02.
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*Graduada em História pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero.