Marina da Silva Schneider*
Ismael Gonçalves Alves**
Universidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil
msshis@outlook.com
RESUMO
Esse artigo fará uma análise dos discursos de feminilidade e das visões do feminino presentes no jornal Campinas, que circulava na região do grande Araranguá, no estado de Santa Catarina, Brasil. Analisaremos alguns textos presentes no jornal, no ano de 1936, articulando questões tocantes à imprensa, à história e aos estudos de gênero. Tal jornal, durante o período em que circulou, propagou em seus escritos discursos normativos de feminilidade, na tentativa de homogeneizar o destino das mulheres, determinando seus limites de atuação e produzindo subjetividades normatizadas.
Palavras-chave: Discursos-Gênero-Feminilidade-Mulheres-Imprensa.
ABSTRACT
This article will analyze femininity speeches and visions of the feminine that were exposed in newspaper Campinas, spread throughout Araranguá and its surroundings, at the state of Santa Catarina, Brazil. We will analyze texts from the newspaper, from the year 1936, articulating press, history and gender. Such newspaper, in its years of activity, transmitted in its writings, speeches normalizing femininity, as an attempt to homogenize the destiny of women, imposing boundaries and roles upon these subjects.
Keywords: Discourses-Gender-Femininity-Women-Press.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Marina da Silva Schneider e Ismael Gonçalves Alves (2018): “Relações de gênero e representações na mídia impressa: visões do feminino nas páginas do Jornal Campinas (1936)”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (diciembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2018/12/representacoes-midia-impressa.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1812representacoes-midia-impressa
GÊNERO, MULHERES E IMPRENSA.
O uso da imprensa escrita como fonte para a pesquisa histórica é, em grande medida, recente. Tal compreensão ancorou-se nas mudanças propostas pela escola de Annales, a qual possibilitou o uso de novas fontes que impulsionaram a revisão do paradigma tradicional (BURKE, 1992: 05). A Escola Metódica, em sua busca incansável por verdade e objetividade, tentava, como via de regra, afastar-se das possíveis subjetividades que envolviam os processos historiográficos em nome da neutralidade. Por outro lado, a Nova História, estruturou-se sob novas concepções de fontes, objetos e sujeitos. Para esta corrente, onde há qualquer tipo de influência humana, há fonte histórica, tornando os periódicos, uma ampla possibilidade de pesquisa historiográfica. Portanto, a imprensa pode e deve ser historicizada, entendendo seus múltiplos processos de produção e circulação. As fontes documentais fornecem informações que possibilitam complementar a reconstrução histórica (NICOLETE; ALMEIDA, 2017: 207).
Analisar a imprensa exige do/a historiador/a uma atenta ação investigativa, que se estabelece para além do visível, focando-se também em como os não ditos e os contextos de produção influenciaram a escrita, debruçando-se sobre seus significados e subjetividades. Assim, o/a historiador/a deve considerar o meio jornalístico como um local de produção, observando os contextos de formação, conflitos e interesses que contribuíram na disseminação de ideias, valores, referências, memórias, ideologias, modos de pensar e agir (LEITE, 2015: 05). Desse modo, analisar os discursos da imprensa é peça importante do trabalho historiográfico, pois possibilita ao historiador/a novas interpretações e impressões sobre os processos sociais (AMARAL, 2008: 928). Além dos elementos anteriormente destacados, outros pontos também são considerados fundamentais, como por exemplo, identificar como os discursos jornalísticos impactaram e construíram o sujeito universal mulher, que estava em contraponto ao homem, representando papéis, espaços e subjetividades de maneiras opostas (SCOTT, 1989).
Analisar a construção de subjetividades femininas por meio da mídia impressa oportuniza novas interpretações sobre a atuação das mulheres, dando novos significados e sentidos a suas vivências; questionando e analisando os mecanismos que, em grande medida, atuaram na construção e naturalização das desigualdades de gênero, fomentando a subordinação das mulheres.
Nessa esfera, a linguagem pode ser interpretada como um complexo sistema pelo qual os seres humanos comunicam seus sentimentos, falas, ideias, concepções, entendimentos e percepções de mundo. É a linguagem que dá sentido ao modo como as relações são construídas, aos sentimentos, às ideias, ao palpável; e é através dela que uma determinada cultura cria representações e discursos de verdade. Operando através de símbolos e signos, a linguagem é, portanto, social, cultural, construída e instituída com influências do meio, o que nos possibilita entender que a língua é um sistema ideológico carregado de disputas (SGARBIERI, 2006). Nesse sentido, os discursos produzidos pelo meio social, e em nosso caso, pelo meio midiático, estão encharcados de ideologias, valores e princípios que estruturam sentidos e representações e induzem as vivências cotidianas que constroem a si e ao outro. É por meio dessa perspectiva que podemos observar as coerções sociais na construção do sentido (SGARBIERI, 2006: 387).
A partir deste entendimento, utilizaremos o gênero como uma categoria de análise, com o intuito de compreender os discursos mobilizados para criar e difundir estereótipos de feminilidade pelo Jornal Campinas de Araranguá na primeira metade do século XX. Por meio desse olhar, percebemos como a mídia impressa, desde há muito tempo, reforça perfis adequados para homens e mulheres de forma pedagógica para que sejam facilmente aceitáveis. No que tange ao gênero, o periódico registrava em suas páginas normas e valores morais socialmente aceitos, sempre sob um enfoque naturalista, positivista e determinista.
A imprensa periódica atuava reforçando aspectos sociais normativos, divulgando explicações e consolidando visões de mundo que contribuíram para o que Scott (1989) chamou de processo de subjetivação dos sujeitos. De acordo com essa perspectiva, o processo de subjetivação ocorre quando os sujeitos se reconhecem no discurso, se identificando com todos aqueles aspectos socioculturais construídos em torno do gênero, como a maternidade, a submissão, a delicadeza e os cuidados, reservando às mulheres um espaço subalternizado. Tais aspectos são difundidos, desde a infância, por meio de discursos, normas e instituições. Aquele sujeito que não se identifica, que não se reconhece nessas atribuições está fadado a viver na invisibilidade e nas margens. Assim, de forma compulsória muitos sujeitos são obrigados a seguir tais padrões, buscando se encaixar nos discursos da normalidade, adequando sua identidade, e a dos grupos, em uma concepção de mundo binário1 .
Entendendo a imprensa como um local de tensões, conflitos e de disputas de poderes, o Campinas (1936) e a imprensa escrita de maneira geral adequavam-se a sua própria época e a seu público leitor. Em suas páginas, aparecem discursos que reforçavam os binarismos efetivando uma simbolização naturalizada do tecido social: a hierarquização do gênero, a subordinação das mulheres, a maternidade como primordial, a mulher como rainha do lar, a dupla moralidade, a inferioridade feminina e a valorização do papel das mulheres voltado ao ambiente privado, legitimando uma mentalidade patriarcal que delimitava estereótipos aceitáveis para a mulher (AMARAL, 2008).
Assim, as mulheres eram naturalmente representadas nesses escritos conservadores e patriarcais como donas de casa e responsáveis por tudo que estivesse ligado ao privado, inclusive a educação dos/as filhos/as. Em uma tentativa de padronizar comportamentos e legitimar instituições, o feminino foi visto como dócil, delicado, maternal, submisso, doce, puro e suave, fortalecendo as supostas virtudes femininas (AMARAL, 2008: 928). Nessa tentativa de homogeneizar o comportamento das mulheres, seus discursos sustentaram a construção de ser passivo, abstrato, incorpóreo e não personificado (KUAMOTO; LOSNAK, 2015: 05). Em seus textos eram exibidos padrões culturais baseados em normas ditas masculinas e femininas, com a intencionalidade de impor uma suposta vocação privada e doméstica às mulheres em contraponto à masculinidade hegemônica. Em suas dinâmicas comunicacionais, havia uma tentativa de alocar as mulheres em um espaço singular de feminilidade, enquanto as masculinidades estavam compreendidas na pluralidade, ocupando espaços valorizados e públicos em que o mundo era o limite. Enquanto a mulher estaria restrita à natureza e ao mundo dos sentimentos, o homem agiria pautado na razão, solidificando o discurso de subordinação das mulheres.
Além disso, as publicações voltadas ao público feminino salientavam um possível padrão civilizatório baseado na família nuclear, legitimando o lugar das mulheres no privado como donas-de-casa, mães e esposas. Para tais instrumentos de comunicação, as mulheres que se desviassem de sua suposta natureza feminina seriam contrárias às aspirações sociais e à felicidade do coletivo. Nesse sentido, os discursos difundidos em tais periódicos e destinados às mulheres geralmente se limitavam a assuntos domésticos, receitas de comidas, beleza, dicas de limpeza e higiene, sugestões de como agradar o pai de seus filhos/as, decoração do lar e outras temáticas relacionadas à casa e aos cuidados com a família, os/as filhos/as e o marido. Ao difundir tais conjuntos discursivos, os jornais contribuíram para a determinação de supostos padrões de comportamento que eram desejáveis para uma mulher, traçando formas de pensar e, principalmente, regras de conduta (KUAMOTO; LOSNAK, 2015).
Esse tipo de jornalismo dedicado às mulheres não se posicionava no sentido de situar as mulheres no espaço público, mas operava com meia dúzia de assuntos sempre voltados ao privado (KUAMOTO; LOSNAK, 2015: 05). Os discursos eram também moralizadores e, em grande medida, religiosos, evocando sempre virtudes femininas relacionadas ao argumento bíblico, no qual Maria é a materialização perfeita da feminilidade. De acordo com Alves e Sanfelice (2011: 30):
Através dos inúmeros discursos propalados pela Igreja Católica Apostólica Romana, a imagem do feminino foi vinculada à figura sagrada de Maria que era casta, honrada e abnegada, sempre disposta a refrear suas vontades pessoais em favor do bem maior. Por ser portadora de virtudes, essa figura feminina foi elevada a uma das principais intercessoras de Deus junto aos humanos; e por isso um modelo a ser seguido por todas as mulheres.
A imprensa dedicada às mulheres não desnaturalizava as atribuições sobre o feminino e não refletia sobre outras possibilidades de existência e de protagonismo às mulheres. Sua atuação era normatizada e homogeneizadora, em um tom de discipliidnto, criando padrões de feminilidade de acordo com o que uma sociedade comandada por homens esperava (KUAMOTO; LOSNAK, 2015). Assim, a imprensa com temáticas voltadas às mulheres agia pragmaticamente no sentido de definir normatividades patriarcais, construindo mulheres padronizadas e anulando a possibilidade de múltiplas existências (MAZER, 2013: 04).
Dessa forma, a imprensa feminina foi capaz de atingir metade do gênero humano e influenciar toda uma vida social (KUAMOTO; LOSNAK, 2015: 04). No entanto, é crucial refletir sobre as subjetividades, as sensibilidades e, sobretudo, as múltiplas resistências, em uma abordagem foucaultiana entendemos que as sublevações e contestações a ordem vigente se fazem presente ao longo de todo o processo histórico atingindo diferentes espaços e abarcando relações díspares. Por conseguinte, convém fazer ponderações em relação à afirmação da mídia como um “quarto poder”, refletindo sobre os limites de suas influências e principalmente sobre as resistências silenciosas ou não dos sujeitos na monotonia do cotidiano, não se limitando às superficialidades das generalizações e de conclusões reducionistas.
Entre os veículos de comunicação locais, o jornal Campinas 2 foi um importante jornal que circulou em Araranguá (SC) em meados do século XX. O Campinas era de propriedade e direção de Durval Matos e difundiu-se na cidade entre janeiro e dezembro do ano de 1936. Durval era descrito pelo jornal como um “obreiro do bem” e um “baluarte da civilização”. O diretor também era caracterizado como alguém que “desbrava[va] heroicamente” aquilo que se opõe à civilização e que deve ser amparado pela sociedade. Essas citações foram transcritas exatamente como estavam publicadas nos jornais, os quais foram encontrados no Arquivo Histórico de Araranguá. O jornal se destinava ao público que o assinava e que o recebia semanalmente em seus lares ou estabelecimentos comerciais. O mesmo se declarava independente, alegando que não estava ligado de forma alguma a partidos políticos, apenas observando os acontecimentos e comentando os fatos de natureza partidária estando de acordo com a “sã razão” e a opinião pública. Ainda afirmava que era amigo do leitor, produzindo reportagens que agradavam “gregos e troianos”, ou seja, um jornal imparcial e neutro que visava apenas repassar informações verossímeis a seu público leitor. Em muitos de seus escritos, fazia-se entender como porta-voz da sociedade, exaltando o poder da mídia como mediadora de conflitos sociais:
A VOZ DA IMPRENSA – Especial para o <Campinas>. A voz da imprensa é o brado do povo, é o clamor da sociedade, é o grito das multidões, e o jornal é o quarto poder de uma nação, é o veículo mais poderoso das necessidades de uma coletividade. A localidade onde não há jornal é um organismo sem vida, é uma vida sem seiva, é a morte de um povo. (CAMPINAS, 19/07/1936)
Além de se afirmar como politicamente neutro, o Campinas ainda se colocava como um “quarto poder” capaz de mediar e defender o interesse dos cidadãos e cidadãs para o bem caminhar da sociedade. Posicionava-se como um espelho capaz de refletir sem distorções a voz do povo, sendo medida do desenvolvimento social local. Essa pretensa imparcialidade era representada, em comparação com um tribunal de justiça, como órgão mediador que se ocupava da função de proteger o ordeidnto político, zelando pelo bem-estar social e sem beneficiar nenhuma das partes envolvidas. Assim sendo, o tribunal deveria solucionar os litígios com suposta imparcialidade.
[...] E’co da voz popular, é o jornal uma força impulsiva que atua milagrosamente na roda do progresso de uma nação. Mede-se a extensão do progresso de um povo pelo numero de jornais que entre ele circula. O jornal é um tribunal onde se julgam as questões mais graves de um povo, é a tribuna donde se ouvem as opiniões mais abalisadas. Sem o jornal não pode haver justiça, o direito periclita, o depotismo domina. Assinar, pois, o <Campinas>, é contribuirmos com nosso contigente para o progresso de Araranguá [...] [sic] (CAMPINAS; 19/07/1936).
Por meio dessa identificação, o jornal objetivava atrair um número cada vez maior de leitores e assinantes, pois sua estratégia era atingir um status de confiabilidade que manteria as assinaturas vigentes e angariaria novas, atraindo, assim, por meio de um amplo e fiel público, novos anunciantes. Como aponta LaPuente (2015), essa era uma tática muito comum entre os jornais que tinham sua subsistência garantida pela quantidade de assinantes, mas sobretudo, pela quantidade de patrocinadores e anunciantes. Conhecer o público leitor de um jornal é de suma importância para a pesquisa histórica, pois por meio desse levantamento é possível investigar a abrangência e, sobretudo, o impacto de um jornal na formação da opinião pública (LAPUENTE, 2015: 09). Essa suposta influência também precisa ser pensada a partir da perspectiva de gênero, observando-se a potência em difundir as imagens tradicionais do feminino, já que essas publicações tinham nas mulheres também público leitor. Os periódicos voltados totalmente ou parcialmente às mulheres, de certa forma, reproduziam em suas páginas o que a sociedade patriarcal encarava como importante para as mulheres, difundindo normas, padrões e valores morais que deveriam ser estritamente seguidos no cotidiano feminino (RODRIGUES, 2004: 04).
Desse modo, o Campinas, assim como outros periódicos locais, instituiu narrativas e potentes discursos que tinham por finalidade normatizar formas de pensar e agir, definindo locais sociais para os sexos, além de delimitar espaços de ação na esfera pública e mobilizar a opinião das leitoras (LEITE; NETO, 2015: 06). Ainda esmiuçando tais nuances, pode-se observar que o Campinas se colocava como um intermediário entre os indivíduos e o coletivo ao qual pertencia, instituindo os caminhos da boa convivência e colocando-se como timão social.
O PROGRAMA DO CAMPINAS: [...] O jornal independente é o veiculo da opinião pública e segue sobranceiro o programa que traçou no percurso de seu ciclo. O jornal isento de política como o <Campinas>, tem sempre deante de si, larga diretriz a indicar-lhe o rumo seguro a seguir, e não pode se desviar dessa róta, sob pena de mentir ao seu programa.[...]. Amamos o próximo como a nós mesmo, segundo o preceito de Jesus. [sic] (CAMPINAS; 19/05/1936)
O jornal trazia em seus escritos as mais variadas temáticas relativas à região e que, de alguma forma, iam ao encontro das necessidades de seus leitores e leitoras, materializando certo conservadorismo que havia na região de Araranguá. No entanto, nem só a notícias políticas e econômicas se dedicava o jornal. Apesar de o Campinas não ser um Jornal exclusivamente dirigido ao público feminino, havia em diversas seções trechos sobre o lugar das mulheres na sociedade, ressaltando modos de agir e determinando espaços e funções para sua suposta feminilidade.
Os artigos sobre as mulheres vinculavam-se ao perfil da mulher universal, ou seja, de esposa, mãe e dona-de-casa. Nesse sentido, o jornal objetivava produzir imagens específicas sobre o feminino, reforçando estereótipos, limitando espaços e impondo representações aceitáveis de feminilidade e, assim, reforçando mecanismos que perpetuavam no imaginário coletivo uma concepção binária e completamente oposta entre homens e mulheres. O doméstico e a vida no lar eram imperativos para as mulheres do Campinas, que, executando as tarefas de casa com perfeição e doçura, chegariam ao ápice de sua contribuição social:
[...] Mas o que o lar adorna e o lar adora, é muito mais mulher e mais senhora que, a que mais seda gasta e luxo ostenta. Nós os simples queremos a mais pura, que tenha menos graxa e mais frescura, gostosa como um prato de polenta!... (CAMPINAS, 05/01/1936)
O recorte acima destacado faz parte de um poema publicado em 1936, no qual se buscava exemplificar o lugar social da mulher para o bom caminhar de sua família e, consequentemente, de sua comunidade. Como se pode perceber, a publicação opera com duas concepções de mulher, aquela que se dedica ao lar, mantendo a ordem social por meio de sua resignação; e a outra que prefere os luxos da vida. A mulher luxuriosa ou soberba sempre foi vista com maus olhos pela sociedade judaico-cristã, pois representaria as forças incontroláveis da natureza, levando o homem a sua derrota. Eva, por exemplo, por sua soberba e astúcia levou a humanidade à expulsão do paraíso; a mulher de Ló, desobediente ao mandato divino, virou estatua de sal. Essa construção social clássica opera em duas chaves opostas do patriarcado. De um lado, a mulher-anjo, representação irretocável de Maria; do outro, mulher-demônio, sedutora e luxuriosa por natureza, representada por Eva, Pandora, Medeia, entre outras (LIMA, 2012: 400). Os valores socioculturais que são esperados do feminino vão ao encontro da mulher angelical, serva do lar e da família, aquela que renuncia aspirações individuais em favor de harmoniosas relações familiares. A mulher-anjo seria a legítima materialização dos desejos divinos, pois, atenciosa, amável e graciosa, ela dignificaria o corpo social no qual estava inserida, tornando-o exemplo aos demais. Essa figura discursiva é também encontrada no Campinas de 31 de maio de 1931:
As Belezas do Araranguá: Araranguá é uma das mais risonhas cidades do Estado [...] O ararangua’ensse é hospitaleiro, cavalheiro e comunicativo. ‘As mulheres são graciosas, amáveis e muito atenciosas. [sic] (Campinas, 31/05/1936)
Ainda por meio do trecho destacado é possível perceber como o Campinas firmava o araranguaense em oposição aos indivíduos de outros municípios, em uma tentativa de construir uma identidade homogênea em oposição a outras regiões. Assim, a mulher é apresentada de forma homogênea e em consonância com as expectativas patriarcais, não levando em consideração que cada sujeito se constrói de maneira completamente heterogênea, a partir de diferentes experiências e vivências (KUAMOTO; LOSNAK, 2015). Repetidamente o feminino é subalterno, gracioso e amável. Nas palavras de Simone de Beauvoir (1949), é o segundo sexo.
Esses elementos são rotineiramente utilizados em nossa sociedade para definir o que é próprio das mulheres. Mesmo com o mundo inteiro para desbravar, a verdadeira mulher, em nome da nação e de sua família, optaria por não ultrapassar os limites demarcados pelo privado, pelo doméstico e por sua casa.
O LAR: O lar é um pequeno Estado. O marido representa o Legislativo, a mulher o Executivo. Pairando acima desses dois poderes está o Judiciario exercendo-se através da consciencia de ambos os cônjuges. Quando esses poderes agem, cada um dentro de sua respectiva orbita de ação, o Estado prospera, reina paz e ordem entre o povo (filhos e domesticos) que, feliz, vae fruindo os proventos de um bom governo. O Estado torna-se respeitado, goza de otimo conceito sendo uma potencia cotada na politica internacional (a sociedade). [...] O lar é tambem semelhante ao corpo humano. O marido é a cabeça, a mulher, o coração. Filhos e domesticos, os demais membros e órgãos. O cérebro pensa, o coração sente. Tudo vae bem. O cerebro índaga, investiga, sonda, prescruta. O coração ama, sofre, goza e perdôa. A vida é inteligencia e é tambem sentimento, portanto depende do cerebro e do coração. A mà função de um ou de outro compromete a saude do corpo, destruindo o encanto do lar e, consequentemente a alegria de viver [...] [sic] (Campinas, 27/09/1936).
Diferentes aspectos são passíveis de análise nesse trecho intitulado “O Lar”. Observamos como a mulher é afastada da razão, sendo capaz de agir somente por intermédio do coração e das emoções. Distante de todos os elementos que compõem a racionalidade, como a capacidade de intervenção na esfera pública, a boa mulher agiria apenas por meio das emoções, cuidando e zelando pela harmonia familiar, entendida como um elemento pré-político e livre de tensões. De acordo com Michelle Perrot (1988), essa divisão é clássica no ocidente, evocando a inferioridade feminina frente à racionalidade.
É um discurso naturalista, que insiste na existência de duas “espécies” com qualidades e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. As mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. (PERROT, 1988: 177)
Esses princípios que organizariam a vida política e privada explicam os o condicioidnto das mulheres na esfera privada, distante da ação na vida pública. Sob esta ótica, os homens, como legítimos representantes da humanidade e seres completos, seriam capazes de se comover com as desventuras humanas, unindo força e racionalidade para promover mudanças sociais (FERNANDES, 2014: 72). Esse tipo de discurso se ancora na ideia de complementaridade entre as funções concebidas como naturais para homens e mulheres. Constata-se uma valorização do feminino, mas sempre em contraponto ao masculino, que é norma e modelo. Assim, a busca pela felicidade e por uma sociedade ordeira só seria possível se cada um estivesse cumprindo seus deveres naturais, caso contrário, não haveria felicidade, ordem e paz, mas sim uma guerra de todos contra todos.
É possível de perceber que os discursos do jornal Campinas reiteradamente difundem concepções estereotipadas para mulheres e homens; a primeira entendia como rainha do lar, enquanto o último era visto chefe de família e cabeça pensante no núcleo familiar, forjando aquilo que Michelle Perrot chamou de racionalidade harmoniosa da divisão sexual (PERROT, 1988). O homem é a cabeça, a mulher o coração, um é público, o outro é privado, um exerce o poder social, o outro a administração do íntimo, um é razão, o outro é apenas sentimentos.
Corroborando essa interpretação de mundo, o jornal Campinas anunciava em suas páginas no dia 27 de setembro de 1936:
[...] Mulher! sois a rainha do lar, No lar, tudo depende de vós. Sem lar não ha familia, não ha sociedade, não ha patria, não ha felicidade na terra. E o lar é o nosso reino. Seja qual fôr vossa condição de momento – esposa, mãe, filha ou irmã – voltae-vos para o lar; sois ali chamada para salvar o homem redimindo o mundo. Não vos iludais: essa é a vossa missão. [sic] (CAMPINAS, 27/09/1936)
O excerto acima destacado demonstra que durante a década de 30 havia uma preocupação em dificultar outras possibilidades às mulheres. Ao que parece, para a moral predominante no período, havia uma total incompatibilidade entre alternativas de ação no mundo que não estivessem exclusivamente voltadas ao lar e a sua “missão” de esposa, mãe, filha ou irmã de alguém. O jornal ressaltava que a prioridade de toda boa mulher era o cumprimento do papel de rainha do lar, qualquer outra forma de atuação fora desses parâmetros era entendida como uma ameaça. O jornal, como porta voz social, preocupa-se com qualquer atividade externa ao espaço doméstico, pois isso poderia desestabilizar as tradicionais formas de organização da família e do matrimônio.
No texto “O Lar”, construíam-se concepções coercitivas de feminilidade que perpetuavam mecanismos de dominação masculina encharcados de violência simbólica. Essa violência simbólica é concebida como um fator natural respaldado por condicionantes biológicos e que, além de expressar desmedidamente preconceitos, nos apresenta um diagnóstico pormenorizado de uma sociedade que forjou seu pequeno mundo hegemônico. (BOURDIEU, 2014). Para a historiadora Carla Bassanezi:
A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura. Na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional. (BASSANEZI, 2004, p.509)
O estabelecimento dessa identidade feminina projetada pela mídia impressa colocava a mulher como “rainha do lar”, onde tudo dependia dela, romantizando uma violência simbólica que sobrecarregava as mulheres com todos os serviços domésticos, alicerçando a divisão sexual do trabalho e neutralizando possíveis questioidntos. As tarefas domésticas – como cozinhar, lavar, passar, cuidar dos filhos e limpar a casa – eram consideradas deveres exclusivamente femininos (BASSANEZI, 2004: 523). Além disso, a pátria, a felicidade, a família e a sociedade, eram quatro elementos supervalorizados nos anos 1930. Às mulheres cabia, então, a responsabilidade de zelar pelos bons costumes, salvando o homem dos perigos representados pela rua e pelo espaço público. Esse discurso, dado como neutro, construiu o gênero como um marcador de discriminação e gerador de desigualdades, disfarçado aqui como “graça natural, um encanto ou ternura ‘próprios’ da mulher [...]” (OLIVEIRA, 2012: 16). Neste sentido, assim escrevia o Campinas:
A angelical influencia da mulher na vida do homem: O poder da argumentação cientifica e filosofica do homem não opera os milagres que faz a meiguice de uma mulher que sabe suplicar com lagrimas nos olhos. [...] Isso vem a propósito do caso de uma moça que obteve, com ameiguice de sua voz súplice, o perdão de um condenado à pena última. [sic] (CAMPINAS, 19/07/1936)
Neste trecho, o Campinas reforçava novamente uma ideia semelhante àquela que anteriormente associava os homens ao cérebro e as mulheres ao coração. Nessa junção entendida como natural aos respectivos sexos, as mulheres, utilizando-se de estratégias sentimentais, teriam a capacidade de alcançar seus objetivos por meio de aspectos angelicais e meigos. Essas concepções da mulher ardilosa circulavam e se articulavam no imaginário social, cristalizando uma concepção feminina ligada à doçura e à capacidade de convencimento, tal como Eva fez no Jardim do Éden. Assim, por meio dessas concepções estereotipadas, as mulheres em diversos momentos históricos foram entendidas como seres que agem nos bastidores, nas sombras, corroborando com o dito popular “Por trás de um grande homem, existe uma grande mulher”. A melhor maneira que as esposas tinham para fazer prevalecer suas vontades era usar estratégias sutis e subterfúgios. Em outras palavras, aplicar o jeitinho feminino (BASSANEZI, 2004: 527).
[...] as mulheres puxam os fiozinhos dos bastidores enquanto os pobres homens, como marionetes, mexem-se na cena pública. Inspiradora da decisão política, muitas vezes, tomadas “sobre o travesseiro”, a mulher, em si tão pouco criminosa, é a verdadeira instigadora do crime. (PERROT, 1988: 168)
Esse perfil da mulher ardilosa, tocada por sentimentos e desejos pessoais, era difundido no Campinas, que propalava a ideia de as mulheres operarem pautadas por interesse, nas “sombras”, na “cama”, desvelando um feminino que também poderia ser perigoso e manipulador. Assim, conforme adverte Perrot (1988), a mulher foi tradicionalmente concebida como potência noturna, força das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno, da ordem e da razão lúcida [...] (PERROT, 1988: 168). As relações que emergem desses impressos forjam novamente o mito da feminilidade a-histórico e imutável.
Além disso, essa “influência feminina angelical na vida de um homem” sustentava também os discursos de uma sociedade notoriamente heterossexual, com uma representação normativa de feminilidades e masculinidades, classificando como anormal ou aventura qualquer tentativa de transpor a norma. Para o jornal, a mulher era sinônimo de doçura e submissão, enquanto o homem, de força e razão. Assim, a suposta inversão de papeis era entendia como um atentado às formas tradicionais de existência:
Cousas novas e cousas velhas: O inverno, este ano, está entre nós, desde abril, com seu importuno cortejo de chuvas e ventos frios. E’ que as cousas saíram fóra dos seus eixos; não são como eram antigamente [...] As proprias mulheres inverteram seus papeis no convivio com os homens. Ja trajam <a la homme>, exercem profissão do homem; só não podem é viver do sexo <a la homme>. E’ de esperar que o homem, por sua vez, viva <a la femme>, efemenize-se, traja saia, ande sentado sobre o selim, deixe crescer o cabelo, não mais use bigode e torne-se ama seca dos filhos. [sic] (CAMPINAS; 19/07/1936)
Por meio dessas afirmações, o Campinas reconhecia que determinadas mudanças podiam estar ocorrendo na sociedade de Araranguá de 1936. Ao utilizar a alegoria climática, a publicação denunciava um desequilíbrio na natureza das coisas, que colocava em risco a harmonia da mãe-natureza. O jornal compara essas alterações climáticas com as mudanças ocorridas no meio social, que naturalmente se pautava em condutas específicas de homens e mulheres e que não podiam ser alteradas, sob o risco de desequilibrar a ordem das coisas. Havia uma crítica a tudo que estivesse “fora do lugar” e o argumento do jornal se baseava na ideia de que o homem “efemenizava-se” ao se aproximar do dito mundo das mulheres, tornando-se uma espécie de “ama seca” dos filhos quando se dedica aos trabalhos cuidados. Esse discurso se alicerça em concepções seculares que entendiam a maternidade e os cuidados como essencialmente femininos. A mulher, por sua vez, que se parecer ao homem, não poderia viver “do sexo à la homme”, requerendo seus privilégios e liberdades, pois esses dois elementos eram centrais na composição gênero masculino e nefastos para a feminilidade.
Dessa forma, percebe-se que os periódicos com escritos e textos destinados às mulheres homogeneizavam os supostos atributos de feminilidade, criando um modelo ideal de mulher e sugerindo que todas fossem dóceis tanto de forma física quanto comportamental (RODRIGUES, 2004, p.2). Assim sendo, a mulher ideal não rechaçava os aspectos fixos e naturais de feminilidade e muito menos cobiçava espaços e posições consideradas masculinas:
O QUE FALTA A NOSSA CIDADE: Em Araranguá não ha uma biblioteca [...]. Poucas pessoas lêm e ninguem estuda [...]. As moças apreciam mais do que os rapazes, uma boa literatura. Não é raro ver-se uma moça lendo nas horas não consagradas ao serviço doméstico. Raros são os moços que dedicam alguns minutos à leitura de uma obra de qualquer natureza. Estudai, mocidade de ambos os sexos [...]. [sic] (CAMPINAS, 23/02/1936)
No recorte acima exposto, o articulista concebe as mulheres como aquelas que dedicam tempo à leitura, ao contrário dos rapazes que, como portadores da razão e futuros timoneiros do país, pouco tempo empenhavam na leitura, fragilizando sua posição dominante. No entanto, nessa representação discursiva, as mulheres continuam “consagradas” ao serviço doméstico. A isso, junta-se outra problemática, a leitura das “moças” não representou uma ameaça aos padrões femininos e aos papéis de gênero, levando em conta que isso estaria sendo realizado em momentos não reservados aos trabalhos supostamente femininos. As tarefas domésticas não foram descartadas da agenda feminina. “As mulheres acumulam funções” (RODRIGUES, 2004: 06).
O direito à instrução e à educação por parte das mulheres foi incentivado, mas em horários alternativos à labuta doméstica, como forma de conciliar as tarefas do lar como um pouco de instrução. Cabe ainda salientar que a literatura considerada ideal para as mulheres eram os romances, que, por meio de histórias cheias de aventuras e desventuras, preparava as moças para as fortunas do casamento e da vida a dois. Assim, a partir das análises de Vicente, podemos entender que o Campinas, ao propor tais interpretações sobre a realidade, apresentava-se como uma espécie de manual que ditava regras sobre o comportamento feminino e por isso seus discursos foram significativos na construção das identidades de gênero (VICENTE, 2010: 38).
O jornal ainda possibilitava que as mulheres se manifestassem sobre a vida cotidiana da cidade, seus eventos culturais e sociais, além das problemáticas que envolviam as relações entre homens e mulheres.
A’S ANONIMAS: Nós abaixo assinados, <A Trinca>, viemos por meio deste responder á carta anonima publicada no numero 22 do <Campinas> e dirigida (segundo diz a mesma) por uma comissão de senhoras ao snr. Prefeito desta cidade no sentido de ser extinto o jogo neste município. Nós que somos jogadores, achamos que estas “senhoras” perderam uma boa ocasião de ficar caladas, porque péor do que o jogo existe outros fatos que as mesmas deveriam interessar-se mais, que é o de: certas mocinhas andarem com seus namorados, perambulando pelas ruas da cidade atè altas horas da noite; tomarem parte em farras junto com a rapaziada, ficando com estes completamente embriagadas, como se deu pela festa ultima [...] Portanto cuidem mais estas “senhoras” de suas filhas (si é que as têm) e deixe-nos em paz. [sic] (CAMPINAS, 06/1936)
A carta resposta acima destacada representa a insatisfação dos homens da cidade com as reclamações públicas que determinadas “senhoras” teriam feito ao prefeito da cidade. Tais reclamações estavam relacionadas aos jogos que aconteciam em espaços públicos da cidade. Sobre esta intervenção, é importante perceber as justificativas utilizadas pelos homens para desqualificar as supostas reclamações das mulheres. No texto remetido ao jornal, os homens, em tom repreensivo, dirigem-se às mulheres condenando-as por não educarem bem sua prole, principalmente suas filhas, que andavam perambulando embriagadas pelas ruas da cidade. Fica explícito que para eles o papel da mulher era cuidar da casa e de sua família e não fiscalizar o espaço público, que não as pertencia. Assim, a alternativa encontrada pelos homens foi criticá-las por falhar no cumprimento de sua tarefa essencial, relembrando-as de suas funções como mães e responsáveis pela educação dos/as filhos/as. Esse rechaço da mulher como membro da esfera pública estava atrelado ao entendimento de que o espaço público não pertencia a elas e por isso qualquer intromissão era radicalmente condenada por meio de um discurso que as recolocava em seu ‘verdadeiro’ lugar, o lar.
Só muito recentemente a figura da “mulher pública” foi dissociada da imagem da prostituta e pensada sob os mesmos parâmetros pelos quais se pensa o “homem público”, isto é, enquanto ser racional dotado de capacidade intelectual e moral para a direção dos negócios da cidade. Pelo menos até a década de sessenta, acreditava-se que a mulher, sendo feita para o casamento e para a maternidade, não deveria fumar em público ou comparecer a bares e boates desacompanhada, e a política ainda era considerada assunto preferencialmente masculino. (RAGO, 2004: 504)
Se, por um lado, o jornal delegava às mulheres essa função de cuidados, exaltando a magnitude do ser mãe como fim último feminino, por outro lado, revestia-se desse mesmo discurso para legitimar o silenciamento dessas mulheres em quaisquer outros âmbitos para além do espaço doméstico. Não obstante, segundo a publicação, recaía sobre as mulheres a total responsabilidade sobre filhos/as. A valorização da função materna justifica-se pelo fato de as mães serem as grandes responsáveis por engendrar a moral das futuras gerações e dos futuros cidadãos (TURACK, 2008: 08). No caso específico analisado, essa valorização materna é ainda mais vigorosa quando estava se referindo à educação das filhas.
Frente ao conjunto de discursos apresentados, podemos aferir que o Campinas de Araranguá, de 1936, foi um importante elemento na criação de subjetividades, delegando lugares normatizados para homens e mulheres. No âmbito historiográfico, ao nos debruçarmos sobre os discursos produzidos pelo jornal, não queremos colocá-lo como um reflexo da verdade, mas como elemento capaz de fornecer interpretações sobre o contexto social da época, entendendo como determinados grupos sociais partilhavam valores morais, culturais e sociais que colocavam as mulheres em lugares subalternizados. O jornalismo do Campinas era representado por vozes masculinas que ditavam normas de feminilidade, controlando, disciplinando e construindo o feminino de acordo com os padrões ideais vigentes.
Sendo assim, eles seleccionam e constroem o que definem como noticiável, ou seja, recorrem aos valores-notícia que, segundo Nelson Traquina (2004: 119), são um “elemento básico da cultura jornalística que os membros desta comunidade interpretativa partilham”. (CERQUEIRA, 2008: 140)
Nessa perspectiva, conclui-se que o discurso jornalístico do Campinas é um poderoso instrumento da indústria cultural que normatiza lugares aceitáveis para homens e mulheres. Sua produção discursiva, encampada principalmente por homens, invisibilizou e impediu as vozes femininas de se pronunciarem, buscando alocar as mulheres na mera condição de receptora passiva de tais prédicas (CERQUEIRA, 2008: 140). Por fim, gostaríamos de afirmar que tais jornais legitimaram hierarquias e desigualdades de gênero, conferindo privilégios aos homens, que, a partir de tal posição, asseguravam a dominação masculina.
Fonte Consultada:
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VINICIUS. O lar. Campinas, Araranguá, 27 set. 1936.
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MOAMÉME, Dr. A angelical influência da mulher na vida do homem. Campinas, Araranguá, 19 jul. 1936.
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*Acadêmica da oitava fase do curso de História. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero.