Michael Jhonatan Sousa Santos*
Dagoberto Rosa de Jesus**
Instituto Federal de Mato Grosso, Brasil
michael_jhonatam@hotmail.com
Resumo: Neste trabalho, objetivou-se apresentar dados teórico-conceituais que possam subsidiar estudos acerca das relações de intertextualidade e tradição que se estabelecem entre textos de diferentes escritores e períodos e sobre como podemos abordar tais relações. A metodologia baseou-se numa revisão bibliográfica sobre o conceito de tradição em Antonio Candido (2000) e de intertextualidade em Julia Kristeva (2005), que foram cotejados tendo como parâmetro as noções de sujeito, sentido e limitação do sentido. No âmbito teórico da intertextualidade, observou-se que o sujeito não domina o sentido do texto. Já no arcabouço a que se liga o conceito de tradição, ele é dotado de qualidades que lhe permitem criar e transmitir sentidos. Nesse âmbito teórico, o sentido dos textos é figurado como fogo, seu poder de iluminação remete à noção de verdade. O conceito de intertextualidade, por sua vez, supõe que a verdadesomente ocorre na ausência de sentido, num espaço anterior a ele, o do pré-sentido. O último ponto da análise comparativa que empreendemos disse respeito à possibilidade de contenção do sentido pelo sujeito. O conceito de tradição supõe que isso seja possível. Já a intertextualidade é o próprio mecanismo da significância que impossibilita o fechamento do sentido de qualquer texto.
Palavras-chave: Tradição, Intertextualidade, Texto.
Abstract: The aim of this work is to present theoretical-conceptual data that can support studies on the relations between intertextuality and tradition which are stablished among texts of different writers and periods and about how we might approach such relations. The methodology was based on bibliographical revision, focused upon the concept of tradition in Antonio Candido (2000) and of intertextuality in Julia Kristeva (2005), which were compared considering notions of subject, meaning, and limitation of meaning. In the theoretical scope of intertextuality, it was found that the subject does not dominate the meaning of the text. As to the framework to which the concept of tradition is connected, it is imbued of qualities that allow it to create and convey meanings. In such theoretical sphere, the meaning of the texts is presented as fire, its power of illumination referring to the notion of truth. Diversely, the concept of intertextuality, assumes that truth only occurs in the absence of meaning, in a space prior to it, that of pre-meaning. The last point of the comparative analysis which was undertaken refers to the possibility of containment of meaning by the subject. The concept of tradition supposes that this is possible. As to intertextuality, it is the very mechanism of significance that makes it impossible the closure of meaning of any text.
Key Words: Tradition, Intertextuality, Text.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato: 
Michael Jhonatan Sousa Santos y Dagoberto Rosa de Jesus  (2018): “Tradição e intertextualidade”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (abril 2018). En línea:
 https://www.eumed.net/rev/caribe/2018/04/tradicao-intertextualidade.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1804tradicao-intertextualidade
1. Introdução
Neste artigo  indagamo-nos acerca das possíveis relações que textos de diferentes escritores  e períodos podem manter entre si, sobre como podemos abordar tais relações e  sobre como essas abordagens transformam esses objetos de estudo, chamados de  “texto”, e todo o universo de que fazem parte. Trata-se, assim, de uma questão  de caráter teórico e metodológico. Para respondê-la, oferecem-se pelo menos  dois conceitos: o de tradição literária e o de intertextualidade, segundo  Antonio Candido (2000) e Julia Kristeva (2005), respectivamente. Em virtude  disso, neste artigo, objetivamos refletir acerca desses conceitos e  cotejá-los.        
   Poderia ajudar-nos a  definir o que são essas relações entre obras de diferentes escritores e  períodos, ainda, o conceito de “influência”. Este designa o resultado artístico  do contato de um escritor com a obra de um outro que lhe antecedeu (CIONARESCU,  1964, p. 92 apud NITRINI, 2010, p.  127). Nesse sentido, levantaríamos evidências de que os escritores conheceram  as obras uns dos outros. Em seguida, o trabalho seria o de aferir se houve  alguma influência e de que grau ela seria. 
   Contudo, de início,  entendemos como inviável o uso dessa concepção. Primeiro, porque, como se  depreende de Nitrini (2010), ela se propõe a explicar a existência dos textos  literários a partir do conhecimento acerca da vida dos sujeitos protodures e  não a partir dos fenômenos semióticos que tais textos são. Desse modo, a  compreensão do que é o poético acaba reduzida ao diálogo de dois sujeitos.
   Pode-se expor a influência  de um escritor sobre outro quando viveram em épocas diferentes, e o mais antigo  é tido como cânone. Contudo, a simples coincidência de temas, imagens e  estruturas não  é  suficiente para afirmar uma relação de influência, segundo Harold Bloom (apud NITRINI, 2010, p. 147). Para Bloom,  a influência é evidenciada pela angústia que um poeta vivenciaria em  decorrência do contato que teve com a obra de outro. 
   Mas, afinal, o que nos  dá segurança para afirmar que houve qualquer relação de influência entre um  autor e outro, sem que haja de fato um documento que o ateste? Ou, mesmo em  face de semelhante documento, que existe no caso, por exemplo, das líricas gonzaguiana  e garrettiana, e se trata de um texto em que o romântico português apresenta um  estudo da obra do árcade brasileiro (VIEIRA, 2017), como separar, no âmbito da  obra de Garrett, o que é Gonzaga daquilo que são outros textos? Excluindo-se a  carga pejorativa suscitada pela palavra “influência”, como definir o grau de  influência de um escritor sobre outro? Por considerarmos impossível definir até  que ponto um texto determinado condiciona a existência de outro a partir do  estudo de seus aspectos formais, rejeitamos a noção de influência. 
   Sendo assim, passemos  ao estudo dos conceitos de tradição e intertextualidade. 
2. Tradição  e intertextualidade 
   2.1 Tradição  e literatura 
   
   Nos trabalhos  desenvolvidos pelo crítico literário brasileiro Antonio Candido, o conceito de  tradição literária assume um papel fundamental. Por isso, antes de expor o que  é tradição para esse estudioso, vejamos a função desse conceito em alguns de  seus textos.   
   Candido (2000) concebe  a literatura como um fenômeno sistêmico composto de quatro elementos: um grupo  de autores de textos literários, conscientes de seu papel; um conjunto de obras  que apresentem denominadores comuns; leitores oriundos de públicos diversos; e  a continuidade temporal dessa estrutura triangular. A essa continuidade ele  chama tradição e, sem ela (2006, p. 147), não há literatura. 
   Nessa concepção,  destaca-se o fato que de que a literatura não é um fenômeno que se define  textualmente, mas na vida social. Literatura e a sociedade distinguem-se, de  forma nítida, sendo esta a causa da existência daquela: entendemos por  literatura “fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem  certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam  uma socialização dos seus impulsos íntimos” (CANDIDO, 2006, p. 147). 
   Embora essa proposta de  compreensão do fenômeno literário coloque a imanência dos textos num segundo  plano, em outros trabalhos, como no ensaio Crítica  e sociologia (2006), Candido afirma que a existência do texto literário  apoia-se em aspectos de sua imanência e em fatores sociais. Depreende-se dos  citados trabalhos desse escritor que a necessidade de compreender a imanência  dos textos estaria mais diretamente relacionada ao que ele chama de manifestações literárias. Fenômenos estes  que podem ocorrer independentemente da existência de uma literatura, portanto  aquém de qualquer tradição. 
   Isso implica dizer que tomar o elemento  “tradição” como determinante do fenômeno literatura não inviabiliza,  necessariamente, o estudo dos aspectos imanentes do texto literário, o que só  ocorreria se tal estudo elegesse a tradição como perspectiva de análise  dominante. Inclusive, esse gesto de eleger um ponto de vista é o fato arrogado  por Candido ao introduzir os resultados obtidos em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (2000): 
Em um livro de crítica, mas escrito do ponto de vista histórico, como este, as obras podem não aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstraímos as circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição. (p. 24)
Feitas essas considerações, vejamos o que é tradição, para Antonio Candido:
Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema [literário], ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização. (2000, p. 24)
Com base no fragmento  acima, por tradição literária entendemos não apenas uma sequência de obras  intertextualmente ligadas, mas o efeito produzido por uma vontade de transmitir  valores, estéticos e semânticos, para além de sua própria existência limitada  no tempo. Mais do que uma referência ao passado, a ideia de tradição indica,  assim, uma confiança no futuro. Aponta para a convicção de alguém que,  examinado o que lhe foi legado e consciente da própria finitude, decide passar  para as gerações futuras os valores de seu tempo, os considerados relevantes e  dignos de serem transmitidos. 
   Verifica-se, também,  que tradição denomina um gesto de desprendimento e altruísmo, visto que o  sujeito que transmite não tem qualquer controle ou garantia de que o seu legado  terá importância na vida de outras pessoas ou que será retransmitido e  lembrado. Ainda assim, decide legar o que entende ser o melhor de si e de seu  tempo para pessoas que não conhece e com as quais não tem, necessariamente,  qualquer vínculo. 
   Em virtude do modo como  o raciocínio teórico se constrói, compreende-se que não há a necessidade de que  o sujeito que deseja transmitir saiba quem dará continuidade aos valores que  transmitiu, ainda que tal sujeito transmissor possa supor que esse indivíduo,  ou grupo, que receberá o seu legado, possua características que se assemelhem  às suas, tais como credo, formação e classe. Contudo, o transmissor teria certo  controle sobre o assunto a ser transmitido, cabendo a ele estabelecer limites  para possibilitar que essa matéria possa ser recuperada pela posteridade. 
   A primeira conclusão  que se tira do fragmento apresentado é a de que o cerne da tradição é a matéria  transmitida mediante a forma que apresenta. Seguindo a analogia de Candido, esta  funcionaria como a pira em relação fogo. A maneira como a tradição se  estrutura, nessa perspectiva, obriga os sujeitos que herdam valores a  aceitá-los ou rejeitá-los, processo no qual entra em jogo a resignificação. A  depender do modo como ocorre, pode haver subversão da matéria herdada, situação  em que ela assume sentido diferente do desejado pelo transmissor. Quanto a  isso, depreende-se de Candido (2006) que a permanência da uma obra no tempo  enquanto elemento de tradição estaria mais estreitamente ligada ao seu aspecto  formal do que ao conteúdo que visa transmitir, visto que este pode adquirir  diferentes significações ao longo da história enquanto o aspecto formal  permaneceria estável, garantindo a continuidade de, pelo menos, uma parte do  que foi legado.  
   A segunda a que se  chaga é que esse conceito envolve o sentido de limitação. Não é possível  transmitir tudo o que somos, só uma pequena parte tem condições de seguir  adiante, por isso a tradição é, figurativamente, a “transmissão da tocha entre  corredores” (p. 24). 
   O significante “tocha”  remete à “iluminação” e “corredor” respeita às faculdades superiores dos  sujeitos que decidem legar algo para a posteridade. Tais elementos sugerem que,  no interior de uma tradição, os valores são transmitidos com base numa  finalidade conscientemente elaborada. Desse modo, subjaz ao conceito  apresentado por Candido uma visão teleológica da história e da humanidade. 
2.2 O texto como produção e o sujeito produtor
A partir do exposto,  comparemos intertextualidade e tradição. Primeiramente, verifica-se que esta é  uma manifestação da vontade humana, conforme depreendemos de Candido  (2000).  Comecemos, então, a partir dessa  ideia de “vontade do sujeito”. 
   O conceito de  intertextualidade é desenvolvido no livro intitulado Introdução à semanálise, de autoria da estudiosa búlgara Júlia  Kristeva. Ele se insere no âmbito de uma teoria cuja finalidade, entre outras,  é a de identificar as características definidoras do texto enquanto objeto de estudo, bem como criar um conjunto  conceitual que destaque “suas linhas de força e de mutação, seu devir histórico  e seu impacto sobre o conjunto das práticas significantes” (KRISTEVA, 2005, p.  10). No âmbito dessa teoria, denominada semanálise, intertextualidade é um termo que designa uma condição para a existência de  qualquer texto (KRISTEVA, 2005, p. 77-78). Os textos só existem porque absorvem  e transformam outros textos (KRISTEVA, 2005, p. 68). Esse processo construtivo  de absorção e transformação é a intertextualidade. 
   É possível, contudo,  que os sujeitos produtores de texto não se deem conta dessa condição a que se  submetem quando escrevem, julgando que a intertextualidade, nos termos  expostos, é um resultado de sua vontade. Isso pode ocorrer ainda mais se o  sujeito em questão levar em conta o processo de escrita de textos denotativos,  tais como um artigo científico, por exemplo, no qual os processos de citação  são gramaticalizados. Por isso, a intertextualidade de que trata Kristeva é um  fenômeno que engloba, mas não se reduz ao simples procedimento de citar textos  diversos no momento de redação. 
   Entender a dinâmica que  se estabelece entre a vontade do sujeito e essa linha de força e de mutação do texto chamada intertextualidade  requer, antes, saber ‘o que é escrever’ e como se dá a relação do sujeito com o  texto para a semanálise. 
   Segundo Kristeva (2005,  p. 09-10), escrever é trabalhar a  língua. O verbo trabalhar é empregado pela estudiosa no sentido que ele adquire  no pensamento marxista: 
O trabalho deixa de ser visto como uma subjetividade ou uma essência do homem: Marx substitui o conceito de um poder sobrenatural de criação (Crítica de Gotha) pelo de produção, visto pelo seu duplo aspecto: processo de trabalho e relações sociais de produção, cujos elementos participam de uma combinatória de lógica particular. Assim, o pensamento marxista coloca pela primeira vez a problemática do trabalho produtor como característica primordial na definição de um sistema semiótico. (KRISTEVA, 2005, p. 39)
Cabe esclarecer que, no fragmento acima, Kristeva não explicita a definição de escrita como trabalho e, por consequência, como produção. A compreensão disso somente se torna possível quando se verifica que a semiótica, no âmbito da qual Kristeva pensa a semanálise, busca se estabelecer como um “formalismo isomorfo à produtividade” (KRISTEVA, 2005, p. 97) textual. Portanto, se a problemática primordial da semiótica é a do “trabalho produtor”, essa também é a problemática primordial do texto. A essa conclusão pode-se chegar diretamente através do fragmento que segue, no qual Kristeva define aquilo que para ela é o gesto de base do procedimento semiótico:
Ela é uma formalização, uma produção de modelos. Assim, quando dissermos semiótica, pensaremos na elaboração (o que, aliás, está por fazer) de modelos: isto é, de sistemas formais, cuja estrutura é isomorfa ou análoga à estrutura de um outro sistema (o sistema estudado). (KRISTEVA, 2005, p. 33)
Feito esse  esclarecimento, voltemos ao conceito de trabalho em Marx, segundo leitura de  Kristeva, a fim de que possamos apreender a relação entre o ato da escrita e o  sentido de produção no pensamento marxista. 
   Kristeva ressalta que  Marx elabora seu arcabouço conceitual sobre o conceito de produção, por  questões de recorte e objetivos de análise, refletindo sobre o trabalho como se  este fosse um objeto. Ele compreende que esse objeto possui valor de troca e de  uso. O primeiro refere-se ao valor significativo, simbólico, do produto do  trabalho, e o segundo respeita à utilidade da mercadoria. Aquele valor é  relativo e histórico, é da ordem do simbólico, um valor que o produto adquire  em função de uma cultura determinada, a capitalista. Este, por sua vez,  refere-se à combinação entre matéria-prima e trabalho.
   Kristeva mobiliza esse  arcabouço para refletir acerca da produção e da leitura de textos. Quando esses  procedimentos consideram apenas o aspecto comunicativo do texto, que diz respeito  ao sentido, à mensagem, ela entende que o trabalho, processo de produção,  deixou de ser apreendido e que houve uma valorização baseada tanto na troca  quanto uso. Nesse caso, perde-se a noção do processo de produção, do trabalho  em si, em favor do produto em sua fase final. Trata-se, basicamente, de um dos  processos de alienação que o capital impõe ao trabalhador (BARROS, 2010). 
   A partir disso, no  trabalhar a língua enquanto processo comunicativo, vemos um primeiro aspecto de  como o texto escapa à vontade do sujeito. Contudo, esse é, ainda, um aspecto  superficial do problema. Isso porque, em Marx, a alienação humana pode ser  superada, o que, de certa forma, recolocaria a vontade do sujeito em relação  aos processos de produção; em relação aos textos. 
   Ainda através do  pensamento marxista, Kristeva permite-nos apreender a alienação do sujeito em  relação ao trabalhar a língua num nível anterior aos valores de uso e de troca: 
Todavia – e Marx esboça claramente essa possibilidade – um outro espaço é pensável, onde o trabalho poderia ser apreendido fora do valor, isto é, aquém da mercadoria produzida e posta em circulação na cadeia comunicativa. Nesse quadro onde o trabalho não representa ainda nenhum valor e não quer dizer nada, logo, não tem sentido, tratar-se-ia das relações entre um corpo e dispêndio. Essa produtividade anterior ao valor, esse trabalho pré-sentido, Marx não tem nem a intenção nem os meios de abordá-lo. [...] Foi preciso um longo desenvolvimento das ciências do discurso, das leis de suas permutações e de suas anulações; foi necessária uma longa meditação sobre os princípios e os limites do Logos enquanto modelo-padrão do sistema de comunicação de sentido (de valor) para que hoje se pudesse colocar o conceito desse trabalho que não quer dizer nada, dessa produção muda, mas marcante e transformadora, anterior ao dizer circular, à comunicação, à troca, ao sentido. (KRISTEVA, 2005, p. 41-42)
Esse terceiro lugar em  que o trabalho pode ser apreendido é justamente o lugar em que o escrever se  situa como o trabalhar a língua. Nesse caso, escrever é realizar um processo  não comunicativo, um processo que não é de troca, não é de sentido, mas é  anterior ao sentido. Essa afirmativa implica dizer que o trabalhar a língua é  também um processo que se coloca antes mesmo que o sujeito se conceba enquanto  tal: “[...] a função de sentido do discurso é uma função de [...] presença a  si” (KRISTEVA, 2005, p. 136). Em outras palavras, o sentido só ocorre quando há  uma presença a si, que é uma consciência, um sujeito, com base em Derrida  (1993, p. 14). Na medida em que à produção do texto subjaz o pré-sentido,  verifica-se que esse ato também não comporta o sujeito. Acrescente-se, ainda,  que essa camada pré-sentido realiza-se em todo o processo comunicativo  (KRISTEVA, 2005, p. 44). Assim, sempre que escreve, o sujeito assume, quer  queira, quer não, a impossibilidade de que sua vontade possua um lugar  centralizador e dominante da lógica textual e isso ocorre mesmo em textos  denotativos (KRISTEVA, 2005, p. 77).  
   Consoante ao que temos apresentado, no  fragmento a seguir, pode-se verificar a função do sujeito e da  intertextualidade nesse trabalhar a língua, que é o produzir o texto: 
O texto literário insere-se no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um outro (de outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto. A ciência paragramática deve, pois, levar em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve segundo leis específicas que estão por se descobrir. Assim, no paragrama de um texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor. Numa sociedade alienada, a partir de sua própria alienação, o escritor participa através de uma escritura paragramática. (KRISTEVA, 2005, p. 104)
Nos quatro períodos  iniciais do recorte supracitado, Kristeva recoloca o conceito de  intertextualidade. Nos dois últimos, ela explicita a condição alienada do  sujeito produtor em relação ao texto que produz. 
   Antes de seguirmos, é  preciso frisar que estes não são efeitos que ocorram apenas nos textos poéticos  ou literários, mas em qualquer texto. Conclusão a que se chega quando se  considera que uma das premissas da semanálise é a de que a literatura “é o ato  mesmo que apreende como a língua funciona” (KRISTEVA, 2005, p. 9). A única  diferença entre o texto literário, a literatura, e outros discursos é o fato de  que ele torna esse funcionamento intrínseco da língua evidente enquanto outros  discursos camuflam essa estrutura. (KRISTEVA, 2005, p. 45, p.100). Por isso,  quando utilizarmos o termo literatura, do ponto de vista de Kristeva, estaremos  tratando dessa escritura que desnuda mecanismos de funcionamento da língua, que  de outro modo permaneceriam ocultos. 
   Dito isso, os trabalhos  de Marx são mobilizados por Kristeva a título de uma abertura para pensar a  escrita como produção. Contudo, é somente desse modo que são tratados, visto  que a semióloga mira problemas que são anteriores à alienação produzida pelo  trabalho em uma sociedade capitalista. Essa postura frente a Marx é sugerida  (KRISTEVA, 2005, p. 40) e se torna clara, principalmente, porque a escritora  mantém o conceito de que escrever é trabalhar a língua, distanciando-o,  contudo, da noção de processo combinatório que o define enquanto valor,  produto, no pensamento marxista (KRISTEVA, 2005, p. 40). Por esse motivo,  poder-se-ia considerar a noção de processo combinatório como insuficiente para  tratar do texto enquanto produção, ou produtividade. 
   A alternativa  encontrada por Kristeva para suprir essa insuficiência vem dos estudos  empreendidos pelo formalista russo Mikhail Bakhtin. A partir da concepção de  dialogismo, concebida por esse autor, percebe-se com maior clareza o sentido  buscado por Kristeva ao associar a produção de texto ao conceito marxista de  processo combinatório. A apropriação do conceito de dialogismo por Kristeva  baseia-se, contudo, numa leitura que atenua seu embasamento empírico no  sujeito, autor e leitor, bem como a vinculação à vida social que lhe é  característica, conforme se verifica no fragmento abaixo: 
Mas para Bakthin, saído de uma Rússia revolucionária preocupada com problemas sociais, o diálogo não é só a linguagem assumida pelo sujeito; é uma escritura onde se lê o outro (sem nenhuma alusão a Freud). Assim, o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade: face a esse dialogismo, a noção de pessoa-sujeito da escritura começa a se esfumar para ceder lugar a uma outra, a da ambivalência da escritura. (KRISTEVA, 2005, p. 71)
Assim, o uso dos termos  “alienada” e “alienação” em “numa sociedade alienada, a partir de sua própria  alienação, o escritor participa através de uma escritura paragramática”.  (KRISTEVA, 2005, p. 104) não deve ser confundido com o uso que Marx faz deles.  No contexto em questão, esses termos respeitam a uma sociedade e a um escritor  que são entendidos como texto, os quais cooperam intertextualmente para a  produção de outros textos. Não se trata da alienação de pessoas, mas da  alienação do texto, entendido como processo não submetido a qualquer pessoa,  sujeito ou sentido único; trata-se de uma subjetividade, centro único que se  deseja regulador do sentido, que se esfuma na ambivalência da escritura.  “Alienação” é, por isso, uma referência ao lugar de produção de texto chamado  pré-sentido.
   Assim, observa-se que,  no âmbito da semiótica, o sujeito não é capaz de conduzir o sentido, como faz o  corredor com a tocha, no âmbito do conceito de tradição. Pelo contrário, o  trabalhar a língua submete o sujeito a uma lógica que implica na conversão de  si mesmo em texto, sendo a intertextualidade um dos aspectos que motivam essa  transformação do sujeito e do sentido. 
   
  2.3 O sentido  e o fogo 
Por analogia ao  conceito de tradição, anteriormente apresentado, depreende-se a ideia de que o  elemento fogo, ainda que apenas aludido por Candido (2000) designa o sentido, o  qual é limitado pela “tocha” e conduzido pelo sujeito, figurado pelo  significante “corredor”. Já vimos que o sujeito, na semiótica, é destituído  dessa capacidade. Vejamos, agora, qual o lugar da semiótica em relação ao  sentido, ou, figurativamente, em relação ao fogo, cujo percurso no tempo forma  padrões que se impõem ao pensamento e ao comportamento.    
   Para Kristeva, o  sentido dos discursos resulta daquilo que chamamos verossimilhança (2005, p.  136): “o sentido é o verossímil de todo discurso”. Podemos entender  verossimilhança, nessa perspectiva, como a capacidade discursiva de se produzir  como aparência de verdade. Isso implica dizer que o verossímil e o sentido nada  têm a ver com a verdade objetiva, tampouco correspondem a algo que possa  definir o texto enquanto tal. 
   Portanto, o sentido  produzido pela verossimilhança é, como dissemos, uma aparência de verdade  acerca do texto; uma máscara que esconde os mecanismos deste enquanto  produtividade, como algo que é inacabado:
A própria literatura – alcançada a maturidade que lhe permite escrever-se também como máquina e não mais unicamente falar como espelho – defronta-se com seu próprio funcionamento através da palavra; o mecanismo desse funcionamento, uma vez atingido, a obriga a tratar do que não é um problema inerente a seu trajeto, mas que a constitui inevitavelmente aos olhos do receptor (leitor = auditor), a obriga a tratar daquela máscara indispensável que usa para se construir através dela: a obriga a tratar do verossímil. (KRISTEVA, 2005, pp. 135-136)
Essa aparência de  verdade suscitada pelo discurso, que é o sentido, nada tem, necessariamente,  com o que seria uma verdade objetiva, nem por isso é despropositada (KRISTEVA,  2005, p. 137). Ela encontra o seu lugar em uma sociedade baseada na informação  e no consumo, no produto, no âmbito da qual logra funcionar como verdade, na  medida em que obedece a seus esquemas de produção de sentido, os quais Kristeva  estuda categorizando-os como verossimilhanças semântica e sintática. Podemos  dizer que o faz por analogia aos valores de troca e de uso, em Marx.
   Por outro lado, quando  pensa o trabalhar a língua, Kristeva mobiliza o conceito de indecidível com o qual nomeia a  impossibilidade de verificação da produtividade textual. Ela argumenta que  aquilo que não pode ser verificado escapa ao domínio do sentido, do verossímil: 
A verdade, ou a pertinência da prática da escritura, é de uma outra ordem: ela é indecidível (não-comprovável e não-verificável) e consiste no acabamento do gesto produtivo, ou seja, do trajeto da escritura a construir-se e a destruir-se [...] Essa produtividade, indecidível, não pode ser submetida a uma atividade verificadora (verossimilizante) que impregna toda teoria descritiva do produto literário (KRISTEVA, 2005, p. 170)
Portanto, a produtividade textual não é da ordem do sentido, da verossimilhança. Aquilo que, no âmbito do conceito de tradição, é figurado como fogo, isto é, o sentido, na perspectiva semiótica não passa de uma máscara, um disfarce que tenta ocultar uma verdade inapreensível, mas articulada na produção textual, que se compõe de termos opostos, mutáveis e contraditórios entre si (KRISTEVA, 2005, p. 170). Assim, enquanto o conceito de tradição sugere que o sentido transmitido produz uma iluminação, de certo modo conduzindo à verdade, o de intertextualidade supõe que a verdade somente ocorre na ausência de sentido, num espaço anterior à verossimilhança.
2.4 A limitação do sentido e o pré-sentido
A reflexão teórica de Kristeva, em Introdução à semanálise, inicia na questão da produtividade textual; a primeira frase do livro, grafada em itálico, é “fazer da língua um trabalho” (2005, p. 5). Nessa visada, a língua não é um meio de contato e de compreensão, é um trabalho que só pode ser apreendido antes dos valores de uso e troca, em analogia a Marx, ou antes das verossimilhanças semântica e sintática. O laborar sobre a língua ocorre no espaço do pré-sentido, anterior à verossimilhança e ao valor, questão de que trataremos a seguir:
Trabalhar a  língua implica, necessariamente, remontar ao próprio germe onde despontam o sentido e seu sujeito. É o mesmo que dizer  que o produtor da língua (Mallarmé) é  obrigado a um nascimento permanente, ou melhor, que, às portas do nascimento,  ele explora o que o precede. Sem ser  uma criança de Heráclito que se  diverte com seu jogo, ele é esse ancião que volta, antes de seu nascimento para  mostrar àqueles que falam que eles são falados. (KRISTEVA, 2005, p. 10)
   
  “Trabalhar a língua” é  estudar categorias anteriores ao “sentido” e ao seu “sujeito” produtor do  texto: buscar aquilo mesmo que lhes permite a existência. 
   Kristeva ilustra essa  afirmação a partir da visão de Mallarmé acerca do produtor da língua. A imagem  articulada aí é a de que o “produtor do texto” nasce no memento dessa  produtividade. É o texto quem faz seu produtor existir enquanto tal. Em outras  palavras, o porquê de o sujeito existir é o texto.  Assim, o produto/texto vem a existir numa  produtividade antes mesmo de seu produtor, que nasce no processo, constrói-se  enquanto sujeito no texto. A mesma afirmação é introduzida por meio de uma  analogia a Heráclito: o “ancião que volta antes de seu nascimento”.
   Ambas as analogias  propostas sugerem a ideia de volta no tempo, mais precisamente, volta a um  tempo que é anterior ao sujeito e ao sentido. A ideia de nascimento, ventre,  coloca-se aí. Seria o útero o germe do sentido e do sujeito? Somente seria  possível trabalhar a língua mediante a uma recuperação do útero – tempo  uterino? No bojo das teorias da Kristeva, o útero é um  espaço de pré-sentido. A entrada no regime tético (do sentido) se dá pela cisão  do cordão umbilical, o que cria uma cisão também entre sujeito e objeto  (condição primeira da significação). Assim, na lógica dessas  imagens, o laborar sobre o texto obriga o “sujeito pessoa” a abrir mão de sua  condição de sujeito e, por um processo semelhante, a abrir mão do sentido.
   Essa situação é  metaforizada como uma volta ao tempo uterino, antes do nascimento. Tal figura  pode ser compreendida, ainda, como a volta a um lugar/tempo anterior à  linguagem entendida como comunicadora de sentidos únicos que pretendem se  produzir como verdades. 
   Na língua como  comunicação e representatividade, tudo é unívoco, toda expressão possui sentido  único. A produtividade textual, porém, questiona a univocidade da língua de seu  interior e nela opera uma revolução, tirando-a de seu “inconsciente e do  automatismo de seu desenvolvimento habitual” (KRISTEVA, 2005, p. 10). Essa ação  textual questiona a univocidade do sentido, redistribui as categorias  gramaticais e as leis semânticas. 
   Kristeva entende que  esse processo gera uma verticalização na linearidade da língua, que ocorre na  medida em que “o texto atinge a força de trabalhar o significante” (2005, p.  11). O conceito que cunha para pensar essa verticalidade, que rompe o linear do  sentido na língua, é o de significância: 
Designaremos por significância esse trabalho de diferenciação, estratificação e confronto que se pratica na língua e que deposita sobre a linha do sujeito falante uma cadeia significante comunicativa e gramaticalmente organizada. A semanálise, que estudará no texto a significância e seus tipos, terá, pois, de atravessar o significante com o sujeito e o signo, assim como a organização gramatical do discurso, para atingir essa zona onde se congregam os germes do que significará na presença da língua. (KRISTEVA, 2005, p. 11)
No primeiro período do  fragmento acima, Kristeva define e caracteriza a produtividade textual, o  trabalhar a língua. No segundo, afirma que o estudo desse trabalho é o que  permitirá à semanálise atingir a zona onde germinam o sentido e o sujeito, a  zona do pré-sentido. 
   A autora retoma o termo  “germe” para expor essa ideia, e faz nova referência ao tempo. Nisso, as  imagens mallarmeana e heraclitiana do trabalhar a língua ganham outros  contornos. Atingir o germe do sentido e do sujeito não parece mais figurar como  volta ao tempo. Trata-se, agora, de compreender aquilo que dá condição à  existência do sentido “na presença da língua”; que dá condição a um futuro  presente. Esse sentido presente/presença é o próprio enunciado, ou texto  enquanto produto. 
   É interessante  considerar que, se a partir das imagens de Mallarmé e Heráclito, o germe  aparece como se fosse algo sucedido, numa linha do tempo, pelo sentido, pelo  sujeito e pelo texto enquanto produto, o mesmo não ocorre na segunda menção que  a autora faz ao tempo. Nesta, o presente é o sentido, o produto do texto; ele  resulta da presença do sujeito a si. Assim, voltar ao germe não é uma volta no  tempo, mas a busca por compreender o fundamento da consciência humana, antes  que ela seja consciência. Se, no  primeiro momento, tinha-se em mente a ideia de uma linha, neste, é mais  coerente a imagem de um castelo de cartas de baralho, no qual o topo é o  presente, o enunciado, o texto enquanto produto. A zona onde se congregam os  germes, a base, ou os sucessivos andares que servem de base ao topo.  Acrescente-se a isso o fato de que o topo é sempre convertido na aresta de uma  nova base, ou andar, na medida em que esse castelo se constrói  ininterruptamente, sem jamais desmoronar. 
   Dito isso, antecipa-se  que o pré-sentido não pode ser abarcado, é da ordem do indizível. A semanálise  estuda a significância nos textos para atingir a zona do pré-sentido, sem,  contudo, poder abarcá-la.
   Kristeva continua seu  raciocínio sobre o trabalho da língua como objetivo da semanálise. Acrescenta  que esse trabalho “questiona as leis dos discursos estabelecidos”, permite  tocar nos tabus da língua, o que implicaria um tocar nos tabus sociais e  históricos. Dessa forma, introduz a ideia de que há uma relação de igualdade  entre a realidade histórica e social e o texto, possibilitada, em primeira  instância, pelo fato de que este faz parte daquela (KRISTEVA, 2005, p. 11-12).  Isso a gera possibilidade de uma transformação social mediada pelo texto, em  seu caráter de significância. Contudo, Kristeva afirma que essa ação  transformadora só é possível mediante a semelhança entre o texto e o real  histórico e social. Daí o imperativo da equivalência entre o texto e a cena da  realidade social ser a medida da eficiência da ação revolucionária que a  significância opera: “o sentido dito e comunicado do texto [...] fala e  representa essa ação revolucionária que a significância opera na medida em que  encontra seu equivalente na cena da realidade social” (KRISTEVA, 2005, p.  11-12).  
   Com isso, Kristeva  insere a questão da igualdade entre a produtividade textual e a própria  realidade. Ela afirma que o texto faz parte do real que o engendra, assim não é  jamais representativo (KRISTEVA, 2005, p. 12), mas diz de uma concordância  entre essas instâncias. Podemos entender o texto como uma amostra do real, que  deixa em evidência algo do funcionamento deste: 
Em outros termos, não sendo o texto a linguagem comunicativa que a gramática codifica, não se contenta com representar – com significar o real. Pelo que significa, pelo efeito alterado presente naquilo que representa, participa da mobilidade da transformação do real, que apreende no momento de seu não-fechamento. Dito de outro modo, sem remontar a – simular – um real fixo, constrói o teatro móvel de seu movimento, para o qual contribui e do qual é um atributo [...] O texto não denomina nem determina um exterior: designa como um atributo (uma concordância) essa mobilidade heraclitiana que nenhuma teoria da linguagem-signo pôde admitir e que desafia os postulados platônicos da essência e de sua forma, substituindo-os por uma outra linguagem, um outro conhecimento, cuja materialidade no texto apenas agora começamos a perceber. (KRISTEVA, 2005, p. 12-13).
No fragmento  acima, pode-se verificar como Kristeva distingue o texto e a linguagem  comunicativa que a gramática pôde codificar. O elemento que produz essa claridade  distintiva é o fato de que a linguagem codificada representa e significa o  real. No caso, representar é produzir  a presença do sujeito a si. Em outras palavras, produzir o sentido, a  verossimilhança, a presença e o presente. A característica dominante dessa  linguagem é, por isso, o efeito de estaticidade que ela lança sobre o real.
   Comparando-se  essa linguagem e a produtividade textual, verifica-se que esse efeito é uma  ilusão de fixação do “real”. Isso porque o trabalho sobre a língua vai mostrar,  justamente, essa impossibilidade da representação. Vai mostrar a  impossibilidade de fixar o presente, o sentido e a presença a si. Por isso, o  real fixo resulta como ilusão. O mesmo pode ser dito do sentido único,  limitado, mesmo que Kristeva não o diga explicitamente.
   Essa característica da produtividade textual  resulta de ela ser parte do real, como qualquer outro objeto, mas com a  peculiaridade de ser capaz de apreender a impossibilidade de fixar o presente.  Daí dizer-se que o texto apreende “o real em seu não-fechamento”. O que ocorre  porque ele se materializa de forma tal que o seu sentido também não pode ser  limitado, não pode ser representado. Nessa perspectiva, o sentido do texto  estará sempre na abertura, ou no não-fechamento. Remete, assim, a uma linguagem  que se estrutura como significante de significante (DERRIDA, 1973, p. 8). 
   Se o  “não-fechamento” define o presente/real, e todo texto apreende esse  “não-fechamento”, todo texto apreenderia, de algum modo, um presente em  transformação. Assim, quando um texto for histórico, estará produzindo “um  presente do passado”, isto é, um não fechamento do passado, e quando for  profético, estará produzindo “um presente do futuro”. O texto sempre produz um  “não-fechamento”, do passado, do presente e do futuro. 
   Kristeva  utiliza a figura de um “teatro móvel” para explicar essa ideia do  “não-fechamento” do real na sua relação com o texto. “Teatro” é, do latim theatrum, do grego theatron, literalmente, “lugar para olhar”, de theasthai, “olhar”, mais tron,  sufixo que denota “lugar”. Se é assim, podemos dizer que, para Kristeva, o  texto é um lugar do qual se pode olhar para o real, de dentro do próprio real.  Esse lugar tem a peculiaridade de se movimentar em igual velocidade que o tempo  do real, que seria o presente em sua impossibilidade de ser apreendido.  
   Já a  linguagem comunicativa codificada pela gramática “simularia” o real, criaria  uma ilusão de real, na medida em que atua como se fosse possível significar o  real e fixá-lo. Se a linguagem propõe uma ilusão de real, devemos ter em mente  que o texto, segundo Kristeva, possibilita outro tipo de relação com esse real?
   Aparentemente,  considerando o teatro como figura, a resposta a essa questão é negativa. Nem o  texto, nem a linguagem codificada, poderiam nos dar acesso ao real. Do ponto  vista que o texto nos fornece, o real é uma cena - uma ficção. Por isso,  Kristeva refere o social como “cena da realidade social” (KRISTEVA, 2005, p.  11-12). É certo, contudo, que, para essa semióloga, o ponto de vista, produzido  pelo texto, é um atributo desse real inaudito.
   Heráclito de  Éfeso, conhecido como o filósofo do “tudo flui”, do mobilismo universal,  compreendia que o real é inapreensível em sua totalidade devido à sua  permanente mobilidade (SANTOS, 1990).   Tudo estaria em permanente mudança. 
   A  consequência mais imediata dessa visão filosófica para abordagem semiótica do  texto, segundo Kristeva, parece-nos ser a da impossibilidade de conter sentido,  entendido como verossímil, e de um presente estático. Em sua mobilidade, o real  é da ordem do inapreensível, incomunicável, irrecuperável, infinito. No âmbito  do texto, o pré-sentido diz da impossibilidade representação do real, enquanto  o caráter ilimitável do sentido está para a permanente mobilidade do mundo.
   Portanto,  compreendendo-se que o texto é um atributo do real, verifica-se logo a  impossibilidade de pensá-lo com o intuito de buscar uma “verdade final”, que  pode ser entendida, ainda, como o sentido único, estanque e contido, como o  verossímil. Também a ideia de estilo e todas as demais que se debruçam sobre o  autor, desde as psicológicas às sociológicas, seriam uma empreitada fadada ao  fracasso, já que a própria noção de sujeito, ou ser, como elementos estáticos,  são inconcebíveis. Não se pode jamais voltar ao mesmo texto, mesmo quando se  pensa voltar. Tampouco se pode voltar, ou recuperar, o sujeito que produziu o  texto, porque também ele não é mais o mesmo de quando escreveu; sempre que se  tentasse recuperá-lo, estar-se-ia colocado diante do novo. Por último, importa  dizer que a intertextualidade é um dos mecanismos do texto pelos quais ele se  produz como abertura permanente. 
3. Considerações finais
Neste trabalho foi  possível comparar tradição e intertextualidade enfatizando três aspectos  inseridos no contexto teórico do qual abstraímos esses conceitos. Tais aspectos  foram: o sujeito, o sentido e a limitação do sentido.   
   Quanto ao primeiro, no  âmbito da semiótica, no qual se insere o conceito de intertextualidade,  observou-se que o sujeito não domina o sentido do texto. Já no arcabouço  teórico a que se liga o conceito de tradição, o sujeito é dotado de qualidades  superiores, podendo criar e transmitir sentidos. Neste, o sentido compara-se ao  fogo, seu poder de iluminação remete à noção de verdade. O conceito de  intertextualidade, por sua vez, supõe que a verdade somente ocorre na ausência de sentido, num espaço anterior a ele, o do  pré-sentido. 
   O último ponto da  análise comparativa que empreendemos disse respeito à possibilidade de  contenção do sentido. O conceito de tradição supõe que isso seja possível. Já o  de intertextualidade é o próprio mecanismo da significância que impossibilita o  fechamento do sentido de qualquer texto. 
4. Referências  Bibliográficas
    
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   CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 9ed. Ouro Sobre  o Azul: Rio de Janeiro, 2006. 
   CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos  decisivos. 6. ed. Editora Itatiaia:  Belo Horizonte, 2000.
   DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Mirian Shnaiderman  e Renato Janini. São Paulo: Perspectiva, Editora da USP, 1973.
   __________. Vários Escritos. 3ed. São Paulo: Duas  Cidades, 1995.
   KRISTEVA, Júlia. Introdução à Semanálise. Trad. FERRAZ,  L. H. F. ed. 2. São Paulo: Perspectiva, 2005. 
   NITRINI, Sandra. Literatura comparada (História, Teoria e Crítica). 3. ed. São  Paulo: EDUSP, 2010.
   SANTOS, M. C. A. A lição de Heráclito. In: Revista Trans/Form/Ação. UNESP. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v13/v13a01.pdf Acesso: 16/06/2017. 
   VIEIRA, C. C. A líricas amorosas gonzaguiana e  garrettiana: influências e paralelismos. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12538.pdf Acesso: 16/06/2017.