Jociane Machiavelli Oufella *
Universidad Catolica Santa Maria de los Buenos Aires, Argentina
direito@uniarp.edu.br
RESUMO
O presente trabalho aborda a colisão de direitos existentes entre o direito a vida e o direito a liberdade religiosa. Quando dois direitos fundamentais estiverem em conflitos é possível valorar qual deles deve ser considerado superior ao outro? Da mesma forma busca estudar as diretrizes antecipadas de vida, através das quais qualquer pessoa que esteja em plena capacidade para os atos da vida civil pode expressamente manifestar, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Por fim, busca uma análise jurisprudencial abordando o caso da transfusão sanguínea para os seguidores Testemunhas de Jeová.
ABSTRACT
This paper deals with the collision of existing rights between the right to life and the right to religious freedom. When two fundamental rights are in conflict is it possible to assess which of them should be considered superior to the other? Likewise, it seeks to study the advance directives of life through which any person who is fully capable of acts of civil life can expressly express about the care and treatment he or she wants or does not receive at the moment when he is unable to express , freely and autonomously, his will. Finally, he seeks a jurisprudential analysis addressing the case of blood transfusion for followers of Jehovah's Witnesses
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Jociane Machiavelli Oufella (2018): “Os conflitos juridicos sobre a disposição do proprio corpo por convicçoes religiosas”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (marzo 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2018/03/conviccoes-religiosas.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1803conviccoes-religiosas
INTRODUÇÃO
O tema proposto está concentrado no principio da dignidade da pessoa humana e sua autonomia de vontade. De encontro com tais direitos vislumbra-se uma série de problemas, como o caso das pessoas que não aceitam realizar transfusão de sangue devido a fatores religiosos, acreditando poder dispor de sua própria vida, preferindo a morte ao invés de realizar tal intervenção.
Por certo que o profissional médico compromete-se em aplicar todo seu conhecimento, suas habilidades e sua experiência no combate à doença e a morte. A função do médico é salvar vidas e não deixar na sua frente uma vida ser decidida por parentes. Insurgindo assim, um conflito entre respeitar o direito a personalidade bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, ou deixar de lado os protocolos legais e religiosos com uma única finalidade, preservar o bem maior, à vida.
Dessa forma, o que se almeja é abordar a possibilidade da negativa de determinado tratamento, dentro da disposição do próprio corpo, através das diretrizes antecipadas, negando-se a realizar a transfusão sanguínea. Como objetivos específicos têm-se a análise do direito à vida e sua importância frente aos demais direitos do homem, o estudo ao direito do credo, e por fim abordar a situação conflitante existente entre o direito e a religião.
Por certo que os direitos fundamentas e consequentemente a dignidade da pessoa humana, garantem ao homem a liberdade de agir segundo seus próprios princípios e convicções religiosas, porém, até onde esta liberdade permite o homem atentar contra sua vida? A Constituição da Nação Argentina garante à todos os indivíduos a prerrogativa de dispor de seus atos, suas obras, de seu corpo, de sua vida, de tudo aquilo que diz respeito ao seu “ser”. “La estructura sustancial de la norma constitucional esta dada por el hombre, que despliega su vida en acciones a traves de las cuales se expressa su obrar con libertad. De este modo, vida y libertad forman la infraestructura sobre la que se fundamenta la prerrogativa constitucional que consagra el art. 19 de la Constituciòn Nacional".
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil traz como garantias fundamentais o direito à vida, à liberdade, ao credo, entre outros e a legislação civil também apresente os mesmos direitos elencados como direitos da personalidade, por serem próprios do individuo, verifica-se que não há que se falar em colisão de direitos, vez que todos decorrem do direito á vida, sendo que sem ela, nenhum outro direito poderá ser exercido.
Princípio alude o termo “verdades primeiras”, expressão usada por autores para fundamentar que princípios são a premissa de todo um sistema jurídico e moral.( BONAVIDES, 1988)
Pode-se destacar que os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica, ou seja, norteiam a norma constitucional, porém, não regulam situações específicas, mas sim abrangem o ordeidnto jurídico como um todo.( BASTOS, 1998)
A principal função dos princípios é servir como critério de interpretação das normas constitucionais, seja ao legislador ordinário, no momento da criação da norma, seja aos juízes no momento de aplicar o direito, ou aos próprios cidadãos no momento de realização do seu direito.( BASTOS, 1998)
A palavra dignidade, derivada do latim dignitas (virtude, honra, consideração) em regra se entende as qualidades morais, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito em que é tida; compreende-se também como o procedimento próprio da pessoa, que merece tal conceito. (SANTOS, 1999)
Já o conceito de pessoa surgiu com o Cristianismo através da chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos. Tal conceito é fundado no ser humano como categoria espiritual, subjetividade, que possui valores em si mesmo, como um ser de fins absolutos e que por consequência possui direitos subjetivos e possui dignidade. (SANTOS, 1999)
De uma maneira geral o homem é todo ser racional que existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, em todas as suas ações ele tem sempre que ser considerado simultaneamente como fim.(KANT, 2010)
A Constituição da República Federativa do Brasil estabeleceu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos para seu sistema constitucional. A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. Sua essência é difícil de ser reduzida a palavras, mas tem incidência sobre uma infinidade de situações que não podem se elencar de antemão.( SARMENTO, 2000)
Já na República da Argentina, o respeito à dignidade da pessoa humana vêm tutelado no preâmbulo da Constituição Federal, na parte em que expressamente resguarda e assegura a todos os cidadãos nacionais o exercício pleno de suas liberdades enquanto cidadãos.
No ordeidnto jurídico brasileiro, tamanha é a força deste princípio, que todas as decisões proferidas devem estar submetidas e em consonância com o princípio que tutela a dignidade da pessoa humana.
Pode ser identificado como sendo o principio de manifestação primeira dos valores constitucionais, por ser carregado de sentimentos e emoções. A doutrina diz ser impossível compreender esse principio apenas na esfera intelectual, pois como todos os outros princípios, este é vivenciado e experimentado no plano dos sentidos.( ROTHENBURG, 1999)
A dignidade da pessoa humana refere-se a um valor espiritual e moral de cada ser humano, manifestando-se na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, devendo ser respeitado pelas demais pessoas. A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas.
Nesse sentido esclarece Ingo Wolfgang Sarlet que em primeiro lugar, merece ser encarada de modo especial a luz de nosso direito constitucional positivo, de que se revela no mínimo possível de discussão a qualificação do principio da dignidade da pessoa humana, considerando em si mesmo, como um autêntico direito fundamental autônomo, em que pese sua importante função, seja como elemento referencial para a aplicação e interpretação dos direitos fundamentais, seja na condição de fundamento, seja na condição de fundamento para a dedução de direitos fundamentais decorrentes. (SARLET, 2003)
A dignidade da pessoa humana pode ser conceituada também como um ser tratado e considerado com um fim em si e não como um meio para se conseguir determinado resultado. Resulta também do fato de que pela sua vontade racional, só a pessoa é um ser autônomo capaz de se guiar pelas leis que ele próprio edita.( COMPARATO , 2008)
Assim, a dignidade humana não abarca somente o caso de ser um instrumento, mas também pelo fato de que ele é capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, sem que haja qualquer interferência direta de outras pessoas em sua forma de pensar e decidir.( TAVARES, 2010)
Na medida que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa ligando todos os institutos à realização de sua personalidade. Tal ação ocasionou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos como forma de colocar a pessoa humana em uma espécie de centro protetor do direito.( TEIXEIRA, 2004)
Esse princípio não apresenta apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade da pessoa humana, mas também deve se obrigar a promover a dignidade através de condutas ativas, de forma a garantir o mínimo existencial para cada ser humano no seu território. .( SARMENTO, 2000)
Assim, a dignidade da pessoa humana, que a Constituição Federal inscreve como fundamento do Estado, não abrange somente o reconhecimento do valor inerente ao homem em sua dimensão de liberdade, mas também do que o próprio Estado se constrói com base nesse principio.( CARVALHO, 2007)
Os profissionais da saúde, no período renascentista, em especial os médicos, possuíam um poder desmedido sobre os indivíduos. Seu conhecimento os colocava em uma condição de profunda vantagem sobre os pacientes. Havia uma obstinação terapêutica baseada na tecnologia e na justificativa de proteção contra demandas judiciais, "referidas como omissão de socorro”.(LIPPMANN, 2013)
Após as revoluções democráticas que ocorreram depois da idade média, os cidadãos começaram a ter mais clareza dos seus direitos coletivos e individuais. A maioria das civilizações dos últimos séculos tem, democraticamente, adotado condutas de convivência pelas quais os direitos e os deveres de cada um se dispõe de modo a obter o melhor para o bem comum e consequentemente para o individual. (LIPPMANN, 2013)
Com a evolução da medicina, a expectativa de vida das pessoas aumentou, possibilitando que se viva mais tempo, contudo, tal prolongamento de vida gera um sem número de situações em que se verifica a vida sem consciência.(MIRANDA, 2012)
Historicamente recente, o testamento vital surgiu nos Estados Unidos da América em 1967, criado por Luis Kutner, um advogado de Chicago, que redigiu um documento onde registrava expressamente o desejo de um cidadão de recusar tratamento em caso de enfermidade terminal. (PICCINI, 2011)
O caso de Karen Ann Quinlan foi o primeiro reportado aos tribunais estadunidenses, em 1975, no Estado de Nova Jersey, os pais adotivos, ao serem informados da irreversibilidade do quadro em que a mesma se encontrava, solicitaram que fosse retirado o respirador que lhe mantinha viva. Os pais tiveram que acionar o poder judiciário em busca de autorização para a interrupção do tratamento, e usaram como fundamento a manifestação antecipada da filha, de que não gostaria de ter sua vida mantida por aparelhos. (ROCHA, 2013)
Desde então outros países aprovaram leis que regulamentam este instituto em seus ordeidntos jurídicos, a saber, Holanda, Espanha, França, Bélgica, Inglaterra, Hungria, México, Porto Rico, Alemanha, Uruguai, Argentina, Áustria, Bélgica e Portugal.
O segundo país a legislar sobre testamento vital foi a Holanda em 1997. A Espanha legislou em 2002, depois foi a vez da França e da Inglaterra no ano de 2005, em 2008 o México legislou, já na Alemanha e Áustria em 2009, Argentina em 2012. Portugal legislou sobre o tema em 21 de agosto de 2013. A Itália está em forte discussão legislativa e bioética sobre o testamento vital.
Testamento vital ou diretrizes antecipadas é “[...] declaração de vontade de uma pessoa com discernimento acerca dos tratamentos aos quais não deseja ser submetida quando em estado de terminalidade e impossibilitada de manifestar sua vontade”.(DADALTO)
É um documento escrito por uma pessoa capaz, enquanto possui pleno exercício de suas capacidades, manifestando previamente sua vontade acerca dos tratamentos que deseja ser submetido ou não, quando estiver impossibilitado de manifestar sua vontade.
As diretrizes antecipadas ou testamento vital objetiva ser eficaz em vida, indicando como o paciente deseja ser tratado se estiver em uma situação de doença grave e inconsciente.
Escrevendo o testamento vital, proporciona-se uma decisão familiar mais tranquila e harmônica, em um momento onde as grandes angústias e desavenças, entre aqueles que tem uma pessoa querida em estado terminal, é saber até que ponto deve-se investir na terapia do paciente e quais são de fato as vontades deste. Pois no caso de conflito entre a família e o desejo manifestado pelo testamento vital, sempre prevalece a vontade expressa no testamento vital, já que este foi firmado pelo paciente. (LIPPMANN, 2013)
A vontade do paciente produz efeito erga omnes, vinculando médicos, parentes do paciente. Devem ser registrados no testamento vital as decisões e as condutas que o paciente desejam ser seguidas, relacionando quais as medidas ele quer ou não que sejam tomadas, para que sua vida seja prolongada ou mantida, caso ele esteja impossibilitado de se manifestar.
Para que a vontade da pessoa seja cumprida, é importante que suas orientações sejam transmitidas, ainda em vida, para os familiares ou algum amigo próximo antes que alguma eventualidade possa acontecer, pois é possível que haja uma divergência entre os membros da família ou mesmo a equipe médica pode se sentir inibida em tomar uma decisão mais drástica.
As diretrizes antecipadas ou testamento vital trata-se de ato personalíssimo, não se admitindo representação, com exceção de menores e de pessoas sob curatela. É também ato unilateral, gratuito ou oneroso, e essencialmente revogável.
Para que o testamento vital seja válido ele deve ser digitado, impresso, e assinado pelo testador sem quaisquer rasuras. No tocante à forma do testamento vital, esta é livre, podendo ser dar por escritura pública ou por particular. (MIRANDA, 2012)
O Conselho Federal de Medicina Brasileiro, através da Resolução 1.995/2012, não obriga que hajam testemunhas, entretanto, as testemunhas são extremamente úteis no caso de haverem dúvidas sobre a intenções do testador ou seu estado de lucidez ao elaborar o documento.
É necessário que o testador expresse sua vontade antes de perder a capacidade civil. No caso de alguém menor de idade querem redigir um testamento vital, deverá primeiramente requerer autorização judicial, que somente poderá ser negada se comprovada a falta de discernimento deste para a pratica do ato.
O testamento vital deve ser elaborado com a ajuda de um médico de confiança, o qual explicará sobre os problemas de saúde e as possibilidades de tratamento, para que a pessoa possa avaliar melhor os métodos terapêuticos que pretende aceitar ou recusar.( LIPPMANN , 2013)
O testamento vital somente pode ser aplicado ao doente terminal, “[...] diz-se que paciente terminal é aquele cuja condição é irreversível, independentemente de ser tratado ou não, e que apresenta uma alta probabilidade de morrer num período relativamente curto de tempo”. (PENALVA , 2009)
O testamento vital poderá ser modificado ou revogado a qualquer tempo, basta rasga-lo ou informar à equipe que você mudou de ideia, sem a necessidade de justificativa.
As diretrizes antecipadas ou testamento vital deverá ser elaborado dentro das limitações legais vigentes em nosso ordeidnto jurídico, não sendo possível conter manifestações de vontade que peçam a eutanásia, ou o desligamento das máquinas sem que seja declarada a morte cerebral.
Dessa forma, as disposições, para serem válidas no Brasil, apenas podem versar sobre interrupção ou suspensão de tratamentos extraordinários, que visam apenas a prolongar a vida do paciente. (BARBOSA, 2014)
Não poderá conter declaração recusando os cuidados paliativos, tendo em vista serem garantidores do princípio constitucional da dignidade humana, são pressupostos inerentes ao direito à morte digna. Desta mesma forma, não serão válidas as disposições que versarem sobre suspenção da hidratação e alimentação artificial do paciente.
São validas apenas as disposições acerca de tratamentos fúteis, ou seja, os tratamentos nos quais inexiste benefícios ao paciente. A tradução literal mais adequada ao termo living will, seria “desejos de vida ou ainda, disposições de vontade de vida, expressão que também designa testamento – que nada mais é do que uma disposição de vontade”.
3.1 O Judiciário e o caso das testemunhas de Jeová
Verifica-se crescente o número de situações que chegam ao Poder Judiciário enfrentando a celeuma entre a colisão do direito à vida e a liberdade religiosa. Via de regra as situações envolvem pessoas que seguem a religião “Testemunhas de Jeová”, as quais internam-se em hospitais públicos ou particulares munidos de documentos autenticados em cartório, através dos quais expressam suas vontades de não submeter-se a determinados tratamentos, principalmente os que impliquem em transfusão de sangue; mesmo que a ausência deste tratamento ocasione a morte. Nestas situações depara-se com uma indagação latente: respeita-se a vontade do paciente com base na autonomia da vontade ou tenta-se insistentemente salvar sua vida?
A colisão dos direitos à vida e a liberdade religiosa remete a uma análise sobre a relativização dos direitos fundamentais, pois estar-se-ia diante de uma colisão de princípios igualmente relevantes no âmbito constitucional.
A solução desse celeuma vislumbra-se em um debates mais valiosos e polêmicos da atualidade e que cresce a cada dia, referindo-se a dicotomia entre o direito público e o direito privado, bem como a forma como tais ramos encontram-se interligados entre si. Resta saber em que medida se exerce a intervenção do Estado e até onde venceria a liberdade do ser humano, se nestes casos deve prevalecer o interesse público ou o interesse privado? Trata-se da lei ou do documento assinado pelo indivíduo no sentido de não submeter-se a transfusão de sangue que deverá regularizar determinada relação jurídica.
Necessário realizar uma análise histórica para vislumbrar possível solução ao problema. O século XVIII foi marcado por grandes revoluções, especialmente a francesa e norte americana, destacando-se o Estado liberal e a supremacia dos indivíduos e de suas liberdades. Limitava-se o poder estatal garantindo maior espaço para o desenvolvimento dos direitos do ser humano. “ O Estado [...] calcava-se nas ideias de limitações do poder, igualdade formal e liberdade dos indivíduos, no sentido de que o Estado não deveria intervir ou controlar a vida da sociedade”. (BOBBIO, 2000). Tal fundamento significava dizer eu o direito público não deveria invadir os espaços dominados pelo direito privado.
A liberdade dos indivíduos constituía em limitador para a atuação do Estado, sendo que desde as revoluções liberais, os detentores do poder não podiam mais intervir na vida da sociedade e no espaço de cada indivíduo. As relações privadas tiveram avanço considerável, sendo que os códigos civis tornaram-se diplomas legais mais importantes.
Por volta da metade do século XIX após a Revolução Industrial, ocorreram mudanças significativas nas relações de poder da sociedade. Passou-se a perceber que a pratica demasiada da autonomia da vontade, um dos pilares do Estado liberal, aumentou a desigualdade social.
Desta forma as Constituições voltaram a ser o “marco” do direito e passaram a prever em seus textos os direitos sociais, exigindo postura firme e positiva do Estado. As grandes guerras fizeram notar a necessidade de intervenção estatal e a fragilidade dos sistemas meramente civis ou vinculados apenas a autonomia da vontade. Iniciou-se uma nova fase do direito, a fase da constitucionalização, passando a Constituição a ser considerado ponto central do sistema regulando até mesmo as relações privadas.
Colaciona-se pequeno trecho de Jurisprudência Argentina:
Vistos los autos: "Albarracini Nieves, Jorge Washington si
medidas precautorias".
Considerando:
1°) Que la Sala A de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil, al revocar el pronunciamiento de primera instancia, denegó la medida precautoria solicitada por Jorge Washington Albarracini Nieves a los efectos de que se autorizase a los médicos tratantes de su hijo mayor de edad Pablo Jorge Albarracini Ottonelli -internado en la Clínica Bazterrica de esta Ciudad Autónoma de Buenos Aires- a efectuarle una transfusión de sangre que resultaba necesaria para su restablecimiento.
2°) Que según surge de las constancias de autos, Pablo Jorge Albarracini Ottonelli ingresó al citado nosocomio com un hematoma intraparenquimatoso y lesión inguinal secundario, con motivo de una herida de arma de- fuego como consecuencia de un intento de robo. En la actualidad, según surge de las constâncias de la causa, se encuentra en estado crítico, con pronóstico reservado, internado en el área de terapia intensiva y los médicos que lo asisten han destacado la necesidad de efectuarle la citada transfusión dado su estado (conf. informe 30 de mayo de 2012).
3°) Que asimismo, corresponde señalar que el paciente pertenece al culto "Testigos de Jehová", y que en el expediente obra una declaración efectuada por él el lB de marzo de 200B con anterioridad a su hospitalización- certificada por escribano publico, en la que manifiesta dicha pertenencia y que por tal motivo no acepta transfusiones de sangre.1
Verifica-se do caso em tela que o genitor do paciente recorre a Corte Suprema de Justiça de la Naciòn Argentina, objetivando seja realizada a transfusão sanguínea, necessária a tentativa de salvar a vida do paciente, porém, sendo este “testemunha de Jeová”, havia deixado um manuscrito com firma reconhecida de que não aceitava tal intervenção médica.
As diretrizes antecipadas do paciente manifestavam sua negativa de receber transfusão sanguínea mesmo que correndo risco de vida, baseadas no art. 11 da Lei nº 26.529, sendo que tais diretrizes deveriam ser aceitas pela equipe médica resguardando o princípio constitucional da Nação Argentina da “liberdade de autodeterminação”.
Decidiu a Carte Suprema que diante um caso desta gravidade necessária a aplicação de uma das garantias fundamentais da liberdade individual prevista na própria Constituição, estampada em seu artigo 19, que consagra que “Las acciones privadas de los hombres gue de ningun modo ofendan aI orden y a Ia moral publica,
ni perjudiquen a un tercero, estan sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados".
Referido artigo consagra ao individuo o poder de adotar livremente as decisões que considera fundamental sobre sua pessoa, sem interferência por parte do Estado ou de outros indivíduos, desde que, tais decisões não prejudiquem direitos de terceiros. Essa autonomia individual tem guarida em relações familiares, econômicas, religiosas, saúde mental e física, em resumo as ações que levando em consideração a vida aceita no seio social que o individuo encontra-se inserido.
Vislumbra-se que a Constituição Argentina consagra à todos os indivíduos a prerrogativa de dispor de seus atos, suas obras, de seu corpo, de sua vida, de tudo aquilo que diz respeito ao seu “ser”. Colhe-se do julgado em análise “La estructura sustancial de la norma constitucional esta dada por el hombre, que despliega su vida en acciones a traves de las cuales se expressa su obrar con libertad. De este modo, vida y libertad forman la infraestructura sobre la que se fundamenta la prerrogativa constitucional que consagra el art. 19 de la Constituciòn Nacional".
Por sua vez, os Tribunais de Justiça Estatais no Brasil, possuem posicioidnto um pouco diverso ao analisarem situações que envolvam o direito à vida X direito ao credo, no que tange os seguidores de “Testemunhas de Jeová”, colhe-se o julgao:
APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR.
Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue.
Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares.
Recurso desprovido.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apel. Cível nº70020868162/2007. Rel. Des. Umberto Guasparini Sudbrack
Não pode-se dizer que no âmbito das ciências médicas a autonomia de vontade do individuo venha a ser desconsiderada. A doutrina médica entende o “consentimento informado” como a autorização conferida pelo paciente ou responsável para a equipe médica no que tange ao tratamento ou procedimento ao qual será submetido, após terem sido prestados todos os esclarecimentos sobre os eventos relacionados a intervenção. Desta forma, faz-se necessário o “dever de informar”, deixando claro e objetivo ao paciente ou seu responsável para que possa decidir submeter-se ou recusar-se ao tratamento.
As principais celeumas ocorrem nos casos em que não é possível realizar tal informação se forma clara e objetiva, tendo em vista que o paciente encontra-se em estado de risco, de urgência. Inexistem normas no ordeidnto jurídico brasileiro que disponham sobre a necessidade de consentimento do paciente quando a intervenção médica for estritamente necessária para preservar a vida. Se em um caso concreto houver a necessidade de ponderar-se entre os valores da autonomia privada e liberdade religiosa e de outro lado o direito à vida, entendem a maioria dos Tribunais que este deverá prevalecer, pois revela um dever de agir do estado de proteger a vida.
A intervenção médica encontra respaldo no Código de Ética e Medicina instituído pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro que dispõe que o profissional médico não deve desrespeitar o direito do paciente de livremente dispor de praticas terapêuticas, salvo em caso de perigo de vida.
Desta forma a intervenção médica no que tange a transfusão de sangue nos indivíduos que seguem a religião “Testemunhas de Jeová”, mesmo que realizada sem o consentimento do paciente ou de seu representante é justificável em face do iminente perigo de vida. Trata-se de “conformação legislativa” aos direitos fundamentais, tendo em vista configurar-se verdadeiro estado de necessidade, indicando qual medida deve ser tomada diante da colisão entre a autonomia de vontade – liberdade religiosa e o direito à vida.
A crença religiosa ou mesmo a fé naquilo que não se vê, mas se sente, faz parte da cultura mundial. As diferentes religiões são reflexos da liberdade jurídica que o ser humano conquistou ao longo dos anos. É por certo uma das maiores conquistas do homem, poder crer livremente naquilo que acredita ser divino.
A partir do século 10, com a desagregação política que caracterizou a Idade Média, sem um poder centralizador no continente europeu que comandasse os diversos povos que nele viviam, a Igreja Católica obteve espaço para ir expandindo cada vez seu "império da fé". Assim, acreditar em Cristo pressupunha uma série de regras que todo indivíduo deveria seguir para merecer um lugar após a sua morte no Paraíso, ao lado de Deus. Desta forma, o poder da Igreja Católica era dominante, dando aos seus representantes o poder de vida e morte a população.
Com a queda do poder católica iniciou-se o processo evolutivo de igualdade atribuída a todos os seres humanos, e consequentemente outras religiões passaram a poder exercer livremente sua crença entre seus seguidores, deixando de ser considerado um pecado exercer outras manifestações de fé.
Por certo, com a significativa evolução histórica do direito um leque de garantias se abriu ao homem, não só o direito de escolher uma religião, mas também o direito a vida digna, a honra, a liberdade, entre tantos outros que asseguram a igualdade humana.
O homem nasce com direitos inerentes a sua personalidade, fora da esfera patrimonial, ou seja, direitos que asseguram a sua integridade, afastando o pecúlio da essência humana. Tais direitos não se confundem com a capacidade para exercer atos da vida civil, pois o simples nascimento com vida faz jus aos direitos personalíssimos.
Juntamente com os direitos inerentes a personalidade, há os direitos fundamentais que complementam a proteção ao indivíduo. Não há na doutrina um único conceito para esses direitos, haja vista a sua amplitude, porém, pode-se citar como exemplo o direito a liberdade, a livre crença religiosa, a dignidade humana, e o mais importante de todos os direitos, a vida.
Cresce a cada dia as demandas junto aos Tribunais pátrios buscando a defesa de direitos individuais, porém, a problemática ocorre quando encontram-se em conflito direitos igualmente previstos pela Constituição sem haver-se disciplinado hierarquia entre os mesmos. Os casos mais comuns, são dos indivíduos seguidores da religião “Testemunhas de Jeová”, onde encontra-se a celeuma entre o direito ao credo e o direito à vida.
No que tange à liberdade religiosa, destaca-se que é dever de cada um, seja no direito público ou privado demonstrar eficiência na proteção desta liberdade. Assim vislumbra-se que os pacientes que professam a fé por meio desta religião deverão ter resguardados seus direitos e evitado “ao máximo” a transfusão de sangue, dando-se preferencia a tratamentos alternativos. Porém resta claro que nem sempre estes tratamentos alternativos são suficientes para garantir a vida do paciente e afastar o risco de morte, nesta hipótese deverão os médicos proceder à transfusão de sangue para garantira vida.
Muitas vezes sob a escusa de querer proteger o exercício da liberdade religiosa e da autonomia da vontade, eventual documento assinado e reconhecido a assinatura do paciente que professe a religião “Testemunhas de Jeová” acaba por querer transformar o direito ao credo como direito absoluto, impedindo qualquer atuação limitadora posterior, seja administrativa, judicial ou legislativa. Como se referem a direitos baseados em princípios que dependem de analises fáticas e jurídicas para sua concretização, também a proteção de tais direitos fundamentais precisa ser concretiza através da interpretação constitucional, de modo a garantir o direito maior, do qual decorrem todos os demais, ou seja, o direito à vida.
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