Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


A RELIGIÃO DO ABSOLUTO NO ROMANTISMO BRASILEIRO: UMA EXPERIÊNCIA DE COMPARATIVISMO CRÍTICO

Autores e infomación del artículo

Michael Jhonatan Sousa Santos *

UFMT, Brasil

michael_jhonatam@hotmail.com

RESUMO: Neste trabalho, objetiva-se determinar a relevância da noção de “religião do absoluto”, desenvolvida por Alain Vaillant (2012), para o estudo do romantismo brasileiro enquanto fenômeno literário. Para tanto, comparamos aspectos desse conceito com conhecimentos produzidos por Antonio Candido (2002) acerca da poesia religiosa e sobre sua importância na estética romântica brasileira. Procedeu-se uma observação dos dados históricos apresentados pelo estudioso brasileiro, bem como uma análise do poema Ode à existência de Deus, do escritor romântico brasileiro Sousa Caldas (1836), através da ótica de Vaillant. Assim, verificamos que a noção de religião do absoluto pode representar um viés significativo para a compreensão do romantismo brasileiro.

Palavras-chave: Romantismo, Religião do absoluto, Antonio Candido, Alain Vaillant.          

ABSTRACT:  The aim of this work is to determine the relevance of the notion of “religion of the absolute”, developed by Alain Vaillant (2012), for the study of Brazilian romanticism as a literary phenomenon. To accomplish such goal, we compared aspects of this concept with knowledge produced by Antonio Candido (2002) on religious poetry and its importance in the Brazilian romantic aesthetics. An analysis of historical data presented by the Brazilian scholar was conducted, and likewise an analysis of the poem Ode à existência de Deus (Ode to the existence of God), by the Brazilian romantic writer Sousa Caldas (1836), through Vaillant’s point of view. Hence, it was verified that the notion of religion of the absolute could represent a significant perspective for the understanding of Brazilian romanticism.

Keywords: Romanticism, Religion of the Absolute, Antonio Candido, Alain Vaillant.

RESUMEN: En este trabajo, se pretende determinar la relevancia de la noción de "religión del absoluto", desarrollada por Alain Vaillant (2012), para el estudio del romanticismo brasileño. Para ello, comparamos aspectos de ese concepto con conocimientos producidos por Antonio Candido (2002) acerca de la poesía religiosa y sobre su importancia en la estética romántica brasileña. Se realizó una observación de los datos históricos presentados por el estudioso brasileño, así como un análisis del poema Ode a la existencia de Dios (Ode à existencia de Deus), del escritor romántico brasileño Sousa Caldas (1836), a través de la óptica de Vaillant. Así, verificamos que la noción de religión del absoluto puede representar un sesgo significativo para la comprensión del romanticismo brasileño.

Palabras clave: Romantismo, Religión del absoluto, Antonio Candido, Alain Vaillant.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Michael Jhonatan Sousa Santos (2018): “A religião do absoluto no romantismo brasileiro: uma experiência de comparativismo crítico”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (febrero 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/index.html/caribe/2018/02/romantismo-brasileiro.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1802romantismo-brasileiro


1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho, propõem-se uma análise comparativa entre o conjunto de ideias que se permite sintetizar sob a expressão “religião do absoluto”, desenvolvidas pelo autor francês Alain Vaillant (2012) e as considerações de Antonio Candido (2002) acerca da poesia religiosa e das influências que ela exerceu no romantismo brasileiro.
Objetiva-se, através disso, primeiro: determinar qual a relevância da noção de “religião do absoluto” para a compreensão do romantismo brasileiro enquanto fenômeno literário. Segundo, demonstrada essa relevância, confrontar o ponto de vista crítico de Candido acerca dos temas afins à religião às proposições de Vaillant, que visam ser globais, sobre o romantismo, no que tange à noção de “religião do absoluto”.
Num primeiro momento, a obra O Romantismo no Brasil (CANDIDO, 2002)nos serviu de substrato histórico. Assim, o que fizemos foi verificar se as generalizações propostas por Vaillant se ajustavam aos fatos ocorridos no Brasil romântico. A segunda etapa do trabalho, por sua vez, consistiu em verificar se os apontamentos críticos de Candido convergiam com o trabalho desenvolvido por Vaillant.
Este é, assim, um trabalho de comparação entre diferentes posicionamentos críticos acerca de um mesmo objeto. Através desse exercício, pode-se verificar o avanço do conhecimento científico acerca de um tema; a validade de novos conceitos para tratar de problemas antigos; e, principalmente, ele possibilita colocar a mostra ‘o diferente’, podendo fazer surgir aspectos de fenômenos já estudados que talvez não tenham sido considerados.  
Conforme apontado no título, trata-se de uma atividade de caráter experimental. Com isso indica-se que as conclusões alcançadas precisam ser novamente testadas por meio de pesquisas em um número maior de autores que tratem do tema apresentado, bem como pela análise de textos literários do período em estudo.

2 A RELIGIÃO DO ABSOLUTO NO ROMANTISMO BRASILEIRO

Em sua busca por compreender globalmente o romantismo, Alain Vaillant assume que apenas dados políticos e sociais não são suficientes para explicar um movimento cultural de tal magnitude. Segundo ele, o imaginário romântico oscila, vertiginosamente, “entre as esferas do visível e do não visível, do humano e do divino, do natural e do sobrenatural” (VAILLANT, 2012, p. 38). Compreende-se, a partir do exame do texto de Vaillant, que esse traço característico é um dos mais gerais do romantismo e que estaria, primeiramente, ligado a uma mudança de postura frente a um universo de hierofanias, experiências de manifestação de realidades sagradas (ELIADE, 1992) culturalmente instituídas. Somente depois implicou em movimentos políticos e sociais. 
Para os românticos, ciência, sentimento, história e arte convergem e estão em íntima relação com forças místicas invisíveis. Assim, seria possível mirar o sobrenatural pela observação do natural, o divino, pela visão humana (VAILLANT, 2012). A essa característica fundamental do romantismo, Vaillant chama de “religião do absoluto”. Conforme explica, ela se deve, primeiramente, a um processo de questionamento religioso que legou aos indivíduos uma superação dos ritos de acesso a Deus institucionalizados pela Igreja Católica.  Nesse sentido, Vaillant afirma que as raízes mais profundas de todo o romantismo são suas fontes cristãs:
[...] o coração vivo do romantismo, o centro vivo de onde tudo emana, é, com efeito, a religião - mais precisamente, o vasto movimento de secularização do questionamento religioso que caracteriza globalmente a evolução intelectual Europeia desde a Reforma e que, virtualmente, confia a cada indivíduo, claro, em função de sua educação, o direito e o dever de se confrontar aos grandes enigmas da metafísica cristã. (VAILLANT, 2012, p. 37).
Conforme o teórico francês, compreende-se que o romantismo tem uma afinidade natural com a reforma protestante. Enquanto, no catolicismo, o homem depende da instituição religiosa para que legitime seu acesso a Deus, na ética protestante, a experiência com o divino atinge a esfera individual. Nesta, é como se Deus passasse a se importar com cada sujeito, de tal modo que entrar na presença d’Ele se constituiria numa experiência pessoal. Isso explica, segundo o teórico francês, a violência com que tanto a instituição Católica quanto o Estado combateram o protestantismo.
Vaillant (2012, p. 38) afirma que, visto do prisma da ortodoxia religiosa católica, o romantismo figurava como uma estética da transcendência, que logrou enxergar em todas as experiências humanas a atuação de forças invisíveis e sobrenaturais. Assim, o sujeito ganhou autonomia frente às instituições religiosas, além disso, passou a enxergar nos aspectos básicos de sua vida uma atuação sobrenatural.
A partir dessas considerações de Vaillant, pode-se concluir que a afinidade do romantismo e do protestantismo, tal como este se deu a princípio, reside na valorização do sujeito, na crença de que ele possui meios de, por si só, acessar o divino e sobrenatural. 
No Brasil, baseados em Candido (2002), pode-se afirmar que a afinidade entre o pensamento religioso e o romantismo deu-se antes que se manifestassem outras tendências temáticas da estética. Antes, inclusive, do marco inicial do romantismo brasileiro, a revista Niterói, de 1836, na qual Gonçalves de Magalhães publicou o prefácio de Suspiros poéticos e saudades. Se na Europa a Reforma serviu como processo de libertação do indivíduo em relação às instituições, que convergiu com o movimento literário romântico, no Brasil, o processo de libertação do sujeito parece ter se iniciado na própria literatura. 
Condiz com essa compreensão o fato de que não houve uma separação no interior da igreja Católica que indicasse uma ação de reforma nos modelos europeus. Contudo, segundo Candido (2002), são componentes de sua hierarquia os primeiros a consumirem, assimilarem e a propagarem os valores românticos, guardando-se as afinidades deste com o protestantismo. Isso foi possível também porque nesse período – a partir de 1808 – o romantismo não se identificava como tal no Brasil, afirma o teórico brasileiro. Outro elemento que corrobora, nesse sentido, diz respeito ao fato de que a elite intelectual brasileira era consumidora de literatura europeia romântica.  Ao tratar do modo como o romantismo se inicia no Brasil, Candido afirma:
É preciso destacar outro traço, cheio de consequências: o advento de uma religiosidade que se distancia da devoção convencional para apresentar-se como experiência afetiva, que confere certa nobreza espiritual e foi sendo considerada cada vez mais posição moderna, oposta ao paganismo ornamental da tradição. Os primeiros românticos brasileiros consideravam como um dos seus mestres Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), que de fato consagrou a segunda parte de sua vida a traduzir os Salmos, de Davi, pondo assim na linha de frente a poesia religiosa, seguido por Frei Francisco de São Carlos [...] (p. 17, 18)
Como se pode observar, é possível delinear uma linha de coerência entre os acontecimentos que marcaram inicialmente o romantismo no Brasil e as considerações que Vaillant apresenta a respeito da estética. Contudo, também verificam-se algumas dissonâncias entre os fatos apontados pelo teórico brasileiro e as discussões apresentadas pelo francês.
Candido e Vaillant equiparam-se quando ambos detectam que o advento do romantismo relaciona-se, primeiramente, com uma tendência ao questionamento e à superação das convenções institucionais da igreja, que são substituídas pela experiência pessoal. Porém, Candido não é específico ao determinar as razões históricas dessa religiosidade. Vaillant, por sua vez, além de assumir que ele está no “coração do romantismo”, situa suas raízes no movimento de reforma religiosa.
Essa ausência de especificidade pode ser notada também no emprego da expressão “paganismo ornamental da tradição”. Candido (2002) é vago ao valer-se do termo “paganismo”, o que se percebe ao olhar o fato por ele apresentado pela ótica de Vaillant (2012). Essa oposição a um paganismo, no ceio da igreja Católica, pode ser entendido de pelo menos dois modos. Primeiro: como um processo de purificação e, portanto, como um fortalecimento da instituição religiosa em desfavor da libertação do indivíduo, preconizada pelo romantismo. Uma espécie de permanência dos valores da “contrarreforma”.  Pode-se entender, por outro lado, que essa oposição apenas fortaleceu o indivíduo, sem que tenha equivalido a um enfraquecimento da igreja.
Coopera com essas leituras o fato de que no Brasil não houve um movimento social e político que tenha servido de fulcro à libertação do sujeito frente à instituição religiosa. Como dissemos antes, esse processo de libertação do indivíduo parece ter ocorrido, predominantemente, na literatura, compreendida, aqui, como qualquer manifestação de cunho poético, ficcional ou dramático em qualquer nível de uma sociedade (CANDIDO, 1996), e por isso não implicou num choque de interpretações do sagrado tão violento quanto o que houve na Europa.
Independentemente de escolhermos um ou outro modo de interpretação da oposição que a experiência individual da esfera divina fez à tradição religiosa Católica no Brasil, o dado histórico de que ela consistiu-se como a rejeição a um “paganismo” não contraria a noção de absoluto de Vaillant:
[...] por todo sempre, o romantismo esteve em busca do absoluto, e ele procurou, intensamente, recursos e formas, mais relativas que absolutas, para retornar à pátria que deixou, sua pátria original, que é o reino dos deuses. (p. 38)
Assim, o gesto romântico brasileiro de se opor ao paganismo, de que trata Candido (2002), em favor de uma visão mais estritamente cristã, ainda que pessoal, pode ser entendido como uma busca do absoluto que se dá pelo viés do relativo.  Essa busca não se caracterizaria, necessariamente, pela adição de numerosos credos e ritos, podendo ser orientada por uma redução destes.  
Antes de seguirmos com esta exposição, cabe mencionar que o aspecto incerto de alguns pontos do texto de Candido (2002) pode se relacionar ao modo contraditório pelo qual ocorreram algumas mudanças históricas no Brasil. Nesse sentido, destacam-se eventos como a proclamação da independência, no qual se pode verificar “uma independência parcial”, ou uma “independência que ocorreu, mas não ocorreu”; e outros, como a proclamação da república e o advento da Consolidação das Leis do Trabalho. Do mesmo modo, é possível que o processo de libertação do indivíduo dos ritos dogmatizados de acesso a Deus tenha se dado sem o enfrentamento das instituições, diferentemente de como foi na Europa, onde houve a Reforma.
Com base no exposto acima, já podemos concluir que a noção de “religião do absoluto” também é relevante para a compreensão do romantismo brasileiro, embora apresentemos peculiaridades históricas. Nesse sentido, continuemos a observar o sentimento religioso de que vimos tratando e seus desdobramentos no romantismo brasileiro.
Conforme apresentado, Antônio Pereira de Sousa Caldas foi tido como mestre pelos primeiros românticos brasileiros e sua produção literária pode ser vista como um marco na literatura do Brasil. Embora tenha se ordenado padre em Roma, Sousa Caldas sempre foi tratado com reserva pelas autoridades eclesiásticas porque, em sua mocidade, manifestava ideias deístas, afirma Candido (2002). Ele acrescenta, ao tratar dos escritos de Sousa Caldas, que “são um momento importante do nosso liberalismo ilustrado, pela defesa da tolerância, da liberdade de imprensa e da compatibilidade entre a religião e as ideias políticas modernas” (CANDIDO, 2002, p. 18).
Também nesse ponto, reservadas às proporções do enfoque, os teóricos se assemelham. Sinteticamente, pode-se dizer que o deísmo é um posicionamento filosófico através do qual se assume, ou se permite assumir, a existência de Deus por meio da razão (ABBAGNANO, 2007).
As ideias deístas que Sousa Caldas apresentou, tanto na mocidade quanto na velhice, sugerem traços do que Vaillant chama a religião do absoluto. Por outro, o olhar cuidadoso e focalizado de Candido não deixa de detectar a presença desse sentimento no romantismo do Brasil. Os versos de Sousa Caldas, extraídos de suas Poesias Sacras, da “Ode à existência de Deus1 , materializam a noção de religião do absoluto: 

A luz se faça; e súbito creada
A luz, resplandecendo
A voz ouvia que aviventa o nada;
D’entre as trevas se foi desinvolvendo
O cháos, que estendendo
A horrenda, tudo confundia,
A terra, e o mar, e os ceos, e a noite e o dia.

Mas tu quem és, ó cháos tenebroso?
De quem o ser houveste?
De algum Deus por ventura poderoso,
A cujo aceno tu também cedeste?
Ou acaso nasceste
De ti mesmo ante o tempo; e a tua edade
Tem por termo e princípio a eternidade?
...
O peito se embravece:
Voraz zelo as entranhas me consome.
Ah! Foge, erro feroz, respeita o nome
Daquelle a quem conhece
Por SENHOR o Universo; e em vão gemendo
No abismo, esconde teu furor horrendo.

Faze, ó razão, soar a voz augusta
Que as rochas desferra,
E que as forças do Averno abala, assusta
Escutai, alto ceos: ergue-te ó terra,
A fronte descerra;
Atenta de meos versos a armonia:
De novos pensamentos a ousadia.
(SOUSA, 1836, p. 7, 8)

            Quanto à forma, a cada duas Septilhas o poeta inseriu uma sextilha, também alterna versos de nove e seis sílabas poéticas. Tal estrutura expressa a busca romântica de liberdade formal em relação aos modelos clássicos, que prezavam por uma maior regularidade. Depreende-se de Bosi (2006) que as modificações estruturais dos versos, ocorridas durante o romantismo, relacionam-se com as modificações das estruturas sociais que ocorreram no período. Quando o poder da nobreza foi abalado, mediante a revolução francesa, as formas de expressão valorizadas por essa classe cederam espaço a diferentes modelos de versejar, de gosto mais populares. Assim, destacamos que tanto a busca por liberdade formal quanto a religiosidade romântica tem como fulcro o questionamento das instituições sociais.    
Tipicamente mais romântico, tal como verifica Jean Cohen (1974), é a inserção de pausas longas no interior do verso e a utilização de pausas curtas no final de cada um deles, formando o enjambement. Sousa Caldas utiliza tanto um quanto o outro recurso no poema apresentado. Essa utilização também reflete o anseio romântico por liberdade porque, conforme Octávio Paz (1976), na poesia moderna, em que se insere a poética romântica, a imagem e a frase geralmente não cabe em um único verso. Os três primeiros versos do citado poema de Sousa Caldas exemplificam isso, visto que tanto a frase quanto a imagem poética, sinestesia, requerem mais de um verso para se constituir. Nisso, o poema se opõem ao que ocorre na poesia do século XVI e XVII, em que verso, frase e imagem poética tendem a coincidir. Assim, esse recurso também pode ser considerado como uma ruptura de modelos formais socialmente valorizados pela aristocracia nobre deposta pela revolução francesa.     
Em correspondência com essa estrutura formal, no nível do significado, verifica-se a presença de um eu lírico questionador dos segredos do universo, que tenta aproximar razão e fé para de compreender a existência como um todo. Ao mesmo tempo, verifica-se que o modo como esse eu propõe sua relação com o sagrado não se dá por preces, ladainhas, ou penitência. Dificilmente, pode-se aproximar o poema acima desses textos, o que o diferencia profundamente da poesia com temática religiosa de Gregório de Matos, por exemplo. Não há referência a qualquer instituição religiosa; o contato do eu lírico com o sagrado é direto.
No poema, o eu lírico intima um possível Senhor do universo, não argumenta com tal figura, mas usa o imperativo do verbo para se dirigir a ela “atenta”. Esse eu convoca o “céu” e a “terra”, criações divinas, na lógica religiosa do poema, para que atentem ao seu poder criador: “de meos versos a armonia”, demonstrando com isso a importância do indivíduo. A experiência individual aparece, ainda, claramente, na penúltima estrofe, sobretudo, nas palavras “peito” e “entranhas”. O lançar-se ao absoluto, conforme expõem Vaillant, não é apenas a adesão aos temas religiosos ou transcendentais. Trata-se de um movimento de oscilação entre o natural, “A terra, e o mar, e os ceos, e a noite e o dia.” e o sobrenatural, “algum Deus poderoso”, e é intermediado pelo homem, “a razão”. A religião do absoluto no poema é, assim, visível na figura de um eu lírico que não restringe sua fé aos limites de uma instituição religiosa.
Além de Sousa Caldas, outros poetas que ajudaram a colocar a poesia religiosa na vanguarda do romantismo brasileiro eram considerados como referências para os primeiros românticos de nosso país, acrescenta Antonio Candido (2002), citando os nomes de Frei Francisco de São Carlos, Elói Ottoni e Frei Francisco do Monte Alverne. Quanto a este, as considerações do crítico brasileiro indicam a possibilidade de que seja possível observar a expressão poética da religião do absoluto em sua obra:
Mas muito mais tocado pelo espírito novo foi Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1857), professor de filosofia que influenciou a primeira geração romântica pelo seu ecletismo espiritualista e, sobretudo, pela eloquência dos seus sermões, cheios de patriotismo e de um sentimentalismo que transforma a religião em experiência pessoal. (CANDIDO, 2002, p. 19, 20).
Como se observa no fragmento acima, além de reiterar a convergência entre experiência pessoal e religião, incitada pela Reforma, Frei Francisco antecipa o misticismo que se fará presente no romantismo por meio de um ecletismo espiritualista, apontando para a discussão empreendida por Vaillant sobre a religião na estética de que tratamos.  

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo o relato histórico de Candido (2002) sobre o romantismo e as considerações que faz acerca dos fatos que apresenta, verificamos a presença de autores e obras que podem ser estudas por meio da noção de religião do absoluto. Revela-se, assim, tanto uma certa coerência que a análise do romantismo, por meio do conceito de que tratamos, apresenta, quanto se demonstra o vigor do estudo da literatura por meio do comparativismo crítico.
Nesse sentido, os resultados gerais indicam que Vaillant (2012) e Candido (2002) equiparam-se quanto à percepção do lugar da religião numa “cronologia” do romantismo. Aquele, contudo, destaca-se em relação a este na medida em que identifica e apresenta esse aspecto como um estruturador geral do romantismo. Embora Candido não se posicione, claramente, quanto aos acontecimentos que narra, primando, por um lado, por um cuidado de historiador e, por outro, por uma ação de exclusiva crítica literária, julgando a qualidade estética, é possível perceber que, para ele, o elemento estruturador do romantismo brasileiro é o indianismo/nacionalismo, apesar de reconhecer o advento primeiro da temática religiosa como experiência individual.
Se compreendermos o indianismo nessa perspectiva, devemos reconhecer que o coração do romantismo brasileiro não é propriamente a religião, mas a política. Em outras palavras, os jogos e estratégias de poder de uma colônia que visava sua libertação frente à metrópole. No âmbito da literatura, elaborava-se, assim, uma libertação cultural, em favor da constituição de uma identidade nacional.
Desse modo, aponta-se uma divergência profunda entre Vaillant (2012) e Candido (2002), que pode decorrer de peculiaridades históricas do Brasil e da Europa, que seja: a experiência individual do sobrenatural parece não ser garantidora de uma coerência global do romantismo brasileiro, como sugere Vaillant para o romantismo como um todo. Aparentemente, nosso romantismo relaciona-se mais a uma conquista do mundo natural por meio do fim da relação colônia-metrópole, do que a uma conquista do mundo natural-sobrenatural, sugerida pela noção de religião do absoluto. Ainda assim, deve-se considerar o caráter contraditório que esse mundo natural alcança em nossa literatura, devido à sua construção altamente idealizada. Essa idealização do mundo pode ser um caminho a se percorrer através do conceito de religião do absoluto.
Em todo o caso, a comparação proposta demonstra a necessidade de revisitarmos o romantismo brasileiro, de pesquisá-lo novamente. Vaillant (2012) começa seu trabalho de propor “uma visão global do romantismo” perguntando-se se esse movimento realmente existiu. De fato, como é possível tratar por um único nome um fenômeno que possui tantas contradições internas, tantas facções, que se relaciona tão diretamente ao lugar onde ocorreu e ocorreu em múltiplos lugares?  O que Vaillant visa estabelecer em seu texto é uma visão homogênea do romantismo, que supere as diferenças e tons locais que o movimento assumiu, um ponto de coerência em torno do qual possam orbitar as diversas características que o romantismo assumiu.
No Brasil, o romantismo é classificado em três fases que, essencialmente, opõem-se: a segunda geração queria fugir do mundo, por meio da morte, às vezes, enquanto os condoreiros queriam mudar o mundo e permanecer nele. Apesar disso, tratamos todos os escritores desses momentos como românticos. Talvez seja a hora de dissolvermos as fases e buscarmos uma unidade para esse movimento, uma visão global, na esteira do que propõe Vaillant.

4 BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia.Trad. BOSI, A. BENEDETTI, J. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
CANDIDO, A. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas - FFLCH/USP, 2002.
____________. Direito à Literatura. In: Vários Escritos. 3ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
COHEN, Jean. Nível Fônico: a versificação. In: Estrutura da linguagem poética. Trad. Álvaro Lorencini e Ane Armichand. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1974.  
ELIADE, M. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
CALDAS, A. P. S. Obras Poéticas. Coimbra, 1836. Disponível em: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=midias&id=136535. Acesso em: 12/2014.
PAZ, O. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1976.
VAILLANT, A. Pour une histoire globale du romantisme. In: Dictionnaire du Romantisme. Paris, CNRS Éditions, 2012, p. 13 – 154.

*Professor EBTT de português e literatura do quadro efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - IFMT Campus Primavera do Leste. Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem – área de concentração em Estudos Literários (UFMT). michael_jhonatam@hotmail.com
1 Os versos estão escritos em Língua Portuguesa correspondente ao ano de 1836.


Recibido: 26/01/2018 Aceptado: 22/02/2018 Publicado: Febrero de 2018


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