Revista: Atlante. Cuadernos de Educación y Desarrollo
ISSN: 1989-4155


OLHARES SOBRE A DEPENDÊNCIA – SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS NA ANÁLISE DO CAPITALISMO LATINO AMERICANO E BRASILEIRO NAS ÓTICAS DE FLORESTAN FERNANDES E FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Autores e infomación del artículo

Danniel Ferreira Coelho*

Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes, Brasil

Email: dannielcoelho65@yahoo.com.br


RESUMO
O presente trabalho visa compreender o pensamento de dois autores fundamentais para o debate acerca do desenvolvimento em situação de dependência, vinculados ao pensamento da Escola de Sociologia de São Paulo: Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Florestan Fernandes, através da cadeira de sociologia nº 1, da Universidade de São Paulo, mobiliza seus alunos, dentre eles Fernando Henrique Cardoso, para uma série de estudos acerca da realidade brasileira. A partir daí desenvolve-se tal corrente de pensamento. Para compreendê-los torna-se imperativo enquadrá-los no contexto de tal debate, apresentando os argumentos expostos por cada corrente, para buscar entender o conceito de dependência que se torna central nas discussões sobre o (sub) desenvolvimento do Brasil. Contudo, apesar de ambos se enquadrarem na mesma “Escola”, e em tal um ter sido inclusive o orientador do outro, o presente trabalho também visa demonstrar as significativas diferenças entre as visões desses dois autores.

Palavras-chave: Desenvolvimento, Dependência, marxismo, funcionalismo, sociologia

RESUMEN
El presente trabajo tiene como objetivo entender el pensamiento de dos autores fundamentales para el debate sobre el desarrollo en una situación de dependencia, vinculado al pensamiento de la Escuela de Sociología de São Paulo: Florestan Fernandes y Fernando Henrique Cardoso. Florestan Fernandes, a través de la cátedra de sociología nº 1, de la Universidad de São Paulo, moviliza a sus estudiantes, entre ellos Fernando Henrique Cardoso, para una serie de estudios sobre la realidad brasileña. A partir de esto se desarrolla tal corriente de pensamiento. Para comprenderlos, es imperativo ubicarlos en el contexto de dicho debate, presentando los argumentos presentados por cada corriente, a fin de comprender el concepto de dependencia que se vuelve central en las discusiones sobre el (sub) desarrollo de Brasil. Sin embargo, aunque ambos caen dentro de la misma "Escuela", y en uno de ellos ha sido el guía del otro, el presente trabajo también pretende demostrar las diferencias significativas entre las visiones de estos dos autores.

Palabras clave: desarrollo, dependencia, marxismo, funcionalismo, sociologia

ABSTRACT
The present work aims to understand the thinking of two fundamental authors for the debate about development in a situation of dependence, linked to the thought of the São Paulo School of Sociology: Florestan Fernandes and Fernando Henrique Cardoso. Florestan Fernandes, through the chair of sociology nº 1, of the University of São Paulo, mobilizes his students, among them Fernando Henrique Cardoso, for a series of studies about the Brazilian reality. From this develops such a current of thought. In order to understand them, it is imperative to place them in the context of such a debate, presenting the arguments presented by each current, in order to understand the concept of dependence that becomes central in the discussions about Brazil's (sub) development. However, although both fall within the same "School", and in such a one has even been the guiding one of the other, the present work also aims to demonstrate the significant differences between the visions of these two authors.

Keywords: Development, Dependency, Marxism, Funtionalism, Sociology


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Danniel Ferreira Coelho (2019): “Olhares sobre a dependência – semelhanças e diferenças na análise do capitalismo latino americano e brasileiro nas óticas de florestan fernandes e Fernando Henrique Cardoso”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (julio 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2019/07/analise-capitalismo-latinoamericano.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1907analise-capitalismo-latinoamericano


1. Introdução
            Desde o início da segunda metade do século XX o tema “desenvolvimento” ganha centralidade nas discussões das ciências sociais na América Latina. No Brasil essa discussão levou a um entendimento que tal somente seria possível a partir de uma estratégia nacionalista que visse “o desenvolvimento econômico como resultado de uma revolução nacional”, o que levou a uma compreensão da proeminência de um posicioidnto dependente do Brasil, criando assim um vasto campo de pesquisas que embasou-se no que se convencionou denominar como “Teoria da Dependência”. (BRESSER-PEREIRA, 2010)
            Tal campo surge para embasar as discussões acerca do estado de subdesenvolvimento que permeia o processo histórico econômico, político e social, e se enquadra em uma perspectiva mais ampla, que busca compreender tais facetas no desenvolvimento como um todo da América Latina. Tal processo alcança o seu ápice teórico no final dos anos 1960, porém, possui suas origens na década anterior. (BRESSER-PEREIRA, 2010)
            No Brasil, tais análises serão feitas, segundo Bresser Pereira (2010), por três correntes distintas de pensamento, que seriam: a originária, vinculada aos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB); a dos estruturalistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, das Nações Unidas (CEPAL); e a que ficou conhecida como “Escola de Sociologia de São Paulo”.
            Sobre as diferenças entre as três correntes, Bresser Pereira (2010) afirma que:
“Enquanto o ISEB e a CEPAL defendiam uma interpretação nacional-burguesa do Brasil, com uma visão do crescimento econômico intimamente vinculada à ideia de construir a nação e definir uma estratégia nacional de desenvolvimento – o nacional-desenvolvimentismo – a Escola de São Paulo criava a interpretação da dependência associada. Enquanto os intelectuais do ISEB viam o pacto político orientado para a industrialização de Getúlio Vargas como a realização da revolução nacional e capitalista e consideravam seu populismo uma primeira expressão da participação do povo na política, a escola de sociologia São Paulo era crítica do nacionalismo econômico e do populismo político de Vargas” (BRESSER-PEREIRA, 2010, pag. 23)

            Dessa forma, o que Bresser-Pereira chama de escola de sociologia de São Paulo surge para representar a contraposição ao pensamento, à época, hegemônico, nacional desenvolvimentista do ISEB e da CEPAL. O presente trabalho visa compreender o pensamento de dois autores fundamentais para tal debate, vinculados ao pensamento da Escola de Sociologia de São Paulo: Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
Florestan Fernandes, através da cadeira de sociologia nº 1, da Universidade de São Paulo, mobiliza seus alunos, dentre eles Fernando Henrique Cardoso, para uma série de estudos acerca da realidade brasileira. A partir daí desenvolve-se tal corrente de pensamento.
Para compreendê-los torna-se imperativo enquadrá-los no contexto de tal debate, apresentando os argumentos expostos por cada corrente, para buscar entender o conceito de dependência que se torna central nas discussões sobre o (sub) desenvolvimento do Brasil.
Contudo, apesar de ambos se enquadrarem na mesma “Escola”, e em tal um ter sido inclusive o orientador do outro, o presente trabalho também buscará demonstrar as significativas diferenças entre as visões desses dois autores.

2. Origens distintas – o filho do imigrante e o filho do aristocrata
A aproximação desses dois intelectuais, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, parece uma das situações absolutamente improváveis, fruto das diferenças claras entre as origens desses dois personagens.
Florestan Fernandes é o legitimo filho da classe trabalhadora. Nascido em 1920 na cidade de São Paulo, órfão de pai desde cedo, filho de uma lavadeira portuguesa analfabeta, Florestan Fernandes quando criança não teve condições de completar o ensino formal, “cumprindo apenas três anos regulares do ensino primário”. (FREITAG, 2005, pag. 229)
Na juventude, Fernandes buscou a sobrevivência material nas mais variadas formas, trabalhando como “engraxate, biscateiro, auxiliar de garçom, entregador de remédios a domicílio, entre outras atividades”. (FREITAG, 2005, pag. 229)
Consegue concluir, no final da década de 1930, através de supletivos, a formação básica e ingressa, em 1941, no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, seguindo um caminho absolutamente diferente do trilhado por Fernando Henrique Cardoso, para chegar ao mesmo lugar. (FREITAG, 2005, pag. 229)
Fernando Henrique Cardoso é oriundo de uma linhagem de grande tradição na vida pública brasileira, desde os tempos imperiais.
Garcia Junior (2004) assim apresenta a ascendência de Fernando Henrique Cardoso:
Seu bisavô foi chefe do Partido Conservador de Goiás durante o Segundo Império, eleito deputado por várias legislaturas, foi senador e presidente de província. Seu avô, ainda jovem oficial do Exército, participou ativamente da queda da Monarquia e da proclamação da República, como revela o trecho citado, o que lhe valeu ser ajudante-de-ordens de Floriano Peixoto, o " marechal de ferro", e chegar a morar, junto com seu pai, no Palácio do Itamaraty, residência oficial do presidente. Findou sua carreira como marechal, mas não sem antes participar do levante de 1922 e, juntamente com o ex-presidente Hermes da Fonseca, ter sido preso por esse motivo.
O pai de Fernando Henrique também seguiu a carreira militar e participou das revoltas tenentistas de 1922 e 1924, que culminaram na revolução de 1930 e na condução de Getulio Vargas ao poder central. Um dos futuros ministros da Guerra do Estado Novo varguista, Eurico Gaspar Dutra, presidente da República depois da derrubada de Vargas em 1945, havia sido ajudante-de-ordens de seu avô, seu pai fora oficial de gabinete do ministro Góes Monteiro em 1934, e seu tio, Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, foi ministro da Guerra de Vargas durante o governo provisório de 1931 a 1933. Seu círculo familiar mais direto esteve no palco dos acontecimentos da revolução de 1930, mas houve também participações em campos antagônicos no levante de 1932 em São Paulo. Eles estiveram próximos também dos oficiais que mudaram o perfil e a composição do Exército brasileiro a partir dos anos de 1930. Após deixar o Exército em 1945, como general, seu pai exerceu a advocacia — havia se diplomado em Direito nos anos de 1930 — e seu engajamento político em causas nacionalistas permitiu sua eleição para deputado federal por São Paulo em 1954” (GARCIA JR, 2004, págs. 286-287)

            Dessa forma, Fernando Henrique Cardoso ingressa na Universidade de São Paulo como filho de General do Exército e se forma sendo o filho do deputado orientado pelo filho da lavadeira.
Florestan Fernandes se torna nesse momento a principal referência intelectual de Fernando Henrique Cardoso, seu assistente. Cardoso também compartilha nesse momento das temáticas do seu professor.
Cardoso doutora-se com uma tese “Formação e desintegração da sociedade de casta: o negro na ordem escravocrata do Rio Grande do Sul” que analisa, da mesma que anos antes tinha feito Fernandes, as relações raciais no Brasil. Nessa obra, Cardoso dava continuidade à linha de pesquisa de Fernandes, que questionava e criticava duramente a ideia de “democracia Racial” no Brasil. A partir da obtenção do título de Doutor, Fernando Henrique Cardoso vai desenvolvendo novas pesquisas que, gradativamente, o vão afastando teoricamente do seu mestre, em especial nas do campo da “dependência”. (MELO, 2010)

3. Contexto
O campo teórico que convencionou-se denominar “Teoria da dependência” surge no contexto dos anos de 1960 a partir da crítica do que se chamava de “desenvolvimentismo”, e que encontrava no ISEB e na CEPAL o espaço privilegiado para o seu florescimento.
Para melhor compreensão desse debate teórico, ocorrido entre essas três correntes, cabe primeiramente realizar a contextualização do ambiente socioeconômico em que ele esteve inserido.
A linha mestra que rege o pensamento desses dois espaços, ISEB e CEPAL, desde suas origens, é a crítica ao liberalismo econômico e ao “pensamento econômico convencional” visto como “um instrumento que promovia os interesses dos países ricos (...) que não viam favoravelmente a industrialização em curso na região”. (BRESSER-PEREIRA, 2010, pag. 18)
Dessa linha, a produção teórica dos autores ligados a esses espaços vincula-se à lógica empreendida no sentido dessa industrialização que permeava a gestão pública nessa quadra histórica, na América Latina e principalmente no Brasil.
O Brasil da década de 1950 é marcado pelas transformações advindas desse processo de industrialização. Desde o início da década, com a emergência do segundo governo de Getúlio Vargas, há uma centralidade no papel estatal, entendido enquanto estratégico, no sentido do desenvolvimento de “um capitalismo de cunho nacionalista, autônomo”, que exercesse “função mediadora de caráter interno, entre as classes sociais, e externo, do país com os centros decisórios do capitalismo mundial”. (SOUZA, 2010, pag. 148)
“Objetivando a concretização de uma Política Nacional de Desenvolvimento Econômico e diante das necessidades de aparelhamento do Estado, são criados, em 1951, diversos órgãos setoriais de atuação nacional: a Comissão Nacional de Política Agrária (CNPA) encarregada de propor possíveis modificações na estrutura agrária; a Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI), com o objetivo de estudar e propor de medidas econômicas, financeiras e administrativas ligadas à política industrial; a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento de Transportes para melhorar os transportes e melhorar o abastecimento interno; a Comissão Nacional de Bem-Estar para cuidar “da melhoria das condições do povo brasileiro”. Nesse mesmo período, somam-se a essas Comissões, outras de atuação específica, além de outros órgãos e agências, totalizando a criação de 22 instituições estatais, incluindo a criação da CAPES, da Petrobrás, do CNPq e do BNDE, entre outras”.(SOUZA, 2010, pag. 148)

Foi, portanto, à luz desse cenário que se buscou as condições para a criação de um espaço intelectual que desenvolvesse teoricamente os intentos da política varguista. Tal intento ocorria especialmente sob a inspiração do novo órgão das Nações Unidas, constituído para o desenvolvimento da América Latina e do Caribe, a CEPAL.
É importante, contudo, destacar que a CEPAL era um órgão da ONU, criado em 1948, que atuava em toda a América Latina e no Caribe, possuindo, portanto, uma série de profissionais e desenvolvendo um sem-número de produções. Dessa forma, o que autores como Bresser Pereira conceituam como “a interpretação da CEPAL” acerca do desenvolvimento, refere-se aos estudos estruturalistas que seguiam a mesma linha da obra das “duas figuras importantes do pensamento econômico do sec. XX: Raul Prebisch e Celso Furtado”. (BRESSER-PEREIRA, 2010, pag. 21)
O pensamento vinculado à obra desses dois autores possuía duas proposições fundamentais, “a do papel central da industrialização para a superação da condição periférica e a da incapacidade da produção primário-exportadora de sustentar um crescimento dinâmico”. (COLISTETE, 2001, pag. 25)
Esse pensamento cepalino teve especial influência no contexto brasileiro, sendo reconhecida “como provavelmente a mais significativa entre os países da América Latina durante o pós-Segunda Guerra Mundial”. (COLISTETE, 2001, pag. 27)
Um dos principais resultados de tal influência foi a criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Segundo Toledo (1982) “por volta de 1953, um grupo de intelectuais (...) busca convencer o Ministro da Educação da necessidade do Governo constituir um grupo que assessorasse em todas as tarefas que o Estado capitalista é incumbido de fazer”. (TOLEDO, 1982, p.184)
Esse grupo de intelectuais era liderado por Hélio Jaguaribe e era composto por pensadores como Alberto Guerreiro Ramos, Cândido Mendes e Nelson Werneck Sodré, dentre outros. (TOLEDO, 1982)
Contudo, cabe frisar que, em que pese o grupo buscar desenvolver teoricamente a partir da lógica desenvolvimentista que marca o período varguista, ele somente se torna institucionalizado após o suicídio de Getúlio, no governo Café Filho, em 1955. (TOLEDO, 1982)
Apesar de esses intelectuais possuírem entre si inúmeras divergências, especialmente Jaguaribe e Sodré, a linha fundamental do pensamento que se convencionou atribuir ao ISEB, vinculado à lógica da obra “Nacionalismo na atualidade Brasileira”, de Jaguaribe, preconizava que a burguesia industrial deveria liderar o processo de desenvolvimento nacional. (TOLEDO, 1982)
Os intelectuais do ISEB acreditavam que o modelo político vinculado aos governos de Vargas representava um pacto político liderado pela burguesia nacional com a participação de setores populares, e que estava realizando uma verdadeira “Revolução Nacional Capitalista”, que seria enfim a correta “estratégia nacional de desenvolvimento”, também denominada por eles como “nacional desenvolvimentismo”. (BRESSER-PEREIRA, 2010, pag 23)
Da crítica a tal pensamento, que entende os intelectuais do ISEB como políticos, emerge esse novo grupo de sociólogos da Universidade de São Paulo, que se entende enquanto acadêmicos, que contará com Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. (MELO, 2010)
4. Duas vertentes da Dependência
O afastamento teórico originário de Cardoso e Fernandes se deu através de outro grupo, denominado “seminário de Marx”, que objetivava realizar o estudo da obra “O Capital”. (MELO, 2010)
Esse grupo buscava fazer uma nova leitura dos conceitos marxistas, que fosse desvencilhada da linha do Partido Comunista Brasileiro. Novamente partiam do preceito da necessidade de um olhar mais acadêmico e menos político do autor alemão, conforme o próprio Cardoso declarou: “Marx, li depois. (...) Não tinha nada a ver com o comunismo. Nosso Marx não foi o Marx do Partido Comunista. Pelo contrário. O Partido Comunista não tinha lá muita paixão por essas coisas. O nosso era mais o Marx de O Capital”. (CARDOSO apud MELO, 2010)
Assim, no final da década de 1950 e durante a primeira metade da década de 1960, Cardoso alinha-se a uma perspectiva marxista e nesse ato, segundo ele próprio, rompe com Fernandes, que então “não gostava do Seminário de Marx” e era vinculado a uma linha funcionalista. Para Cardoso “o seminário significava a emancipação intelectual” em relação a Fernandes. (CARDOSO, 2006, pag. 77)
Apesar de Fernando Henrique Cardoso ter utilizado desde esse momento conceitos e categorias marxistas, há divergências fundamentais entre a sua visão e a daqueles vinculados teoricamente a ele, com a dos alinhados ao que se convencionou denominar de “Teoria Marxista da Dependência”, da qual Fernandes, apesar de não ser um adepto formal, claramente se aproximava mais, especialmente em sua produção pós 1960, quando se afasta do funcionalismo outrora criticado pelo “marxista” FHC. (MELO, 2010)
Cardoso, em sua obra clássica “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, escrita em parceria com o pesquisador chileno Enzo Faletto, trabalha majoritariamente com categorias conceituais distintas daquelas utilizadas nas obras de autores marxistas, como André Gunder Frank e Ruy Mauro Marini. Da mesma forma, a obra de Cardoso e Faletto se enquadra em um exercício de constituição de uma nova interpretação que se desvencilhasse do chamado “desenvolvimentismo” que, desde a década de 1950, norteava os autores vinculados ao ISEB e à CEPAL. (BRESSER-PEREIRA, 2010)
A perspectiva desenvolvimentista, em resumo, como já exposto acima, preconizava a necessidade de fortalecimento e modernização do Estado, para que este atuasse enquanto ferramenta fundamental do desenvolvimento econômico nacional, através da acumulação de capitais, pois “a noção de que a revolução capitalista em cada país envolvia uma revolução industrial e uma revolução nacional (...) estava na base do pensamento do ISEB”, que entendia que “estas últimas (revolução industrial e revolução nacional) aqui entendidas como os processos históricos que levaram à formação do moderno estado-nação”, pois entendiam que o “Estado moderno oriundo dessa revolução seria o instrumento de ação coletiva que, somado à nação, formaria o estado-nação moderno, garantiria um amplo mercado interno e formularia uma estratégia nacional de desenvolvimento”. (BRESSER PEREIRA, 2010, pag. 25)
Cardoso refuta tal visão, por considerar como inviável um processo de desenvolvimento tal que se considerasse como Revolução Industrial nacional, pois o capitalismo era por essência um processo internacionalizado, pois o “capitalismo é uma estrutura internacional, na qual cada país ocupa um lugar e desempenha uma função determinados”. (CARDOSO e FALETTO, 2004, pag. 45)
Para esses autores os países desenvolvidos assim o são, pois eles estão na origem do processo de desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema,
“O que contribuiu para o êxito das economias nacionais nos países de ‘desenvolvimento originário’ foi o fato de que estas se consolidassem simultaneamente com a expansão do mercado mundial, de maneira que tais países passaram a ocupar as principais posições no sistema de dominação internacional que se estabelecia.” (CARDOSO e FALETTO, 2004, pag. 45)

            Assim, não haveria uma forma para aqueles países retardatários, em especial na América Latina, realizarem um desenvolvimento econômico autônomo. O desenvolvimento possível seria apenas aquele que se desse interligado ao capitalismo global, o que na visão de Cardoso era algo pleidnte possível e, diferentemente do que era preconizado por autores desenvolvimentistas e marxistas, sob a lógica de FHC não haveria nada de errado nisso. (CARDOSO e FALETTO, 2004)
“as alternativas que se apresentariam, excluindo-se a abertura do mercado para fora, isto é, para capitais estrangeiros, seriam todas inconsistentes, como são na realidade, salvo se admite a hipótese de uma mudança radical para o socialismo”. (CARDOSO & FALETTO, 2004, 120)

            Nesse ínterim, Cardoso e Faletto criticam a perspectiva que entendia o desenvolvimento autônomo enquanto uma forma de se desvencilhar do imperialismo. Cardoso e Faletto afirmam que tal forma associada de desenvolvimento não é a de se submeter a uma superexploração capitalista, pelo contrário, pois haveria uma convergência de interesses entre as elites locais e as globais. Em sua obra clássica, Cardoso e Falleto afirmam que “utilizamos a noção de ‘desenvolvimento dependente associado’ para mostrar que os interesses dos grupos dominantes locais eram conciliáveis com os interesses internacionais e com a economia mundial” (CARDOSO e FALETTO, 2004, pag. 11)
Dessa forma, a obra de Cardoso e Faletto buscou demonstrar como seria “legítimo falar de países periféricos, industrializados e dependentes”. (CARDOSO e FALETTO, 2004, pag. 127)
Além disso, ao contrário da perspectiva desenvolvimentista de outrora, encabeçada por autores ligados ao ISEB e à CEPAL, os conceitos “desenvolvimento” e “dependência” não seriam mais entendidos como antônimos:
“a situação atual de desenvolvimento dependente não só supera a oposição tradicional entre os termos desenvolvimento e dependência, permitindo incrementar o desenvolvimento e manter, redefinindo-os, os laços de dependência, como se apoia politicamente em um sistema de alianças distinto daquele que no passado assegurava a hegemonia externa. Já não são os interesses exportadores que subordinam os interesses solidários com o mercado interno, nem os interesses rurais que se opõem aos urbanos (...) a formação de uma economia industrial na periferia do sistema capitalista internacional minimiza os efeitos da exploração tipicamente colonialista e busca solidariedades não só nas classes dominantes, mas no conjunto dos grupos sociais ligados à produção capitalista moderna: assalariados, técnicos, empresários, burocratas, etc.” (CARDOSO e FALETTO, 2004, págs 141 – 142)  

            Tal visão era diametralmente oposta à perspectiva marxista, com a qual Fernandes compactua e trata de forma mais especifica na parte final 1 de sua obra a “Revolução Burguesa no Brasil” preconizava a dependência enquanto uma faceta do imperialismo. Assim, a análise marxista busca “compreender as limitações de um desenvolvimento iniciado em um período em que a economia mundial já estava constituída sob a hegemonia de enormes grupos econômicos e poderosas forças imperialistas” (SANTOS, 2000, pag. 26)
Nesse contexto a expressão máxima da dependência reside no fato de que há uma superexploração do trabalho nos países periféricos, visto que as elites locais encontram-se em situação de subordinação no contexto internacional da economia, e a expropriação da mais valia ocorre na esfera externa. (SANTOS, 2000)
“A produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo. Há uma separação entre a produção e a circulação das mercadorias. Aqui aparece de maneira específica a contradição inerente à produção capitalista, acaba com o trabalhador vendedor e comprador. Em consequência a tendência do sistema será de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando se possa suprir mediante a  incorporação de novos braços ao processo produtivo. Acentua até os limites as contradições dessas relações de trabalho”. (MARINI 1985,, p. 45.)

            O resultado concreto então de tal processo é o rebaixamento dos salários, colocando em risco a própria sobrevivência material dos trabalhadores.
Fernandes afirma que “na realidade, porém, a depleção de riquezas se processa à custa dos setores assalariados e destituídos da população, submetidos a mecanismos permanentes de sobre-apropriação e sobre-expropriação capitalistas”. (FERNANDES, 1987, p.45)
Fernandes critica essa visão de capitalismo interdependente, que entendia o processo como de certa forma integrado ao desenvolvimento mundial;
“o uso da violência institucionalizada, da opressão sistemática e do terror organizado na revolução burguesa não constitui uma novidade. Ele aparece de forma endêmica ou transitória em todas as modalidades de revolução burguesa reconhecidas como ‘clássicas’. O que havia ocorrido é que os ‘círculos acadêmicos’ abandonaram o uso do conceito de dominação burguesa, a teoria de classe e, especialmente, a aplicação da noção de revolução à etapa de transição para o capital industrial nas nações capitalistas da periferia. Passou-se a falar, indiscriminadamente, em ‘elites’ e em ‘modernização’, algumas vezes também em ‘transferência de tecnologia e de capital.’’ (Fernandes, 1987, pag. 203)

            Fernandes se enquadra, portanto, teoricamente nesse debate, ao lado de teóricos como André Gunder Frank e Ruy Mauro Marini, que negavam a hipótese de um desenvolvimento autônomo na periferia do capitalismo. Fernandes vai além, ao afirmar que o “desenvolvimentismo extremista” é a “verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia”. (FERNANDES, 1987, pag. 346)
Além de negar a possibilidade de desenvolvimento na periferia, Fernandes também conclama a inviabilidade da vigência de uma democracia plena sob a égide do capitalismo dependente. A tese central, exposta no final da terceira parte de “A Revolução Burguesa no Brasil” é que o desenvolvimento histórico da burguesia brasileira levou a uma democracia “dissimulada” ou “restritiva”, que culminou, finalmente, com o golpe de 1964, em um estado autoritário. (FERNANDES, 1987, pag. 347)
A versão final dessa forma de Estado, a que se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante desenvolvimento, é a de um Estado Nacional Sincrético. Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, democrático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão acabada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim, vários aspectos trazem a existência de formas de coação, de repressão e de opressão ou institucionalização da violência e do terror que são indisfarçavelmente fascistas. (FERNANDES, 1987, pag. 350)

            Florestan entende, portanto, que “uma avaliação sociológica crítica do modelo autocrático burguês de transformação capitalista tem de levar em conta esses aspectos e deles partir”, pois o “capitalismo dependente na era do imperialismo total, num momento de crise mundial da periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida ou morte pela sobrevivência da dominação burguesa” não tem outro caminho que não o do autoritarismo. (FERNANDES, 1987, pag. 359)
Dessa forma, Fernandes conclui que “se já houve um paraíso burguês, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968”. (FERNANDES, 1987, pag. 359)

5. Considerações finais
A rigor, como destacado por Bresser Pereira, a “dependência” não chegou a propriamente gerar uma “teoria”, e sim uma interpretação. Tal se faz a partir de como se compreende a realidade posta, e a quais caminhos ela irá conduzir. Dessa forma, não há como proclamar que os dois autores entendem-na da mesma forma.
Concluindo, o presente artigo buscou demonstrar que, apesar da opinião de autores como Bresser Pereira, que localizam Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso como inseridos na mesma “escola”, no que tange ao debate acerca do desenvolvimento e da dependência, esses dois autores possuem olhares absolutamente distintos em relação a tal temática.
Tais olhares, inclusive, têm a ver com as origens e os caminhos trilhados por esses dois intelectuais. Um teve que conviver, por boa parte da sua vida, como as agruras da vida da classe operária, conhecendo os aspectos mais evidentes do subdesenvolvimento. O outro já possuiu uma trajetória menos tortuosa, cuja família estava ligada às elites políticas e econômicas brasileiras, desde o período imperial 
Fernando Henrique Cardoso, que inclusive logrou maior destaque enquanto “teórico” da dependência, proclama que o sistema capitalista industrial pode se desenvolver nos países latino-americanos, desde que se o entenda tal qual ele é “na periferia do mercado mundial e por sua vez nele integrado”. (CARDOSO e FALETTO, 2004, pag.115)
Dessa forma, a inovação intrínseca na obra de Cardoso e Faletto, que é oposta à lógica empreendida por autores marxistas, bem como pelo nacional desenvolvimentismo, reside na substituição do conceito de “dependência” pela ideia de “interdependência”, fruto dessa integração ao mercado mundial. (CARDOSO e FALETTO, 2004)
Tal ideia é oposta ao pensamento de Fernandes, que, diga-se de passagem, tampouco se identifica como um “teórico da dependência”. O fato de alguns autores o terem inserido nesse debate ocorreu porque em suas obras, especialmente em “A Revolução Burguesa no Brasil”, ele ter trata do efetivo controle externo da economia nacional, caracterizando assim o capitalismo brasileiro enquanto dependente.
Dessa forma, o capitalismo dependente no Brasil era a expressão maior do atraso, que era fruto de uma burguesia que “não assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade”, e que via que “era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do ‘atraso’ quanto do ‘adiantamento’ das populações”. (FERNANDES, 1987, 204)
Sendo assim, se para Cardoso haveria uma possibilidade de desenvolvimento em situação de dependência, para Fernandes tal intento seria inviável, visto que pelas singularidades do processo de revolução burguesa no Brasil, que acontecera pelo alto, sob a lógica de uma atrasada classe dominante, a tendência era o aprofundamento da dependência e da satelitização da economia nacional. E, por tal tendência ser por essência antinacional, ela somente poderia ser implementada pelo aprofundamento de um modelo autoritário e repressor, ou, segundo sua definição, “autocrático”. (FERNANDES, 1987)
Contudo, em que pesem as óbvias e evidentes divergências entre esses dois autores, é inegável que cada um deles à sua maneira contribuiu para uma maior compreensão em torno dos aspectos inerentes do capitalismo internacional, vendo como ele, necessária e inequivocamente, integra em uma mesma ordem global todos os países, centrais ou periféricos. Por isso, apesar de passado mais de meio século do início desse debate acerca do desenvolvimento, os olhares desses dois autores continuam absolutamente atuais para aqueles que prosseguem nessa discussão até hoje.

 REFERÊNCIAS
CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
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*Doutorando em Desenvolvimento Social, Mestre em História Social, Sociólogo, todos os títulos obtidos pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Atualmente Diretor de EAD da Universidade Católica de Brasília
1 Fernandes em sua “Nota explicativa” escrita em 1974 e exposta antes do prefácio, dá pistas do porquê das diferenças metodológicas entre as primeira e segunda parte em relação à terceira. Florestan Fernandes expõe que as duas primeiras partes foram escritas em 1966, portanto antes do recrudescimento do regime militar ocorrido a partir do Ato Institucional nº05. Já a terceira parte foi iniciada a partir do segundo semestre de 1973, já, portanto, no auge da repressão que foi o Governo Médici.

Recibido: 17/07/2019 Aceptado: 23/07/2019 Publicado: Julio de 2019

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