Tania Maria Sbeghen de Oliveira*
Marina Patrício de Arruda**
UNIPLAC, Brasil
taniamo@gmail.com
Resumo: Essa pesquisa teve por objetivo conhecer as percepções de acadêmicos de medicina sobre a anamnese sistêmica na formação médica contemporânea tendo em vista o atendimento médico de adolescentes. Considera-se que pensamento sistêmico no atendimento médico de adolescentes pode indicar possibilidades de discussão para melhoria da qualidade da formação médica contemporânea. Tratou-se de um estudo qualitativo realizado por meio de uma roda de conversa, estratégia metodológica que estimula a construção da autonomia dos sujeitos por meio da problematização e troca de informações para novas aprendizagens. Nesse estudo, a anamnese sistêmica teve como base de discussão a perspectiva da Teoria Bioecológica de Bronfenbrenner e do pensamento complexo de Edgar Morin para a compreensão integral do atendimento ao adolescente. A saúde é um fenômeno multidimensional, que envolve aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos relacionados e interdependentes. O estudo concluiu provisoriamente que o maior desafio do terceiro milênio está em reformar o pensamento para agir e ligar dois sistemas de pensamento: o linear e o sistêmico. Assim, poderemos pensar numa anamnese sistêmica para a formação médica contemporânea.
Palavras-Chaves: Formação médica contemporânea-Anamnese sistêmica-Atendimento médico de adolescentes.
Abstract: The purpose of this research was to understand the perceptions of medical students about systemic anamnesis in contemporary medical education in view of the medical care of adolescents. It is considered that systemic thinking in the medical care of adolescents may indicate possibilities for discussion to improve the quality of contemporary medical education. It was a qualitative study carried out through a conversation wheel, methodological strategy that stimulates the construction of the autonomy of the subjects through the problematization and exchange of information for new learning. In this study, the systemic anamnesis was based on the perspective of Bronfenbrenner's Bioecological Theory and the complex thinking of Edgar Morin for the comprehension understanding of adolescent care. Health is a multidimensional phenomenon, involving physical, psychological and social aspects, all related and interdependent. The study tentatively concluded that the greatest challenge of the third millennium lies in reforming thinking to act and connect two systems of thought: linear and systemic. Thus, we can think of a systemic anamnesis for contemporary medical education.
Keywords: Contemporary medical training- Systemic anamnesis-Medical care of adolescents.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Tania Maria Sbeghen de Oliveira y Marina Patrício de Arruda (2018): “Anamnese sistêmica na formação médica contemporânea: em atenção ao adolescente”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (septiembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2018/09/formacao-medica-contemporanea.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1809formacao-medica-contemporanea
Esse artigo é resultado de uma pesquisa sobre o atendimento médico sistêmico de adolescentes que buscam o ambulatório especializado do Hospital Infantil Seara do Bem (HISB) da cidade de Lages SC. A pesquisa teve como objetivo geral conhecer as percepções de acadêmicos de medicina sobre a anamnese sistêmica na formação médica contemporânea tendo em vista o atendimento médico de adolescentes.
Ao longo de nossa experiência no atendimento especializado de adolescentes no município de Lages SC, observamos a necessidade de um olhar ampliado na abordagem junto a rede básica e sobre os diferentes espaços geográfico, social e familiar do jovem. Nessa perspectiva, observamos que é da prática ambulatorial e do atendimento terciário que emergem questões para avaliação com rigor científico, de ações pertinentes à situação e ao local. Ações essas embasadas em práticas de profissionais de saúde que se dedicam ao atendimento de adolescentes e compreendem a importância dos programas de atenção integral para a renovação da prática médica contemporânea. Se há bem pouco tempo, a atenção em saúde se dava de forma tradicional, limitada a oferecer apenas tratamento aos pacientes a partir dos sintomas relatados, hoje, já se observa uma mudança significativa na prática da atenção integral exigindo do médico uma restruturação na prestação de serviço. Tendo em vista essa mudança estratégica da atuação médica é que nos deparamos com a complexidade do atendimento à adolescentes, afinal o que significa prestar uma atenção integral a adolescentes? Como orientá-lo a fazer suas escolhas com responsabilidade? Como lidar com a normatização dos costumes e condutas dentro do âmbito da ética? (BRASIL, Ministério da Saúde, 2010).
O despreparo dos serviços de saúde para o atendimento de adolescentes, é considerável tendo em vista a falta de espaços e suporte teóricos adequados à essa demanda. Nesse sentido, questionamos como uma formação médica sistêmica pode contribuir com a atuação do profissional da saúde no exercício do atendimento médico do adolescente?
Os novos desafios da sociedade atual, sociedade em rede e do mundo virtual evoluíram do paradigma cartesiano e linear. Mas hoje, mudanças técnicas e sociais em avanço progressivo e temporal, desafiam o pensamento humano. Na superação destes desafios a humanidade redimensiona como paradigma o pensamento sistêmico. Mas o que representa o pensamento sistêmico para a saúde?
Culturalmente, no campo da saúde o corpo humano é avaliado sob a ótica do modelo mecanicista, como uma máquina decomposta em partes. A saúde definida como ausência de doença; mente e corpo separados entretanto, hoje somos capazes de observar que o funcioidnto do universo não é como o de uma máquina, mas um sistema vivo imprevisível e complexo. Esta nova abordagem se apresenta como base para a assistência em saúde. A concepção sistêmica de saúde é ecológica, encontra-se alinhada com a tradição hipocrática, na qual se apoia a medicina ocidental (CAPRA,2006). A saúde é um fenômeno multidimensional, que envolve aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos relacionados e interdependentes.
Um sistema pode ser considerado um conjunto de entidades ou elementos unidos por interdependência regular, que forma um todo integral (JORDAN, 1974); ainda, concebendo um sistema como uma unidade global organizada de inter-relações entre elementos, ações e indivíduos(MORIN,2003). Com isto, fornece uma visão do todo em vez das partes; dos relacioidntos e não dos objetos isoladamente, da circularidade e não da causalidade linear e do conhecimento contextual e epistêmico ao invés do conhecimento objetivo (ANDRADE et al., 2006, p. 35; DOLCI, 2013).
A abordagem sistêmica surgiu no Canadá, meados de 1980, denominado “modelo Lalonde”, adotado pelo modelo canadense na reorganização da saúde pública. O modelo abrange: 1) o cuidado com o estado biofísico; 2) a inclusão dos fatores sociais; 3) a relevância dos atributos individuais, expressos nos estilos de vida; 4) a bagagem genética. Nesta abordagem cada um dos elementos é avaliado especificamente e em conjunto.
O enfoque ecossistêmico da saúde humana busca, precisamente, realizar teórica e praticamente a integração interdisciplinar da saúde e do ambiente por meio do desenvolvimento de ciência e da tecnologia, gerada e aplicada em consonância com gestores públicos, privados, com a sociedade civil e os segmentos populacionais afetados. Esse enfoque vem baseado em três pilares: transdisciplinaridade, participação social e equidade de gênero (MERTENS, 2007).
Na adoção e avaliação da proposta ecossistêmica da saúde mostram que não há um ecossistema pré-definido sobre o qual se possa aplicar uma definição. Os atores devem buscar as definições, responsabilizando-se com os objetivos de mudança e intervenção, sempre considerando estar dentro de ecossistemas maiores, transformando numa unidade analítica. Portanto, torna-se necessário ampliar o contexto do adolescente a partir da teoria ecossistêmica considerando que as “novas reformulações do modelo ecológico de desenvolvimento humano, realizadas por Bronfenbrenner e Morris (1998), inclui uma nova forma de olhar as propriedades da pessoa em desenvolvimento. Bronfenbrenner faz também críticas a sua primeira abordagem, em relação à ênfase demasiada nos contextos de desenvolvimento, deixando a pessoa em desenvolvimento num segundo plano. O novo modelo que em vez de ecológico passa a ser chamado de bioecológico tende a reforçar a ênfase nas características biopsicológicas da pessoa em desenvolvimento. Outro aspecto proposto no novo modelo é o construto teórico “processos proximais”, entendido como “formas particulares de interação entre organismo e ambiente, que operam ao longo do tempo e compreendem os primeiros mecanismos que produzem o desenvolvimento humano” (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). No modelo bioecológico, são reapresentados quatro aspectos multidirecionais inter-relacionados, o que é designado como modelo PPCT: "pessoa, processo, contexto e tempo".
Nossa proposta integradora agrega a estratégia transdisciplinar e se torna ferramenta de atuação fundamental. Transdisciplinaridade valoriza a disciplinaridade das especialidades que trabalham cooperativamente, focando no entendimento do tema em questão, associando também a intuição, o imaginário, a sensibilidade e o senso comum dos participantes não especialistas, ou leigos. Coloca os saberes em comunicação produzindo um novo conhecimento a partir da pluralidade. Para que uma equipe possa produzir conhecimento pertinente à atenção em saúde os integrantes da mesma precisam estar de acordo com a interdependência dos saberes necessários ao atendimento do paciente.
Partindo desta percepção, surgem nas últimas décadas vários enfoques para a análise das complexas relações entre o ambiente e os padrões de saúde decorrentes da estrutura social, econômica e política e da organização do setor de saúde.
Tratou-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que de acordo com Minayo et. al (2003) retribui aos processos e fenômenos sociais mais intensos, ou seja, procura trabalhar com depoimentos que tenham significado, portanto, ela caracteriza-se como pesquisa interpretativa que possui um certo rigor científico.
A pesquisa foi realizada no município de Lages/SC, com um grupo de estudantes do curso de medicina, formandos do ano de 2017 que haviam passado pelo estágio no Ambulatório de Adolescentes do Hospital Infantil Seara do Bem (HISB) que por acessibilidade aceitaram participar. O convite para essa participação foi efetuado em dois momentos: primeiro, via eletrônica, por meio de e-mail; o segundo após o retorno dos e-mails, se deu por meio de contados por telefone para explicar o objetivo da pesquisa e a proposta da Roda de Conversa.
A estratégia da Roda de Conversa sustentou-se no foco sobre o questioidnto do problema da pesquisa e proporcionou material consistente para a discussão dos objetivos relacionados à anamnese sistêmica do adolescente. A pesquisa foi regida pelos procedimentos éticos estabelecidos na Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que normatiza e regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos. A análise dos dados teve como procedimento os passos da operacionalização de análise de dados proposta por Minayo (2004) e se divide em ordenação dos dados, classificação dos dados e análise final. Verificou-se após a leitura, durante a avaliação dos textos transcritos que muitos depoimentos podem ser relacionados em outras unidades de sentido, portanto questionados. Numa Roda de Conversa os depoimentos podem ser contestados, articulados, consentidos, respaldados e negados. Mas de um modo geral, o material permitiu-nos integrar neste estudo: adolescência, anamnese e pensamento sistêmico.
Apresentamos aqui alguns depoimentos e reflexões sobre as dificuldades no processo da anamnese sistêmica, foco do estudo.
A participante B traz no seu depoimento referência a dificuldade de adaptação ao constructo: “Às vezes a gente gosta de começar a anamnese de um jeito isso acaba atrapalhando um pouco a gente”.
Observamos que os acadêmicos estão construindo seus modelos de atendimento. A proposta do serviço e de ensino é harmonizar os diferentes saberes e experiências, por isso, são respeitados os modelos utilizados, adaptando à proposta sistêmica do ambulatório. Essa metodologia é utilizada para orientá-los para a abordagem sistêmica no atendimento de adolescentes observando a necessidade de se dar espaço, respeitar e responder empaticamente às emoções.
Noutro depoimento, observamos sentimentos controversos, na expressão de T: “as vezes eu gosto muito da anamnese, eu me sinto bem, mas quando faço a consulta com a folha, eu consigo conversar com o paciente e eu olho- onde está isso aqui? – eu desisto, eu converso com o paciente e anoto depois”. Aqui o estudante dá destaque à segurança em seguir a proposta de atendimento integral, entretanto nem sempre se sente confortável em seguir a organização descrita no instrumento passando a utilizar suas habilidades para efetuar e concluir a consulta para posterior transcrição contemplando a solicitação da anamnese sistêmica.
Em outro relato o acadêmico destaca que a prática constante daquela orientação minimiza ou elimina os obstáculos: “[...] se você praticar todo dia as orientações contidas nessa folha, você elimina essa dificuldade, mas, às vezes eu senti um pouco de dificuldade”.
No depoimento observa que a repetição, e/ ou mais tempo no serviço facilitariam o desempenho e aprendizagem. Mas, em outro depoimento, há referência que às vezes a anamnese é acordada de modo inverso: o acadêmico observa que a entrevista “às vezes ele começa da última folha, que daí você não vai perguntar de novo aquilo, então você tem que pensar”.
Investigar e conhecer o mundo do outro implica, não só compreender a sua perspectiva acerca da doença, mas também perceber as suas vivências interiores. Para facilitar essa expressão, os clínicos podem fazer uso de algumas competências fundamentais, como a aceitação incondicional do outro, a genuidade e a empatia, postulados pelos modelos não diretivos, e assim, atender os interesses do doente. Poupando a necessidade de interpretar ou intervir. Inclusive, a sensação de ser compreendido pelos outros, é em si terapêutica (SILVA, 2012, p. 51). Com essas referências os depoimentos demonstram que novas habilidades são propostas, em função das dificuldades na abordagem do adolescente: “as vezes a folha serve daquela maneira, às vezes não, às vezes você tem que improvisar, deixar ele falar’, na declaração de T”.
Ao longo do estudo, nas releituras dos dados, discussões e contextualizações, observamos a necessidade de construção de síntese para a compreensão e organização dos relatos. Como estratégia de apresentação, organizamos sínteses que resumem e destacam o alcance de objetivos e foco da pesquisa.
Na compreensão dos resultados da pesquisa restou-nos a trama, “o tecido junto” da complexidade considerando que o processo da anamnese fica adequadamente compreendido na sua extensão, ética e complexidade. Porém, o fio da “educação para inteireza”1 segue tecendo caminhos para o atendimento integral do adolescente revelando a construção do pensamento sistêmico na contemporaneidade.
Nos diálogos realizados com os estudantes, a perspectiva do pensamento complexo de Morin (2001), conjugando uma razão aberta, articulada por aqueles que se dispuseram a repensar a sua própria prática. Um olhar aberto à multidimensionalidade do ser humano adolescente pois quanto mais estreita e linear for a nossa percepção, menor e mais pobre será o atendimento médico aos adolescentes.
A partir dos resultados e reflexões obtidas por esse estudo, novas estratégias foram programadas para o atendimento no ambulatório de adolescentes instrumentalizando os acadêmicos na utilização da anamnese sistêmica por meio de oficinas educativas para os acadêmicos sobre anamnese de adolescentes, com uso de imagem e gravação sob assessoria do curso de jornalismo; com construção de um roteiro para entendimento e utilização do instrumento; e ainda a inserção antecipada dos estudantes do quinto ano no ambulatório de atendimento à adolescentes e o estágio interdisciplinar dos cursos de serviço social e psicologia.Com estas reorganizações esperamos manter o foco na formação de um profissional mais adequado às transformações do terceiro milênio, cujo perfil atenda à perspectiva sistêmica na área de saúde.
Á GUISA DE CONCLUSÃO
A Roda de Conversa como método e dinâmica de coleta de dados para a pesquisa cativou os acadêmicos, propiciando a coleta de um vasto material para a pesquisa qualitativa. Fomos surpreendidos com a fundamentação e contextualização dos depoimentos, o que mostra a potência dessa estratégia metodológica para diferentes possibilidades de pesquisa em saúde. Ao avaliarmos os resultados, o constructo da anamnese sistêmica se mostrou pertinente ao atendimento médico no Ambulatório de Adolescentes por acadêmicos.
No entanto, a abordagem sistêmica do atendimento para os adolescentes precisa ser pactuada em cada serviço de saúde, adaptada às suas demandas e peculiaridades, e devidamente contextualizada às necessidades e ambiente histórico e cultural.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, M. P.; ANDRADE, I. F; PORTAL, L. L. F. Educação para inteireza: um caminho para a reforma da educação e do pensamento. Rev Unimep-Impulso. v. 26, n. 65, p. 43-49, 2016. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/impulso/article/view/2427/1774>
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria da Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes Nacionais para Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens. Brasília, 2010.
MERTENS, F. Abordagem ecossistêmica em Saúde: Ensaios Para o Controle do dengue. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 734-736, março de 2007. Disponível a partir <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007000300033&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 09 de novembro de 2016.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa Social: Teoria método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
MORIN, E. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 8. ed. São Paulo: Cortez, Brasília: Unesco, 2003.
SILVA, Raquel Ribeiro, PEIXOTO, Ana; TELES, Ana; et al. Competências Clínicas de Comunicação. Porto: Greca – Artes Médicas, 2012.
*Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Médica, Mestre em Ambiente e Saúde, Especialista em Pediatria e Adolescência, E-mail: taniamo@gmail.com