Revista: Atlante. Cuadernos de Educación y Desarrollo
ISSN: 1989-4155


A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO: NA SALA COM HELENA

Autores e infomación del artículo

Edson Gomes Evangelista*

Dagoberto Rosa de Jesus**

UFMT, Brasil

dagoberto.jesus@pdl.ifmt.edu.br


Resumo
Este texto resulta de uma investigação cujo questionamento principal se configurou em torno da pergunta: como os professores principiantes lidam com os desafios que se lhes apresentam no cotidiano de sala de aula? Buscou compreender processos de constituição docente em contextos escolares. Ancorou-se metodologicamente na Pesquisa Narrativa. A investigação aponta que no processo de converter-se em docente os principiantes vivenciam e reelaboram as próprias experiências, neste processo aspectos contextuais, como: relacionamento com os pares, alunos e membros da equipe gestora são proeminentes. No texto em tela, o leitor é convidado a adentrar a aulas de Língua Portuguesa de uma professora principiante, por meio das narrativas entretecidas nestas aulas.
Palavras-chave: Professores Principiantes de Língua Portuguesa. Pesquisa Narrativa. Desenvolvimento Profissional Docente.

Resumen
Este texto resulta de una investigación cuyo cuestionamiento principal se configuró en torno a la pregunta: ¿cómo los profesores principiantes tratan con los desafíos que se les presentan en el cotidiano del aula? Buscó comprender procesos de constitución docente en contextos escolares. Se ancló metodológicamente en la Encuesta Narrativa. La investigación apunta que en el proceso de convertirse en docente los principiantes vivencian y reelaboran las propias experiencias, en este proceso aspectos contextuales, como: relación con los pares, alumnos y miembros del equipo gestor son prominentes. En el texto en la pantalla, se invita al lector a entrar en las clases de lengua portuguesa un profesor novato, a través de las narrativas entrelazadas en estas clases.
Palabras clave: principiantes profesora de portugués. Búsqueda Narrativa. Desarrollo Profesional Docente.

Abstract
This text is the result of an investigation whose main question has been set up around the question: how do beginner teachers deal with the challenges presented to them in the everyday classroom? It sought to understand processes of teacher formation in school contexts. It was anchored methodologically in Narrative Research. The research shows that in the process of becoming a teacher, beginners experience and re-elaborate their own experiences, in this process contextual aspects, such as: relationship with peers, students and members of the management team are prominent. In the text on screen, the reader is invited to enter the Portuguese Language classes of a beginner teacher, through the narratives interwoven in these classes.
Keywords: Beginners Teachers of Portuguese Language. Narrative Research. Professional Development Teacher.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Edson Gomes Evangelista y Dagoberto Rosa de Jesus (2018): “A última flor do lácio: na sala com Helena”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (julio 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2018/07/ultima-flor-lacio.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1807ultima-flor-lacio


Considerações Preambulares
Achei interessante tua pergunta.
 Helena
O contexto de atuação interfere marcadamente no modo como cada pessoa se constitui docente e, esta interferência se dá em muitas dimensões. Algumas destas dimensões englobam todas as relações que o professor em início de desenvolvimento profissional estabelece em diferentes espaços da escola: sala de professores, sala da coordenação, da direção, secretaria, pátio e demais lugares, pelos quais circunda no âmbito escolar. Outras dimensões estão relacionadas diretamente ao estar em sala de aula como professor. Ali no contexto imediato da sala de aula o professor, por principiante que seja é instado a agir e, por mais que tenha se preparado antecipadamente para o encontro com os estudantes, sempre haverá uma margem enorme de ações inesperadas com as quais terá de lidar. O inesperado das interações entre professor e estudante constitui um dos maiores desafios no processo inicial de tornar-se professor em contextos escolares, neste processo inaugura novas experiências.
A experiência (DEWEY, 2010; LARROSA, 1995, 2014) requer pensar o sentido e, sentir enquanto pensa, porquanto pressupõe que ao horizonte de perspectivas sejam formuladas sempre novas perguntas (GADAMER, 1997, 2002) capazes de inscreverem no âmago desta mesma experiência o acontecer de cada momento. De maneira muito particular, Helena, por vezes, parece intuir que no sentido da pergunta está envolta qualquer possibilidade de emergir das interações constantes em sala de aula, algo que possa vir a se constituir como experiência. No entanto, a percepção que levou o pesquisador a tatear citada intuição no fazer-se de uma professora principiante de Língua Portuguesa reclama a que se conte outra história que para ser compreendida exige uma escuta atenta de narrativas vividas em sala de aula sob a batuta de Helena; sinta-se desafiada (o) a não se levantar e escutar até o fim, pois no fim, há sempre um recomeço.

A filmagem principia com a professora convidando a classe a abrir o livro na página cinquenta e cinco (inicialmente, apenas o áudio). Quando emergem as imagens, no foco da filmagem pode-se ler grafadas no canto esquerdo da lousa: “Língua Portuguesa; professora Helena; 05/05/2016” Mais ao centro “Correção de Atividades”. A docente surge no vídeo reiterando o convite a que abram o livro na página cinquenta e cinco. Depois vai até o armário à esquerda da classe, recolhe dois livros e enquanto se move, vai recordando aos alunos de que se tratava de quatro questões interpretativas para analisar uma matéria publicada na Folha de São Paulo, para, entrega um dos livros a uma das alunas, prossegue caminhando até o fundo da sala, onde entrega outro livro, a um discente que a agradece. De volta ao local entre a lousa e as carteiras dos alunos e voltada de frente para eles ergue uma das mãos, estala o polegar contra o indicador, à outra mão sustenta um livro didático aberto, em seguida indaga aos alunos se eles se lembram de que na última aula estudaram as diferenças entre texto literário e não literário. Os alunos a observam e, ela continua rememorando de que estudaram dois textos, dois poemas, nos quais a curiosidade do homem era tematizada. Curiosidade que o leva até Júpiter, aos anéis de Saturno, mas que não o leva a pisar o chão do próprio coração. Recorda que na última aula, estavam fazendo esta reflexão, uma crítica literária. Algumas alunas pedem licença e ingressam na sala. A docente continua tecendo considerações acerca do poema trabalhado na aula anterior; menciona o uso de metáforas, linguagem figurada. Uma das alunas solicita que o condicionador de ar seja desligado e que dois ventiladores sejam acionados. A professora pondera que o condicionador de ar sempre gera controvérsia. Então esclarece que na página cinquenta e cinco, depois do texto literário se depararão com um texto não literário. Os alunos estão com os livros abertos, a professora enuncia que no texto não literário a linguagem será objetiva, não subjetiva e que não apresenta figuras de linguagem, metáforas, conotação e outras. Feitas estas ponderações, inicia a leitura em voz alta daquele que seria um texto não literário, o qual aborda questões referentes às relações entre alimentação saudável e longevidade. Apresenta as referências do texto: Caderno de Ciências da Folha de São Paulo. Recorda que no caderno de Ciências também fora publicado um texto que trabalharam antes. Mais um discente ingressa na sala, dirige-se até ela e pede um livro, ela aponta para o armário sobre o qual se pode vicejar uma pilha de livros, o discente recolhe um e retorna à carteira. A professora anuncia que solicitará que cada um leia um parágrafo, fala em pé, diante dos alunos, movendo-se discretamente de um ponto a outro. Solicita a um dos alunos que senta na primeira carteira da fila – de maior idade - que leia o primeiro parágrafo a começar pelo título (enquanto fala, ajeita com gestos ponderados o cabelo e olha em direção ao aluno). O aluno começa a ler, após ler o primeiro parágrafo do texto, a professora solicita a outro aluno, cuja carteira está situada ao fundo da sala que prossiga a leitura. Ele certifica se fora mesmo solicitado e continua a leitura em voz alta. As palavras em inglês são pronunciadas pelo aprendiz com o auxílio da professora. O faz também com os termos desconhecidos pelo aluno, por exemplo, longevidade, o auxilia na pronúncia e, imediatamente explica o sentido do termo. Na sequência, convida outro aluno a prosseguir com a leitura do terceiro parágrafo do texto. O aluno, de mediana idade, começa a ler em uma voz pausada, marcada por repetições. Ainda assim, a maior parte dos alunos acompanha a leitura em silêncio. A docente vai reiterando o lido pelo aluno, repete por vezes, em voz alta os trechos em que ele encontra maior dificuldade em ler, mantém-se de pé todo o tempo. O princípio de qualquer fala que concorra com a leitura em voz alta, leva a professora a sustentar com um olhar um pedido de que ouçam, mesmo sem se pronunciar. Anuncia ao aluno que estivera lendo: “Isso, ponto”. Convida uma aluna a continuar, ela o faz, em voz relativamente baixa, mas com fluência. Ao término da leitura a professora adverte que ao ler é muito importante respeitar o ritmo da leitura, da entonação, o ponto final, a vírgula: “quando chega aquele momento da vírgula, é aquele momento de pausa, tá, pra gente (inspira profundamente o ar, movendo o braço diante de si) respirar e dar sequência aos acontecimentos”. Explicita ainda, que o ponto final requer uma entonação própria, marca o fim de uma ideia. (Registro fílmico, 2016).

No excerto, Helena principia com a delimitação do campo epistemológico e relaciona tempo, espaço e identidade por meio da escrita sucinta a um canto da lousa, no qual grafa a disciplina em que atua, a data e o próprio nome antecedido pela abreviação da palavra professora. Prossegue delimitando o tema a ser trabalhado na aula ao convidar os estudantes – jovens e adultos- a se situarem na página cinquenta e cinco. Atitudes corriqueiras, vigentes em muitas salas de aula nestes rincões abrasileirados, aliás, atitude alvejada por muitas críticas. A princípio também o pesquisador movido por lentes teóricas que o fazem almejar a práticas ditas mais progressistas (Abordagem Histórico-crítica dos Conteúdos, Histórico Cultural, dentre outras), surpreendeu-se com o principiar daquela aula, destoava das percepções que vinha construindo sobre as maneiras de fazer e modos de ser daquela professora. Aos poucos, começa a compreender que se tratava da continuidade de um tema já em estudo, porquanto Helena rememora junto ao grupo textos lidos, temas debatidos e conceitos apresentados, antes de explicar que caberá a cada aluno ler um parágrafo do texto. Ciente de que ler em voz alta é desafiador, principalmente para o público da EJA, exulta e auxilia aos que apresentam dificuldades em fazê-lo sem, entretanto, descurar das limitações apresentadas.
Desafia-os e se desafia ao acompanhá-los, todos devem ter a oportunidade de lerem, não importa quão distantes estejam de decifrarem os desígnios da Língua Portuguesa, aliás, esta principiante no processo em que vem se tornando professora tem construído sentidos, pautados nas próprias experiências (DEWEY, 2010; LARROSA, 1995) que lhe possibilitam compreender que embora o conhecimento do conteúdo constitua uma característica essencial do ser docente, por si só, não é condição bastante para assegurar a aprendizagem de qualidade. As relações negociadas no contexto em que vem se transformando em professora e o envolvimento de Helena, na busca de evolução na carreira, têm favorecido que ela elabore a percepção de que existem outros conhecimentos requeridos do professor, os quais se referem aos estudantes, a como se ensina e aos contextos onde se ensina (VAILLANT; MARCELO, 2012), fato que veio sendo sinalado ao longo do período em que acompanhei Helena e que se fará notar marcadas vezes, na continuidade das narrativas que seguem.

Neste ínterim, convida um dos alunos haitianos a ler, antes o indaga se ele conseguiria fazê-lo. O aluno confere a que altura fora interrompida a leitura, a professora se move até a carteira dele e, apontando no livro, confirma que o aprendiz acompanhara a leitura até ali e, o estudante inicia a leitura com muito pausar, num quase soletrar de algumas palavras, a professora o escuta e acompanha, nas palavras em que ele encontra muita dificuldade em pronunciar, ela o ajuda. A próxima aluna convidada a ler, apresenta objeções e a professora a situa, desde onde está, até onde fora lido. Exulta a aluna a que leia, menciona o fato de que o aluno que acabara de ler o parágrafo precedente, há pouco tempo sequer falava o Português; “você consegue também” (esboça discreto sorriso), “Vamos lá”. A jovem parece obstinada em não ler. Um dos pares a instiga, a seu modo: “Vai, pô!”. A professora se move em direção ao fundo da sala e indaga se algum outro aluno quer ler, denota afabilidade ao convidar. Uma das alunas se predispõe a ler e a professora a anima, ela passa a ler o parágrafo imediatamente posterior ao que fora lido, instantes antes. Lê com desenvoltura, a professora intervém somente quando ela vocaliza uma forma verbal pretérita, como se no presente estivera conjugada, todavia, a intervenção magistral é feita de modo a não constranger a aluna (a professora sorri ao interferir e olha acolhedora para aquela que lê). Ao fim do parágrafo agradece a estudante e convida a uma aluna a quem se dirige muito reverentemente como o fizera antes, notadamente ao evocar os alunos de maior idade da sala. Simultâneas ao ler da estudante, outras vozes se elevam. “Gente, a conversa paralela, não estou conseguindo ouvir a voz da Antônia.” (Adverte de modo sereno a professora). Cessa o falar, a aluna retoma a leitura, um aluno ingressa célere na classe, outra aponta o lápis, os demais escutam. Outro ingressa na sala, é haitiano também, dirige-se a um colega e, enquanto fala com ele é tocado por uma das alunas que parece preocupada com o fato de o falar deste estar sobrepujando a leitura que em voz alta e quase fluída vinha sendo feita, com algumas intervenções da professora. Por fim, o aluno que recém chegara consegue pegar uma carteira e auxiliado por outro consegue sentar. Neste instante, a professora adverte a que lia que já ultrapassara o parágrafo e convida outro aluno a dar continuidade à leitura. Ele principia, ela o exorta a ler mais alto: “Mais alto, não to ouvindo”. (Mão à orelha). O aluno eleva o tom de voz, ao término a olha e ela: “Beleza”. Move-se em direção à esquerda da sala: “O senhor pode ler pra mim?” Aproxima-se do aluno aponta onde a leitura fora interrompida, no próprio livro que exibe diante do estudante, um senhor de idade que começa a ler em voz quase inaudível, ela pede que leia um pouquinho mais alto e, ele continua a ler de modo entrecortado, atento parece estudar detidamente cada palavra antes de pronunciá-la, a professora o auxilia e espera, o restante dos alunos faz o mesmo, exceto alguns poucos que falam entre si em tom abaixo da voz daquele que lia. A professora o acompanha e auxilia no processo de verbalizar o que estava grafado. Por fim anuncia que ela mesma leria o último parágrafo; após ler o entrecho final do texto, conclama os alunos a perceberem que a notícia sobre a qual se assenta o artigo circulara em dois mil e quatro (O anuncia com uma das mãos à cintura, a outra espalmada sobre a página do livro). Depois, eleva uma das mãos diante de si e indaga: Qual a necessidade do ser humano em geral, de acordo com este texto? Alguns segundos e, atenta aos alunos reformula: “Qual o principal problema do ser humano?” (leva uma das mãos ao queixo). As respostas se sucedem: alimentar mal; exagerar, etc. (Registro fílmico, 2106).

Para oralizar, ler em voz alta um texto, qualquer que seja, é preciso mobilizar várias disposições (NÓVOA, 2016) a meio caminho entre o ler e o falar, a insistência da docente em conclamar a ler alunos estrangeiros, ainda aprendizes da língua e falantes nativos que temem se enunciarem na língua materna, bem como a forma como interage com os estudantes durante o ato de ler em voz alta, aponta para o entendimento da complexidade vigente nesta ação. Busca deliberadamente instituir na aula, a escuta ao que se lê, por titubeante que seja a ação; é como se a aprendizagem de um fosse compromisso de todos, desdobra-se em assegurar pessoalmente um clima de acolhimento e empatia, e, neste intuito predispõe-se a ler também ela em voz alta. Modelo que demonstra pelo exemplo. A seu modo, a professora principiante demonstra que compreende a aprendizagem como sendo cooperativa (VAILANT; MARCELO, 2012); construção impactante, primeiro por ser professora principiante e, em segundo lugar pelas características dos alunos e do contexto em que ela atua, um centro de ensino de jovens e adultos. Jovens e adultos que experienciaram muitos acontecimentos e aprenderam a aprender informalmente mediante a observação, a conversação, enfim, vem constituindo saberes colaborativamente. Talvez, advenha daí a inspiração do aluno que intercede e exulta aquela que se negara a ler. Ler em voz alta, método comum reapropriado, reveste-se de novas significações na sala regida por Helena; aqui é pretexto para um alçar de vozes que remetem a muitos contextos, perquiridos pelo perguntar que se expande continuamente. 

A mestra introduz pós a fala dos estudantes, o conceito de dieta alimentar e prossegue fomentando a argumentação dos alunos. As considerações orais dos alunos são enredadas nas intervenções da professora, que as valoriza e apresenta outras ponderações, não suscitadas pelos estudantes, ajudando-os a se apropriarem das intenções que nortearam a escrita do texto. O falar da professora vai ao encontro do falar dos alunos que se envolvem, ponderam, por vezes, apresentam perspectivas diferentes daquela que a professora vinha elaborando. Ela escuta, aprecia e valora. “Professora, sobre está questão da alimentação saudável, eu tenho um ponto de vista, penso que nem os nutricionistas podem dizer o que é realmente, por exemplo, agora a pouco ela - aponta uma das colegas que falara antes - disse que não é bom consumir carne vermelha. Mas, ficar sem consumir carne vermelha também não é bom, ela é rica em ferro, proteínas... não é verdade?” “Falou tudo agora. É preciso comer um pouco de tudo.” A conversa segue erigida sobre vários falares. A professora pontua que pra quem faz atividade física, proteína é importante; uma das alunas corrobora dizendo que neste caso, a carne vermelha é necessária; um dos alunos que falara antes argumenta que até mesmo a ingestão de gordura é necessária, a docente esclarece que é preciso optar pelas gorduras boas, não animais, que podem contribuir para o acúmulo de gordura no corpo e provocar o aumento do colesterol ruim, enumera em quais alimentos podem ser encontradas gorduras benéficas. Depois, pega o livro sobre a mesa e pergunta: “Qual foi a principal informação desse texto? Que eu olho assim, e, preciso absorver, que eu preciso saber sobre o texto?” (O livro em uma das mãos, a outra move sobre o texto, depois em direção aos alunos). “A ligação entre alimentação e velhice.” Outra responde: “É o segundo parágrafo inteiro.” A professora confirma que a informação mais relevante do texto consta em todo o segundo parágrafo. Lê o parágrafo mencionado, explicita-o e o relaciona ao título do texto. Enquanto fala, uma das alunas se enuncia, com gesto de mão pede um momento e esclarece que o assunto principal do texto, que pese o fato de ele apresentar muitas questões importantes, mas a principal está no segundo parágrafo. A mão se distende em direção à aluna que pedira a fala momentos antes, o olhar se volta na direção dela. Mas, prossegue falando e sugere que os alunos marquem o segundo parágrafo no livro para copiarem, para corrigirem no caderno. Um dos alunos consulta onde começa e onde termina a resposta. A docente explicita. Depois, passa a ler junto dos alunos a questão seguinte; reitera que devem marcar no livro para copiarem depois. Alunos trocam informações entre si, ajudam-se discretamente. A mestra continua a leitura pausada e interpretativa da questão dois, realça aspectos fulcrais para o que é perguntado e, indaga em que trecho do texto se poderia encontrar resposta ao que fora perguntado, uma aluna começa a ler um entrecho, com gestos a professora ratifica. Um dos alunos passa a ler o entrecho concomitante a que o iniciara, vozes uníssonas. (Registro fílmico, 2016).

À leitura do excerto anterior, assoma-me o verso de João Cabral “Um galo sozinho, não a tece a manhã”. A aula regida por Helena é tecida por uma comunhão de vozes: da professora ao aluno, daquele a outros, outras e de volta à docente. Contudo, paira nestas vozes uma autenticidade que conduz ao discenso, capaz de engendrar novas percepções, outras perspectivas se abrem e a conversação evolui.  Neste sentido, parece pertinente a compreensão de que assim como Helena, os estudantes adultos junto aos quais atua experienciam processos remetem ao conceito de autoformação (PINEAU, 1988, 2000), a qual abrange uma conceituação ampla que assumo nos meandros deste texto. Primeiramente, o termo se refere a um processo que entrelaça a aquisição de saberes, experienciação e construção de sentidos que logram transformar a pessoa que os realiza no âmbito das relações sociais; constitui uma tomada de poder pessoal ou coletivo sobre os próprios processos formativos, configura, porquanto, processo de emancipação; pressupõe compreender no âmbito das aprendizagens a incerteza e o inacabável, bem como entender que autonomia e interdependência são partes constitutivos do processo de aprender; é um processo de construção de significados elaborados, somente na medida em que, aquele que aprende é considerado na respectiva relação pessoal com o mundo, pois a autoformação mobiliza éticas que se incorporam nas experiências pessoais e que permitem entender e considerar que todas as pessoas são portadoras de saberes plurais (PINEAU, 2003).
Os sentidos que Helena vem compondo, quiçá, intuitivamente, a partir das experiências que marcam a inserção dela como docente no contexto de um CEJA, facultam aproximar o modo como ela narra os processos vivenciados, bem como a forma como atua no contexto da sala de aula, com o conceito de autoformação, tal como o assumo. Aproximação possível quando considerada a composição suscitada de encontro de múltiplas narrativas tanto as produzidas junto à professora, quanto aquelas que se passam em sala de aula.

Retorno do intervalo. A docente está diante do grupo, o livro às mãos; ouve-se um dos estudantes enunciar que na próxima aula trará um edredom, alguns alunos riem. A professora afirma que falta terminar a correção iniciada antes do recreio, as atividades referentes ao ENEM. Muitos alunos ainda acorrem à classe, outros falam entre si, simultâneos à professora que, decorridos alguns instantes, enuncia: “Pessoal! Voltando para cá, acabou o intervalo.” (Falar pausado, sem aumentar o tom de voz). Então, um dos alunos evoca o nome de um dos estudantes haitianos (riem) e o aluno comenta que no tempo dele aquilo era brincadeira, hoje é bullyng. A docente espalma uma das mãos diante de si, o rosto adquire uma expressão que pode indicar que esta transformação está para além das vontades individuais apenas. Depois enuncia o título do texto concernente à atividade seguinte “É água que não acaba mais”, inicia a leitura. O texto anuncia pesquisa em desenvolvimento por pesquisadores da UFPA a qual aponta o aquífero de Alter do Chão, como o maior depósito de água potável do Planeta. Ante a concorrência de vozes à leitura que ela vinha realizando em voz alta, para e adverte: “Pessoal, oh a conversa paralela aí, pessoal.” Um dos alunos que conversava sinaliza com o polegar ao outro e passa a acompanhar a leitura. Ao ler o entrecho, no qual se esclarece que a estimativa é de que a água deste aquífero seria suficiente para abastecer a população mundial durante quinhentos anos, a docente se surpreende e comenta: “por isso, é que é água que não acaba mais, né.” Prossegue, às vezes, não pronuncia claramente e repete alguns termos e, um dos alunos pergunta se Alter do Chão seria uma cidade localizada no Pará; a docente o olha, menea afirmativamente a cabeça: “Deve ser”. “Que eu penso que eu conheço esta cidade.” A professora, retoma a leitura, sem mais comentários. Ao findar, indaga se a partir da observação, da análise do texto, era possível dizer se ele era informativo que prezava mais a informação ou se prezava mais ao escapismo da realidade, do entretenimento. (Com o livro a tiracolo, uma das mãos ao ombro, olha para os alunos) Um dos discentes afirma (o mesmo que indagara sobre Alter do Chão) que pensa ser uma informação. Outra esclarece se tratar de uma informação precisa. A professora retoma a questão: “Então, as alternativas, oh...” passa a ler o questionamento referente ao texto e ao fazê-lo recorda-se de que não lera a fonte de onde fora extraído o texto e: “Publicado na Revista Época, no ano de 2010, 26 de abril de 2010.” Em seguida, lê em voz alta, as alternativas apresentadas, diante de cada enunciado; alguns alunos se posicionam afirmando não se tratar da alternativa que responde à questão. Diante do termo “persuasão” a professora explicita o sentido da palavra, na sequência indaga os alunos sobre a veracidade do enunciado e prossegue lendo. Diante da reposta afirmativa de um aluno à alternativa que declarava que o texto apresenta os aspectos subjetivos da pesquisa, a docente se detém na leitura e assevera que a pesquisa científica não tem nenhuma parte subjetiva, não tem esse negócio de subjetividade: “a subjetividade é o ponto de vista pessoal, já entra em conflito com a principal ideia dos textos jornalísticos, em geral”. A continuar, pergunta ao grupo qual seria a resposta adequada, dois alunos contestam que seria aquela apresentada na letra B; ela indaga outra vez, eles confirmam. Todavia, um estudante de mais idade, reluta em concordar que a alternativa correta seja a letra B, a professora ao lado, afirma que é esta a alternativa correta, o discente argumenta que, uma vez se tratando de dados preliminares, não é possível confirmar uma resposta com objetividade. A mestra explica que o termo “preliminares” se refere ao fato de ser uma pesquisa inicial e em desenvolvimento, ratifica a alternativa como sendo a correta para toda a classe. (leva a mão aos cabelos, toca a orelha) Enfatiza e relaciona os termos objetividade e pesquisa científica, em oposição à subjetividade. Uma das alunas a invoca, enquanto a docente se dirige até a carteira daquela, outro pondera: “Professora, UFPA não seria a sigla do estado e... a faculdade que foi feita a...”. A professora (com o livro distendido diante de si) principia a dizer algo e o estudante reverbera: “UFPA, seria Universidade Federal do Pará, né?” “Isso.” “Então, pronto, Alter do Chão é lá”. Ante a afirmativa do aluno a docente move positivamente a cabeça e confirma (cabeça baixa, andando de um lado para outro): “Exatamente, os pesquisadores são de lá”. Um dos alunos que obstara ante a afirmação de que as informações no texto são apresentadas de forma objetiva, volta questionar: “Fiquei em conflito pelo uso de dados preliminares.” A docente (se posiciona ao lado dele) e argumenta que a objetividade e precisão se referem mais à forma como o texto foi produzido, no entanto se os dados apresentados se confirmarão como verdadeiros, dependerá da continuidade da pesquisa mencionada (afirma indo em direção à carteira da aluna que a chamra momentos antes). Recolhe o caderno da estudante e, se volta ao aluno: “Achei interessante tua pergunta!” (Registro fílmico, 2016).

Conceber o trabalho em sala de aula como espaço, tempo e pessoas em interação é entender, dentre outros aspectos, que na abertura ao insólito advindo da conversação, a experiência emerge do encontro e, neste, a posição hierárquica do docente é colocada em cheque. Na lindeza surpreendente destas relações mais horizontalizadas, o mestre, aprende com o aprendiz que, circunstancialmente, o sobrepuja. Aqui, preponderam dois momentos em que a beleza do aprender estando professor, se personifica. O primeiro pode ser notado na insistência do estudante que tendo viajado, burila na memória e tenta sustentar o vivido no narrado: “Alter do Chão seria uma cidade localizada no Pará; a docente o olha, menea afirmativamente a cabeça: “Deve ser”. “Que eu penso que eu conheço esta cidade”. Momentos antes, a docente tivera de requerer a escuta ao que lia - ao que parece pela primeira vez - e, mesmo ela que até ali, regera uma aula pautada inteiramente por vivo dialogar, retoma a leitura como se a pudesse sobrepor à inquietude do estudante que, então aguarda e decorrido longo período de tempo, antes que tema fora cambiado reformula a pergunta e logra com este feito uma escuta equalizadora: “Professora, UFPA não seria a sigla do estado e... a faculdade que foi feita a...”. A professora (com o livro distendido diante de si) principia a dizer algo e o estudante reverbera: “UFPA, seria Universidade Federal do Pará, né?” “Isso.” “Então, pronto, Alter do Chão é lá”. Ante a afirmativa do aluno a docente move positivamente a cabeça e confirma (cabeça baixa, andando de um lado para outro): “Exatamente, os pesquisadores são de lá”. A intuição que provoca um cisma que remete a epistemologias que sustentam diferentes concepções sobre pesquisa científica corporifica a singularidade do segundo momento, neste o senhor que, depois fui informado por Helena, era artista plástico, movido quiçá, pela sensibilidade intuitiva, mais que por saberes formais questiona o critério de objetividade científica enunciado no livro texto e ratificado pela docente. “um estudante de mais idade, reluta em concordar que a alternativa correta seja a letra B, a professora ao lado, afirma que é esta a alternativa correta, o discente argumenta que, uma vez se tratando de dados preliminares, não é possível confirmar uma resposta com objetividade. A mestra explica que o termo “preliminares” se refere ao fato de ser uma pesquisa inicial e em desenvolvimento, ratifica a alternativa como sendo a correta para toda a classe”. O estudante-artista, uma vez mais parece intuir que neste paradigma não cabe o saber que vem construindo: “Fiquei em conflito pelo uso de dados preliminares”. Apanhada em aparente contradição a docente não se furta ao diálogo, explicita que  objetividade e precisão se referem mais à forma como o texto foi produzido, no entanto se os dados apresentados se confirmarão como verdadeiros, dependerá da continuidade da pesquisa mencionada. Mas, deve ter reconstituído o processo em que aquela conversação emergiu, pois valora o que fora dito pelo aluno desde o lado de dentro deste dialogar: “Achei interessante tua pergunta.” O narrar apresentado até o presente momento, veio se consolidando com o tempo e a vivência partilhados com a participante.

 

Percurso metodológico: vicejando brevemente a paisagem da pesquisa

Este texto resultou de uma pesquisa delineada com fulcro na Pesquisa Narrativa, tal como compreendida por Connelly e Clandinnin (2011). Desde esta perspectiva teórica e política as narrativas podem se constituir em poderoso recurso para a formação docente. Segundo o casal de investigadores canadenses, Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011; CONNELLY; CLANDININ, 1995), é a metodologia de investigação que parte do princípio de que todos os humanos somos contadores de histórias, por meio das quais narramos nossas próprias experiências, as quais ganham novos sentidos cada vez que são recontadas. Para tanto demanda do investigador a convivência com os participantes, fato que requereu a convivência e acompanhamento por meio de entrevistas, conversas e narrativas escritas de parte do processo tornar-se professora vivenciado por Helena, aproximadamente por dois anos, até ingressar na sala de aula dela. Sala, na qual, o diálogo autêntico se configura como possibilidade do tornar-se docente. Tema de que trataremos no próximo tópico.

A sala de aula como espaço para o diálogo autêntico

A Língua viva, sempre renascida, adentra as moradas erigidas nas interfaces da vida. Em algum momento, as perguntas colocadas por Helena tangenciaram uma concepção de Língua como morador do ser (GADAMER, 2002). Assim, para além de perguntas retóricas, o desenvolvimento do tema ao longo da aula foi ampliando gradativamente o alcance das respostas que se converteram em novas perguntas, as quais permitiram olhar o tema desde outras ópticas, e, mais incorporam o dizer ao vivido, mas de tal modo que ao vivido foi possível formular novos questionamentos surgidos de um diálogo em construção que deixa transparecer o processo em que vem sendo elaborando e expõe o pensar de quem o elabora (GADAMER, 2002). Consequentemente, alcança e envolve quem escuta que, também sente necessidade se enunciar e se faz escutar: “Oh, deixa eu lembrar aqui de cabeça... me fugiu das ideias aqui, mas, tem outros países que falam Português” (declara a professora enquanto observa o livro). “Neste ínterim, alunos ponderam que houve migrações italianas também (a professora esboço um lampejo de que se lembrara e aponta em direção ao aluno: ‘Ah!’) que prossegue afirmando que lera em um livro de História que as condições em que vieram e viveram, embora em menor escala, podem ser comparadas à escravidão dos negros, que a elite portuguesa estivera para a escravidão africana, assim como os fazendeiros de café estiveram para a escravidão branca. A docente que o escutara atentamente e intervira vez ou outra solidária ao fluir do enunciado, pondera que diante do exposto pelo aluno, há que se destacar a influência europeia no Português falado no Brasil, principalmente no Sul[...]”. Deixar fluir na sala de aula, o diálogo em processo de elaboração torna exequível o ingresso dos estudantes na conversação, pois estando aberta esta mesma conversação comporta novas enunciações. Assim, Helena evita falar a Língua dos deslinguados (LARROSA, 2013) e ciente de que teceram um falar que tocou aos estudantes e a si mesma, pode confidenciar: “Estão vendo, a gente vai tocando a Língua e vai ficando muito mais interessante”.

Retoma o texto que trata sobre a origem e transformações da Língua Portuguesa, começa a ler em voz alta, entremeia com comentários que remetem ao que fora conversado (laborado) anteriormente, com os estudantes, inclusive o tema concernente a linguagem literária e não literária. Após ler o prólogo do capítulo, detém-se na interpretação de uma imagem, texto não verbal, antes, porém, busca rememorar junto aos estudantes as conceituações de verbal e não verbal. Para conceituar o verbal, recorre ao texto bíblico “No início era o verbo e o verbo se fez carne”. Para o não verbal recorre ao poeta “uma imagem vale mais que mil palavras” e com o auxílio de um estudante aos sinais de trânsito. Explica que aquela imagem também vale por mil palavras, pois se trata de uma homenagem que uma escola de samba resolveu fazer à Língua Portuguesa. Em seguida lê o enunciado que prescreve a leitura de um entrecho do samba enredo de dois mil e sete da Mangueira, e, a posterior resolução das questões propostas, às quais a professora explicita que responderão oralmente e, em seguida passa a ler o excerto do samba enredo mencionado. Depois, lê, dialogando e interpretando junto aos alunos as questões e as alternativas a elas apresentadas. Muitos alunos se posicionam, apresentam argumentos no sentido de eleger a alternativa que se lhes apresenta como legítima. A professora os anima a fazê-lo por meio de perguntas, explicações e construção de sentidos ao texto, vai os ajudando a aproximarem de interpretações possíveis, como por exemplo, os leva a refletirem sobre o substantivo “Lácio”, presente no texto. Eles apresentam muitas explicações, ela os escuta, enfatiza e questiona as interpretações que apresentam e, põe-se a conjecturar que estando grafado com inicial maiúscula o substantivo próprio ou bem se refere ao nome de uma pessoa ou a nome de uma cidade; depois pergunta se seria o nome de uma cidade ou de uma pessoa e, um dos estudantes responde que se trata de nome de um lugar. Outra acrescenta que ao falar em colher flor, colhe-se flor em um jardim, a professora os leva a deduzirem que então se trata de um lugar. A conversação prossegue até a docente aclarar que “Lácio” é um lugar muito especial, o local onde se origina Roma, o Latim mais puro, não aquele falado pelos soldados, do qual provém, a Língua Portuguesa. Lácio, Latim e Língua Portuguesa estão relacionados intencionalmente no texto. Afirma que as relações vão se complexando, uma aluna concorda prontamente e a professora, convida-os a pensarem em Roma, na Antiguidade romana, nos coliseus, basílicas, “nos jardins” – agrega uma aluna -, por fim, arremata: “O Lácio, gente, veio antes de tudo isso”. Então, ela volta a ler o enunciado (paira neste instante um falar entrelaçado de alguns alunos) e conclama os estudantes a lerem silenciosamente o poema completo musicizado como samba enredo da Estação Primeira de Mangueira, esclarece que o que leram era um fragmento que, agora a leitura concerne ao texto completo. Informa que após lerem, voltarão a debater a fim de perceberem o que conseguiram compreender do poema. (Registro fílmico, 2016).

Uma vez mais, o texto é pretexto, sustentáculo para que se possam edificar mundos na partilha de saberes. Tanto assim que ao retomá-lo Helena aprofunda os conceitos estudados ao longo das aulas desta noite, entretanto, ao fazê-lo evoca metáforas que remetem a horizontes comuns na existencialidade dos estudantes, um texto bíblico e um verso popularizados largamente; ao tempo em que encaminha a aula para a compreensão mais aprofundada do texto, retroalimenta a participação dos aprendizes, conjectura, constrói pontes que os aproximam dos sentidos requeridos pelo texto de modo a mesclar este sentidos com aqueles incorporados pelos estudantes: “Muitos alunos se posicionam, apresentam argumentos no sentido de eleger a alternativa que se lhes apresenta como legítima. A professora os anima a fazê-lo por meio de perguntas, explicações e construção de sentidos ao texto, vai os ajudando a aproximarem de interpretações possíveis [...]os leva a refletirem sobre o substantivo “Lácio”, presente no texto.[...] Apresentam muitas explicações, ela os escuta, enfatiza e questiona as interpretações que apresentam e, põe-se a conjecturar que estando grafado com inicial maiúscula o substantivo próprio ou bem se refere ao nome de uma pessoa ou a nome de uma cidade.[...] Lácio é um lugar muito especial, o local onde se origina Roma, o Latim mais puro, não aquele falado pelos soldados, do qual provém, a Língua Portuguesa. Lácio, Latim e Língua Portuguesa estão relacionados intencionalmente no texto”. Definitivamente, Helena organiza a aula por meio de um constante perguntar com abertura para o improviso e o pensar, até percorre caminhos conhecidos, mas inventa um jeito novo de andar e com isto refaz o caminho e, juntamente com aqueles que se predispõem ao diálogo vivo, inacabado, perene, constrói novos começos.

 

Considerações Intermitentes

A esta altura, um tanto arbitrariamente, tenciono encerrar, no âmbito deste texto, o contar da história vivida em sala com Helena. Lograste chegar até aqui, alegra-me de que não tenhas se levantado e desistido de seguir neste emaranhando paisagístico. Confesso que diante de narrativas tão longas e densas, temia que desistisses. Não obstante, por temerário que fosse decidi arriscar, primeiramente pela relevância que as relações encetadas em sala adquirem quando se passa a compreender a experiência como algo que acontece inesperadamente no cotidiano e toca e atravessa e engendra novos pensamentos sobre estar em sala de aula, ser professor e perceber-se um ser em relação continuamente. A opção por apresentar inteiramente as narrativas vividas em sala de aula sustenta-se ainda no entendimento de que, por mais perspicazes que pudessem ter sido as interpretações, estas histórias vividas e contadas comportariam sempre um excesso de sentido, portanto, ao apresentá-las na integra pretendi que, tendo ingressado nestes mundos erigidos pelo narrar, elaborasses também tuas próprias interpretações, construísses sentidos surgidos de teu encontro pessoal com estas outras pessoalidades. Somente então, poder-se-ia dizer que o narrar configurou também ele, inusitadas experiências, posto que

1A investigação da experiência dá lugar a um saber que não funciona exatamente como informação, nem como conhecimento acumulável. A comunicação do saber que nasce da investigação da experiência não pretende tanto transmitir conclusões do pensamento como um pensamento vivo, um pensamento em conexão com o vivido que mostra um modo de cultivar um saber, e que reclama, a quem o receba, criar sua própria transferência também pessoal: o recebo como originado em uma relação pessoal com a experiência que me pergunta acerca de minha própria relação com minha experiência ; o recebo como aquele pensamento encarnado, que presta atenção ao vivido, para que eu preste atenção ao que vivo e continue a conversação iniciada, participando nela. (CONTRERAS, 2016, p. 18; tradução nossa).

Acorde com a percepção enunciada por Contreras, destaco que a professora principiante que participa desta pesquisa enfrenta a sua maneira os dilemas que se lhes apresentam nos contextos de atuação. Decorridos aproximadamente vinte anos desde que ingressei na carreira docente, as políticas não avançaram na perspectiva de situar a inserção à docência, como etapa específica no âmbito do desenvolvimento profissional dos professores, concebido no âmbito de trajetórias formativas compostas por pessoalidades, profissionalidades e engendradas contextualmente (MONTEIRO, 2003, 2006, 2016; MARCELO, 1999, 2012; NÓVOA, 1995, 2009, 2016; DAY, 2001, 2005). Fato de grande impacto quando pensada a inserção profissional docente como uma das etapas mais relevantes no processo de constituição de professores, pois a construção de um pensamento em conexão com o vivido pressupõe a elaboração de sentidos que, brotados da experiência se configurem em aprendizagens, no caso específico desta pesquisa, aprendizagem da docência (MIZUKAMI, et al, 2002, MONTEIRO, 2003, 2006, 2016). Desde a perspectiva apresentada pelas autoras e que assumo nesta investigação aprender a ensinar, configura o epicentro dos processos de tornar-se professor. Processos estes que são erigidos com fulcro em um continuum experiencial (DEWEY, 2010) “iniciados antes da preparação formal, prosseguem ao longo desta e permeiam toda a prática profissional vivenciada” (MIZUKAMI, et al, 2002, p. 47).
Assim, ao ingressar na sala de aula de Helena, escutar as narrativas que ali se abraçam me é facultado compreender que aprendizagem da docência entrelaça os saberes da profissão aos saberes pessoais em constante construção, no âmbito da qual esses saberes, crenças e metas dos professores se articulam e se convertem em elementos que impactam fortemente a motivação, as razões, o modo de fazer destes professores em sala de aula. Neste sentido, aprender a ensinar é desenvolvimental (MIZUKAMI, et al, 2002) a elaboração de saberes profissionais ou a mudança de práticas instituídas não ocorre em curto período de tempo, tampouco se dá isoladamente ou apenas pela intervenção pontual marcada no âmbito das políticas de formação continuada por perspectivas pautadas na Racionalidade Técnica. Compreendo assim, que aprender a ensinar e se tornar professor implica o envolvimento pessoal e coletivo dos professores, incluídos, os principiantes, em projetos de desenvolvimento profissional e institucional (MARCELO, 2007; DAY, 2005) elaborados a partir das experiências presentes em contextos específicos. Desconsiderar este fato e instituir políticas educacionais concebidas desde perspectivas unidirecionais e homogenizadoras não favorece a aprendizagem da docência, a construção de experiências potencializadoras (LARROSSA, 2014) e obstaculiza o desenvolvimento profissional dos professores. Emergem daí, dilemas pelos quais os professores principiantes se veem afrontados diariamente. Ante estes últimos, cada participante desta pesquisa elabora maneiras próprias de se constituir.

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*Doutor em Educação pela UFMT e Professor do IFMT campus São Vicente.
** Mestre em História pela UFMT e Professor do IFMT campus Primavera do Leste.
1 La investigación de la experiencia da lugar a un saber que no funciona exactamente como información, ni como conocimiento acumulable. La comunicación del saber que nace de la investigación de la experiencia no pretende tanto transmitir conclusiones del pensamiento como un pensamiento vivo, un pensamiento en conexión con lo vivido que muestra un modo de cultivar un saber, y que reclama, a quien lo reciba, crear su propia transferencia también personal: lo recibo como originado en una relación personal con la experiencia que me pregunta acerca de mi propia relación con mi experiencia; lo recibo como aquel pensamiento encarnado, que presta atención a lo vivido, para que yo preste atención a lo que vivo y continúe la conversación iniciada, participando en Ella.

Recibido: 19/07/2018 Aceptado: 25/07/2018 Publicado: Julio de 2018

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