Michael Jhonatan Sousa Santos*
UFMT, Brasil
michael.santos@pdl.ifmt.edu.br
RESUMO: O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão referente às formas mecânicas de se construir relações comunicativas com o entorno, observando em particular as relações comunicacionais estabelecidas em ambiente de sala de aula e como essas interferem no processo de ensino-aprendizagem. Essa produção justifica-se em vista do comportamento do homem pós-moderno, que vive e relaciona-se com os demais inserido em uma cultura orientada pelo viver aceleradamente. Por isso, tende a não ‘viver’, de fato, e, a não relacionar-se com os ambientes à sua volta no sentido de envolvimento com o outro, posto que passa por eles sem notá-los, apressadamente. Esse comportamento molda o corpo dos indivíduos, cria formas mecânicas de relacioidntos e transparece em todas as ações cotidianas, como dirigir, comer, estudar e aprender. Para o desenvolvimento do artigo, foram utilizadas como fundamentação teórica, principalmente, algumas das obras do estudioso Ciro Marcondes Filho e do comunicólogo Norval Baitello. Pesquisa bibliográfica, observação participante em ambiente de sala de aula aliadas a discussões acerca de teorias da comunicação e da cultura, possibilitaram o desenvolvimento do trabalho. A nosso ver, há uma estreita relação entre os comportamentos do professor, sua atitude e caráter, e a aprendizagem do aluno. Contudo, esta tem sido prejudicada na medida em que aqueles absorvem e reproduzem, consciente e inconscientemente, normas e padrões sociais da cultura pós-moderna. Afirmamos, em paralelo com os autores estudados, que em decorrência das relações capitalistas, assim entendidas as de consumo e as de mercado profissional, há uma tendência à exclusão do corpo e do momento em que a comunicação ocorre, gerando relações de ausência e perda dos vínculos comunicacionais. Fato social que, como observamos, se processa, também, em ambiente de sala de aula sendo inquestionavelmente desfavorável ao desenvolvimento dos alunos, tanto em seu aspecto humano como intelectual.
Palavras-chave: Comunicação, Ensino, Aprendizagem.
RESUMEN: El objetivo de este trabajo es proponer una reflexión referente a las formas mecánicas de construir relaciones comunicativas con el entorno, observando en particular las relaciones comunicacionales establecidas en ambiente de aula y cómo éstas interfieren en el proceso de enseñanza-aprendizaje. Esta producción se justifica en vista del comportamiento del hombre posmoderno, que vive y se relaciona con los demás inserto en una cultura orientada por el vivir aceleradamente. Por eso, tiende a no 'vivir', de hecho, y, a no relacionarse con los ambientes a su alrededor en el sentido de envolvimiento con el otro, puesto que pasa por ellos sin notarlos, apresuradamente. Este comportamiento moldea el cuerpo de los individuos, crea formas mecánicas de relaciones y se refleja en todas las acciones cotidianas, como conducir, comer, estudiar y aprender. Para el desarrollo del artículo, fueron utilizadas como fundamentación teórica, principalmente, algunas de las obras del estudioso Ciro Marcondes Filho y del comunicólogo Norval Baitello. La investigación bibliográfica, observación participante en ambiente de aula aliadas a discusiones acerca de teorías de la comunicación y de la cultura, posibilitar el desarrollo del trabajo. A nuestro ver, hay una estrecha relación entre los comportamientos del profesor, su actitud y carácter, y el aprendizaje del alumno. Sin embargo, esta ha sido perjudicada en la medida en que aquellos absorben y reproducen, consciente e inconscientemente, normas y patrones sociales de la cultura posmoderna. En el marco de las relaciones capitalistas, así entendidas las de consumo y las de mercado profesional, afloramos, paralelamente a los autores estudiados, una tendencia a la exclusión del cuerpo y del momento en que la comunicación ocurre, generando relaciones de ausencia y pérdida vínculos comunicacionales. Fato social que, como observamos, se procesa, también, en ambiente de aula siendo incuestionablemente desfavorable al desarrollo de los alumnos, tanto en su aspecto humano como intelectual.
Palabras clave: Comunicación, Enseñanza, Aprendizaje.
ABSTRACT: The aim of this work is to propose a reflection upon mechanical forms of building communicative relations with the environment, particularly observing communicational relations established in classroom environments and how such relations interfere in the teaching-learning process. This production is justified in view of postmodern man behavior, who lives and relates to other humans inserted in a culture oriented by fast-living. Thus, he tends not to ‘live’ truly, and not to relate to the surrounding environments in the sense of becoming involved with the other, since he passes through them without noticing them, hastily. This behavior shapes individuals’ bodies, creating mechanical forms of relationships and transpiring in all everyday actions, such as driving, eating, studying, and learning. In order to develop the article, some works by the scholar Ciro Marcondes Filho and by the communicologist Norval Baitello were used, mainly, as theoretical foundation. Bibliographical research, participant observation in classroom environment, in addition to discussions about theories of communication and culture enabled the development of the work. In our perspective, there is a close link between teacher behavior, their attitude and character and student learning. However, learning has been jeopardized, as they absorb and reproduce, consciously and unconsciously, social norms and standards of postmodern culture. In parallel with the authors studied, we affirm that as a result of capitalist relations, understood as consume and professional market relations, there is a tendency to exclude the body and the moment in which communication occurs, creating relations of absence and loss of communication links. Such social fact, as we have observed, also occurs in classroom environment, being unquestionably unfavorable to students’ development, both in their human and intellectual aspect.
Keywords: Communication, Teaching, Learning
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Michael Jhonatan Sousa Santos (2018): “Pele que virou paquiderme: reflexões sobre relações comunicacionais mecânicas, ensino e aprendizagem”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (mayo 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2018/05/virou-paquiderme.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1805virou-paquiderme
1 INTRODUÇÃO
São várias as circunstâncias sociais e políticas que impedem a implementação de um sistema educativo qualitativamente mais eficiente em nosso país (Brasil), tais como falta de formação adequada e continuada aos professores, a ausência de espaços para estudo e reflexão nas escolas, a desvalorização social da carreira docente e das instituições de ensino e tantas outras1 . Embora essas sejam questões fundamentais quando o assunto tratado é uma educação de qualidade, neste trabalho proporemos uma reflexão sobre outra, a construção das relações comunicacionais desenvolvidas com o entorno, observando em particular aquelas estabelecidas em ambiente de sala de aula. Tais relações, como sabemos, ocorrem em um contexto cultural e não se distanciam das referidas circunstâncias sociais que minam a educação, sobretudo a pública, em nosso país.
As relações entre os indivíduos, assim entendidos os vínculos sociais e naturais, se dão em um meio ambiente cultural (BAITELLO, 2005). Significa, portanto, que a forma como nos relacionamos – comunicamos – em nossos ambientes pessoais e profissionais se insere em um complexo emaranhado de processos sociais e históricos.
Desse modo, a trajetória dos processos comunicativos deve ser vista em correspondência direta com o desenvolvimento histórico da técnica e das tecnologias (BAITELLO, 2005). Nesse sentido, o pesquisador Ciro Marcondes Filho (2005) escreveu que o advento da marcação precisa do tempo e as evoluções tecnológicas do período em que isso aconteceu modificaram consideravelmente a maneira como foram estabelecidos os vínculos sociais e as comunicações interpessoais desde então. Assim, deu-se início a uma maratona social em busca de desempenho, produtividade, rendimento e eficácia. Considerada por Marcondes (2005) como adestramento do corpo para a vida profissional.
Esse fenômeno se estende até os dias de hoje. A relação que se estabelece na cultura entre evolução tecnológica, quantificação do tempo e as leis capitalistas de mercado orientam a sociedade para um comportamento maquínico. Trata-se de uma tentativa, conforme Marcondes (2005), de equiparar o corpo às máquinas no que diz respeito à redução de tempo gasto na realização das atividades, aliada a uma busca por resultados excelentes e homogêneos sempre.
Nestor García Canclini (2008), afirma que o corpo sempre foi um portador de cultura, dessa forma, os comportamentos corporais são o cenário onde a cultura de uma sociedade se torna visível. Em diálogo com ele, Marcondes (2005) afirma que o processo que começou a transformar corpos humanos em máquinas foi administrado pela cultura.
Um dos aspectos dessa transformação do corpo em máquina, conforme aponta o comunicólogo Norval Baitello Junior (2008), é a perda do presente. Isto é, vivenciamos um desdobramento do tempo presente em várias dimensões e possibilidades, de forma que ele se fragmentou oferecendo um incontável número de escapes e fugas. Essa relação do corpo com o tempo e o espaço implica no enfraquecimento dos vínculos de proximidade ocasionando uma falsa sensação de presença.
O preço disso, conforme Marcondes (2005), é um corpo encouraçado, uma pele que se faz uma paquiderme defensiva, tornando os sujeitos insensíveis no convívio social e mesmo íntimo. Consequentemente, e em consonância com Baitello (2008), podemos dizer que se tem oferecido às crianças, jovens e adolescentes um horizonte educacional obscurecido, sem corporeidade. Uma vez que se trata de um corpo máquina ali presente. Assim, a partir das observações e das experiências vivenciadas como docentes, bem como em paralelo com os autores expostos, apresentaremos a nossa reflexão sobre como se processa essa forma mecânica de construir relações comunicacionais em sala de aula.
2 O COMPORTAMENTO MAQUÍNICO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
À escola, e, por conseguinte, ao professor, é socialmente atribuída a função de ensinar o conhecimento histórico e científico acumulado pela humanidade às crianças.
Conforme Saviani (1992), os educadores devem nortear sua ação a partir de três objetivos fundamentais. Primeiro: identificar as formas em que se exprimem o saber objetivo socialmente produzido. Segundo: transformar esse saber objetivo em saber escolar que possa ser assimilado pelo conjunto dos alunos. E, terceiro: garantir as condições necessárias para que estes não apenas se apropriem do conhecimento, mas ainda elevem seu nível de compreensão sobre a realidade.
Dessa forma, o ato de ensinar não ocorre em via única, ou seja, para que a ação de ensinar seja concreta, é fundamental que alguém aprenda. Assim, o que existe é um processo de interação entre os conhecimentos do professor e do aluno. Mas, esse processo só é bem sucedido a partir do momento em que o agente que se propõe a ensinar conhece e se importa, ou seja, se envolve com o indivíduo que necessita do saber.
É nesse movimento de troca, aparentemente simples, que se estabelece uma gama de obstáculos prejudiciais ao processo de ensino-aprendizagem. Um dos problemas que observamos no ambiente escolar é reflexo da cultura contemporânea, conforme aponta Marcondes (2005). Trata-se da incapacidade que o homem pós-moderno vem desenvolvendo para comunicar-se. Isso porque ele vive e relaciona-se com os demais, orientado por uma cultura do viver aceleradamente e, por isso, tende a não ‘viver’, de fato, e, a não relacionar-se com os ambientes a sua volta, no sentido de envolvimento com o outro, posto que passa por eles sem notá-los, apressadamente.
As relações sociais desenvolvidas sob esse ideal são marcadas pela ausência de vinculo, visto que corpos máquina são incapazes de estabelecer comunicação. Máquinas apenas quantificam e transmitem informações friamente, de modo algum ensinam, ou comunicam. De forma alguma compartilham vivências e experiências corporais.
Nesse sentido, inquestionavelmente, tem-se uma deficiência na prática pedagógica se ela é norteada por esse ideal. Pois, o indivíduo só se humaniza em contato com outros seres humanos que lhe permitam apropriação da cultura humana construída ao longo da história, por meio de processos comunicativos.
Podemos dizer que cada homem aprende a ser homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É lhe preciso ainda entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante, através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. (LEONTIEV, 1978, p.267).
Dessa forma, uma escola modelo seria aquela onde as práticas pedagógicas visassem um objetivo comunitário para a produção do conhecimento. Isso através de procedimentos simples, como sequências didáticas pautadas na aprendizagem solidária e comum, através de exercícios que possibilitassem a atenção e a solidariedade em relação ao outro. Ou seja, uma sala de aula que oportunizasse o exercício da empatia, uma forma de o aluno se perceber na postura corporal que outro ocupa no espaço. A literatura e artes de um modo geral se apresentam como excelentes exercícios para esse tipo de experiência perceptiva de movimentação corporal. Ou de outros modos, como aprender através de ferramentas lúdicas.
Entretanto, vivenciamos uma escola de procedimentos mecânicos e automáticos que educa para a homogeneidade. Onde há uma desvalorização da capacidade comunicativa do corpo em função da valorização exarcebada de outras mídias, como são os números e as palavras. De um lado, o aluno perde seu corpo, passa a ser uma abstração – um número, uma nota – assim, o perfazem uma máquina, um receptor e reprodutor de informações cuja qualidade é medida e quantificada. Em outras palavras, trata-se de uma tendência a substituir o aspecto humano da relação professor e aluno por índices numéricos e conceitos.
Do outro, o professor se faz um mero suporte da informação que deve ser transmitida ao aluno em um tempo pré-determinado cuja competência também se torna uma abstração quantificável. Tal quantificação tende a excluir da prática docente os aspectos comunicativos de vinculação social, tão essencias a humanização dos sujeitos, visto que contempla excessivamente aspectos relativos aos conteúdos e ao aproveitamento dos mesmos. Esse é um dos indícios que aponta o modo como os corpos se fazem máquinas em sala de aula.
Um segundo constitui-se no fato de que o ambiente escolar incita os alunos a competição. “É na escola que a criança aprende a competir com os colegas para ver quem faz mais rápido, quem ganha o prêmio de velocidade na resolução do problema, quem é mais ágil.” (MARCONDES, 2005, p.10)
Trata-se de uma educação exclusiva para o desempenho e para eficiência, mas que pouco ensina sobre solidariedade, bem comum e sociabilidade. Ela se concretiza nas situações de resolução dos exercícios, brincadeiras esportivas e tantas outras, como as gincanas entre estudantes. A escola, dessa forma, é invadida pelo mercado de consumo e pelo mercado profissional (CANCLINI, 2008), caracterizados pela competitividade exacerbada. E transforma-se em um ambiente onde circulam corpos não para finalidade comunicativa, mas desfilam e expõem-se em função das marcas e imagens que, em certa medida, tornam os corpos produtos a serem expostos, ou máquinas de expor produtos.
Assim, percebe-se que um processo pedagógico qualitativamente superior consiste em bem mais do que a seleção dos conteúdos e da metodologia adequada a uma turma. Deve ser, também, conscientemente orientado por uma filosofia que valorize o componente humano do processo de ensino-aprendizagem em toda a amplitude e heterogeneidade em que ele implica. Ou seja, deve considerar as diferenças de saberes, de modos de aprender, e que os alunos aprendem em tempos e em ritmos diferentes.
Contudo, a organização cultural da sociedade que vivenciamos seleciona e exclui as pessoas, sem que percebam, e a escola reproduz essa cultura. Nas palavras de Ciro Marcondes Filho (2005, p.10):
[...] os próprios professores, também resultado de uma educação para a competitividade (leia: para exclusão do outro), são geralmente inconscientes daquilo que eles dinamizam nos alunos. Por isso, a “máquina escolar” parece funcionar automaticamente, com um sistema autônomo, sem piloto, em que não é preciso nenhuma recomendação, nenhuma instrução para que os professores atuem dessa maneira: isso já ocorre espontaneamente.
Se é através do processo de comunicação que os indivíduos se apropriam do conhecimento cultural da sociedade na qual estão inseridos, conforme afirma Leontiev (1978), quais tipos de vínculos comunicacionais podem emergir em um meio ambiente cultural constituído de forma maquínica e automática?
Ciro Marcondes Filho (2005), citando o psiquiatra Wilhelm Reich2 , afirma que o contexto cultural em questão favorece o individualismo na medida em que a pressão do meio sobre o sujeito faz com que ele adquira um tipo de “escudo psicológico”. Quadro que se revela no corpo através de uma rigidez muscular e no comportamento através do bloqueio dos impulsos emocionais e sensoriais.
Para Silva (2003, p. 100):
As emoções desencadeiam [...] reações instintivas vindas do corpo e reações cognitivas no cérebro, através do sentimento que nada mais é do que o pensamento em forma de imagem, iniciado no processo emocional. Assim deve ser considerada a enorme influência que as emoções exercem sobre o comportamento humano.
Há, ainda, que se observar que em nossas estruturas neurais sistemas responsáveis pelo desenvolvimento da razão e as funções ligadas a ela, como o raciocínio, e os responsáveis por nossas emoções se cruzam. Dessa maneira, poder-se-ia dizer que há em nossas estruturas cognitivas um espaço que mistura razão e emoção de modo que tais coisas não ocorreriam em processos isolados3 .
Em consonância com isso, já ensinava Heinrich Pestalozzi, que a aquisição de conhecimentos deve ter por base a percepção sensorial. Ou, conforme John Dewey, o conhecimento e o ensino devem estar intimamente relacionados à ação, à vida prática e à experiência (HAYDT, 2006). Pode-se dizer que, para estes autores, ensinar e aprender implica em relações vinculativas de corporeidade.
Assim, pode-se dizer que as sensações e emoções influenciam diretamente em nosso processo de aprendizagem, aprendemos aquilo de que gostamos. Contudo, o professor de caráter maquínico cria um padrão invariável para a matéria que ensina e forma nela uma imagem de imutável dificuldade e inacessibilidade. Eles apresentam o conhecimento como algo de que não se pode gostar, visto que os mesmos não têm relação afetiva com aquilo que fazem, com aquilo que ensinam e nem mesmo com quem aprende, porque são apenas transmissores de informações.
Assim, há professores e alunos ocupando, com corpos mecânicos, o mesmo espaço. Estão próximos, porém estão distantes. Ambos sofrem. Aqueles, porque o retorno de seus esforços é ínfimo quando comparado às expectativas que sobre eles pesam. Sofrimento que em convergência com as questões políticas e econômicas que circundam a profissão, se converte em mais padrões comportamentais e discursos automáticos. Os alunos, por sua vez, sofrem quando não conseguem se encaixar na padronização que a escola espera. Desde a infância observam-se comportamentos sutis de exclusão, assim, alunos que “tiram boas notas” se coligam. Por outro lado, aqueles que não alcançam os padrões medianos de apropriação do conhecimento são excluídos do grupo dos “bons alunos”.
Segundo os autores estudados até aqui, o caráter maquínico desenvolve em nós uma couraça física e psicológica que dificulta a troca de experiências e conhecimentos entre os indivíduos. Porém, do nosso ponto de vista, só podemos aprender e ensinar, de maneira não excludente, quando passamos a sentir as pessoas, as circunstâncias e os ambientes.
Fundamentalmente, uma prática pedagógica que valoriza o componente humano dos processos comunicativos implicados no processo de ensino-aprendizagem resgata o papel agente do professor. Logo, ele aprenderá a refinar suas capacidades comunicativas através da atenção em relação ao aluno. Dessa forma, na sala de aula, o professor terá mais chances de perceber o nível de aprendizagem dos alunos, especialmente daqueles que apresentam maiores dificuldades.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A coisa não veio de repente, como para Gregório, que ao acordar descobriu que havia se transformado em uma barata. Não” (MARCONDES, 2005, p. 7). É assim que Ciro Marcondes inicia sua reflexão, na obra Perca tempo: é no lento que a vida acontece, a respeito condição do homem pós-moderno na cultura. Inicia apresentando uma transformação que ocorreu em doses, afirmando que nem sempre fomos assim, “mecânicos”, diz que as doses que nos tornariam “máquinas neuróticas” foram administradas pela própria cultura, ao longo de nossa formação como pessoas e como humanidade. A cultura circunstancia e promove a mudança do homem em máquina, pois ela “administra” as doses de transformação. Circunstancia porque a cultura é “nosso ambiente, é nossa casa, nossa escola, nosso trabalho...” (2005, p.7). E promove, porquanto, “veja bem, a cultura somos nós mesmos” (2005, p.7).
A forma como nos relacionamos uns com os outros é moldada pela sociedade. Segundo esse autor, a organização cultural do homem pós-moderno é orientada pelo ideal “ser máquina”. Tal organização orbita em torno do “tempo” que atormenta a nós humanos, mas que nos parece infinito para as máquinas. Logo, o alvo, a vida, o trabalho... do ser humano das sociedades contemporâneas ditas modernas sintetiza-se na busca por igualar-se com as máquinas em eficiência, redução do tempo gasto na realização de tarefas, e durabilidade, em termos de tempo de existência útil e sem falhas. Passamos a funcionar “como uma pequena fábrica de produção”.
Ciro aponta graves problemas decorrentes dessa transformação em máquina, desse “funcioidnto” que a cultura operou nos indivíduos e na sociedade. Nossas ações quando direcionadas por um caráter maquínico se convertem em reações que se voltam contra o nosso “lado humano”, nosso corpo, em forma de doenças, e nossas relações interpessoais, na forma das mais diversas patologias. Para a saúde do corpo humano, o caráter máquina é peçonhento e deslancha no que é chamado de “doenças da cultura”. Considerando a analogia proposta por Ciro quando diz:
O processo pelo qual se fabricam seres e máquinas neuróticas em cada um de nós pode ser muito bem comparado ao processo pelo qual toda a civilização humana tornou-se, ela também, um grande sistema de fabricação de seres mecanizados. O desenvolvimento de nossa vida [...] pode ser visto numa correspondência direta com a história de nossa própria civilização (2005, p. 07).
Podemos estender tal analogia e fazer uma correspondência entre o corpo do individuo dotado de personalidade máquina e o “corpo” da civilização humana contemporânea. Nessa esteira analógica, a sociedade é um “corpo” humano que está enfermo em decorrência de um perfil psicológico maquínico que, obcecado por lucro e produtividade, coloca o estabelecer-se economicamente, o vencer, a competitividade sempre em local privilegiado em detrimento de outras formas de relacioidnto com os lugares e as pessoas.
Os professores não estão imunes a esse processo, por isso seu caráter, a filosofia que o norteia e todas as implicações de sua atuação na vida e no desenvolvimento dos alunos deveriam receber mais atenção das instituições responsáveis pela formação docente em todos os seus níveis. É, portanto, preciso pensar nas consequências de nossa prática docente, na forma como ela influenciará a vida de nossos alunos e a história da civilização.
A escola deve se configurar não apenas como um espaço dedicado à aprendizagem, num sentido exclusivo de apropriação do conhecimento científico. Mas, também, como um espaço intencionalmente construído para possibilitar relações comunicativas que ampliem as potencialidades humanas, tanto de professores como de alunos.
Se o corpo é capaz de representar a sociedade, cabe ao educador se perguntar: como está a saúde desse corpo? Em decorrência de um caráter maquínico, obcecado por lucro e produtividade, aos poucos está ficando doente. É preciso que reflitamos como nossa prática docente se encaixa nesse contexto, se estamos curando ou, inconscientemente, colaborando para degradação do corpo social.
Portanto, todo educador deve ter claro que são das relações comunicativas que decorrem as características que consideramos humanizadas. Em outras palavras, a comunicação pode se constituir tanto em uma fonte de autonomia, empatia e criticidade em vista das imposições sociais quanto de dependência, insensibilidade, alienação e subalternidade. Assim, para uma prática pedagógica mais satisfatória, o professor deve considerar seu corpo e o que ele comunica.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAITELLO, N. A era da iconofagia, Ensaios de Comunicação e Cultura. São Paulo: Hacker Editoras, 2005.
GARCIA CANCLINI, N. Leitores, espectadores e internautas. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
HAYDT, R. C. C. Curso de didática geral. 8. ed. São Paulo: Ática, 2006.
LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.
MARCONDES FILHO, C. Perca tempo: é no lento que a vida acontece. São Paulo: Paulus, 2005.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1992.
SILVA, Ana Beatriz B. Mentes inquietas: entendendo melhor o mundo das pessoas distraídas, impulsivas e hiperativas. 29. Ed. São Paulo: Editora Gente, 2003.
*Professor EBTT de português e literatura do quadro efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso - IFMT Campus Primavera do Leste. Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem (UFMT). michael.santos@pdl.ifmt.edu.br