Dagoberto Rosa de Jesus*
Michael Jhonatan Sousa Santos**
UFMT, Brasil
dagoberto.jesus@pdl.ifmt.edu.br
RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar concepções pedagógicas e práticas de ensino desenvolvidas com alunos de ensino fundamental e médio, de diferentes faixas etárias, que têm em comum o fato de estarem em situação de conflito com a lei, privados de liberdade, e de estudarem na Escola Estadual “Meninos do Futuro”, a qual se insere no Complexo Socioeducativo do Pomeri, em Cuiabá – MT, Brasil. Para tanto, apresentamos as condições materiais de produção e circulação dessas concepções e práticas, expondo a história da unidade escolar, bem como as especificidades que envolvem o trabalho docente nessa instituição de ensino. Situa-se a referida escola no contexto social brasileiro, destacando o tema do menor infrator. Em um ambiente no qual não apenas falta liberdade como sobra sofrimento, ódio e dor, propõe-se uma concepção de ensino baseada na humanização e na valorização dos educandos. Nesse âmbito, atividades práticas de caráter lúdico mostraram-se as mais relevantes e potencialmente capazes de formar pessoas aptas à liberdade, capazes de defender os próprios direitos e de respeitarem os dos demais cidadãos.
Palavras-chave: Privação de liberdade. Humanização. Ensino.
RESUMEN: Este artículo tiene por objetivo presentar concepciones pedagógicas y prácticas de enseñanza desarrolladas con alumnos de nivel fundamental y medio, de diferentes franjas etarias, que tienen en común el hecho de estar en situación de conflicto con la ley, privados de libertad, y de estudiar en la Escuela Estadual "Niños del Futuro", la cual se inserta en el Complejo Socioeducativo del Pomeri, en Cuiabá - MT, Brasil. Para ello, presentamos las condiciones materiales de producción y circulación de esas concepciones y prácticas, exponiendo la historia de la unidad escolar, así como las especificidades que involucran el trabajo docente en esa institución de enseñanza. Se sitúa la referida escuela en el contexto social brasileño, destacando el tema del menor infractor. En un ambiente en que no sólo falta libertad como sobra sufrimiento, odio y dolor, se propone una concepción de enseñanza basada en la humanización y la valorización de los educandos. En este ámbito, actividades prácticas de carácter lúdico se mostraron las más relevantes y potencialmente capaces de formar personas aptas a la libertad, capaces de defender los propios derechos y de respetar los de los demás ciudadanos.
Palabras clave: Privación de libertad. Humanización. Enseñanza.
ABSTRACT: The objective of this article is to present pedagogical conceptions and teaching practices developed with students of fundamental and middle level, of different age groups, who have in common the fact of being in a situation of conflict with the law, deprived of freedom, and studying in the State School "Children of the Future", which is inserted in the Socio-educational Complex of Pomeri, in Cuiabá - MT, Brazil. For this, we present the material conditions of production and circulation of these conceptions and practices, exposing the history of the school unit, as well as the specificities that involve the teaching work in that teaching institution. The aforementioned school is located in the Brazilian social context, highlighting the issue of the minor offender. In an environment in which not only freedom is lacking as there is plenty of suffering, hatred and pain, a conception of teaching based on the humanization and the valorization of the students is proposed. In this area, practical activities of a playful nature were the most relevant and potentially capable of training people capable of freedom, capable of defending their own rights and respecting those of other citizens.
Keywords: Deprivation of liberty. Humanization. Teaching.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Dagoberto Rosa de Jesus y Michael Jhonatan Sousa Santos (2018): “Alunos privados de liberdade: humanização e ensino”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (mayo 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2018/05/alunos-privados-liberdade.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1805alunos-privados-liberdade
1 INTRODUÇÃO
Pensar ensino e educação no Brasil foi e é um grande desafio posto para gestores de educação, educadores, pais e sociedade em geral. Esse desafio se coloca para quem sonha uma sociedade mais justa e igualitária, como uma urgência. Essa urgência é maior na medida em que nos vemos num mundo mais competitivo e excludente regido pelo signo do capital e da exclusão.
Compartilhando desse sonho de uma sociedade mais igualitária, muitos brasileiros viram e veem na educação um caminho para a construção de um Brasil e de um mundo melhor. Nessa senda encontramos nomes como Paulo Freire, Saviani, entre outros, que além de suas lutas pessoais deixaram um legado de ideias que ainda hoje ilumina nossos caminhos e pensares, estão presentes aqui também nesta reflexão.
Frente a este panorama em que a práxis educativa tem a busca por uma educação mais humanizadora e menos excludente como norte, falar sobre educação prisional, ou educação para pessoas que estão privadas de liberdade nos parece relevante e oportuno.
Na margem social, o indivíduo privado de liberdade pede um olhar dos gestores de educação mais atento, a exemplo do que hoje, no Brasil, já fazemos com a educação no campo, a educação de quilombolas, de indígenas e na educação de jovens e adultos.
Assim, o objeto deste estudo é a educação no sistema prisional, os valores e conceitos que norteiam o ensino em um centro socioeducativo que assiste a adolescentes menores privados de liberdade.
No estado de Mato Grosso, Brasil, discussões sobre o sistema prisional começaram a se esboçar de forma sistemática em 2003. Em 2010 essa luta culminou no Seminário para a construção do Plano Estratégico de Educação nas Unidades Prisionais do Estado. Como o nome sugere, esse evento teve como foco principal o sistema prisional. Quanto ao socioeducativo, tem a sua sistematização derivada dessas discussões. No Estado de Mato Grosso, esse sistema é representado pelo chamado “Complexo Pomeri”, no âmbito do qual a educação formal dos adolescentes é de responsabilidade da Escola “Meninos do Futuro”, ligada à SEDUC – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso.
Balizado por um olhar freiriano, o objetivo deste trabalho é refletir e pensar ações propositivas de ensino na educação de jovens privados de liberdade, adentrando no cotidiano de uma escola Estadual que atua dentro do sistema socioeducativo, no estado de Mato Grosso, Cuiabá.
Buscamos pensar em que medida as ações da gestão corroboram para uma prática de ensino humanizadora. Sem perder de vista que a escola, no contexto de adolescentes privados de liberdade, se coloca como lócus que garante o direito desse aluno à educação.
Para tanto, organizamos este trabalho em três momentos, que pensamos se complementarem. O primeiro intitula-se “Pomeri: um rito em passagem”, nele apresentamos as condições de produção das práticas de ensino no Complexo Pomeri, apresentando a história da unidade escolar, bem como expondo suas especificidades e idiossincrasias.
O segundo traz uma reflexão sobre a educação no Sistema Socioeducativo e suas especificidades. Apresentamos a organização do processo de ensino/aprendizagem e de forma mais precisa o trabalho desenvolvido no Complexo Pomeri pela escola Meninos do Futuro.
O terceiro tópico aborda a prática de ensino a partir de uma concepção que valoriza a ludicidade. A partir de uma bibliografia, apontamos para uma prática de ensino que visa à libertação do sujeito pelo conhecimento. Nosso objetivo foi refletir sobre a implantação desses preceitos na escola em questão, levando em consideração, ainda, como a gestão pode implantar e estimular os aprendizados propostos.
2 POMERI: UM RITO DE PASSAGEM
Liberdade essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.
Cecília Meireles
Ícaro, mito grego, que representa o jovem, ao se encontrar com seu pai, Dédalo, depois de ser sentenciado pelo rei Minos à prisão no labirinto do Minotauro, na ilha de Creta, foge voando com uma engenhosa ideia de seu genitor. Dédalo, hábil inventor, o construtor do labirinto do Minotauro, juntamente com seu filho, constrói dois pares de asas usando madeira, penas de aves e cera de abelha. Instrumento que utilizariam para escapar da prisão do rei Minus, a qual haviam sido sentenciados por terem dado a princesa Ariadne o fio que garantiu a Teseu a fuga do labirinto, após matar o Minotauro, flagelo da cidade de Creta. Esse engenho dá ao pai e ao filho a faculdade de voar, de buscar a liberdade. O pai, porém adverte Ícaro sobre o uso de suas asas, o jovem não deveria voar muito alto, ser prudente, porque o calor do sol poderia derreter a cera e ele perderia sua faculdade de voar, sua liberdade, sua vida.
Ao se ver dono de seu voo, Ícaro ignora a fala de seu pai e se lança em um voo cego para além das nuvens, o calor do sol derrete a cera e quando o jovem se dá conta do fato, seu pedido de socorro já não encontra ouvidos. Ele se precipita sobre o oceano, que o devolve sem vida na praia de uma ilha. Depois de um longo tempo, após muito procurar, Dédalo encontra o corpo do filho já sem vida e o enterra na ilha que passa a se chamar Itaca.
A forma do mito nos fala da imprudência do jovem, na sua dificuldade de ouvir o pai, o mais velho, o responsável que lhe apresenta as regras do viver. Ao se verem donos de seus voos, de seus caminhos, muitos jovens buscam voar mais alto do que é permitido, muitas vezes em um voar cego que busca aventuras, prazeres e caminhos que podem custar a sua própria liberdade e a sua própria vida.
Muitos jovens com os quais trabalhamos, alunos da Escola Meninos do Futuro, têm nesse mito sua história. Buscamos fazer com que esses “Icaros” ouçam a voz de “Dédalo”, uma alegoria da ciência, do saber, para que sejam prudentes e assim não se precipitem em seus voos. Para que não tenham na imprudência e na desobediência, suas principais conselheiras, e consigam fugir do destino do mito grego, para serem homens fortes, saudáveis, felizes, enfim bons cidadãos.
Na realização desse trabalho com jovens está o sentido da Escola Meninos do Futuro, que no âmbito do Centro socioeducativo Complexo do Pomeri, se irmana a outras instituições que tem no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente – uma referência para propor um atendimento digno aos menores infratores privados de liberdade.
2.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DA ESCOLA MENINOS DO FUTURO
Para percebermos a historicidade da Escola Meninos do Futuro, devemos voltar ao século passado, mais precisamente na década de 90. Naquele final de século, a escola Agostinha Guimarães atendia adolescentes e crianças em situação de risco e também alguns alunos da chamada “Fazendinha” (hoje Centro Socioeducativo Complexo Pomeri). Além de assistir a este público, a Escola Agostinha Guimarães atendia alunos da Pré-escola e do Ensino Fundamental da comunidade de seu entorno.
Com o fechamento dessa escola, os adolescentes e crianças atendidas, principalmente, os em situação de risco e de vulnerabilidade ficaram sem atendimento escolar. Nesta lacuna surge a Escola Meninos do Futuro. Em 1995, essa escola começou a atender a crianças e adolescentes em situação de risco, sob guarda judicial ou em situação de rua. A escolha do nome da então nova escola foi realizada pelos próprios alunos que sugeriram e escolheram entre eles o nome Meninos do Futuro, mostrando assim o desejo de um futuro melhor. Segundo o PPP1 da escola:
Após a listagem de alguns nomes sugeridos pelos adolescentes, estes elegeram através de votação o nome Escola “Meninos do Futuro”. De acordo com os adolescentes, o nome escolhido representa o futuro de cada um, pois esperam que seja através da escola que eles poderão galgar uma vida melhor. (PPP, 2010)
Hoje a Escola Estadual “Meninos do Futuro” está situada na Avenida Dante Martins de Oliveira, S/N°, Bairro Planalto, no Complexo Pomeri, Cuiabá - Mato Grosso. Tem uma sede com sala para estudos, sala de direção, secretária, cozinha, enfim uma infraestrutura básica, mais nem sempre foi assim, no decorrer dessa nossa história de algumas décadas. As salas de aulas ficam dentro do Complexo onde os alunos são assistidos. A escola:
Foi criada pelo decreto N° 404 do N° 21.746 de 22/09/95, e autorizada pela resolução 027 em 14 de fevereiro de 1997, mantida pelo Governo do Estado, através da Secretária de Estado da Educação, situada na rua: “B” s/n – Centro Político Administrativo – Cuiabá – MT, e em parceria com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, também situada no Centro Político Administrativo – Cuiabá-MT. O imóvel que hoje está situada a Sede da Escola, é cedido pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP). (PPP, 2010)
Quando foi criada, a escola ficava no Município de Várzea Grande, na Rua Julião de Brito, n° 520, até o ano de 1998. A partir de 1998, mudou-se para o Município de Cuiabá e por três anos ficou localizada em um prédio inadequado, cedido pela Fundação de Promoção Social (PROSOL) no Bairro Bandeirantes, não que a localização anterior fosse adequada. No ano de 2001, mudou-se novamente de endereço, para o Bairro Lixeira, com espaço e instalações adequadas para atender o público alvo da época, espaço este também cedido pela PROSOL. Em 2004, a derradeira mudança ocorreu para Complexo Pomeri. Cabe aqui observar que na sede da escola, não contamos com sala de aula, posto hoje atendemos principalmente às crianças e adolescentes que estão privados de liberdade.
A escola atente a sete unidades de detenção, sendo quatro no mesmo Complexo (Uma Unidade de Internação Provisória Masculina, duas Unidades de Internação Masculina e uma Unidade de Internação Provisória e Internação Feminina) e três em bairros distintos (Lar Doce Lar, Projeto Nossa Casa e Lar São Judas Tadeu). Faz, portanto, um trabalho itinerante.
Nas duas unidades de Internação Masculina, são atendidos adolescentes de 12 a 18 anos e excepcionalmente até 21 anos quando cumprem medida Socioeducativa de internação. São adolescentes que por ordem judicial estão sob regime de internação (medida privativa de liberdade, sujeitas aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito a condições de convívio em sociedade). O adolescente poderá permanecer até três anos nestas Unidades.
A unidade provisória masculina, como o próprio nome sugere, visa atender os adolescentes encaminhados pela Delegacia Especializada do Adolescente ou Juizado com a determinação da internação provisória, onde o adolescente permanece no máximo 45 dias, até que seja realizado estudo psicossocial e é encaminhamento ao poder judiciário, para liberação ou aplicação de medida Socioeducativa, respeitando o que prevê a legislação vigente.
Durante o período de permanência, o adolescente deverá participar de atividades sócio- pedagógicas e ocupacionais, respeitando a integridade física, psíquica, moral, direitos e deveres individuais e coletivos. De acordo com o ECA, durante o período de internação, inclusive provisória, são obrigatórias as atividades pedagógicas.
A Unidade Feminina é dividida em Internação Provisória e Internação, muda apenas o número de pessoas, no caso do feminino o número é significativamente menor. São atendidas adolescentes de 12 a 18 anos excepcionalmente até 21 anos, que estão em conflito com a Lei e que se encontram em regime de internação provisória e internação.
A Unidade “Lar Doce Lar” está vinculado à Secretaria de Estado de Saúde. Situada à Rua Professor João Félix nº 1101 – Bairro Lixeira, são atendidos portadores de necessidades especiais múltiplas, cujas famílias os abandonaram em consequência de suas deficiências e outros fatores. De acordo com o ECA:
Art. 112. [...] § 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições. (BRASIL, 1990)
Como podemos observar no parágrafo 3º, “receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às condições”. Tal unidade é responsável pela integridade tanto física, educacional e mental de seus educando. Cabendo-lhe adotar medidas adequadas de segurança, devendo, portanto, atender tal adolescente na cidade onde reside, por se tratar de alunos diferenciados, sendo que alguns são encaminhados à APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Cabe frisar que tais alunos não têm, obrigatoriamente, conflito com Lei. São, no entanto, abandonados por seus familiares.
O Projeto “Nossa Casa” situado à Rua Buriti, casa 12, Bairro Jardim das Palmeiras é uma ONG, sem fins lucrativos, atende crianças e adolescentes do sexo masculino, tem como objetivo atender menores na faixa etária de 08 a 18 anos. Trata-se de um grupo de difícil readaptação social, vítima de abandono, desestrutura familiar, órfãos e consequentemente vivem em situação de risco, praticando pequenos atos infracionais, fazendo uso de drogas e outros. Os adolescentes permanecem em regime de semiliberdade, de acordo com o ECA, recebem o reforço escolar da Escola Estadual “Meninos do Futuro”.
Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas. (BRASIL, 1990)
O “Lar São Judas Tadeu” atende adolescentes do sexo masculino como orfanato, a escola Meninos do Futuro auxilia esta instituição com um quadro de educadores.
Podemos dizer que parte significativa de nosso alunado é composto por adolescente em conflito com a lei, daí afirmarmos a importância da parceria entre as duas secretarias Estaduais, a saber: de Justiça SEJUSP e da educação SEDUC no trabalho que nossa escola desenvolve. Não podemos perder de vista que a Escola Estadual “Meninos do Futuro” é mantida pela Secretaria de Estado de Educação – Governo do Estado de Mato Grosso, e oferece a Educação Básica: ampliando o ensino fundamental para 9 anos e também Ensino Médio e EJA. Esse fato garante uma identidade, mesmo firmando parcerias com outra Secretaria – SEJUSP- somos da Secretária da Educação e seguimos seu modelo de gestão e de filosofia de trabalho. Adotamos, a exemplo de todo o Estado, a gestão democrática.
Como já é possível perceber no decorrer deste texto, a escola Meninos do Futuro tem suas especificidades, e estas a tornam diferente de uma escola comum. Seu principal objetivo é de atender as crianças e adolescentes excluídos do sistema de ensino e de todo contexto social, ou seja, adolescentes em conflito com a lei, drogados, etc.
Entendemos, portanto, tratar-se de uma escola com características específicas e especiais, visto que seu alunado, além de estar no quadro dos excluídos, como mencionamos anteriormente, não contavam com acompanhamento escolar nas casas onde viviam, exceto a unidade Projeto “Nossa Casa”, em que os alunos estudam numa escola municipal e/ou estadual. Nesse caso, mesmo indo até a escola, necessitam do reforço escolar, pois não o recebem na escola de origem, sendo assim a Escola Estadual Meninos do Futuro, oferece este reforço, considerando as peculiaridades destes adolescentes.
Como podemos observar, para trabalhar como educador nessa escola marcadamente singular, pede-se uma equipe que entenda essas particularidades. Educadores que atentem a um código ético, pedagógico e profissional que auxilia o adolescente e a instituição no trabalho de busca para reinserir esse aluno na sociedade. Esse profissional deve observar questões pedagógicas e éticas, mas também a questão da segurança dele e do adolescente, posto os últimos estarem privados de liberdade. Assim, cabe à gestão escolar estar atenta ao perfil do profissional que trabalha junto a Escola Meninos do Futuro.
Esse profissional deve ter claro que a Escola atua dentro de um Complexo de instituições, que seus alunos estão sobre a tutela da SEJUSP, e sua segurança depende do trabalho dos profissionais dessa Secretaria. Assim, a segurança e a integridade física do aluno e do profissional da Educação chegam antes do direito à educação. Caso o profissional da Educação não tenha essa observação, ele pode ser danoso a todo o processo. Assim, a responsabilidade da gestão no trabalho de formação continua desse profissional nos parece ser o caminho para a melhora do trabalho que buscamos fazer.
3 EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: A EDUCAÇÃO E A PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Jorge Amado, um dos escritores brasileiros mais conhecidos do mundo, faz um retrato do adolescente que vive à margem da sociedade em seu celebre romance Capitães de Areia (1988). Nesta obra literária, podemos acompanhar as aventuras de Pedro Bala e seu bando de menores abandonados na cidade de Salvador, suas venturas e tristezas. Esses adolescentes de papel praticam pequenos delitos para sobreviver, representam e revisitam muitas histórias dos adolescentes assistidos pelos sistemas socioeducativos brasileiros.
Hector Babenco, na década de 1980, com seu Pixote, a lei do mais fraco considerado por muitos críticos internacionais como um dos dez melhores filmes do ano de 1981, mostra a vida e a trajetória de Fernando, um menino de rua que passa por um reformatório da extinta FEBEM. Nesta narrativa cinematográfica, podemos ter uma dimensão mais precisa de como o menor infrator era tratado no Brasil. Exposto a maus tratos, condições sub-humanas.
Como podemos observar nesses dois exemplos, o tema do menor, e mais precisamente do menor infrator, está presente na arte e na ficção brasileira. Toda essa ficção tem suas bases na observação e na reflexão da sociedade, elas nos possibilitam olhar as nossas mazelas, refletir sobre elas e lutar na busca de corrigir o que é necessário corrigir, para assim termos uma sociedade mais igualitária, justa e que atenda os seus filhos com dignidade.
Com nosso trabalho na Escola Meninos do Futuro, buscamos contribuir para o resgate de um tempo perdido. Perdido por nós, enquanto uma sociedade que por séculos abandou suas crianças a própria sorte e aos intempéries de uma sociedade baseada na exclusão. E perdido pelos adolescente com os quais trabalhamos, que ao estarem no sistema socioeducativo, onde perdem sua liberdade, têm o tempo de rememorar e de reelaborar suas experiências passadas e assim quem sabe mudar a trajetória de suas vidas. Diferente do texto “Em busca do Tempo Perdido”, de Marcel Prost, nossos adolescentes não buscam um tempo de alegria no passado. A eles o passado é quase sempre muito igual, um acúmulo de tristezas e de abandonos, salvos raras exceções, repetem uma história que nos parece sem fim, e que nos é contada a muito tempo. Embora fale de detento, a música do grupo brasileiro de rap Racionais MC’s2 traduz essa história:
Cada detento uma mãe, uma crença.
Cada crime um sentença.
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,
sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio,
sofrimento desprezo, desilusão, ação do tempo.
Misture bem essa química.
Pronto: eis um novo detento!
Nesse contexto, a Escola Estadual Meninos do Futuro busca, nesse labor herculano, oportuniza uma educação formal para adolescentes que estão sob a tutela do estado, privados de liberdade e à margem da margem social. Acreditamos, a exemplo de Paulo Freire (1996), que a educação é uma ação libertária e é aqui, nesse contexto, onde tudo o que não se tem é liberdade que a sua necessidade nos parece mais clara e mais urgente.
A estrutura de funcioidnto da escola Meninos do Futuro está intimamente ligada ao funcioidnto do Centro Socioeducativo, posto ter uma relação orgânica com o mesmo. Para exemplificar essa afirmativa basta observar que a liberação ou não dos alunos para as atividades da escola é competência do agente orientador que libera os alunos seguindo vários critérios de segurança e de organização do sistema. Sabiamente a preocupação primaria da equipe do sistema socioeducativo é com a segurança e com a integridade física, tanto do educando quanto a da equipe docente e, muitas vezes, por zelar desse princípio não é possível estabelecer uma rotina nas atividades de nossa unidade escolar. O que justifica, inclusive, o modelo de ensino praticado pelos docentes e orientado pela gestão, acerca do qual traçamos considerações mais abaixo.
Paralelo a essa realidade devemos seguir uma referência, o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo) que foi fruto de uma Construção coletiva entre os diversos órgãos que têm no adolescente seu foco de interesse. Este documento foi aprovado pelo CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) em 2006 e atualmente no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 1.627/07. Sobre a criação do SINASE, no site da presidência temos as seguintes informações:
Em comemoração aos 16 anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente apresentam o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, fruto de uma construção coletiva que envolveu nos últimos anos diversas áreas de governo, representantes de entidades e especialistas na área, além de uma série de debates protagonizados por operadores do Sistema de Garantia de Direitos em encontros regionais que cobriram todo o País. O processo democrático e estratégico de construção do SINASE concentrou-se especialmente num tema que tem mobilizado a opinião pública, a mídia e diversos segmentos da sociedade brasileira: o que deve ser feito no enfrentamento de situações de violência que envolvem adolescentes enquanto autores de ato infracional ou vítimas de violação de direitos no cumprimento de medidas socioeducativas. Por sua natureza reconhecidamente complexa e desafiadora, além da tamanha polêmica que o envolve, nada melhor do que um exame cuidadoso das alternativas necessárias para a abordagem de tal tema sob distintas perspectivas, tal como feito de forma tão competente na formulação da proposta que ora se apresenta (BRASIL, 2006, p. 13).
Nessa perspectiva, o adolescente deve ser alvo de um conjunto de ações socioeducativas que contribua, na sua formação, de modo que venha a ser um cidadão autônomo e solidário, capaz de se relacionar melhor consigo mesmo, com os outros e com tudo que integra a sua circunstância e sem reincidir na prática de atos infracionais.
Ele deve desenvolver a capacidade de tomar decisões fundamentadas, com critérios para avaliar situações relacionadas ao interesse próprio e ao bem comum, aprendendo com a experiência acumulada individual e social, potencializando sua competência pessoal, relacional, cognitiva e produtiva. Nessa perspectiva, à escola, e, por conseguinte, ao professor, é socialmente atribuída a função de ensinar o conhecimento histórico e científico acumulado pela humanidade às crianças. Nesse sentido, Saviani (1992), indica que o professor deve nortear sua ação a partir de três objetivos fundamentais. Primeiro: constituir meios de exprimir o saber objetivo socialmente produzido. Segundo: transformar esse conhecimento objetivo em escolar, de modo que possa ser assimilado pelo conjunto dos alunos. E, terceiro: criar condições necessárias para que estes não apenas se apropriem do conhecimento, mas ainda elevem seu nível de compreensão sobre a realidade.
Tendo também o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - como um de nossos nortes, nosso trabalho tem no cuidado com os diretos e com a dignidade de nossos alunos um dos seus mais fortes pilares. A busca por atender aos alunos respeitando a sua condição e sua situação de privação de liberdade nos é cara. Ao educar buscamos não excluir, mas humanizar esse aluno carente de respeito. Podemos dizer que essa busca por humanizar se insere justamente nessa elevação do “nível de compreensão da realidade”, de que trata Saviani.
4 POR UMA PEDAGOGIA DA ESPERANÇA: UMA PRÁTICA DE ENSINO HUMANIZADORA
O destino dos homens é a liberdade.
Vinicius de Morais3
Como vimos ao longo de todo nosso texto, a Escola Estadual Meninos do Futuro, tem características peculiares, por se tratar de uma escola que foi criada especificamente para atender crianças e adolescentes vitimadas pela própria sociedade, com necessidades especiais e privados de liberdade cumprindo medida socioeducativa conforme determinação judicial.
Diante das características e do perfil de nossos alunos, faz-se necessário que o professores desenvolvam, no âmbito da escola uma pedagogia da presença, conforme a abordagem de Síveres (2015), no sentido de resgatar o que há de positivo na conduta desses adolescentes e de fundar o aprendizado no diálogo. O estar junto desse aluno é um ato que envolve uma relação pessoal positiva, o aluno precisa que suas necessidades de estima sejam satisfeitas, isto é, precisa sentir-se compreendido e aceito.
Ser educador na Escola Meninos do Futuro exige dos profissionais muito mais que preparação técnica, é necessário que o ensino tenha por base um esforço coletivo na direção de um conceito e de uma prática mais humanizada, os quais podem ser assim sintetizados: 1) a educação é, na verdade, o único processo capaz de transformar o potencial das pessoas em competências, capacidades, habilidades e valores; e 2) as ações de ensino devem exercer uma influência edificante na vida do adolescente, se ele tiver a sensação de que tem valor para alguém e de que é compreendido e aceito, vai olhar o futuro sem medo, e será capaz de construir um projeto de vida.
Nessa senda, pensamos algumas ações que a gestão da escola poderia tomar afim de garantir e lutar por uma melhoria no processo de ensino/aprendizagem. Entre essas ações e queremos aqui fazer alusão a duas; a primeira é o trabalho de sondagem e de pesquisa que realizamos junto a nossa comunidade escolar com o objetivo de entender e saber quais são as fraquezas, fragilidades, pontos fortes e potenciais em nossa unidade escolar. O segundo que decorreu do primeiro: foi um projeto que denominamos, genericamente, “Letramento” cujo objetivo era e é buscar melhorar o nível de leitura de nossos alunos, que como podemos detectar em nossa pesquisa exploratória, mostrava índices preocupantes. O Projeto Letramento e de Implementação das Atividades Pedagógicas contribuiu para sanar as principais dificuldades dos alunos, realizando as intervenções adequadas tendo como base a influência proativa, construtiva, criativa e solidária favorável ao desenvolvimento pessoal e social.
Esse projeto se insere num contexto em que, pela primeira vez na história brasileira, a questão social das crianças e dos adolescentes tem prioridade absoluta, transformando os mesmos em cidadãos sujeitos de direitos e deveres, estabelecendo regras de prioridade absoluta dentro das políticas públicas. Como se a regras estivessem começando a sair do papel, pode-se ver a aplicação da lei nº 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, a saúde, a alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990).
Desde o nascimento da criança, a família é o principal núcleo de socialização e maturidade, seus primeiros anos de vida são marcados pela dependência do ambiente e daqueles que delas cuidam. A relação com seus pais, ou substitutos é fundamental para sua constituição como sujeito, de desenvolvimento afetivo e aquisições próprias a esta faixa etária. A família tem, assim, um papel essencial junto ao desenvolvimento da socialização da criança, é ela quem mediará sua relação com o mundo e poderá auxiliá-la a respeitar regras, limites e proibições necessárias à vida em sociedade.
Já a escola é identificada, no estudo de Galo e Williams (2008), como um fator de proteção para a não instalação de componentes antissociais. Crescer em um ambiente livre de violência intrafamiliar, com uma educação apoiada em supervisão, diálogo, afeto e limites é um grande antídoto para a criminalidade. Entretanto, quando as condições socioculturais associam-se às condições pessoais, os resultados negativos poderão ser intensificados por situações como o viver em condições de pobreza, pertencendo a uma família desestruturada com um pai ausente e uma mãe sem autoridade, em uma comunidade sem lazer, com escolas precárias e sem perspectivas de trabalho. Tudo isso pode levar um adolescente a comportamentos antissociais e à criminalidade.
Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa apresentam características marcantes resultantes das condições adversas vivenciadas: a falta de perspectivas na vida, elevadas doses de desesperança, falta de emprego, salários baixos, exclusão escolar e outros que são incrementos da violência como reação a um estado frustrante e contraditório insuportável.
Esta proliferação de estados cruéis de desigualdade, miséria e de injustiça, no meio social, está agravado pelas discrepâncias socioeconômicas e culturais evidentes, elementos facilitadores de um clima de instabilidade social e propulsora de várias violências: estrutural, familiar, social, ética, psicológica prejudicando enormemente o estabelecimento de relações humanas. Assim, os atos infracionais tendem a ser apenas uma dentre várias outras formas de expressão dessas dificuldades e, por isso, não podem ser abordadas de forma isolada ou fragmentada. Diante disto, torna-se óbvio que a compreensão e o atendimento dos adolescentes passam necessariamente pela atenção ao contexto social.
A escola, considerando quem são seus alunos, considerando as dificuldades que enfrentam, o que esperam da educação formal, suas crenças, seus valores morais e culturais, tem como princípio o compromisso inalienável com a inclusão de todos, estimulando a permanência e o sucesso na vida.
O Projeto Letramento e de Implementação das Atividades Pedagógicas não surge como solução final para resolver os problemas dos adolescentes em relação à escola e à escolaridade, mas certamente apresenta um conjunto de ações que visam minimizar de forma sistêmica um dos principais problemas de nossos alunos, a exclusão do mundo letrado. Portanto, os professores atuaram em atividades fazendo as intervenções mais adequadas aos problemas detectados em seus alunos.
Assim, podemos dizer em linhas gerais que o objetivo do projeto Letramento foi implementar atividades de ensino proporcionando uma ação conjunta, contribuindo para solucionar as principais dificuldades dos alunos de forma holística e precisa, promovendo ações pedagógicas de cunho multidisciplinar.
Nesse caminho, proporcionar aos alunos, por meio das disciplinas curriculares, a compreensão crítica do mundo contemporâneo, estimulando o desenvolvimento de habilidades e competências de leitura, compreensão de textos, expressão oral e escrita. Resgatando, através disso, a cultura dos alunos num processo de reflexão e produção dos saberes, por meio de seminários, oficinas de arte, teatro, esporte, dança, música, literatura, respeitando as habilidades dos educandos. Viabilizar atividades pedagógicas propiciando a socialização, a autoestima e a reflexão de valores necessários para a boa convivência. Contribuir para que os alunos desenvolvam um processo de reflexão avançando do senso comum para uma compreensão crítica da realidade social em que vive.
Ao pensar e organizar nossas práticas e nossa metodologia, tendo como pressuposto de que a Escola Estadual Meninos do Futuro recebe alunos em situações especiais, é de fundamental importância considerar que na construção do conhecimento e na relação ensino-aprendizagem os profissionais desenvolvam trabalhos enfocando o desenvolvimento de características como flexibilidade, criatividade, comprometimento, comunicação, responsabilidade, socialização, tecnologia, competência e trabalho em equipe. Para tanto, os professores atuaram com dinâmicas interdisciplinares e atividades que iam ao encontro das necessidades apresentadas pelos alunos.
O letramento é um aspecto que foi enfatizado por todos os professores, visto ser considerado na perspectiva de Magda Soares (2000), para quem letrar é mais que alfabetizar, é ensinar a ler e escrever de um contexto onde a escrita e leitura tenham sentido e façam parte da vida do aluno. Já não basta aprender a ler e escrever, é necessário mais que isso, para ir além da alfabetização funcional. A autora sugere que alfabetizemos letrando sem descuidar da especificidade do processo de alfabetização. Assim, o letrar pressupõe uma reflexão que considera o sujeito em sua dimensão social e a aprendizagem como efeito dessa dimensão, no âmbito da qual a cultura letrada de incontornável necessidade. Tal abordagem se mostra em consonância com Vygotsky:
A aprendizagem desperta processos internos de desenvolvimento que só podem ocorrer quando o indivíduo interage com outras pessoas. Aqui a importância da intervenção pedagógica que provoca avanços que não ocorreriam espontaneamente. O Processo de ensino-aprendizagem propicia o acesso dos membros imaturos à cultura letrada do conhecimento construído e acumulado pela ciência. (1993, p. 33)
Jean Piaget (1896) também descreve o homem como um ser essencialmente social, impossível, portanto, de ser pensado fora do contexto da sociedade em que nasce e vive, mostrando que a socialização acontece através da troca intelectual entre indivíduos, sendo que o seu maior e melhor grau se dá quando a troca atinge o equilíbrio, este ser social é justamente aquele que se relaciona de forma equilibrada com seus semelhantes.
Ao sistematizar estas ideias e pressupostos encontramos algumas dificuldades dado as especificidades da Escola Meninos do Futuro. A primeira questão que nos tomou a atenção foi a heterogeneidade de nossas turmas. Como é sabido, a organização dos alunos em turmas e classes não obedece a uma regra etária ou de grau de escolarização, muito menos é algo dado como certo, o grau de flexibilidade do grupo é muito grande. Este dado impacta de forma capital no trabalho que é desenvolvido durantes as atividades.
Para equalizar e minimizar essa questão, optamos por elaborar atividades que se encerrassem em apenas um encontro e tivessem em si uma unidade de sentido. Isto é, cada encontro devia ser norteado por um objetivo que abrangesse as diferentes faixas etárias e que reverberasse um sentido de “humanização”. Tal opção decorreu do fato de que o cronograma das ações a serem desenvolvidas com os alunos não dependia apenas do corpo discente, mas também dos profissionais da área de segurança, conforme dito. Vale destacar, também, que o conceito de humanização que tínhamos em mente, quando propusemos esse trabalho, é o desenvolvido por Antonio Candido, no ensaio Direito à literatura (2011), o qual mobilizamos no bojo do desejo de ofertar aos alunos direitos que a sociedade não teria, até então, oportunizado:
Entendemos aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos por essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afiidnto das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o senso de humor. (p. 182)
Paralelo a esta preocupação, procuramos pensar atividades que poderiam ofertar níveis de complexidade que atendessem, de forma diversa, a alunos em séries diversas. Ações que atendessem o aluno dentro de um contexto multisseriado: a opção foi o trabalho com projetos. A partir de algumas diretrizes, por nós elaboradas, cada professor, dentro de sua respectiva área do conhecimento e junto com outros docentes da mesma área, sistematizaram um conjunto de ações a serem desenvolvidas.
Nesta senda, as áreas optaram por pensar projetos que valorizassem uma abordagem holística do alunado levando em consideração a situação de privação de liberdade destes alunos. Buscamos, assim, atividades que valorizassem o lúdico, os aspectos cognitivo, afetivo, social, econômico e cultural, realizando um trabalho interdisciplinar para estimular a autoestima. Na medida do possível, propusemos atividades em que o aluno pudesse se sentir protagonista, envolvendo os conhecimentos científicos e a realidade de sua vivência no contexto em que estava inserido, de forma a levar o educando a se perceber como ser autônomo e a se responsabilizar por seu processo de aprendizagem e por sua vida. Tal abordagem se inspirou, dentre outros, nos dizeres do Boris Cyrulnik, no âmbito dos quais pensamos a fantasia e lúdico como elementos análogos:
La fantasía constituye el recurso interno más preciado de la resiliencia. Basta con disponer en torno al niño herido unos cuantos papeles, unos lápices, una tribuna, unas orejas y manos para aplaudir, y veremos operar la alquimia de la fantasía (2005, p. 139).
Embora essa orientação acerca das práticas de ensino tenha se direcionado a todas as disciplinas, neste artigo nos atemos às atividades da área da linguagem. Na disciplina de Educação Artística, o projeto trabalhou com atividades plásticas, oportunizando ao aluno se expressar por meio do conhecimento da arte e de sua produção nos trabalhos artísticos. Possibilitou-se aos alunos, imprimirem sua subjetividade e expressarem suas ideias recriando obras do artista Van Gogh. Além desta incursão ao universo das artes plásticas, os professores (e alguns voluntários) realizaram oficinas de hip hop que tiveram uma boa aceitação pelos alunos. O trabalho na disciplina de Educação Física, pela natureza da instituição, foi atrelado às atividades da SEJUSP, atendendo assim a diretriz do Complexo do Pomeri. Cabe observar que esta diretriz não divergiu do projeto nas ações de valorização do lúdico e do aluno.
Os professores de língua portuguesa e língua estrangeira, juntamente com uma equipe de pedagogos, em seus projetos, diagnosticaram que os alunos leem pouco e não são motivados para essa prática. Partindo disso, trabalharam no sentido de despertar a curiosidade e o interesse dos estudantes para a atividade de leitura. Cabe observar que uma quantidade significativa de alunos apresentavam dificuldades de leitura e de escrita por conta, entre tantos outros fatores, do fato de estarem afastados das atividades escolares por muito tempo.
Como estratégia para o letramento, optamos pelo trabalho com a produção de textos narrativos, poéticos, teatrais e informativos. Realizamos, desta forma, gincanas recreativas com poemas e cantos e concurso literário de poesia e de contos. Deste trabalho, resultou a elaboração de um livro de poemas dos próprios alunos; a apresentação de seminários com a exposição dos contos produzidos; e a escrita de cartas como meditação da leitura literária. Projetamos filmes e promovemos debates de forma que nosso alunado pudesse expressar suas opiniões e ideias.
Cabe destacar que projeto “Letramento” redimensionou algumas ações da escola. Nas ciências biológicas, por exemplo, retomou-se a construção de uma horta. A leitura de textos sobre o plantio, bem como discussões e debates sobre a importância de uma alimentação variada, acerca do preparo do terreno fez parte do trabalho que culminou na horta. Outros desdobramentos também ocorreram, os poemas e as produções artísticas dos alunos ganharam espaço em exposições e apresentações dentro das atividades proporcionadas pela SEJUSP, como forma de valorização do trabalho dos educandos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” Essa frase dita no meio de uma guerra pelo jagunço Riobaldo, personagem do célebre romance Grande sertão: veredas, do escritor brasileiro Guimarães Rosa, traduz a natureza deste trabalho. Pensar educação e ensino para adolescentes em conflito com a lei e privados de liberdade é pensar em plantar esse ato de amor (que é educar) no coração de uma instituição onde não só falta liberdade como sobra sofrimento, ódio e dor.
Ao final desse trabalho, que envolveu estudo, pesquisa, mas principalmente um olhar afetuoso sobre a escola Meninos do Futuro, pode-se ver de forma mais clara em que consiste o trabalho com crianças e adolescentes marginalizados e privados de liberdade. Essa nova forma de observar a escola só foi possível pelas leituras e pelos diálogos que foram oportunizados.
Checando nossas leituras e de nossas reflexões, podemos observar que a gestão de uma unidade escolar pode mesmo mudar de forma significativa o rendimento de seus alunos e isso nos parece que reside primeiro numa busca de conhecer a realidade da escola, dos alunos e dos profissionais da educação que compõem a equipe da unidade.
Assim, esse trabalho na Escola Estadual Meninos do Futuro culminou em uma série de ações e projetos. O que nos pareceu mais significativo que foi o Projeto Letramento. Sua implantação na escola está se dando de forma continua e podemos observar que estamos no caminho certo, em busca de uma educação que valoriza o ser humano em sua condição social.
Ao perceberem que conseguem apreender, que conseguem evoluir no aprendizado, que conseguem se inserir nesse mundo letrado, do qual a maioria se sentia à margem, esses alunos reestabelecem sua autoestima. Reveem a escola e por que não dizer, reveem suas próprias histórias. Ao possibilitar ludicidade no espaço escolar, dentro do centro socioeducativo, levamos não só conhecimento e informação, mas um pouco de alegria para adolescentes que vivem sob o signo da tristeza e do sofrimento.
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*Professor EBTT de português e literatura do quadro efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso - IFMT Campus Primavera do Leste. Mestre em História (UFMT). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Literatura (UNEMAT). dagoberto.jesus@pdl.ifmt.edu.br