CAMINHOS DO JEQUITINHONHA: ANÁLISE DO PROJETO DE COMBATE Á POBREZA RURAL

Marcela de Oliveira Pessôa

1.2.2 – Os últimos 20 anos

O final do regime militar foi marco de reformulação do sistema político nacional, despedindo-se de um período administrativo de extrema centralidade de poder e revertendo a situação para um quadro político-administrativo cuja gestão se pressupõe descentralizada, voltada para uma posteridade mais democrática e participativa no campo das políticas públicas. Como pontua Silva et al. (s.d) a Constituição de 1988, elaborada após o regime ditatorial, institucionalizou um novo jogo de políticas sociais no Brasil, em que se passou a expressar os interesses e a representar novas demandas e atores junto ao Estado. Novas formas de atuação dos movimentos sociais e participação popular foram desencadeadas com a Constituição de 1988, e ela passou a se tornar elemento importante na avaliação das medidas de administração pública.
Não se deve negar que a engenharia do modelo administrativo top down angariou benefícios para a sociedade brasileira, mas estiveram limitados pela estrutura que favorecia as classes historicamente empoderadas, dando prioridade aos interesses dos grupos de grandes propriedades territoriais e da burguesia industrial nacional articulada à internacional (MARINI, 1969; FAGNANI, 1997). Os interesses diretos da massa, composta por setores populares de origem rural e urbana, passam a ter mais relevo no pleito gestor a partir das iniciativas voltadas para a participação social na administração pública. Logo, a extensão da cidadania para além da estrutura organizacional trabalhista só começa a ser explorada mediante este novo episódio da gestão das políticas públicas nacionais.
A proposta de uma gestão compartilhada com a sociedade teria passado a ser valorizada com o reconhecimento de que “nenhum ator detém sozinho conhecimento e capacidade de recursos para resolver problemas unilateralmente” (STOKER apud FREY, 2007, p.138), lógica na qual está imbuída a demanda por uma gestão interativa entre múltiplos atores. De acordo com Frey (2007), o discurso sobre esta mobilização interativa em prol da melhoria da administração e democratização dos processos decisórios só veio a ser ampliada devido à retração do Estado, promovida pelas políticas neoliberais que passaram a ser estabelecidas no fim do século XX, e a incapacidade das instituições em lidar com os problemas urbanos. Mas ainda sim deve-se dar a devida notoriedade, pois mesmo a contrarreforma conservadora que tentou solapar os ganhos da Constituinte de 1988, conforme denuncia Fagnani1 (1997), não deixou desvalida a crença emergente na eficiência da participação social como meio de se promover a transparência nas deliberações e ações públicas. A Constituição de 1988 abriu espaço para a democratização do sistema decisório, permitindo maior expressão e visibilidade das demandas sociais; o que contribuiria para uma maior promoção de igualdade e equidade em políticas públicas (SILVA et al: s.d) e, por suposto, o devido encontro com a cidadania há tanto tutelada. Vê-se aí o germe de um novo modelo político-administrativo que tem sido considerado como botton up: de baixo para cima. Ele pressupõe que deve-se partir do problema para configurar a política pública, e que o processo de implementação deve abranger todos os atores públicos e privados envolvidos, enfatizando a participação do público alvo do programa (FGV, 2010).
O estilo botton up se associa ao que a literatura na área vem chamando como governança participativa ou boa governança. Modelo que também vem sendo estimulado pelo pleito internacional, incluindo mesmo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e que pressupõe a “necessidade de aumentar o grau de interação entre os diversos atores sociais” (FREY, 2004, p.122). Ao fundo, o interesse estaria em:
[…] criar novas estruturas interativas, não apenas com o intuito de tranquilizar ou reprimir o protesto social, mas, antes de tudo, com o objetivo de reinventar as formas de gestão no sentido de transformar os atores da sociedade em aliados na busca de melhores resultados, tanto referentes ao desempenho administrativo quanto em relação ao aumento da legitimidade democrática. Busca-se com isso canalizar e direcionar as forças societais para auxiliar na gestão pública (FREY, 2004, p.123).

Para Frey (2004), este novo tipo de gestão estaria de acordo com uma adaptação dos sistemas político-administrativos à diversidade, complexidade e dinâmica da sociedade contemporânea. Rompendo, portanto, com a estrutura tecnocrática que encerrou durante longo tempo o modo de se implementar políticas no Brasil. Frey (2004) dá ainda exemplos de atividades bem sucedidas em que a governança foi elemento crucial, tais como em Santos, Curitiba e o exemplo do Orçamento Participativo de Porto Alegre que, implementado desde 1989, tem se tornado referência internacional de administração e cuja participação da sociedade civil tem trazido respostas positivas para a coletividade.
Para Ciconello (2008, p.1), o Brasil vem sendo “um celeiro de iniciativas e de ideias no que diz respeito a ampliação da participação de cidadãos e cidadãs nas decisões públicas”, tendo sido construídos diversos espaços formais de participação de âmbito federal, estadual e municipal ao longo dos últimos vinte anos. Assim, até a publicação do seu trabalho, o autor estima que existissem cerca de 40 mil Conselhos de Políticas Públicas no Brasil, sendo que cerca de 20 mil se destinavam apenas para os temas assistência social, saúde, criança e adolescente, desenvolvimento rural, habitação e meio ambiente (MELO, 2008). Vem-se, assim, angariando algumas conquistas como o acesso gratuito e expandido aos serviços de saúde, programas e ações voltados para combater a situação de pobreza, o acesso a aposentadoria mínima aos trabalhadores rurais mesmo não tendo sido contribuintes, programas e recursos voltados para a agricultura familiar, inclusão na agenda política de temas transversais entre outros (MELO, 2008).
Mas não se pretende, neste trabalho, fazer vista grossa às problemáticas inerentes ao próprio processo de participação social, pois os vinte anos de experiência de gestão participativa das políticas públicas tem também apresentado percalços. Alguns são enumeráveis da seguinte forma:

  1.  O excesso de atenção sobre o modo de se conceber a participação pode acarretar no “tecnocratismo de esquerda”, pontuado por Souza (2006); dando lhe mais valor que a própria participação, e esquecendo-se que instrumentos, técnicas e rotinas não tem responsabilidade de instaurar justiça social ou qualidade de vida;
  2. Em algumas situações pode surgir um tipo de neoclientelismo nas estruturas participativas, baseado em favoritismos e conchavismos que simbolizam as reminiscências da cultura política patrimonialista que fora herdada. (SOUZA, 2006; SEMENSATO, 2010);
  3. A romantização do poder local pode acabar infantilizando a participação, de modo que os programas e agentes podem, por fim, tutelar as comunidades, ou omitir outros processos de exclusão (SOUZA, 2006), reproduzindo as desigualdades.
  4. Além disto, em alguns casos, os mecanismos participativos nem sempre são devidamente divulgados, justificados e com horários acessíveis para estimular o seu próprio princípio participativo (SOUZA, 2006)

Por conseguinte, embora este novo formato seja mais condizente com a possibilidade da sociedade se fazer ouvida e compreendida por seus gestores, e suas demandas se tornarem pauta de conduta e realizações quanto às políticas a serem empreendidas, deve-se atentar para como o viés participativo vem sendo empreendido.
Segundo o estudo de Kliksberg (1999), a participação dá resultados superiores aos de outros modelos organizacionais de corte tradicional como os burocráticos e paternalistas (KLIKSBERG, 1999), mas:
Os melhores resultados dos modelos participativos no campo dos programas sociais não são mágicos. Derivam de bases muito concretas. No geral, os programas desta matéria, independentemente de suas metas específicas como baixar deserção no primário, melhorar as vacinações, fornecer água, oferecer crédito a famílias pobres, etc., tem o que se poderia chamar de “suprametas” que são comuns e que abarcam as metas específicas. Deseja-se que os programas sejam eficientes, ou seja, façam um uso ótimo de recursos usualmente escassos, que contribuam para melhorar a equidade, ponto crucial na América Latina, […] e que proporcionem sustentabilidade, favoreçam a conformação de capacidades que fortaleçam a possibilidade de que a comunidade possa seguir adiante por si mesma ao longo do tempo. (KLIKSBERG, 1999, p.12-13). 2

Neste sentido, o autor considera que a comunidade pode ser a fonte mais relevante para detectar necessidades na elaboração de programas sociais, por ter mais ciência das suas deficiências e urgências; além de poder contribuir para um desenho mais bem sucedido visto que as dificuldades partem do plano cultural e, portanto, as oportunidades devem derivar do mesmo (KLIKSBERG, 1999). Além disto, os juízes mais indicados para avaliar os efeitos reais dos programas devem ser seus destinatários, apontando os resultados efetivos, as deficiências, os efeitos inesperados favoráveis e desfavoráveis (KLIKSBERG, 1999). Entretanto, Kliksberg (1999) também denuncia as fortes resistências e interesses que a participação tem de enfrentar:
No “discurso” a participação triunfou na América Latina. Se escutam permanentemente a partir dos mais altos níveis governamentais, e de grupos de grande peso na sociedade, referências a necessidade de incrementar a participação, seu anseio por uma sociedade democrática, a sua tradição histórica em cada sociedade. A diferença de décadas recentes, quase não se escutam vozes que explicitamente se oponham a participação. No entanto, a realidade não passa apenas pelo discurso. De fato, os avanços em participação comunitária mostram uma grande brecha para com as declarações a seu respeito. As investigações que tem se penetrado na prática da participação tem apontado, com freqüência, chamados a participar que não se coadunam com uma abertura efetiva de portas, experiências iniciadas com amplas promessas mas que se limitam ao “título” inicial, frustrações pronunciadas de numerosas comunidades. (KLIKSBERG, 1999, p.20).3
           
 A participação pressupõe profundas mudanças sociais e, pelo mesmo, é de se pressupor que gere resistências, pois ao tocar interesses já estabelecidos estes hão de desenvolver obstáculos (KLIKSBERG, 1999). Algumas das resistências apontadas por Kliksberg (1999) se tratam de:

  1. Questionamentos conquanto aos custos e tempo necessário para os resultados esperados, sendo que os processos que almejam benefícios a curtos prazos tem se mostrado desvantajosos;
  2. Análises que se faz do desenho e execução de programas sociais a partir de categorias puramente econômicas, onde a importância se apoia nas relações de custo/benefício medido nos termos econômicos;
  3. Dificuldade de enfrentamento da visão formalista (aqui considerada como tecnocrática), onde ordem, hierarquia, mando, processos formalmente regulados, percepção verticalista e autoritária da organização são tomadas como chaves em eficiência; mas que tendem a tornar-se um fim em si;
  4. Subestimação da capacidade das comunidades pobres;
  5. Da negação sobre informações e controle da comunidade sobre os procedimentos e detalhes da implementação, que a incentivariam a orientar o trabalho;
  6. Da tendência a manipular as comunidades segundo o discurso sobre participação, ao qual as comunidades tendem a dar seu apoio temporário, mas cuja realidade não engaja participação efetiva.

Embora o estímulo à participação cidadã seja produtivo no sistema botton up, se comparado ao formato top down, ele ainda requer muitos aperfeiçoamentos para atingir os fins que se espera quando se trata de um processo democrático-participativo, de acesso e usufruto estendido da cidadania.
Mas a participação, se efetiva, favoreceria o controle social. E passando à condição de agente da mudança, os sujeitos e a comunidade poderiam vir a se tornar protagonistas da gestão social. Afinal, como refletem Hermany e Costa (2008), a partir do local surgiriam possibilidades para o diálogo entre a sociedade e os gestores públicos para a participação dos excluídos, os que são incapazes de fazer frente aos complexos espaços nacionais e transnacionais. É neste sentido que vem-se discutindo, a partir do processo de descentralização, sobre a maior “autonomia” do espaço local para a superação das adversidades nele encontradas, e que são diferenciadas conforme a extensão do território brasileiro – mesmo que não completamente.
Muls (2008) acredita que a teoria do desenvolvimento econômico local surge da falência do modelo de desenvolvimento que tinha o Estado como principal agente, e cujas respostas estavam na sua articulação direta com o mercado. E com isto, no século XXI, viria ganhando força a perspectiva de que é necessária a gestão interativa para o desenvolvimento do território a partir de suas localidades; a interação e o compartilhamento de responsabilidades entre governo, sociedade e, mesmo, o mercado.
Ainda segundo Muls (2008), os modelos de ação que se amparam nos espaços infranacionais têm aspectos que questionam as teorias tradicionais de desenvolvimento; de modo que a capacidade de adaptação e outras (novas) formas de desenvolvimento aparecem como fatores explicativos alternativos ao que se concebia nas teorias anteriores. No esteio da proposta surgiriam novos olhares para compreender e alternativas para gerir os territórios historicamente considerados como pobres, desqualificados conquanto aos seus modos de produção e de vida.
A valorização das especificidades, diversidades e capacidades sociais e ambientais de um país nem um pouco pasteurizado, como o é o Brasil, desponta como um momento histórico decisivo para romper com o ciclo de desigualdades há tanto reproduzido. Suas consequências podem angariar feições positivas e duradouras para uma totalidade que durante muito tempo colheu as migalhas da cidadania e do desenvolvimento que se lhes estendia. Mas, em princípio, cabe analisar de forma cuidadosa as experiências de programas em políticas públicas que carregam esta bandeira democrático-participativa como pressuposto do desenvolvimento socioeconômico dos espaços diferenciados.
A partir disto se poderá compreender em que medida as transformações na tez institucional vem, de fato, contribuindo para modificar a realidade destes territórios: se elas realmente oferecem uma mudança que assegura uma cidadania expandida e melhoria na qualidade de vida para populações que abrange, rompendo com o sistema tecnocrático exclusivista que vigorou e reproduziu a desigualdade no nosso país. Amparando-se na análise de uma instituição renomada de um território historicamente marginalizado, esta é a proposta dos próximos capítulos desta pesquisa.

1 Segundo Fagnani (1997), entre 1985 a 1988 o Brasil viveu uma experiência reformista, com a coalizão de diferentes forças políticas que conduziram à transição democrática. Com a abertura política controlada, a vitória dos setores oposicionistas nas eleições para os governos municipais e estaduais e o reconhecimento da “dívida social” do Estado ocorrera iniciativas significativas: a) principiou-se uma estratégia de reformas que visavam objetivos de curto prazo quanto a fome, desemprego e pobreza; b) reformas que abordavam questões de ordem estrutural visando um crescimento econômico sustentado com distribuição da renda e a inclusão na agenda governamental da reforma agrária, do seguro-desemprego; c) revisão da legislação trabalhista e sindical; d) revisão da estratégia autoritária das políticas sociais em prol descentralização, ampliação dos canais participativos e de controle social, entre outros aspectos (FAGNANI, 1997). Mas entre 1987-1992 a mesma transição democrática foi selada por um pacto conservador interelites que se verifica no governo Sarney (FAGNANI, 1997). O caso mais paradigmático teria sido a supressão da reforma agrária e reforma urbana (FAGNANI, 1997) amplamente votados para serem realizados, e que na própria Constituição de 1988 ficou marginalizada. Outra rica abordagem sobre o fracasso das propostas reformistas em voga durante a década de 1980 no seu artigo “Anatomia do fracasso: intermediação de interesses e a reforma das políticas sociais na nova república” (MELO,1993).

2 Do original “Los mejores resultados de los modelos participativos en el campo de los programas sociales, no son mágicos. Derivan de bases muy concretas. En general, los programas en esta materia, independientemente de sus metas específicas como bajar deserción em primaria, mejorar inmunizaciones, suministrar agua, prestar crédito a famílias pobres, etc., tienen lo que se podría denominar “suprametas” que les son comunes y que enmarcan a las metas específicas. Se desea que los programas sean eficientes, es decir, hagan un uso optimizante de recursos usualmente escasos, que contribuyan a mejorar la equidad, punto crucial em América Latina, […]y que generen sostenibilidad, favorezcan la conformación de capacidades que fortalezcan la posibilidad de que la comunidad pueda seguir adelante com ellos em el tiempo.”

3 Do original “En el ‘discurso’ la participación ha triunfado en América Latina. Se escuchan permanentemente desde los más altos niveles gubernamentales, y de grupos de gran peso en la sociedad, referencias a la necesidad de incrementar la participación, a su deseabilidad para uma sociedad democrática, a su tradición histórica em cada sociedad. A diferencia de décadas cercanas, casi no se escuchan voces que explícitamente se opongan a la participación. Sin embargo, la realidad no pasa solamente por el discurso. En los hechos, los avances en participación comunitaria muestran uma gran brecha con el declaracionismo al respecto. Las investigaciones que se han internado en la práctica de la participación han encontrado con frecuencia, llamados a participar que no se plasman en apertura efectiva de puertas, experiencias iniciadas com amplias promesas pero que se queda en el “título” inicial, frustraciones pronunciadas de numerosas comunidades”.

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