CAMINHOS DO JEQUITINHONHA: ANÁLISE DO PROJETO DE COMBATE Á POBREZA RURAL

Marcela de Oliveira Pessôa

1.2 – A trama nacional

Ao longo do século XX, o Brasil conheceu um novo tipo de articulação política. As políticas que se efetivaram até então, durante os períodos coloniais e na República Velha, foram elaboradas no intento de dirigir os negócios do país conforme os setores dominantes; em primeiro lugar Portugal e seus remanescentes brasileiros e, posteriormente, os coronéis da República do Café com Leite. Segundo o trabalho de Medeiros (2001), até 1930 os conflitos entre capital e trabalho eram regulados por uma legislação esparsa e tratados pelo aparato policial; enquanto que questões de saúde pública eram tratadas pelas autoridades locais, exceto em casos como epidemias em centros urbanos; a educação competia a uma rede escolar reduzida de caráter elitista e acadêmico; e a previdência era predominantemente privada, organizada por empresas e categorias habitacionais.
Com a “Revolução de 1930” e a tomada do poder por Getúlio Vargas as políticas brasileiras começaram a adquirir contornos do bem estar social (DRAIBE, 1991). Com Vargas se delinearam mecanismos de garantia de substituição de renda, a construção de uma rede integrada de ensino básico e secundário, política de atenção à saúde e habitacional (DRAIBE, 1991). Mas as políticas sociais implementadas foram de profundo caráter conservador, amparadas numa visão positivista de harmonia social “em que os antagonismos entre classes eram encarados como nocivos ao bem comum representado pelo Estado” (MEDEIROS, 2001, p.9 ). No que tange às relações de trabalho, segundo Medeiros (2001, p.11):
Sob o governo Vargas, a década de 1930 é caracterizada pela estratégia deliberada de aumentar o papel do Estado na regulação da economia e da política nacionais como estratégia de desenvolvimento. Do ponto de vista das relações de trabalho, o regime populista do período perseguiu três objetivos básicos: (i) evitar que os movimentos de trabalhadores se tornassem base de apoio para grupos de oposição que reivindicavam mudanças mais profundas na organização da sociedade; (ii) despolitizar as relações de trabalho, impedindo que as organizações de trabalhadores se legitimassem como instrumento de reivindicação; e (iii) fazer dos trabalhadores um ponto de apoio, ainda que passivo, do regime. Tais objetivos foram alcançados por meio de uma combinação de repressão à oposição e concessão aos movimentos de trabalhadores que apoiavam o regime. Em vez de mobilizar, o regime populista buscou cooptar seletivamente segmentos de trabalhadores em um processo de “inclusão controlada”.

De acordo com Marini (2000), neste período, a força do movimento de massas foi estimulada pela burguesia que nela se apoiava para quebrar a resistência das antigas classes oligárquicas, e esta aliança se fez possível porque o amplo programa de expansão econômica da burguesia abria perspectivas de emprego e elevação do nível de vida para o operariado e a classe média. Mas tanto trabalhadores rurais quanto trabalhadores urbanos não organizados foram ignorados durante este processo (MEDEIROS, 2001). Ou melhor, os trabalhadores rurais tiveram um papel preciso:
No momento em que os trabalhadores urbanos, em especial os industriais, são plenamente trazidos para o cenário da organização econômica […] e política […], os camponeses são vistos como agentes políticos passivos, que deveriam sofrer a ação benfeitora do Estado sem ocuparem a cena política como protagonistas (LINHARES e SILVA, 1998, p.111)
Os camponeses não poderiam ser objeto das garantias e exigência da CLT1 , sob o risco de inviabilizar o próprio projeto em curso; em suma, o apoio à classe trabalhadora urbana e sua proteção previam a intensificação da produção rural, aumentando as possibilidades de exploração (LINHARES e SILVA, 1998, p.112).

Segundo Linhares e Silva (1998), quando da deposição de Vargas em 1945, o governo trabalhava para implementar um sistema nacional de seguridade social para o campo (Decreto nº 18.809, de 1945), e ao mesmo tempo avançava em direção à proposta de distribuição de terras (Decreto nº 7.916, de 1945). Ao final do Estado Novo multiplicavam-se “os projetos para o mundo agrário, deixando claro que o desenvolvimento industrial-urbano por si só não seria capaz de superar os entraves existentes” (LINHARES e SILVA, 1998, p.130); mas alguns “dos projetos agrários do Estado Novo […] faliram sozinhos, levando consigo milhares de homens comuns que acreditavam em uma vida melhor” (LINHARES e SILVA, 1998, p.130 ).
Entre 1945 e 1964 houve uma expansão do sistema de proteção social, mas abrangendo ainda o trabalhador urbano formalmente vinculado ao mercado de trabalho e as classes médias, havendo aí um sistema de direitos fragmentado e associado a sistemas de forças, barganhas e privilégios com baixo grau de redistributividade (DRAIBE, 1991). No campo, segundo Marini (2000), qualquer mudança tecnológica em vez de melhorar a renda do trabalhador acarretava em fonte de desemprego e, desta forma, a questão agrária influenciava, notoriamente, o movimento de massas na cidade; uma vez que as pessoas do campo supriam os excedentes do mercado de trabalho urbano. Com isto ocorre a estagnação do nível de salários, enquanto na zona urbana o aumento dos preços dos produtos agrícolas forçava a alta do custo de vida afetando também a classe média (MARINI, 2000). De acordo com  Marini (2000, p.27), a elevação do custo de vida coincide com a aceleração do grau de organização sindical da classe operária. Enquanto isto, em 1958, surgiam as Ligas Camponesas no Nordeste advogando por direitos para os campôneos e cujo ‘ruído’ a seu respeito contribuiu para “conscientizar a massa secularmente adormecida” trazendo a seu favor a Igreja católica e o Partido Comunista (FURTADO, 1989, p.134). Para Furtado (1989, p.135):
[…] sem lugar a dúvida, foi essa agitação política na zona açucareira do Nordeste que levou o Congresso Nacional, em março de 1963, a aprovar o Estatuto da Terra, o qual especificava os direitos e benefícios de que passavam a ser titulares os trabalhadores rurais e formalizava os direitos e responsabilidades dos sindicatos do campo.

Diante das transformações acontecimentos no país e a movimentação das forças populares, fica claro o quanto as forças conservadoras se sentiram acossadas (FURTADO, 1989). Com o programa governamental formulado por Furtado para a gestão de Goulart – que exigia reforma agrária, reforma fiscal, reforma administrativa, reforma universitária, reforma eleitoral, disciplinização do capital estrangeiro e reforma bancária2 – e os interesses diretamente afrontados, desencadeou-se a instauração da ditadura militar em 1964. Aquelas eram, para Furtado, as medidas necessárias para a propalação de um desenvolvimento nacional equânime. Um desenvolvimento econômico que angariaria consigo maior qualidade de vida para a população brasileira, mas cujo desenho crivado não era conveniente para poderosos grupos nacionais.
Segundo Medeiros (2001), durante os governos militares houve a consolidação do sistema de políticas sociais acompanhada por profundas alterações na estrutura institucional e financeira. Neste período se implementaram políticas de massa de cobertura relativamente amplas com a organização de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados (MEDEIROS, 2001) e cujo movimento de fundo foi também o processo de industrialização e urbanização.
A ditadura trouxe consigo a centralização do processo decisório com ausência do controle social, debilitamento dos mecanismos democráticos de representação e cerceamento dos direitos civis e políticos (FAGNANI, 1997). Seu modelo de políticas sociaisera de caráter compensatório, a partir do qual se constituíram políticas assistencialistas para minorar os efeitos das desigualdades que se aprofundavam, e, por ter como fim o crescimento econômico, era de caráter exclusivamente produtivista. Justamente por isto que houve a expansão do acesso aos cursos técnicos durante o período militar, pois as políticas de educação aí implementadas buscavam atender à demanda por trabalhadores qualificados e semi-qualificados (MEDEIROS, 2001). Assim, ocorreu uma relativa expansão da cobertura e oferta de bens e serviços, mas sua base foi eminentemente quantitativa, a qualidade desta oferta ficara em segundo plano, conforme denotará Fagnani (1997).
Durante todo o período até agora levantado, fica explícita a penetração dos interesses privados na orientação das políticas nacionais. No que tange ao aspecto social destas políticas, há algo peculiar, pois os ganhos obtidos pela sociedade eram distendidos até onde convinha a alimentação daqueles interesses, sendo, portanto, de horizonte delimitado. De acordo com Fagnani (1997), a privatização do espaço público por interesses empresariais e clientelistas se aprofundou durante o período ditatorial, pois fora facilitado pela fragilização dos mecanismos democráticos. Acabou também desconfigurando o caráter redistributivo das políticas sociais, posto que parcela do gasto social foi capturado para ser reorientado à atenção dos interesses particulares (FAGNANI, 1997). Esta redução do seu caráter redistributivo se deve, na visão de Fagnani (1997) ao fato de que: a) na previdência os valores dos benefícios eram baixos e limitados pela condição de que só poderia acessar o benefício aquele que era seu contribuinte; b) os trabalhadores rurais tinham uma cobertura limitada em relação ao trabalhador urbano; c) no sistema de saúde a concentração de serviços estava nas regiões tidas como desenvolvidas, e houve um aumento relativo de óbitos relacionados ao que se chama de “doenças da miséria”; d) no setor habitacional, menos de 5% das aplicações do Sistema de Financiamento Habitacional foram para famílias com renda inferior a três salários mínimos e e) como já foi apontado, a expansão da educação foi quantitativa e desqualificada.
Como se constituído por contrariedades, embora o período de 1968 a 1973 tenha sido de consolidação de um padrão regressivo de financiamento do gasto social e de intensificação dos interesses particulares, também foi nesta fase que se incorporam à previdência categorias profissionais excluídas como os trabalhadores rurais, através do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PRORURAL) e, posteriormente, os trabalhadores autônomos (FAGNANI,1997). Mas, de acordo com Fagnani (1997),tal relação só foi empreendida porque se buscava alguma legitimação política para o durante o duro regime que se vivia. Como coloca Carvalho (1995), durante o regime os próprios sindicatos rurais foram utilizados como organismos assistencialistas que vinham a contribuir para esta legitimação, embora ainda ocorressem violentos conflitos relacionados a terra. Assim se justifica que no período ditatorial, demarcado pela suspensão dos direitos civis e políticos, os direitos sociais tenham se expandido em aspecto quantitativo.  Foi no período que se estendeu de 1974 a 1980 que teria se processado uma mudança no discurso oficial enfatizando a necessidade de ampliar os impactos redistributivos dos programas, graças aos indícios que se delineavam de uma crise do “Milagre Econômico” que se vivera até então (FAGNANI, 1997).
De acordo com Fagnani (1997), a revisão da estratégia conservadora contemplou aí a criação de instância interministerial de coordenação e controle setorial, com a incorporação do transporte público e da alimentação na agenda governamental e com medidas para a racionalização e revisão das políticas setoriais institucionalizadas. O fim do regime autoritário ocorreu concomitante à crise financeira internacional, e não sem sofrer com seus efeitos. Para Fagnani (1997), com a aceleração da abertura do sistema político, em razão da organização da sociedade civil, se ampliaram os canais de vocalização e pressão das camadas subalternas por medidas redistributivas; inclusive, mediante o agravamento do quadro econômico que ampliou as carências sociais e restringiu a capacidade do governo em respondê-las.
Sendo assim, pode-se crer que, na história da conformação das políticas sociais no Brasil, o Estado foi árbitro principalmente das relações de pressão entre os interesses oligárquicos e urbano-industriais, de modo que a constituição e expansão das políticas sociais foram sendo colocadas como políticas de massa, e justificadas de forma populista como de interesse nacional (DRAIBE, 1991).
O Brasil, segundo Draibe (1991), construiu seu Estado Nacional em concomitância com sua área social, de modo que as políticas sociais foram elemento contundente para sua formação. Enquanto que n’outros países a cidadania foi auferida por meio de políticas estatais que respondiam a demandas por mais igualdade, no caso brasileiro a industrialização, aprofundando a heterogeneidade do sistema econômico, aumentou a fragmentação da estrutura social, dificultando a formação de identidades coletivas e acentuando a divergência de interesses no interior dos segmentos sociais (DRAIBE, 1991). As políticas sociais brasileiras acabaram sendo concebidas de forma aristocrática, reproduzindo uma sociedade hierarquizada e desigual (DRAIBE, 1991; FAGNANI, 1997). Para Teixeira (2002), o Estado de Bem Estar Social no formato brasileiro acabou por contribuir para a redução do civismo; pois permitiu que a cidadania fosse pauta de consumo, fazendo com que o cidadão ativo praticamente se transformasse em consumidor passivo (TEIXEIRA, 2002), uma vez que as conquistas obtidas no seio social eram arbitradas pelos interesses dominantes sob a tutela do Estado.
Ao se considerar cidadania como as atribuições de direitos civis, políticos e sociais perante o Estado3 , com o reconhecimento da responsabilidade deste em governar para aquele; se pode apreender da discussão até aqui colocada que a cidadania no Brasil foi construída dentro de um projeto de pertença ao processo produtivo, a que Santos (1979) vai denominar “cidadania regulada”. Isto é, os ditames da cidadania surgem, principalmente, não por via de uma demanda política da população, mas graças ao sistema de estratificação ocupacional organizada pelo governo, que teria “concedido” os direitos trabalhistas a determinadas categorias; a partir das quais estes direitos foram expandidos ao corpo da sociedade (SANTOS, 1979). Logo são cidadãos os membros da comunidade que se encontram entre as ocupações reconhecidas e definidas em lei (SANTOS, 1979).
A implicação imediata deste ponto é clara: seriam pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, que fazem parte do processo produtivo e, não obstante, desempenham ocupações difusas, para efeito legal; assim como seriam pré-cidadãos os trabalhadores urbanos em igual condição, isto é, cujas ocupações não tenham sido reguladas por lei. (SANTOS, 1979, p.75).

Assim, a cidadania no Brasil, na perspectiva de Santos (1979), esteve mais relacionada ao reconhecimento de uma categoria profissional dentro dos artifícios do Estado e mediante a ampliação do escopo de direitos associados a estas profissões, que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade.  E ainda, se “se falou em cidadania regulada, no período pré-64, poder-se-ia, agora [na ditadura], considerar a perspectiva vigente como a de patamares de cidadania aquém dos quais o debate sobre justiça seria ocioso” (SANTOS, 1979, p.104).
Pode-se, de forma resumida, qualificar que as políticas sociais impetradas no Brasil surgiram em consonância à disseminação do welfare state, e que acabaram contribuindo na conformação do nosso Estado Nacional. Entremeios, as políticas sociais, que teriam entre seus princípios atender os desamparados mediante oferta de justiça, equidade e igualdade necessários à suprir os efeitos perversos produzidos pelo processo de modernização, no caso brasileiro serviram para administrar os conflitos aí surgidos. Mas, em conformidade ao desenvolvimento nacional projetado pelos interesses de alguns setores dominantes da sociedade. Interesses que limitaram o acesso aos benefícios sociais por intermédio do sistema organizacional trabalhista que fora edificado, excluíram amplos setores sociais de sumária importância, reproduziram e aprofundaram a estrutura da desigualdade forjada no país. Embora tenha sido nos anos ditatoriais que parcela significativa da população foi incorporada no processo, não deixou de ser medida arbitrada pelo caráter autoritário-produtivista-privatista do período. E no galgar destes acontecimentos se configurou a cidadania brasileira, cuja ação fora fragmentada e regulada pelos interesses privados que tentaram conduzir a roda da história.


1 Consolidação das Leis do Trabalho, instituído por Vargas em 1943 através do Decreto-lei nº5452.

2 De forma sumária, alguns dos pontos notórios deste programa, segundo a obra do autor (FURTADO, 1989) são os seguintes: a reforma agrária dava amplas garantias para o trabalhador agrícola além de assegurar preços mínimos reais para os produtos alimentares; a reforma fiscal asseguraria uma distribuição mais equitativa dos recursos auferidos pelo Estado; a reforma administrativa delineava uma maior eficiência das atividades de planejamento e implementação de projetos voltados para o desenvolvimento; a reforma universitária promoveria uma democratização do ensino e qualificação profissional; a reforma eleitoral assegurava o direito de voto aos analfabetos e controlaria o dispendio de recurso durante as eleições; o estatuto de disciplina ao capital estrangeiro estabeleceria uma margem de lucro e de setores de intervenção deste capital, e a reforma bancária disciplinaria as condições de oferta de recursos e evitaria a concentração do poder econômico em benefício de grupos reduzidos.

3 E aqui, concorda-se com Ruas (s.d), para quem a cidadania se trata da efetiva possibilidade do indivíduo tomar parte das decisões coletivas que afetam a sua vida e o seu destino.

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