CAMINHOS DO JEQUITINHONHA: ANÁLISE DO PROJETO DE COMBATE Á POBREZA RURAL

Marcela de Oliveira Pessôa

3.4 – Dos aspectos comuns

Em alguns aspectos as comunidades tendem a passar por processos semelhantes. Usualmente as comunidades tomam conhecimento da existência do IDENE e do PCPR por três formas: intermédio da participação dos seus representantes no CMDRS, por contatos com agentes institucionais que conheçam, sejam da própria instituição ou da EMATER e prefeitura, ou por conhecidos da cidade que tenham tido contato com os membros da instituição. A ideia de submeter um subprojeto ao PCPR também surge dentro do âmbito do CMDRS, ao tomar conhecimento sobre a atuação do programa em outras comunidades e a disponibilidade de verba.
No que concerne à seleção de atividades para serem empreendidas, estas derivam de dois aspectos: o primeiro parte do interesse da própria comunidade dentro das alternativas colocadas pelo IDENE como empreendimentos possíveis (lista do Anexo I) e, segundo, depende da análise técnica da instituição sobre esta possibilidade. Tal análise depende, por exemplo, do potencial produtivo da matéria prima laboral na comunidade em relação à atividade de interesse.

Nós optou pela farinheira... inclusive nós teve várias ideia! Nós teve a ideia de comprar um trator... outra ideia […] mas nós decidiu pela farinheira porque era o que a comunidade mais produzia. Porque o jerico1 , nós decidimos não pegar o jerico porque dava muita despesa e a associação não tinha como manter um jerico. E outra coisa, a região nossa aqui não é toda pra jerico... porque a roça aqui tem umas pirambeira2 então não dava, então nós optamos mais pela farinheira por motivo que sempre é uma das produção. (E.J)

[…] Granja aqui na comunidade não dá certo, a gente já tentou […] é um tipo de ave que é muito frágil, aí morreu! […] O clima aqui pra és é quente, né, é muito quente... […] ela não é de criar que nem nós cria aí pro mato, tem que ter um certo cuidado,né! […] E a rapadura aqui também a região é muito seca pra cana […] só se tivesse uma irrigação, né! Mas aí não dá, é muito seco! É como eu já falei aí atrás, né: o desmatamento acabou com a região! Que a única coisa aqui que sai aqui é mandioca, né! (E.G)
Foi porque a mandioca foi... é a coisa que a gente achou mais... que mais tem como produzir aqui na região, é a mandioca, porque geralmente a terra, tem mais terra apropriada pra mandioca e é uma coisa que aguenta mais o sol, cê tá entendendo? […] E rapadura aqui é poucos... poucas pessoa a não ser que podia investir e plantar, mas o bom mesmo, na época que começamos quase ninguém tinha  […] canavial, e mandioca algumas pessoa fazia mandiocal maiores, entendeu! Então que resolvemos. (E.F)
A única coisa que a gente via que ia dar mais renda era a farinheira, entendeu! Tinha muitos projeto, mas a gente... até que lá na votação dos associado, todo mundo optou pela farinheira […] Porque era um projeto que podia dar mais renda, né! (E.H)
Entretanto, é necessário pontuar que nem sempre o interesse da comunidade e a avaliação técnica do IDENE asseguram uma boa produtividade em matéria prima, conforme foi visto no Alfredo Graça:

Aí é que... quando você pega uma coisa assim d’uma vez, a gente também não pensamos muito no escolher. Poderia ter escolhido uma fábrica de farinha. Tinha fábrica de farinha, tinha fábrica de rapadura, tinha ... outras que podia ser construída. Mas o quê que aconteceu, preferimos a fábrica de rapadura pelo volume de cana que a gente tem. Mas aí o que acontece que a cana, tem muita cana, mas pouca ela dá rapadura boa. Ela, 70% dela não dá rapadura boa! A rapadura dá muito sal! […] principalmente na margem do rio. Dá rapadura que cê não consegue comer, tão salobra 3 é! Inclusive fizeram uma ano passado aqui... ninguém comeu ela! […] até o caldo da cana tem sal! (E.D)
Às vez tem dia que a rapadura não presta... é um ponto negativo pra gente! Que a cana... a gente não conhece as veias da terra! Tem no meio da cana, sozinha, cê corta: tem veia que não dá rapadura. Fica aquela cola. E já no mesmo lugar, abaixo um pouquinho, tem qualidade de primeira! […] O ano passado num lugar sozinho […] [teve] três tipo de rapadura! Tem uma que só teve sal! Não prestou! Só prestou pra […] dar os bicho, que ninguém comia aquele sal... a outra não levantou do tacho, ficou aquele puxa! E já no mesmo canavial... o outro lá pra baixo... deu qualidade! Agora eu sei! […] Todo mundo, uma tira reta que cortou, não presta! Dá puxenta, dá salgada! […] Dá pra fazer ração. A puxenta, vou te contar pr’ocê, aquele melado tem que dissolver numa água pra dar os bicho pra beber, que dá trabalho pra consumir aquilo! Jesus! É a pior coisa a rapadura puxenta […] fica aquele trem mole lá, que não sai nem da vasilha! Dá trabalho! É que na hora que tá pronto a gente vira [o tacho] de uma vez, que a gente só sabe o ponto depois que põe na masseira. Depois que a gente bate que a gente vê que dá o ponto! Só depois que cê bateu ela na masseira que cê sabe! Enquanto não, tá batendo, ninguém sabe! (E.E)

Existem, portanto, atributos físicos da natureza do espaço que delimitam a produção e faz os trabalhadores desenvolver alternativas para buscar beneficiar-se do empreendimento em múltiplas facetas. Outro aspecto comum à solicitação do empreendimento é que, segundo os entrevistados, o IDENE tende a ser rigoroso em relação à documentação das associações para que as mesmas possam concorrer ao projeto, de modo que, a partir disto, muitas associações comunitárias tomam a iniciativa de serem devidamente oficializadas e deter a documentação necessária em dia.
O tempo necessário para a formulação do subprojeto na comunidade depende de dois fatores, do consenso da comunidade em torno do subprojeto que lhe pode ser de interesse e da burocracia correlacionada à criação formal do subprojeto. Quanto ao consenso, segundo as entrevistas, não é muito demorado uma vez que as comunidades conhecem a própria realidade e a sua disponibilidade de recursos, mas quanto ao ponto burocrático isto pode demorar um pouco mais, visto que as associações devem fazer o levantamento dos materiais e mão de obra em, pelo menos, 3 diferentes empreiteiras, para assegurar a concorrência e preços mais baixos para a realização da obra. E, além disto, os técnicos devem desenvolver o projeto segundo as medidas formais4 para que depois se possa expedir para o IDENE.
Deste modo, a elaboração do subprojeto tende a demorar de dois a seis meses, segundo os entrevistados, mesmo porque podem haver algumas falhas formais cuja correção é orientada pelo IDENE microrregional. Depois de enviado a aprovação do projeto não é demorada e o recurso financeiro para custeio da obra chega logo. Com o dinheiro na conta, a associação entra em contato com a empreiteira responsável pela obra para iniciar as atividades. Cerca de 10% do valor da obra deve provir da comunidade, que oferece, para tanto, a própria mão de obra nos dias de serviço da construção. Assim, enquanto a empreiteira coloca o pedreiro, o marceneiro e afins na obra, as pessoas da comunidade atuam como seus ajudantes. Nisto a comunidade se organiza entre turnos de jornada de trabalho, de modo a ninguém ficar sobrecarregado demais com a obra, até porquê, normalmente, todos detêm outros afazeres que lhes servem de meio de vida.
Um aspecto que deve ser relevado é que n’alguns casos a contrapartida da comunidade também engloba a matéria prima para a obra: areia, água, pedras e cascalhos, madeira etc.; material que sirva à construção e que seja de apropriação comum. Entretanto, nem todas as comunidades tem o material disponível, de modo que passam a contar com a parceria da prefeitura para ampará-las5 .Concluídas as obras, a organização da comunidade sobre jornada de produção varia de comunidade para comunidade e, principalmente, entre os membros da comunidade, pois nem todos se interessam por produzir, alguns detêm mais matéria prima que outros e assim segue.

[…] [em atividade na produção] de rapadura, acho que são quinze família. Essas quinze são as primeiras que faz, né! Depois, na hora que essas quinze terminar, aquele que não ajudou pode fazer também. Depois que aquelas faz primeiro. Se a gente não fazer isso eles não aprende. Aí depois... a gente faz primeiro... aí se sobrar tempo ês faz as dês! […] Porque, assim são 15 família, cada uma tira uma semana. Ali vai só passando o tempo!... aí começa sempre agora, né!... junho, julho... aí vai até outubro fazendo. Que tem gente que tem mais cana, tem gente que tem mais pouca, mais pouca termina rápido. Quem tem mais... terminar demora mais. E é sempre esperando aquele que tem mais terminar. […] antes de começar a fazer a gente reúne pra poder discutir quem quer fazer, quem não quer... ou quem quer entrar na meia. Ano passado mesmo eu não fiz, eu dei […] a minha na meia. Aí ele me passou parte. Eu fiz um pouco só... e o restante eu dei na meia. (E.E)

Deste modo não há correlação numérica entre pessoas que atuam diretamente no projeto (representantes familiares associados) e famílias beneficiadas, posto que as famílias associadas podem não querer utilizar da fabriqueta, e associados e não-associados (quando houver) podem ser beneficiados mediante sua participação na meia.
Sobre a manutenção dos equipamentos, como já foi mencionado, algumas comunidades optam por ter fiscais do maquinário, para assegurar o bom andamento dos mesmos, enquanto outras optam por todos se responsabilizarem pelo maquinário.
A renda auferida com a produção usualmente é utilizada em abastecer o consumo familiar e seu valor depende do volume de produtos produzidos por cada família, ou obtidos na meia, tornando-se dado inconstante.
Importa dizer que as associações também cobram uma pequena quantia (de R$1 a R$5 mensais por família, ou o valor de dois pratos de farinha etc.) para amparar a associação financeiramente em relação às contas de água e luz e outros fatores, incluindo aí serviços referentes a utilização da fabriqueta. Desta forma, cada associação deve prestar contas, normalmente anualmente, sobre tudo o que entrou para a associação e em tudo o que foi gasto, assegurando transparência administrativa. Pode haver problemas administrativos, mas todas tendem a ser resolvidas no âmbito da comunidade e de forma pacífica.
Problemas ou situações importantes sobre a associação e as fabriquetas usualmente são comunicados em reuniões que são divulgadas no “boca a boca”, por bilhetes junto às crianças na escola, ou nos cultos religiosos. A assiduidade das reuniões depende dos incidentes ocorridos na comunidade, não tendo datas pré-definidas onde poderia-se abordar circunstâncias de natureza mais perene.
Pelas circunstâncias iniciais os efeitos do projeto para as comunidades ainda são muito superficiais n’algumas comunidades e dizem respeito a questões técnicas principalmente. Nos projetos mais antigos é visível que:

Melhorou, melhorou assim, facilitou muito essa questão da gente... hoje as pessoa, vamos supor, a minha esposa vai lá, ela faz farinha sozinha. Ela chega, tem uma facilidade pra ralar a mandioca, né […] ela tem facilidade, chega lá, prensar... lá na outra farinheira lá era um pau enorme, tinha que ser um homem pra mover, hoje tem muita facilidade. É aquilo que o próprio maquinário facilita pra gente, né! Então tem esses ponto positivos. O que tem, às vez, é que a gente não tem corrido atrás pra melhorar o projeto, mas o projeto foi bom. (E.L)
[Melhorou porque] […] antes ninguém tinha ela aqui e rapadura é um alimento pr’as criança! Que tem rapadura, tem o melado, tem a garapa quando a gente tá mexendo! Tem tudo! Então eu acho que mudou muito. […] ixi, o bagaço pra mim eu acho que é melhor que as outras coisa tudo. Porque o bagaço eu carrego pra horta, pr’o tabuleiro, eu vou plantar feijão, vou plantar abobreira... é pra lá que eu levo o bagaço... num deixa secar. A gente molha, deixa a umidade segura. Cê pode arribar debaixo do bagaço pr’ocê ver, fica molhadinho! Cê molha de manhã, cê chega de tarde lá e arriba pr’ocê ver! Molhadinho debaixo... mantém a umidade. (E.E)
O que tem de positivo é que você, antes, tinha seu produto e não sabia o que fazer com ele, mas hoje cê sabe! Eu tinha a minha cana e não sabia o que fazer com ela... eu tinha que vender ela pra fazer ração ou então ficava um ano, dois ano... cana é um negócio, passou dois ano ela só serve pra fazer ração. E hoje não. (E.D)

Assim, naqueles subprojetos cuja atividade já são mais antigas as mudanças provêm da facilidade que o maquinário oferece para o sistema produtivo, não demandando uma mão de obra grande, tão pouco exaurindo as forças do produtor, o que permite tempo e mão de obra para se dedicar a outras atividades;  e ainda possibilitando que, em alguns casos, os rejeitos da produção tenham outras funcionalidades. Por quanto a isto os subprojetos asseguram outros meios de se utilizar do produto in natura para a venda, possibilitando mais renda para as famílias. Estes aspectos, entre suas variâncias, são tomados como os principais efeitos dos subprojetos nas comunidades bem como a feição positiva que carregam consigo. No entanto, os subprojetos ainda estão permeados por aspectos negativos de outra natureza: relações humanas.

Eu vejo assim um ponto negativo é isso... eu acho que a própria associação ela deveria […] ter colocado essa posição de melhorar algo. […] Essa questão de discutir a descascadeira, né, de mandioca. Que os associado, que é os que utiliza a farinheira, não tem é... falado isso. Às vez em reunião não tem falado isso. Reclama, mas não tem falado isso pra que a associação corra atrás disto aí para melhorar. Então é um ponto negativo que tem. (E.L)
É o que eu te falei, o problema é que não tá tendo aquele entusiasmo que eu pensei que iria ter. É.. justamente por causa disto, porque as pessoa mais velho eles não tá dando conta da obrigação deles de cuidar da terra. Tem terra irrigada, tem que tá plantando, tem que tá regando à noite, tem que estar ali […] Então aí que ia entrar o jovem, as pessoa mais nova pra alavancar isto aí. Então não tá tendo aquele entusiasmo. Tem pessoa que não sabe nem a... não tem conhecimento da renda que dá se eles mexer, nem procuram saber, então, o problema é... tá sendo este aí. Porque o mais difícil hoje é, no caso vender, né, mas hoje tá tendo várias oportunidade. Tem o Compra Direta 6, tem 30% da merenda escolar que eles compra rapadura pra merenda, né, compra açúcar mascavo. Então tá aí as porta aberta, né. […] Porque é tão bom, moça quando a comunidade faz um projeto e ela sente realizada. Outro dia mesmo eu tava olhando um... uma fábrica de rapadura também na televisão no canal terra viva, pessoal, eu queria até olhar, na época, na escola pra mim se tem jeito de ês olhar na internet, dês procurar um povoadinho chamado Cacimba […] O pessoal lá montou uma fábrica de rapadura mas... mas melhor que esta nossa... mas lá o pessoal tá entusiasmado. E o pessoal que trabalha na fábrica de rapadura, ele tá cursando a faculdade, né! Ele diz que quer melhorar, e cada dia que passa o negócio só levai... já saiu de associação, já passou a ser cooperativa, então o entusiasmo eu... pra falar de entusiasmo, eu mesmo era muito entusiasmado com a associação e tinha vontade mesmo, no meu coração de ver esta associação aqui como um espelho, um exemplo pra outros lugar, mas eu fui perdendo esse entusiasmo mesmo por causa desta queda de braço, porque pra mim ter entusiasmo,  eu precisaria de pessoas entusiasmada pra me sentir realizado (E.B)

Vê-se que nas relações intracomunitárias ainda deixa-se a desejar quando se trata de buscar novas articulações e possibilidades sobre como desenvolver a produção. Parte disto se deve ao fato de que os subprojetos não foram ainda capazes de modificar as relações sociais no sentido de instigar a coletividade a se engajar na produção e na busca por soluções para as dificuldades que enfrentam. Relaciona-se a isso o fato de que tendem a ficar nas comunidades para tocar os projetos as pessoas mais velhas, pois os jovens saem para estudar nas cidades e nelas ficam, ou ainda acreditam no trabalho sazonal como alternativa de renda, o que prejudica na formação de sujeitos que se aventurem em iniciativas locais. Além disto, os produtores das próprias comunidades acabam se tornando concorrentes quando dirigem seu produto ao mercado municipal, que é o principal propósito dos artigos.
Carece relevar também que para superar estes gargalos devem ser observadas circunstâncias de outras naturezas, como a falta de acessibilidade e restrições oriundas do ambiente físico em que se situam as comunidades, conforme foi apontado ainda neste capítulo. Se as comunidades detivessem mais recursos financeiros estes fatores seriam superficiais, o escoamento da produção seria fácil e a infraestrutura modificável, porém, também não seria necessária a incidência de projetos da envergadura do PCPR; portanto, as limitações se retroalimentam. Estes aspectos serão desdobrados na próxima parte desta pesquisa.

1 Trator.

2 De terreno muito acidentado, íngreme.  Ribanceira.

3 Salgada.

4 Conforme Anexo II.

5 Por exemplo, enquanto a comunidade do Alfredo Graça tinha a disponibilidade de pedra abundante na circunvizinhança; na comunidade de Paredão não havia este recurso. Assim tiveram de contar com o auxílio da prefeitura para compra do material.

6 A modalidade permite a aquisição de alimentos para distribuição ou formação de estoques públicos, sendo de responsabilidade da Companhia Nacional de Abastecimento. Os preços são definidos pelo Grupo Gestor do Programa e para serem adquiridos os produtos devem atender a padrões de qualidade estabelecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Os produtos compõem os estoques para serem utilizados para as cestas básicas e afins (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, www.mds.gov.br, 2011).

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