Para se falar a respeito da tradição é fundamental que o pesquisador tenha conhecimentos básicos sobre folclore, elemento indispensável nas temáticas voltadas para a cultura tradicional de um povo. Segundo Renato Ortiz (1985), a cultura popular é semelhante ao folclore, pois ela também analisa as supertições, os costumes das classes subalternas, assim como as manifestações populares. Apesar de sua clientela ser voltada para as classes baixas, ela ainda se misturava á cultura de elite, onde todos participavam de uma forma ou de outra das crenças religiosas, culturais etc.
Ainda sob a luz do autor, o estudo da cultura popular é o estudo da cultura do passado, mas que sempre se adapta aos avanços tecnológicos preservando suas características tradicionais. Sendo assim, o folclore se encaixa nesse conceito, pois o mesmo não é estático e sim dinâmico, ou seja, vive em constante transformação para se adaptar a modernização, mas preservando seus elementos tradicionais. De acordo com a Carta do Folclore Brasileiro de 1951, o que constitui o folclore, são: “as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo preservadas pela tradição popular e pela imitação...”(1951: 02).
Como sabemos, o Brasil possui miscigenação de várias culturas e suas matizes principais, como aborda Darci Ribeiro (1996), são o português, o índio e o negro. Essas três culturas se fundiram e se desenvolveram criando o que Teixeira (1989), sob a luz do Ms. Aurélio Buarque de Holanda chama de sincretismo religioso. Assim, existem várias formas de manifestações religiosas, como: a católica, evangélica, afro-brasileiras e outras, mas a que será abordada neste trabalho é a católica, mais especificamente a festa de São Tiago que ocorre no município de Mazagão Velho, Estado do Amapá.
A festa de São Tiago se caracteriza como uma manifestação religiosa rica em significações simbólicas e, além disso, é extremamente tradicional, pois, segundo o artigo Espaços de Festas (1992), tradição nada mais é que “reanalisar o passado em situação do presente: compara o que mudou com o que renasce evocar funções e papéis sociais com o mundo de hoje, julgando da sua relevância nos tempos de hoje” (1992: 77). Assim:
“A realização de uma festa tradicional constitui uma oportunidade de eleição para esses fins. Procurando recriar o passado, descontextualiza-se o presente, através da natural subversão do cotidiano que é parte intrínseca da festa; da-se aos mais velhos a oportunidade de mostrar aos mais jovens como era o antes: interpretam estes, à luz de seus novos valores, as referencias daqueles” (1992: 77).
A festa de São Tiago conseguiu resistir ao avanço tecnológico, as adversidades impostas pelo mesmo, pois a festa tem 229 anos, ou seja, mais de dois séculos de vida e tradição. Como já foi dito anteriormente, a festa de São Tiago é a encenação da batalha que ocorreu entre cristãos e mouros, ainda no continente africano e que teve vitória favorável aos cristãos.
No Brasil, a festa teve início em 1777, quando os colonos portugueses fundaram, às margens do rio Mutuacá, a vila Nova Mazagão, em 1770. Desse período em diante celebra-se, até hoje, a festa em comemoração aos Santos Tiago e Jorge. Assim, atualmente, logo que se chega ao município de Mazagão Velho é possível visualizar cinco (5) bandeiras hasteadas, a primeira é de Mazagão Velho, a segunda do Estado do Amapá, a terceira do Brasil e as outras duas são de Portugal e Marrocos, estas duas em homenagem aos países que são representados na batalha no dia da festa de São Tiago.
Os moradores da comunidade de Mazagão Velho se caracterizam como uma sociedade tipicamente tradicional e o município apresenta um legado cultural riquíssimo com relação a achados arqueológicos, tanto que pesquisadores, no início do primeiro semestre do ano de 2006, encontraram vários ossos humanos enterrados nas ruínas da antiga igreja de Nossa Senhora da Assunção, padroeira da cidade. Veja o mapa das escavações arqueológicas do Estado do Amapá e do município de Mazagão Velho.
Mapa 02: As fases arqueológicas de Mazagão Velho.
Então, foi construído dentro do novo cemitério um mausoléu onde estão os restos mortais dos primeiros habitantes do município de Mazagão Velho, o mausoléu é uma réplica da primeira igreja. No local onde foram encontrados os ossos humanos existiam duas paredes erguidas, ficou comprovado pelos pesquisadores que se tratava de uma igreja antiga, talvez a primeira igreja de Mazagão Velho. Ela era feita de tijolos e pedras e em todas as suas paredes havia uma estrutura armada de madeira. Ficou comprovado que se tratava de uma igreja católica, pois junto com um dos esqueletos encontraram a cruz de Malta, o que denota que houve nobres na área, como afirma o arqueólogo Marcos Albuquerque que, segundo ele, a cruz era dada pelos portugueses a quem tinha título de Nobreza1 . Nas ilustrações abaixo é possível visualizar as ruínas da igreja e o cemitério, onde está o mausoléu com os ossos encontrados nas escavações arqueológicas.
Foto 04: Ruínas da antiga igreja de NSA da Assunção.
Foto 05: Mausoléu construído no novo cemitério.
Constatou-se que, com relação á religião, a fé que é professada no município de Mazagão Velho, é a católica com 92%, e 08% apenas seguem a religião evangélica. Sendo assim, por apresentar predominância voltada para o catolicismo, a festa mais celebrada é a de São Tiago. Além desta, temos as seguintes festas religiosas na comunidade:
- Festa de São Gonçalo;
- Festa de Nossa Senhora da Assunção;
- Festa de Nossa Senhora da Luz;
- Festa de Nossa Senhora da Conceição;
- Festa de Nossa Senhora da Piedade;
- Festa de São Tiago;
Mazagão Velho, apesar de ser um município pequeno, onde a maioria das casas apresenta arquitetura antiga, possui um quadro significativo de festas religiosas no calendário católico. Mas, a festa de São Tiago apresenta uma relevância maior se comparada a outras festas para os moradores daquele local, pois, o São Tiago, na opinião dos fiéis do município, é um Santo muito milagroso e poderoso.
É extremamente importante salientar que São Tiago, não é o mesmo Santo das Escrituras Sagradas (Bíblia Católica), e sim um “guerreiro” como é chamado por seus devotos, pois o São Tiago de Mazagão Velho foi um missionário que foi enviado até a colônia mazaganense africana para lutar ao lado dos seguidores do cristianismo.
Segundo o depoimento dos moradores, em especial, o do Sr. Antônio José Pinto, 38 anos, natural do município, responsável pelo departamento de cultura da Sub-prefeitura de Mazagão Velho, “se não fosse pela coragem e determinação de São Tiago, eles (cristãos) não teriam vencido a batalha, pois era São Tiago quem armava as estratégias de guerra para combaterem o inimigo mouro”. Para este senhor, o São Tiago foi enviado por Deus, única e exclusivamente, para lutar ao lado dos cristãos defendendo, assim, o seu ideal.
Sendo assim, a festa de São Tiago, desde que foi trazida do continente africano por seus fiéis nunca deixou de ser realizada. Observa-se que esta festa, hoje, ultrapassou mais de dois séculos de história e tradição. Essa persistência da festa de São Tiago se deu em função da devoção de seus fiéis em propagar o que este santo fez pelos cristãos na África, encenando a céu aberto, como ocorreu a batalha entre cristãos e mouros naquele continente. Por isso, observou-se a grande preocupação dos moradores de Mazagão Velho com relação á encenação da batalha, já que estes conferem os mínimos detalhes da festa para que tudo ocorra perfeito no dia de São Tiago.
Verificou-se, então, que a festa sobrevive até hoje porque é passada de geração a geração, ou seja, os mais velhos passam o conhecimento que tem sobre esta manifestação para seus filhos e estes para a geração seguinte. Sendo assim, 80% dos moradores de Mazagão Velho, conforme pesquisa de campo na comunidade, passam a tradição da festa de São Tiago para seus filhos.
Os moradores daquela comunidade acreditam que a festa é extremamente importante para suas vidas, e que a mesma tem que ser passada porque os antigos de Mazagão Velho estão morrendo e levando consigo o conhecimento que tem sobre a festa de São Tiago, em função disso, para que ela não morra junto com eles, o conhecimento que possuem é repassado. Esse fato é o principal motivo para que a festa seja revivida ainda hoje.
Além disso, atualmente, a festa de São Tiago, é considerada um marco cultural, conhecida nacional e internacionalmente (Portugal e Marrocos). Ela faz parte do calendário cultural do Estado do Amapá, ocorrendo no período que vai de 16 a 28 de julho. O conhecimento a respeito da festa em lugares tão distantes só foi possível em função do avanço tecnológico, através dos meios de comunicação, fazendo com que não só os moradores da comunidade participem, mas também pessoas de outros Estados e países.
De acordo com isso, os moradores desta comunidade acreditam que para a persistência da festa e resistência da mesma, seus filhos devem aprender tudo sobre a cultura local. Pois, se no futuro, quando os mais antigos não estiverem mais lá para contar, aqueles que ficarem saberão relatar a festa para as pessoas, ou até mesmo para os pesquisadores que se deslocarem até a comunidade para saber a respeito da tradição daquele lugar.
É fundamental para os jovens aprenderem passo a passo como se dá a manifestação, como surgiu e como ela ocorre atualmente. Mas, o objetivo principal da festa é que devem aprender desde cedo a freqüentar a igreja, pois o catolicismo para eles, ou seja, o ato religioso, vem em primeiro lugar. Esse fato se verificou no período que vai de 16 a 22 de julho, quando ocorre, na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, as novenas e ladainhas em homenagem a São Tiago e São Jorge, a pequena igreja fica lotada de fiéis. Como é possível verificar na ilustração abaixo. Vale ressaltar, ainda, que os fiéis que vão à igreja no período citado, são os próprios moradores da comunidade e não os devotos, fiéis de outros lugares como ocorre no dia 25 de julho. Observa-se, então, a presença marcante do catolicismo na vida dos moradores de Mazagão Velho.
Foto 06: Igreja de NSA da Assunção lotada de devotos de São Tiago.
Dessa forma, as crianças aprendem “a prestigiar a festa logo que nascem”, a partir do momento que “se entendem como gente”, perguntam para seus pais o significado da festa, como surgiu, o porque da batalha, etc. A curiosidade das crianças fez com que os mais velhos criassem a festa de São Tiago das crianças, pois, logo que terminava a festa dos adultos, “as crianças iam para as ruas e brincavam fazendo a mesma encenação que os mais velhos faziam” sem deixar passar nenhum fato desapercebido, desse acontecimento criou-se a festa das crianças.
Esse fato faz com que os pais incentivem seus filhos a participarem da festa de São Tiago desde criança, ensinando “que o que estão encenando faz parte de sua cultura e que a mesma não deve morrer”, mas sim ultrapassar todas as barreiras para que ela chegue às gerações futuras. A animação dos pais é tão grande com relação aos filhos, que estes orientam as crianças a participarem dos principais atos da festa, como o baile de máscaras, figura de São Tiago e São Jorge e o menino Caldeira. Vejamos o depoimento de dona Mariana, uma das costureiras das roupas dos figuras, que diz:
“É bom porque, que as nossas gerações vão se acabando, então eles participam pra aprender. Os meus meninos todo ano brincam, tem o Railã José Pinheiro dos Reis de 2 anos que já foi menino da Caldeirinha há 3 anos e o Rauliã Jones Pinheiro de 8 anos foi a figura de São Tiago das crianças. Elas vestem as mesmas roupas, tudo que os adultos fazem elas também fazem, só que o cavalo é de buriti e eles vão correndo é muita alegria” (Mariana do Nascimento Pinheiro, 41 anos, entrevistada em 12/09/2006).
Mas, apesar de 80% da comunidade de Mazagão Velho transmitir a tradição da festa de São Tiago para seus filhos, existem 13% que não passam essa tradição, como foi verificado no local. Isso ocorre porque os pais acreditam que “eles podem aprender sozinhos, vendo as encenações nas ruas e através do livreto” que é entregue no dia da festa que conta a história de São Tiago. Analisemos o seguinte quadro:
Quadro 01: A tradição da festa de São Tiago transmitida para as futuras gerações.
Tradição |
Quantidade |
% |
Sim |
37 |
80 |
Não |
06 |
13 |
Não tem filhos |
03 |
07 |
Total |
46 |
100 |
Fonte: Pesquisa de Campo realizada em 07 e 09/2006, no município de Mazagão Velho, AP.
Não poderíamos deixar de citar o depoimento da Senhora Maria Piedade Queirós de Jesus, 53 anos, natural de Mazagão Velho, pois“a festa de São Tiago é muito importante, sem ela a comunidade não vive, mas infelizmente os professores que são da terra não se interessam pela festa e não sabem o que significa a nossa cultura”. Esse fato se mostrou bastante relevante, pois a festa de São Tiago é também extremamente rica como cultura folclórica daquela comunidade.
Em contra partida a esse fato, temos um outro aspecto interessante que influencia na resistência da tradição da festa de São Tiago, isto é, o número expressivo de devotos que saem de várias partes do Estado do Amapá para prestigiar a festa e pagar as promessas alcançadas durante o ano que passou. Assim, observa-se na figura abaixo os devotos prestigiando a missa oficial que ocorre em frente a capela de São Tiago que fica próximo a praça do município.
Foto 07: Devotos de São Tiago.
Quando falamos em tradição, também estamos nos referindo a um período longo de tempo, sendo assim, verificou-se que 43% das pessoas entrevistadas freqüentam a festa de São Tiago há mais de 30 anos, 15% a mais de 40 anos, 17% á 50 anos, 13% acima de 50 anos e só 11% freqüentam a menos de 10 anos. Observar-se, então, que as pessoas logo que nascem já começam a participar da festa de São Tiago seja direta ou indiretamente. Conforme mostra o quadro seguinte:
Quadro 02: Tempo de participação dos entrevistados na festa de São Tiago.
Participação |
Quantidade |
% |
Acima de 50 anos |
06 |
13 |
Entre 40 e 50 anos |
08 |
17 |
Entre 30 e 40 anos |
07 |
15 |
Entre 10 e 30 anos |
20 |
43 |
Abaixo de 10 anos |
05 |
11 |
Total |
46 |
100 |
Fonte: Pesquisa de Campo realizada em 07 e 09/2006, no município de Mazagão Velho, AP.
Com relação à faixa etária masculina e feminina, verificou-se que na masculina 67% estão acima de 50 anos, 13% entre 40 e 50 anos e 20% entre 20 e 40 anos; e a feminina acima de 50 anos 31%, entre 40 e 50 anos 23%, e 46% estão entre 20 e 40 anos. Como mostram os quadros abaixo:
Quadro 03: Faixa etária dos entrevistados do sexo masculino.
Faixa Etária |
Quantidade |
% |
Acima de 50 anos |
10 |
67 |
Entre 40 e 50 anos |
02 |
13 |
Entre 20 e 30 anos |
03 |
20 |
total |
15 |
100 |
Fonte: Pesquisa de Campo realizada em 07 e 09/2006, no município de Mazagão Velho, AP.
Quadro 04: Faixa das entrevistadas do sexo feminino.
Faixa Etária |
Quantidade |
% |
Acima de 50 anos |
11 |
31 |
Entre 40 e 50 anos |
08 |
23 |
Entre 20 e 30 anos |
16 |
46 |
Total |
35 |
100 |
Fonte: Pesquisa de Campo realizada em 07 e 09/2006, no município de Mazagão Velho, AP.
Dessa forma, como já foi citado anteriormente, a festa de São Tiago é a mais festejada do município e apresenta um número expressivo de fiéis no período de sua realização. Em função desse fato, os moradores participam da festa porque a mesma “transmite alegria, paz, esperança”, onde todos sem distinção de classe, raça, e cor podem participar, mas é fundamental que estes obedeçam as regras básicas da comunidade, ou seja, eles não admitem brigas no período da festa, e no baile de máscaras somente os homens participam, as mulheres ajudam apenas com as indumentárias.
Para os moradores da comunidade a festa de São Tiago “tem que ser preservada e vivenciada” por eles até o fim de suas vidas, pois “são católicos” e precisam propagar o cristianismo, assim como São Jorge e São Tiago fizeram no passado. Por isso, as crianças, geralmente, aprendem desde cedo a participar da festa para quando alcançarem a maior idade possam participar das encenações, das figuras de São Jorge e São Tiago e do menino Caldeira, bem como podem ser cantoras ou sacristãos da igreja.
Antigamente a festa de São Tiago era realizada só pelos moradores da comunidade, poucas eram as pessoas que ali conseguiam chegar, pois o trajeto era bastante inacessível. Para se chegar a comunidade os devotos tinham que ir de pequenas embarcações ou no chamado “pau-de-arara”, já que não existia estrada nessa época, então, os moradores, sem ajuda dos governantes, realizavam a festa sozinhos.
Com o avanço tecnológico, a abertura de estradas e rodovias, Mazagão Velho ficou mais acessível a população de Macapá e às pessoas de outros Estados. Com o passar dos anos, várias mudanças ocorreram também na festa de São Tiago, uma delas é que a festa, hoje, é narrada pelo Senhor Woshington Santos, da ilustração abaixo, mais conhecido na comunidade como seu “vavá”, ele conta que “teve que estudar, fazer pesquisas sobre a festa para, então, poder passar o significado de cada ato” para os jovens da comunidade e para o público que assiste o evento.
Foto 08: Woshington Silva Santos, mais conhecido como seu “vava santos”.
Outra mudança é com relação à festa das crianças, pois a mesma não existia, foi criada a partir das encenações que as crianças faziam após o término da festa dos adultos. Com relação ao palco onde é celebrada a missa que antecede o Círio, anteriormente, este era construído em frente á Igreja de Nossa Senhora da Assunção, agora, no ano de 2006, passou para frente da Capela de São Tiago, perto da praça do município.
Sendo assim, são vários os motivos que levam as pessoas a participarem da festa de São Tiago, que podem ser: religiosos, financeiros, curiosidade de saber o significado da festa, participação dos homens nos principais papéis, entre outros. A questão religiosa, para os mazaganenses, é fundamental pelo simples fato de serem católicos, e cultivarem a realização desta festa que foi trazida pelos colonos africanos.
Além disso, a festa de São Tiago é a que mais movimenta o município, pois alguns moradores também são donos de restaurantes e comércios que aproveitam esse período para realizarem suas vendas. Quando chega o mês de Julho para eles, começa a movimentação no município, as vendas aumentam conforme o deslocamento das pessoas até a comunidade. É com o dinheiro desse período da festa que os comerciantes aguardam ansiosos o próximo ano. A figura abaixo mostra a área destinada aos restaurantes do município de Mazagão Velho que no período da festa ficam lotados.
Foto 09: Área dos restaurantes de Mazagão Velho.
Já os moradores do município participam da festa porque desde criança seus pais levavam para prestigiarem-na, pois, para eles, “ela já está no sangue desde que nascem”, as crianças vendo a manifestação acham bonita e passam a participar para passar a cultura as gerações futuras, pois a festa de São Tiago é a festa do povo. Com isso, quando essas crianças crescem e alcançam a idade adulta, passam a desempenhar funções e/ou cargos na festa, tanto as mulheres quanto os homens, sejam estas funções as “mais simples” até as de “nível elevado”, mais o principal é que todos querem participar.
A partir dessas visões, é fundamental para os moradores de Mazagão Velho celebrar a festa de São Tiago, já que para a maioria dos devotos, “a festa é uma tradição de mais de 200 anos e que não pode morrer”. Segundo os moradores da comunidade “se a mesma não ocorrer todos os anos eles vão estranhar muito”. Além de ser uma tradição da festa do Santo, ou seja, uma festa religiosa (católica), São Tiago é o ser que guarda e protege os moradores daquele lugar. A festa apresenta uma significação tão grande para os habitantes de Mazagão Velho que, quando chega próximo ao período da festa, as pessoas já ficam na expectativa, os pais trabalham para comprar roupas para os filhos usarem no dia desta manifestação e, também, nesse período, aproveitam para “ganhar um dinheirinho a mais”.
Observa-se, então, que a existência da comunidade se dá em função desta festa de São Tiago, pois eles sobrevivem “da alegria da festa”, das pessoas que vão até o município e compram nos comércios e se alimentam nos restaurantes, entre outros. Mas, em contra partida a esse fato, independente de ter ou não verbas para a realização da festa, os moradores contam que a mesma se realizaria através das novenas, das ladainhas e das missas na igreja, pois eles entendem que “os mais antigos fizeram promessas de celebrar todos os anos a festa de São Tiago, desde o período em que ela chegou ao Brasil em 1777”. Segundo os mazaganenses, “desse período em diante, não houve um ano em que não se celebrou a festa de São Tiago”, pois, para eles “se não ocorrer à festa uma tragédia iria acontecer com Mazagão Velho, tanto para os moradores quanto para quem vem de fora, tudo iria se acabar, nada mais teria sentido”:
“Se não ocorrer a festa Mazagão Velho vai para o brejo, uma vez não teve, contou minha mãe, o Santo não saiu para o Sírio, Mazagão Velho se escureceu, choveu fortemente, foi então, que os moradores da comunidade pegaram o Santo e saíram para a procissão nas ruas, imediatamente a chuva cessou e Mazagão Velho clariou”. (Maria do Socorro Nunes Câmara, 39 anos, natural de Mazagão, entrevistada em 11/09/2006).
Além disso, é no período da festa que “os filhos da terra” retornam para a comunidade, pois muitos estudam na capital, Macapá, alguns moram em outros Estados por causa do trabalho, etc. Mas, quando chega o mês de Julho voltam para as casas dos familiares que ficaram na comunidade para, junto com eles, participarem desta celebração, seja através das promessas que irão pagar ou, simplesmente, para prestigiar o Santo de sua terra natal. Sendo assim, observa-se que não importa a distância, os moradores de Mazagão Velho sempre retornam para a comunidade, não deixando, assim, “a tradição se acabar e desaparecer”.
Para Brandão (1982), esse fato é característico da cultura popular, pois o folclore daquela comunidade está relacionado a “causos, lendas, mitos, estórias, narrativas antigas, os costumes e as práticas do lidar com a natureza, tanto no trabalho da lavoura quanto no artesanato e, principalmente as promessas que são feitas aos Santos e os ritos com que o homem e a mulher irão cumpri-las” (1982: 20-21). Sendo assim, a festa de São Tiago, por ser uma festa folclórico-religiosa, que mexe com imaginário das pessoas, também é viva, dinâmica, mas, isso, segundo o autor, só é possível, enquanto ela for capaz de manter a circulação de troca de bens de serviço, de ritos e símbolos entre as pessoas e grupos sociais e de poder modificar-se á todo momento.
Dessa forma, a tradição que, hoje, é transmitida para os moradores se modificará de acordo com a realidade de um determinado grupo social, pois, para Brandão, “o ser humano é criativo, recriador e os artistas populares que lidam com o canto, a dança, o artesanato modificam continuamente aquilo que um dia aprenderam a fazer” (Brandão: 1982: 22). Isso significa dizer que a tradição cultural de um povo como, por exemplo, a festa de São Tiago, pode ser coletiva e persistente, já que têm a capacidade de durar gerações e o elemento novo que surge é imediatamente consagrado e incorporado aos costumes desta sociedade conservando-se por anos.
Percebemos, então, que apesar da tradição sobreviver aos avanços tecnológicos e com o passar dos anos aquilo que é tradicional acaba se adaptando a modernização, mas não perde sua característica principal. Ou seja, as festas populares acompanham a modernidade sem deixar seu caráter essencial de se modificar e se transformar para atender as necessidades das novas gerações que possuem um modo diferente de pensar.
Esse fato não esta distante da festa de São Tiago, pois com o passar dos anos, ela também se modificou e se adaptou a modernidade. Os mais velhos do município são os que mais percebem a mudança, segundo eles, “a festa de hoje apresenta um número significativo de pessoas”, fato que não ocorria na sua época, atualmente, pessoas de todas as partes do Brasil e até do exterior, como Marrocos e Portugal, participam desta manifestação cultural-religiosa. Para os mais antigos, as encenações que, hoje, são apresentadas pelos “mais novos” também não é a mesma, elas já foram modificadas, visto que algumas cenas não são mais apresentadas.
Outro fator de mudança estar na organização da festa, antigamente quem realizava a festa era a comunidade “sem ajuda financeira de qualquer governo”, o que se via era que logo ao término da festa era escolhido um outro festeiro e este era responsável pela “organização da festa do ano seguinte”, cabia a ele a função de realizar bingos para arrecadar dinheiro, passar na casa dos moradores arrecadando alimentos para serem leiloados, entre outras responsabilidades. Portanto, independente de ter ou não verba, “a comunidade sempre realizava a festa e todos participavam”.
Atualmente, segundo alguns moradores, isso mudou, pois se a comunidade não receber ajuda financeira do governo a festa de São Tiago não acontece, visto que as pessoas se acostumaram a receber esta verba todo o ano para a realização da festa, conforme os seguintes relatos:
“Antigamente era a comunidade que realizava a festa e era tudo de graça, chocolate, café, bolo, hoje é o governo que realiza a festa”, (José de Oliveira Torres, 79 anos, foi Tabelião durante 38 anos, entrevistado em 15/09/2006).
“A festa mudou, porque dante os organizadores já tinham um dever que era realizar a festa e era mais legal, hoje um fala uma coisa, e ninguém se entende e se respeita, antes só cabia ao festeiro”, (Manuel Hermano Nunes, 43 anos, entrevistado em 15/09/2006).
Além disso, na época em que eram crianças, por volta da década de 50, os moradores não podiam participar da festa, não apresentavam nenhuma atividade na mesma, “as 21:00h eles já tinham que está em suas camas deitados, não podiam ficar nas ruas”. Hoje isso não ocorre mais, pois se observou que durante os dias de festa muitas crianças e pré-adolescentes ficam até altas horas da noite em frente aos barracões para participarem das festas profanas, algo que se tornou tão natural em suas vidas.
Para alguns moradores, a festa de São Tiago “mudou para melhor”, pois hoje ela já “está mais organizada”, existe a limpeza nas ruas, onde se monta uma equipe específica para essa atividade que, durante o período que antecede a festa, ela se reúne para fazer a limpeza da Vila para receber os visitantes, esse serviço vai até o término deste evento quando é feito o pagamento para esta equipe, essa verba faz parte da ajuda financeira que a comunidade recebe do Governo Estadual e a Prefeitura de Mazagão.
Com avanço da tecnologia, a festa de São Tiago ficou moderna, as roupas dos “figuras” estão, a cada ano que passa, mais elegantes e bonitas, “antes eram muito simples”. Antigamente, só existia um barracão de São Tiago, hoje, são três, além disso, a festa está cada vez mais divulgada, pois, no período dela, é possível encontrar vários jornalistas de diferentes emissoras transmitindo o evento, visto ser esse um dos mecanismos utilizados pela prefeitura para que as pessoas tomem conhecimento a respeito da festa em Mazagão Velho.
Assim como para alguns moradores a festa “mudou para melhor”, para outros “a mudança foi negativa”. Segundo alguns informantes, “não é feita mais a visita na casa das pessoas”, os “jovens da comunidade são muito acomodados”, não “querem participar das encenações”, os mais velhos precisam ficar “adulando” para que eles prestigiem a festa, “antigamente não era assim, quando chegava o período da festa todos participavam, pois sabiam que a manifestação fazia parte de sua história, hoje, os jovens, não sabem contar o significado da festa”.
Por outro lado, o festival da mandioca, que ocorria durante a festa de São Tiago, mudou para o mês de novembro, aumentando, assim, os dias de festividade de São Tiago. Além disso, alguns moradores acreditam que “a festa de antigamente era mais organizada que a atual”, pois não existiam tantas pessoas envolvidas na sua realização, o que acaba prejudicando a festa em alguns pontos.
Outro fato interessante que chamou nossa atenção, estão nos depoimentos de alguns moradores, que disseram que antes o “atalaia”2 , um dos personagens da festa, era morto de verdade no dia da festa de São Tiago, o festeiro passava na casa de todos os homens da comunidade para pegar os seus nomes e fazer um sorteio, o escolhido já sabia que nesse dia iria morrer. Mas, hoje, isto não ocorre mais, pois desde o dia em que “o filho único de uma das moradoras foi sorteado esta senhora sofreu muito com a morte de seu filho” as pessoas ficaram sensibilizadas com a mesma e resolveram, então, não matar mais o atalaia, atualmente, ele é morto de forma simbólica.
Em função deste acontecimento, alguns moradores de Mazagão Velho preferem a festa de hoje, pois a mesma “está muito mais desenvolvida”, ou seja, existe a caminhada com o santo, onde o mesmo se desloca do município e vai até a capital, em Macapá, ficando um certo período na igreja de São Benedito, antes isso não era possível, devido a dificuldade do trajeto, já que não havia estrada.
A festa de São Tiago se tornou mais conhecida por causa dos meios de comunicação, que, ao longo dos anos, vem fazendo a divulgação da mesma, mostrando, pela televisão, algumas encenações sobre a batalha do santo, despertando a curiosidade das pessoas que não tem conhecimento desta festa, fazendo as mesmas se deslocarem até aquela comunidade.
Então, todos os anos um grande número de pessoas se dirigem até o local, o que faz aumentar a preocupação dos moradores do município com relação à segurança dos seus visitantes e dos seguidores de São Tiago. Por isso, os moradores firmaram convênios com os Departamentos de Polícia, Bombeiro, Detran, CEA, entre outros, para a proteção das pessoas e dos moradores da comunidade. O Sr. Raimundo Silveira, um dos que tem preferência pela festa de hoje, afirma que:
“Hoje existe mais respeito, tem as autoridades polícia, bombeiro, antes era briga, não respeitavam o bobo velho, jogavam pedra nele, hoje tá mais bonito, tem roupas para os dançarinos do baile dos máscaras que dançavam com suas próprias roupas, hoje tem tudo”. (Raimundo Espírito Santo Silveira, 66 anos, entrevistado em 14/09/2006).
O bobo velho citado pelo seu Raimundo Silveira, seria um vigia dos mouros que foi enviado por volta do meio-dia até o acampamento cristão para espioná-los. Os cristãos descobriram que estavam sendo vigiados e começaram a atirar pedras no bobo velho que fugiu do local. Atualmente, na festa de São Tiago, os moradores da comunidade encenam essa passagem de forma simbólica, ou seja, no lugar da pedra são atirados bagaços de laranjas no bobo, essa simbologia acaba gerando renda para a comunidade com a venda de laranjas.
Mas, se nos reportarmos a fala do Sr. Raimundo Silveira, quando se refere a questão de que as pessoas antigamente não respeitavam o bobo velho, ele está falando daquelas pessoas que não fazem parte da comunidade, que não sabem apreciar a festa, então, atiravam pedras de verdade no bobo velho no lugar do bagaço da laranja, isso acabava ferindo o morador da comunidade que representava o papel do bobo. Hoje, os mazaganenses já alertam os visitantes, no dia da festa, para “não atirarem pedras, mas apenas o bagaço da laranja”.
1 Informações extraídas do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco, 2006.
2 O atalaia é um soldado que foi enviado até o acampamento dos mouros para espiar os mesmos.
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