SANTUARIOS, FIESTAS PATRONALES, PEREGRINACIONES Y TURISMO RELIGIOSO

SANTUARIOS, FIESTAS PATRONALES, PEREGRINACIONES Y TURISMO RELIGIOSO

Rogelio Martínez Cárdenas. Coordinador (CV)

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Fé, Turismo e Desenvolvimento no Santário da Santa Cruz, Monte Santo, Brasil

Reesink, Mísia Lins

Este trabalho se propõe a discutir sobre os possíveis conflitos, tensões e dinâmicas que podem ser estabelecidos quando um mesmo lugar/espaço (centro de devoção religioso) é apropriado por diferentes agentes que lhe atribuem significados diversos (religioso, turístico, histórico, econômico, etc.), implicando também em múltiplos usos. Essa reflexão nasce a partir da experiência de campo e da comparação entre dois casos etnográficos: o primeiro, trata-se do santuário religioso da Santa Cruz, localizado na cidade de Monte Santo, no sertão nordestino brasileiro, santuário este que desde o século XVIII vem recebendo milhares de peregrinos no período religioso de Todos os Santos e que na segunda metade do século XX foi tombado pelo Estado brasileiro como patrimônio histórico, cultural e religioso. O segundo, localizado na cidade de Iati, na região agreste do Nordeste brasileiro: trata-se de um sítio arqueológico com figuras rupestres (em processo de tornar-se patrimônio histórico-cultural brasileiro), que a partir da década de 80 do século XX é transformado em um centro de devoção religiosa por uma comunidade de camponeses assentados em sua proximidade, onde as figuras rupestres são ressignificadas como imagens católicas, particularmente, a de Nossa Senhora.

Palavras-chave: Religião, Património, Santuário de Santa Cruz, Monte Santo, turismo religioso.

Introdução

Se tivesse divulgação pra o turismo chegar aqui! Porque nem... Quer dizer, o turismo vem agora, esse agora em novembro, mas assim é um turismo mais também de pobre. Não é aquele turismo que venha adquirir um retorno satisfatório ao comércio. É um turismo pobre, a verdade é esta! Você conhece Bom Jesus da Lapa? (D. Elvira, moradora de Monte Santo).

            Esta é a melancólica constatação de D. Elvira, comerciante e moradora de Monte Santo, quando conversávamos sobre a Festa de Todos os Santos, que acontece entre 31 de outubro e 01 de novembro nesse município brasileiro. Trata-se de uma festa religiosa que teve início no século XVIII, mas que ganhou grande impulso como centro de romaria a partir do início do século XX. Desde então, milhares de romeiros católicos peregrinam até o Santuário da Santa Cruz, para pedir e pagar os milagres recebidos. São principalmente romeiros que vêm das cidades vizinhas, mas também de outros estados brasileiros. 
            É a quantidade enorme de peregrinos, atraída pelos milagres atribuídos ao Santuário da Santa Cruz, mas também é a percepção concreta de que a cidade, em menos de 48 horas de festa, obtém um retorno econômico fora do comum, que levam os comerciantes, a prefeitura e outros moradores a acreditarem que a comoditização do seu capital religioso, o Santuário da Santa Cruz e a fé católica, possa ser a fonte de riqueza e a saída para o desenvolvimento sócio-econômico da cidade diante da situação de escassez em que se encontra. Ao mesmo tempo, há um sentimento de que, de alguma forma, Monte Santo não consegue alcançar o mesmo “nível” turístico de outros centros de romaria brasileiros, como Bom Jesus da Lapa, talvez porque termine por atrair majoritariamente romeiros pobres, como reconheceu D. Elvira. 
            Este artigo tem, assim, por objetivo iniciar uma reflexão sobre as possíveis inter-conexões entre   -  desenvolvimento econômicoturismo - secularização dentro de um contexto católico e sertanejo, a partir de um esboço do campo etnográfico realizado aqui. Para isto estruturei o texto em três partes: primeiro, realizando uma contextualização da cidade, do santuário da Santa Cruz e da romaria; segundo, reexaminando as condições concretas e/ou sócio-econômicas de Monte Santo, articulando-as com as percepções sobre a fé e a sua comoditização neste contexto; terceiro, discutindo as implicações entre fé, turismo e secularização do Santuário da Santa Cruz, fechando o artigo com as minhas conclusões.  Os dados aqui analisados foram obtidos através de pesquisa de campo etnográfica entre 2004 a 2007, com diferentes estadias em Monte Santo, através de observação participante, assim como entrevistas formais e informais com moradores da cidade e peregrinos.

Breve Apresentação da cidade de Monte Santo e do Santuário da Santa Cruz
            Monte Santo é uma cidade do Estado da Bahia, distando cerca de 370km de Salvador – capital do Estado, situado na região Nordeste do Brasil1 . Em termos ecológicos, Monte Santo se encontra no Sertão, cujo clima é o semi-arido,  submetido a longos períodos de seca, tendo impactos diretos na agricultura e pecuária, provocando históricas ondas migratórias dos sertanejos em direção ao litoral do país. A micro-região de Monte Santo também é contemporaneamente conhecida como a do “Sertão de Canudos”, onde ocorreu a conhecida Guerra de Canudos, entre 1895 e 18972 – descrita de forma romantizada por Vargas Llosa no livro La Guerra del fin del Mundo. Na época, Canudos era um povoado pertencente ao município de Monte Santo, cuja sede (Monte Santo) foi quartel general do exército brasileiro.
            Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), a população de Monte Santo é estimada em torno de 50 mil habitantes, sendo que mais de dois terços da população mora nos diferentes povoados que compõem a chamada zona rural do município. Durante o período da Festa de Todos os Santos, o número de romeiros e/ou visitantes pode chegar a mais de 40.000, ou seja, quase duplicando a população total do município.
            A pedra fundamental da cidade de Monte Santo se dá com a atuação do Frei capuchino Apolônio de Todi. Este, em passagem pela região no século XVIII, depois de contemplar a serra, que lhe lembrou o Monte da Terra Santa, em Jeruzalém, fez a primeira subida em procissão até o topo. Ajudado pela ocorrência de um “milagre” durante a procissão, ele renomeou a serra de Piquaraçá para Monte Santo, declarando assim tratar-se de um lugar santificado, por conseguinte milagroso. Dá-se, aqui, o início da sacralização do monte e de sua transformação em locus de peregrinação, dentro da lógica de um regime de milagre (M. Reesink, 2000 e 2005). Sendo assim, temos, pois, o milagre fundador (da cidade e do santuário3 ), acontecido durante a primeira procissão com o Frei Apolônio Todi.
Este milagre, e outros que se seguiram na mesma época, como consta da mitologia do santuário, parecem confirmar o locus como santo, sagrado, fonte de milagres que, mais de duzentos anos depois, ainda não silenciou. O que é atestado claramente pelas dezenas de ex-votos expostos na Igreja da Santa Cruz, pelas histórias contadas pelos peregrinos e moradores, histórias passadas, mas também histórias vividas pelas próprias pessoas que relatam as curas, as benções e as graças recebidas e que as levam a retornar ao santo monte para retribuir o que foi recebido. (M. Reesink et al, 2005: 07).

O santuário da Santa Cruz compreende toda a serra, tendo sido em seu cume construída a Igreja da Santa Cruz. 
            Foi em torno (e ao longo) deste monte santificado que duas festas religiosas se desenvolveram, duas festas que fazem parte da vida cotidiana e extra-cotidiana da cidade4 . A Semana Santa, festa considera dos “de dentro”, ou seja: dos moradores; e a Festa de Todos os Santos, considerada como dos “de fora”, período em que milhares de romeiros chegam ao santuário para pagar suas promessas e renovar sua fé e devoção à Santa Cruz. O ritual da Festa de Todos os Santos consiste basicamente em subir o íngreme Caminho da Santa Cruz, um percurso de quase quatro quilômetros. A peregrinação se inicia na base  da serra, onde se encontra a capelinha das almas, passando pelas outras vinte e três espalhadas pelo caminho, representando assim a via crucis, rezando e acendendo velas, até chegar à capela maior, a da Santa Cruz e a vigésima quinta, situada no cume do monte, para aí rezar e acender velas novamente. O ritual se encerra com a descida do monte, assistir a missa – para alguns – na igreja Matriz, e voltar para as suas casas5. A cidade de Monte Santo nasce e cresce, assim, a partir desse lugar santo, e seu sentido, sua história se estabelece em relação ao monte considerado sacro e milagroso.

Desenvolvimento econômico e turismo religioso
            A cidade de Monte Santo se insere histórica e economicamente dentro do quadro dos municípios pobres do sertão baiano e nordestino. Entretanto, possui um diferencial em relação às outras cidades exatamente por ter esse locus sagrado que fornece à cidade certa singularidade e permite esperar que esta singularidade possa ser transformada em capital econômico para trazer aquilo que esses municípios sertanejos almejam: o desenvolvimento econômico e o progresso. Sobretudo, fuga da imagem de pobreza, de escassez e de atraso, tão comumente atribuída, no Brasil, ao sertão e aos sertanejos. Esse desejo e busca pelo desenvolvimento, e a conseqüente mudança de imagem, tem aumentado, sobretudo, com as transformações históricas e estruturais porque vem passando a região, como um todo, e Monte Santo, em particular.
Nos últimos cinqüenta anos as mudanças e a incorporação nas várias dimensões da vida social do sertão, no quadro maior do país, se aceleraram e cresceram muito em comparação com o passado. Os fluxos de pessoas, informação, produtos e bens aumentaram em quantidade e intensidade. Uma relativa posição inicial de isolamento e formação sociocultural particular cada vez mais se torna integrada nacionalmente por estradas, rádios e televisões. As migrações temporárias e permanentes, em especial para São Paulo, se tornaram meios privilegiados de buscar e assegurar sobrevivências econômicas e possíveis ascensões sócio-econômicas. As pessoas que saem dos seus lugares de nascimento e pertencimento costumam tentar manter seus vínculos com a sua origem social. Tentam, por exemplo, voltar com regularidade, retornar na aposentadoria ou mandam dinheiro para parentes necessitados. Por outro lado, o Estado expande cada vez mais suas leis, relações, controles e aparelhos burocráticos do nível nacional para o regional. Algumas destas medidas tem tido impacto fundamental na composição da população atual: a aposentadoria rural é uma das maiores fontes de renda de municípios pobres no sertão e tanto assegura um novo lugar para os idosos como garante uma renda familiar, muitas vezes essencial para não aumentar a fome e a migração. As aposentadorias fazem circular um dinheiro importante no comercio local6 . Mais recentemente, as diversas bolsas federais implantadas, e hoje consolidadas como a bolsa família, começam a ter um impacto semelhante às aposentadorias. A crescente burocratização e integração política se medem em outros planos também (cf Pearse, 1971, sobre o processo de incorporação). No início da República os municípios ganharam o direito de taxar algumas transações econômicas, mas o valor obtido era baixo e continuou sendo. Ainda hoje os impostos locais não são suficientes para a máquina municipal. Por outro lado, atualmente o Estado central arrecada muito mais fundos e contribui para os municípios mais pobres com um fundo de participação especial. Desse modo, ao que parece, em Monte Santo, como em outras localidades, a prefeitura torna-se hoje a maior empregadora local e aquela que possui as condições legais de distribuir os fundos recebidos do governo central.
Ao mesmo tempo as outras bases econômicas do município também estão se modificando, em especial nos últimos 50 anos. A agricultura camponesa de subsistência, com cultivos consumíveis pelo produtor, se tornou cada vez mais uma produção para a venda, para gerar renda para comprar outros itens não produzidos por conta própria. Simultaneamente, a criação extensiva de gado diminuiu e as áreas cercadas, tanto para gado como agricultura, cresceram significativamente. A crescente mobilidade e acessibilidade trouxe compradores de terra de fora, e com isso verifica-se o aumento da grilagem com uma série de conflitos entre direitos locais (inclusive consuetudinários e coletivos). A terra solta não necessariamente indica ausência de pessoas com certos direitos reconhecidos localmente, e o avanço por terceiros sobre estas terras gera conflitos graves. A ausência de titulação oficial de camponeses mesmo com sua terra cercada também pode criar a cobiça alheia e ser objeto de conflito (E. Reesink, 2007), situação extremamente comum em Monte Santo, com uma lista grande de histórias de grilagem e, conseqüentemente, de camponeses sem terra e sem trabalho.
A ideologia do desenvolvimento é forte no sertão, em especial em comparação com os progressos concebidos como existentes em outras regiões. Em uma situação de meios escassos, todo incremento de atividade econômica é concebida inicialmente como inerentemente benéfica. No caso de Monte Santo, com as limitações na agricultura, comércio, ausência de atividade manufatureira e os limites da capacidade de uma prefeitura com parcos recursos (dependente prioritariamente dos fundos do governo federal), concebe-se que a única real diferença simbólica da cidade, como já dito, seja o santuário e seus milagres. Conseqüentemente, o turismo religioso, justificado pela presença desta diferença, é normalmente avaliado como uma das poucas ou a principal estratégia de sair de uma situação de estagnação econômica. Vale lembrar que, desde a década de setenta do século passado, organismos mundiais, como o Banco Mundial, têm enfatizado o turismo como a solução para o desenvolvimento econômico de cidades dos países do terceiro mundo (Stronza, 2001). Este tipo de estratégia foi “aceito” pelos sucessivos governos brasileiros e, em particular, pelos governos estaduais na Bahia. A situação das cidades sertanejas, entretanto, com poucos atrativos naturais, ficou particularmente problemática. Conseqüentemente, cidades com algum diferencial, como santuários religiosos, caso de Monte Santo, ou passado histórico interessante, como Canudos, vêem aí uma possível saída para atingir o progresso e o desenvolvimento tão desejados 7. Isto se torna mais forte quando se olha em volta e se vêem santuários “bem-sucedidos”. 
            Os santuários mais conhecidos e mais “concorridos”, em termos de afluência, no sertão nordestino são, em primeiro lugar, Juazeiro do Norte (Campos, 2001), no Estado do Ceará, que conta com a figura do Padre Cícero como o centro de toda a devoção e “atração” turística. A cidade do Juazeiro do Norte é, além disso, modelo para as demais cidades, tendo em vista ter se transformado, em pouco mais de meio século, de pequena vila, numa das principais cidades do Ceará (em termos populacionais e também econômicos), em que esta transformação ocorreu na medida do crescimento da devoção ao Padre Cícero e das romarias ao seu santuário. Ainda no sertão cearense, encontra-se o segundo maior santuário religioso, também em termos de afluência, que se situa na cidade de Canindé. É no Estado da Bahia que iremos encontrar o terceiro mais importante santuário nordestino, em Bom Jesus da Lapa, com grande atração de romeiros (e turistas) (Steil, 1996). Estas cidades são, para outros municípios, particularmente Monte Santo, o exemplo e o modelo de que, a partir de um núcleo religioso – no caso um santuário ou a figura religiosa de um indivíduo que dará motivo para a construção de um lugar de peregrinação – todo um núcleo urbano e um aparente desenvolvimento econômico é possível. Apresenta-se, então, como o meio para se alcançar o desejado progresso e o desenvolvimento8 .
            Entre os habitantes de Monte Santo, reconhece-se e reafirma-se que a cidade teria tudo para ser um grande centro turístico religiosa: tem a beleza da serra, tem a cidade que é histórica.
- Monte Santo é uma cidade histórica, tem muita coisa. Tem um potencial imensurável só que não é tão explorado. Então muitos não conhecem. E a questão é essa: de não conhecer. Não ser tão divulgada.
- Você acha que se divulgasse, mais pessoas religiosas...
- Tanto romeiros, como visitantes, eu acho que chegariam (Viviane, moradora de Monte Santo).

Quer dizer, uma cidade dessa... uma cidade bonita... Que tem uma paisagem linda, que todo mundo admira, né? Mas, tudo isso, infelizmente, a gente vive ao Deus dará, né? (D. Elvira, moradora de Monte Santo).

Ou como diz texto do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Arqueológico Nacional), exposto em painel no Museu da cidade:
A atividade turística de Monte Santo, [sic] é voltada para o turismo religioso, este que é sem dúvida o seu principal potencial econômico e o turismo cultural pela sua participação direta na Guerra de Canudos9

E, como já dito, têm principalmente os inúmeros exemplos de milagres e fé, expressos nos ex-votos, nos sacrifícios realizados pelos romeiros, nas experiências pessoais. Neste sentido, aliando beleza, a história e os milagres, em Monte Santo todas as condições para a produção de um turismo religioso estariam dadas.
            Entretanto, há uma quantidade de angústia generalizada entre os moradores de Monte Santo de que a cidade não se “desenvolve”, não “progride”, apesar de reafirmarem o tempo todo que a cidade mudou muito nestas últimas décadas, se “modernizado”. No entanto, e apesar disso, continua “atrás” até da cidade vizinha de Euclides da Cunha, que até a década de 20 do século passado era um povoado de Monte Santo. As razões pelas quais os moradores tentam explicar este ritmo lento do progresso, apesar do capital religioso, ou seja, apesar de se tratar de uma cidade religiosa, é de duas ordens, de duas falhas humanas da cidade.
            A primeira delas é da ordem do político. Como disse D. Elvira na introdução desse texto, assim como está claro na fala de Viviane, “se tivesse divulgação para o turismo chegar”... Além disso, se os políticos, a prefeitura o Estado se interessassem realmente e investissem na infra-estrutura “turística” da cidade, tudo seria diferente e o “progresso” através do turismo chegaria à cidade.
Aí eu digo, venha Mísia, pode arranjar aí uma lotação e quarenta pessoas, aí você traz pra cá pra quê? Subir o morro, descer e tá acabado. Quer dizer não tem uma piscina, pra dizer ali tá uma área de lazer . [...] Só subir o morro e descer e depois o quê? Não tem uma outra coisa. A gente olha assim e procura o que tem? Nada. Falando-se de turismo não tem nada, e tem tudo pra ter turismo, né? Tem tudo para ter o turismo e não tem” (D. Elvira, moradora de Monte Santo).

Percebe-se aqui três idéias: a primeira de que o turismo é visto como lazer, e portanto o turismo para poder existir tem que ter uma infra-estrutura de lazer, pois só o religioso (o monte) não seria suficiente para atrair o lazer10 . A segunda idéia, implícita, mas corroborada pelos outros discursos, é de que esta infra-estrutura de lazer tem que ser dada pelo poder público e político, que por interesses particulares não “trabalham” pelo coletivo. A terceira idéia, sempre presente e já explicitada aqui, é o potencial turístico latente da cidade.
            Entretanto, a ordem política não é a única razão avançada pelos moradores para o não desenvolvimento da cidade.
Como é que pode ser uma cidade tão religiosa e não é moderna, não tem desenvolvimento. Aqui a religião é pouca, a fé é pouca (Fernando, morador de Monte Santo).
Este foi um dos primeiros comentários que ouvido logo na primeira estadia em campo. Este jovem desempregado, e que pretendia migrar para Salvador, demonstrava a sua perplexidade diante do fato de se encontrar em uma cidade “santa”, mas que não parecia abençoada. A explicação encontrada por ele para esta aparente incongruência, seria a falta de fé dos seus moradores que, no fundo, não seriam religiosos de verdade. Mas, esta constatação e relação, nem sempre implícita, sobre fé – ou sua falta – e desenvolvimento, pode ser entendida em muitos discursos de outros informantes, mesmo entre aqueles que também designam também o domínio político como um dos fatores deste não desenvolvimento.
A fé de Monte Santo, apesar de ser uma cidade que se diga que é uma cidade de muito catolicismo, mas a fé tá lá embaixo (D. Elvira, moradora de Monte Santo).

Não haveria aqui uma contradição, pois todas as duas falhas ou “faltas” seriam humanas, ao mesmo tempo em que o político e o religioso não são duas dimensões incompatíveis: a falha política pode ser, além disso, derivada de uma falta anterior, religiosa. De qualquer forma, o que interessa aqui é que a explicação última para a estagnação da cidade poderia ser atribuída a um castigo da própria Santa Cruz, que presenteia a cidade com o seu poder e recebe em troca a pouca fé, ou seja: teria havido uma quebra na relação de reciprocidade que existia entre os fiéis moradores da cidade e o sagrado. Quebra de reciprocidade esta que se expressaria, sobretudo, pela conversão de vários católicos de Monte Santo ao protestantismo, isto a partir da década de 80 do séculu passado. 
            Vale ressaltar que, para muitos moradores do município, a demonstração real de fé se expressa no modelo “romeiro”, nos rituais e sacrifícios realizados pelos “de fora”.
- Por que você acha que o povo daqui não sobe [ao santuário]?

  • Para falar a verdade, acho que o pessoal daqui mesmo não tem aquela fé como muitos romeiros têm, que o pessoal de fora tem aquela fé, faz promessa. Só que o pessoal daqui não ta nem aí. Só vão na igreja e pronto. (Mocinha, moradora de Monte Santo).

Haveria, portanto, um padrão de maior exigência em relação ao que seria uma fé e prática real católica, compatível com o santuário que pertence à cidade. Entretanto, e curiosamente, para alguns romeiros, o fato mesmo de se encontrar tal santuário em Monte Santo, explica em si mesmo que os seus moradores teriam mais fé do que eles mesmos.
- Você acha que quem tem mais fé: são as pessoas de Monte Santo ou são os romeiros?
- Monte Santo, você sabe que é conhecida no Brasil inteiro, através da Santa Cruz. É... Muitas pessoas vêm pagar promessa, aqui tem muitas pessoas que acreditam, tem muitas pessoas que tem muita fé, sabe? E as de fora também. Acredito que as [d’]aqui são mais. A maioria da população, que são católica” (Elcio, romeiro).

É certo que esta opinião não é absoluta. O que torna interessante este campo é exatamente a diversidade de imagens e idéias que estão em jogo: para muitos romeiros, eles são possuidores de mais fé! E, com relação aos próprios habitantes, esta idéia de mais ou menos fé pode ser relativizado quando entra em jogo o ritual da Semana Santa (M. Reesink, 2006). 
            Mas, para além de questões políticas ou religiosas intrínsecas aos moradores de Monte Santo, há questões mais “macros” que talvez dêem indicações sobre esta “impossibilidade” de tornar o santuário da Santa Cruz, pelo menos na contemporaneidade, num centro de peregrinação de grande prestígio. Como Turner et al. (1978) já demonstraram, existem centros de romaria “centrais” e outros periféricos que formam certo “sistema” ou conjunto, engendrando uma hierarquia entre eles. Há certos centros de peregrinação que são bem-sucedidos, isto é, que adquirem fama e capital religioso, cada vez maior, outros que minguam e, acrescentamos, muitos que são vivos, mas que estão dentro da “rota” dos centros “centrais”, portanto, hierarquicamente inferiores dentro do sistema, mesmo que sejam fundamentais para a alimentação e circulação da fé e dos peregrinos neste sistema. Pode-se dizer que Monte Santo se enquadra neste último gênero de centro de romaria. Permanece forte e atraindo sempre mais romeiros, mas ao mesmo tempo tem que conviver com a concorrência de outros centros mais “fortes” e famosos, sobretudo, o santuário de Bom Jesus da Lapa, que se localiza na Bahia e, proporcionalmente e emocionalmente falando, não muito longe da área de atuação do Santuário da Santa Cruz.
            A comparação com Bom Jesus da Lapa está sempre implícita ou explícita. Inúmeros são os católicos que dizem freqüentar os dois loci de peregrinação. Para alguns, as diferenças entre os dois limitam-se a questões geográficas e ambientais, para outros, há diferenças de fé.
Muita gente se pega com a Santa Cruz e tem resultado, eu acho que tem. É a mesma coisa de Bom Jesus da Lapa. Em Bom Jesus da Lapa, eu já fui lá. Lá tem muita prova, muito testemunho que teve milagre. Aqui também teve. Teve aqui também (S. Torres, morador de Monte Santo).

- Já foi para outra romaria?
- Já.
- Pra onde?
- Já fui pra Bom Jesus da Lapa
- A romaria de Bom Jesus da Lapa é diferente da de Monte Santo?
- Em umas partes, só quase uma só. Só é diferente a cidade, mas o mesmo sistema que é aqui é lá (Olavo, morador de Monte Santo).

- A senhora vai pra outras romarias?
- Vou, pra Juazeiro do Norte, pra Lapa ...
- E a senhora acha que a fé desses outros lugares também é tão forte quanto aqui?
- Lá é mais forte que aqui, na Lapa, no Juazeiro do Norte, é mais forte que aqui (D. Mercedes, romeira).

Fica evidente que, enquanto para os habitantes de Monte Santo as diferenças se restringem a questões “arquitetônicas”, ou seja: com relação ao poder milagroso os dois santuários são iguais, ou como disse de forma feliz o primeiro informante, os dois fazem parte, possuem o mesmo sistema; para a senhora romeira, há uma evidente hierarquização entre os santuários sertanejos, incluindo aqui Juazeiro do Norte: tanto aqui quanto em Bom Jesus da Lapa há mais fé, pode-se inferir, há mais milagres, mais romeiros, mais poder.
Mesmo que haja exemplos de romeiros que nunca foram a outras romarias, boa parte deles foi impedida de ir por questões econômicas. Claro é que muitos têm uma devoção primeira à Santa Cruz e, portanto, entre escolher ir para uma outra romaria e ir para aquela de sua devoção, ficam com a última opção. Mas, o que interessa aqui é que não se pode pensar o crescimento e desenvolvimento do afluxo de pessoas ao Santuário da Santa Cruz sem levar em consideração sua posição relativa aos outros centros de peregrinação. Pois os romeiros, e mesmo os moradores de Monte Santo, o fazem, quer para igualar a Santa Cruz aos outros, quer para colocá-la numa posição inferior na hierarquia dos santuários. E todo o sentido lógico ou cosmológico da atração a um santuário está no fundamento da fé e de sua relação com a prova, dentro do regime de milagre (M. Reesink, 2005) e em relação com o regime de salvação (E. Reesink, 1999): ou seja, na capacidade que ele tem de “provar” seu poder milagroso e na “fé” que os romeiros, ou católicos em geral, lhes dirige.

Turismo religioso: secularização do santuário?
            Estas questões discutidas acima, entre fé e desenvolvimento econômico através de um santuário de peregrinação, estão intimamente relacionadas a questão da transformação ou não desses centros de peregrinação em centros de turismo religioso, e, consequentemente, implica em refletir sobre possíveis distinções entre romeiros e turistas, ou sobre dessacralização ou não do santuário religioso a partir da sua comoditização.
            Dentro dos estudos antropológicos que tratam do turismo é possível se identificar duas linhas de abordagem (Stronza, 2001): a primeira que se volta para a história do turismo e o próprio movimento turístico, a segunda que se volta para os nativos e o impacto que o turismo provoca nas suas vidas e comunidades. Entretanto, como bem nota Stronza, ambas as abordagens terminam por conhecer apenas a metade do fenômeno, pois uma foca sua atenção nos turistas e a outra na comunidade. Se isto é verdade para a análise do turismo em geral, apesar dos esforços atuais visando reverter esse quadro (Stronza, 2001), no que se refere ao fenômeno do turismo religioso parece haver uma tendência de relativizar um pouco mais essa “dicotomia”, dando um certo enfoque ao locus, mas deslocando a sua problemática para a distinção e/ou separação entre as figuras do turista e do romeiro.
            Na realização desse deslocamento, o que vemos é a maior parte dos estudiosos que realizam pesquisa sobre locais de peregrinação, abordando também o seu potencial turístico, tentarem superar o dilema da distinção/semelhança ora pendendo, num extremo, para uma definição englobante que anula distinções entre turistas e romeiros ou, ao contrário, adotando uma posição de marcar as especificidades e diferenças entre estas duas categorias. Pode-se antecipar logo que, em ambos os casos, os dilemas e as problemáticas de uma definição ou de definições parecem não ter sido ainda superadas.
            Assim no pólo mais radical de uma definição geral ou única para as duas categorias, por exemplo, encontramos a posição de Rinschede (1992) baseada numa idéia anterior em que turismo é definido como “movimento”, melhor dizendo, “deslocamento”. Assim, todo e qualquer deslocamento, no sentido de saída temporária de lugar de habitação em direção a outros lugares, independente dos objetivos, é uma atitude turística, donde a idéia que toda peregrinação é, portanto, englobada na classificação de turismo. A discussão passa a ser não mais as motivações ou comportamentos diferentes, mas a duração desse deslocamento e a distância entre os dois pontos.
            Sem atingir este grau de “radicalismo”, onde tudo é definido pelo “deslocamento”, encontramos uma boa parte de antropólogos que tendem a ver uma forte aproximação entre as duas categorias, sobretudo quando se adotam, na análise do turismo em geral, a teoria de Turner et al. sobre a peregrinação como um momento de communitas em contraposição ao momento societas da vida cotidiana. Para estes, aliás, “A tourist is half a pilgrim, if a pilgrim is half a tourist” (Tuner et al, 1978: 20). Dentro dessa mesma linha, mais suavizada, encontramos a posição de Graburn, argumentando que:
“One is led to the conclusion that there is no hard and fast dividing line between pilgrimage and tourism, that even when the role of pilgrim and tourist are combined, they are necessarily different but form a continuum of inseparable elements” (Graburn, 1983: 16).

A preocupação aqui é não fazer uma radicalização e confundir turista e romeiro, mesmo porque muitos são os críticos desta posição. Ao contrário, tende-se a ter um cuidado para não se cair no simplismo de eliminar as ambigüidades e complexidades das duas categorias, ao mesmo tempo afirmando-se que a relação entre elas é profundamente estreita e, sobretudo, estrutural. As diferenças são, assim, posicionadas nos pólos e, então, são resolvidas no contínuo que uniria romeiros e turistas. Estes pesquisadores, na realidade, tendem a levar em consideração sim as possíveis diferenças, mas a ênfase e a preocupação são postas, aparentemente, nas semelhanças, mesmo que estrutural.
            No pólo oposto, encontramos também a preocupação com graus de semelhanças, mas aqui o peso é posto, sobretudo, na reflexão e na definição para marcar as diferenças. Assim, Cohen (1992) apresenta, de forma interessante, a sua perspectiva de distinção entre turistas e romeiros, em que a diferença repousa não só na concepção de centros de peregrinação concêntricos (ou aqueles que têm uma grande relevância, mesmo estruturante, para uma dada cultura ou sociedade), e de centros de peregrinação periféricos (que estão, de alguma forma, à margem da sociedade ou cultura dominante). Ela repousa, sobretudo, na idéia de que o “deslocamento”, simbólico e geográfico, para “dentro de si” é típico da categoria romeiro; enquanto o “deslocamento” para “fora de si” é típico da categoria “turista”; existiria ainda uma categoria intermediária, aquela em que um indivíduo se desloca dentro da sua sociedade ou cultura para um centro de peregrinação periférico, o que seria então, uma combinação das duas categorias para formar o romeiro-turista. O ponto de união entre estas diferentes categorias seria o “deslocamento”, o ponto de separação seria a “motivação” desse movimento, para dentro, para fora, ou um meio termo, nem fora e nem dentro.
            Em uma perspectiva que, de certa forma, radicaliza as posições acima, Eade defende uma postura não essencialista e que não tome as categorias “turista” e “romeiro” como unidades.
Nonessencialist accounts of tourism need to be explored, making use of recent pilgrimage studies focusing on the deconstruction of such unitary categories as pilgrim and tourist. Behind the superficial analogies between pilgrimage and tourism, there lies a more complex world of dissonance, ambiguity, and conflict”.  (Eade, 1992: 31).

Na sua perspectiva, apoiada sobre uma grande importância dada aos dados etnográficos e ainda sobre a crítica à concepção que Turner tem de communitas-pilgrims, o autor defende não só que as analogias entre turistas e romeiros são superficiais, mas ainda que cada categoria em si mesmo não é uma unidade, havendo diferenças de comportamento, de motivações e de visões do próprio fenômeno dentro de cada categoria. Esta abordagem de Eade, que consensualmente vem sendo chamada de pós-moderna, como bem observam Badone et al (2004) e Collins-Kreiner (2010b), vem se tornando cada vez mais dominante no campo dos estudos sobre peregrinação e turismo religioso, em que a tendência é de tomar o ponto de vista subjetivo como dado de interpretação dos fenômenos em questão, tendendo-se a negar a possibilidade de objetivação desses dados.
            Se a preocupação e a abordagem de Eade, e seus seguidores, são realmente válidas e interessantes, sobretudo, pelo valor dado por Eade à etnografia, a partir da compreensão da peregrinação como um complex world, o autor estranhamente nega qualquer tipo de definição êmica das categorias em questão, posição esta que parece  levar de volta ao ponto de partida. Permanece-se, então, e como já dito, na mesma problemática sobre como construir definições que dêem conta de semelhanças e/ou diferentes entre romeiros e turistas, pois as abordagens não resolvem o problema da ambigüidade e complexidade do fenômeno.
A minha abordagem, que não pretende de forma alguma resolver todos os problemas, se aproxima em certo sentido da adotada por Eade, quando ele propõe levar a fundo a complexidade etnográfica dos fenômenos ligados aos santuários de peregrinação.  Entretanto, separo-me de sua posição, pois creio que a melhor forma de, ao menos, diminuir a dificuldade de definição existente, se dá com a adoção das definições etnográfica, êmicas. Ou seja, é o próprio campo de pesquisa que deve fornecer os dados/categorias para as construções particulares e contextuais das definições de turistas e romeiros. Dessa forma, parece-me que se deve ter em conta a definição êmica (ou ao menos deva ser pensada como pertinente), pois é ela que leva em consideração essa polissemia de sentidos a partir de um modelo ideal, que sempre existe em qualquer lugar, para se dizer o que é um “turista” e o que é um “romeiro”. Nesse sentido, reafirmo que todos os que participam do sistema de peregrinação constroem um modelo ideal dessas categorias, que são sempre modelos êmicos. Se o pesquisador não leva em consideração isso, ele vai, contrariando o que pretende Eade, apagar essa polissemia de práticas, idéias e significados que são construídos pelos sujeitos, isto é, anular todo o “complex world of dissonance, ambiguity and conflict” que é característico dos contextos de peregrinações. O colorário desta abordagem, é a vantagem de que, com a adoção do modelo êmico dessas categorias, é-se possível objetivá-las e, assim, contextualmente generalizá-las11 .
            Do que foi discutido, pode-se derivar e inferir que a maior parte dos autores, explícita ou implicitamente, e qualquer que seja a sua posição (sublinhando sobre a diferença ou sobre a similitude entre turista e peregrino), faz a relação direta entre turismo e secularização/dessacralização. Assim, os turistas se enquadrariam mais na dimensão ou na busca do espetáculo e do exotismo: haveria aqui uma aproximação clara entre eles. Como diz Steil:
Percebe-se que o quê os peregrinos tradicionais procuram na romaria não é a mesma coisa que move os peregrinos-turistas. Enquanto os primeiros estão em busca da communitas, (…) os peregrinos turistas procuram se reencontrar com a «pura fé», vivida pela massa indiferenciada de peregrinos. Para eles, trata-se de um retorno à nostalgia, vivida de fora, pois eles não conseguem mais alcança-la, tendo em vita que eles são agora na corrente do processo de secularização, (2003: 255)12

Esta idéia de secularizão aparece ainda mais forte, particularmente, quando trata-se de abordar a questão do ponto de vista dos habitantes de um centro de peregrinação. É assim que Mckevitt (2000 [1991]) avança que, em uma cidade italiana, os habitantes terminam por adotar uma visão mais desconfiada, quiçá secularizada, com relação à fé dos fiéis do santuário13 . Dessa maneira, a mesma reflexão que faz Shepherd (2002), para a tendência de se adotar uma abordagem negativa para a comoditização da “cultura” pelo movimento do turismo na literatura especializada, pode ser aplicada para o caso das discussões sobre o turismo religioso em centros de peregrinação. Estas tendem a ver esse movimento como intrinsecamente secularizante, em outras palavras, como modificador de uma certa  “essencia” sagrada da peregrinação, tanto (ou mais) para os nativos do lugar, quando para aqueles que se deslocam para esses centros de peregrinação.
            Entretanto, este tipo de interpretação não corresponde ao que eu encontrei na minha pesquisa de campo em Monte Santo, tanto do ponto de vista dos romeiros quanto dos moradores14 . Nesta cidade, há em princípio uma dinstinção entre romeiros e moradores, mas a distinção se ancora mais na maneira de realizar o ritual e, sobretudo, no tempo/momento de o realizar. Dessa maneira, para o peregrino, o momento de fazer sua romaria é na Festa de Todos os Santos: é durante esse período que ele deve se submeter ao sofrimento, que ele deve oferecer seu sacrifício de subir até o cume do monte da Santa Cruz, às vezes de joelhos, e de lá rezar para agradecer ou solicitar milagres. O dia de Todos os Santos é porisso o momento mais esperado pelos habitantes, pois nessa época, tem-se a garantia de se obter grandes benefícios econômicos. Como me disse um comerciante:
Eu espero o ano todo pelo dia de Todos os Santos. É quando eu tenho ganho. (S. Adão, morador de Monte Santo). 

Mesmo quando não se é comerciante no tempo comum, pode-se ganhar qualquer coisa: alugando quartos, ou vendendo banhos (estes custam, os mais caros, em torno de um euro).
            Neste sentido, e tendo em vista os benefícios econômicos que a cidade adquire durante Todos os Santos, não surpreende de se encontrar entre seus moradores um desejo de explorar o caráter turístico do santuário, da mesma maneira que acontece em outros santuários, como o de Padre Cícero e o do Bom Jesus da Lapa15 .
- Monte Santo é uma cidade histórica, tem muita coisa. Tem um potencial imensurável, só que não é tão explorado. Então muitos não conhecem. Muita gente não conhece. É de uma riqueza imensurável. Histórica. E a questão é essa: de não conhecer; não ser tão divulgada.
- Você acha que se divulgasse, mais pessoas religiosas...?
- Tanto romeiros, como visitantes, eu acho que chegariam.   (Viviane, moradora de Monte Santo).
 
A perspectiva de uma “inclinação” do santuário em direção ao turismo também não parece incomodar o clero local. 
- Como a igreja vê essa... esse consumo turístico da religião?
- A igreja não vê isso como algo negativo, né? Porque a realidade do nosso município, da nossa gente é carente, né? O comércio vive aqui praticamente com as aposentadorias, né? A força de trabalho aqui é a prefeitura, pronto, não tem outra, ou o magistério. Outra coisa não tem, não tem outra alternativa. Nós não somos contra isso, agora precisaria ser [a questão turística], na verdade, ordenada, revista também nessa maneira. (Padre Cláudio).

A justificação para isto é a busca por melhores condições de vida para a população da cidade. Esta postura implicaria em dizer que o próprio clero introduziria aí uma perspectiva dessacralizante, talvez mesmo secularizada, do santuário, ou mesmo do religioso? Evidente que não. Mesmo se a Igreja local não se sinta concernida com a crença e a prática católica dos romeiros, vendo nessas mais uma forma “rústica” de fé, parece-me que para o clero de Monte Santo tirar proveito econômico do santuário faz parte mesmo da lógica deste tipo de prática religiosa. Como demonstrado por Brown (1981), a Igreja Católica possui uma experiência milenar no que se refere a esses tipos de processos: crescimento religioso ao lado do crescimento econômico de um centro de romaria 16.
            O mesmo pode-se dizer com relação aos moradores de Monte Santo. Ao lado de um desejo muito forte de obter recursos econômicos, encontra-se também uma fé extremamente forte no Santuário da Santa Cruz. Neste contexto, pode-se encontrar um mesmo habitante, principalmente, se se trata de um comerciante, falar francamente do potencial econômico do santuário, e por isto mesmo se queixar da falta de investimento público para atração dos turistas, e minutos depois, escutá-lo contar histórias de fé e milagre que lhe aconteceu ou a algum membro da família, como é o caso de D. Elvira e de Iva.
- Se houvesse mais propaganda para que o turismo enfim chegasse aqui! […].
- A senhora já teve milagre?
- Eu já. Ave Maria! É só pedir com fé. Agora mesmo eu tava com minha irmã doente, pedi a ela [Nossa Senhora das Dores], que ela  mostrasse um meio de saber o que ela tinha, saber o que era. Isso foi um remédio que fez mal a ela, ela passou cinqüenta e sete dias internada no Hospital da Clinicas, saiu dia 21 de setembro. Agora, amanhã, ela vai subir a Santa Cruz pra assistir uma missa. (D. Elvira, habitante de Monte Santo).

- O que você acha dos romeiros?
- Eu gosto demais, porque dá movimento na cidade. Aqui na cidade, mesmo, os comerciantes tem que agradecer aos aposentados e aos romeiros, por que se depender de outro movimento... […] Agora, é o pessoal de fora que fazem mais promessa dia de festa [Todos os Santos]. Os daqui fazem mais em dia normal. Mas, só de sentir aquela paz, aí já é uma satisfação. Você vai subindo... Eu mesmo já fiz promessa assim de ir acendendo uma vela nas capelas principais e quando você termina é aquela paz que eu já falei. (Iva, moradora de Monte Santo). 

Percebe-se, então, a inexistência de qualquer contradição, para estes habitantes, entre, digamos, um “desejo turístico” e o caráter milagroso, sagrado do santuário. Este movimento que se poderia interpretar como secularizante não parece incomodar os habitantes da cidade. Além disso, se a festa de Todos os Santos é o momento do seculum para a cidade, esta possui para si mesma o seu momento sagrado: a festa da Páscoa, como já dito. É então que os católicos da cidade se juntam em torno da igreja e do santuário para comemorar a morte e a ressurreição de Cristo. Nesta época, deve-se dizer que todo o comércio permanece fechado.
            O que tenho procurado discutir nesta sessão, então, é se há de fato uma relação, do ponto de vista etnográfico, do turismo como fator de dessacralização dos santuários. O que meus dados de campo demonstram, portanto, é que, no caso de Monte Santo, a relação entre turismo e santuário não leva necessariamente, ou mesmo ao contrário, a uma dessacralização ou secularização do sítio religioso.
            Primeiro, sem negar que existe, certamente, um elemento dessacralizante ou mesmo secularizante quando se trata da questão do turismo, disso não decorre que para os habitantes de Monte Santo turismo implique em dessacralização. Para eles trata-se simplesmente de uma dimensão possível do sagrado a ser explorada, sobretudo, porque eles são conscientes que são os milagres os que são realmente capazes de atrair turistas e romeiros. Neste sentido, do ponto de vista dos moradores, a comoditização do seu capital religioso não implica em secularição, mas antes trata-se de um mecanismo bastante espalhado pelo mundo das festas religiosas católicas. Afirmar que estes moradores, no momento que eles desejam a chegada do turismo, levam o santuário em direção ao processo de secularização, é não compreender que, para eles, o mundo é cosmologicamente dividido entre tempo secular e tempo sagrado, e, dessa maneira, existem contextos onde é possível superpor um tempo ao outro (M. Reesink, 2003). 
            Segundo, no contexto da peregrinação, o secular, ou seja, o turismo, precisa do sagrado. Isto quer dizer que o movimento turístico secularizante não pode realmente acontecer, pois levaria ao seu próprio fim. Em outras palavrar, encontraríamos aqui o estabelecimento de uma cumplicidade entre turismo e peregrinação, ou secular e sagrado - e aqui mais uma vez a sua superposição - em que a existência do primeiro depende exclusivamente da força e da continuidade da fé e dos eventos milagrosos. Ve-se, portanto, que o encontro entre turismo e peregrinação instaura um diálogo em que não existe o interesse de nenhum dos dois em negar a existência ou a possibilidade do outro. De qualquer forma, parece evidente que é o secular, a lógica turística, que é o lado mais frágil nesta relação: pois, não há turismo religioso se não há mais religião; se isto é verdade para o turismo/secularização, não o é para a peregrinação, pois, a única coisa que faz viver um santuário é a fé. Assim, é necessário apenas que uma pequena parte do mundo seja encantada para que exista um peregrino.
Conclusão
Parece-me, então, que para pensar a cidade de Monte Santo o seu santuário, a relação com os de fora (romeiros e/ou turistas), o seu desejo de desenvolvimento através da comoditização do seu capital religioso, ou dessacralização/secularização, é necessário ter em mente, como ponto de partida para a análise, a questão da fé dentro da cosmologia católica, e as implicações disto no regime de milagre, nas relações de reciprocidade estabelecidas com o sagrado e nas implicações dessas relações nas vidas concretas dos sujeitos que “fazem” a cidade e o santuário da Santa Cruz. Quer sejam eles os “de fora” ou os “de dentro”.

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1 O Brasil é dividido em cinco regiões geográficas (Norte, Sul, Norderte, Sudeste e Centro-Oeste), cada uma contendo um número determinado de Estados que compõem, no total, a federação brasileira. A Bahia situa-se na região nordestina, considerada a região brasileira com o menor IDH. É nesta região que se encontra a área ecológica do sertão.

2 Guerra civil entre o exército republicano brasileiro e os seguidores do beato Antônio Conselheiro, em 1897, que não aceitavam a autoridade da recém-instaurada República e a conseqüente separação entre a Igreja Católica e o Estado. Para uma melhor discussão do evento, ver E. Reesink, 1999.

3 Dentro do complexo cristão, o desenvolvimento e a instauração de cidades a partir de um núcleo de devoção e peregrinação são recorrentes desde os primórdios do cristianismo (Brown, 1981), na Europa, mas também nas outras regiões cristãs e ocidentais, como é o caso do Brasil (Cavignac, 1997).

4 Como lembra Pires (2003), em sua descrição de uma cidade no sertão do Estado da Paraíba, a festa religiosa está presente não só no período em que ela acontece, ou seja, no que seria o extra-cotidiano nas palavras de Turner (1974), mas também antes e depois do seu acontecimento, em tempos ordinários, pois ela está sempre presente na vida da cidade.

5O ritual da Semana Santa também inclui a subida da serra e a performance da via crucis. Entretanto, todo o ritual durante os  sete dias da semana santa é mais elaborado, incluíndo a descida das imagens da Igraja da Santa Cruz (Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora das Dores, Senhor Morto), em dias diferentes, e depois o seu retorno, com procissão das imagens pela cidade.

6 Mesmo que o valor monetário seja baixo, a aposentadoria apresenta uma função social redistributiva muito significativa para os pobres e muito pobres.  Ajudam, sem dúvida, a evitar desastres sociais de maior envergadura. Se há economistas que reclamam que os trabalhadores rurais não contribuíram durante sua vida ativa e causam déficit, a contrapartida de possibilitar uma vida minimamente digna com efeitos benéficos que se espalham para o grupo doméstico ou parentes em outras casas representa um fator de estabilidade social da maior importância.

7 Outras alternativas não são rejeitadas, mas pouco vislumbradas ou então consideradas com pouca possibilidade de serem implantadas com sucesso.

8 Se seguirmos a classificação dos três estágios de desenvolvimento de centros de peregrinação proposta por Collins-Kreiner (2010a), levando em consideração não só afluxo de pessoas, mas infra-estrutura, níveis de investimento de agentes formais (estatais ou privados), área geográfica de atração, diria que Juazeiro do Norte cabe no “estágio formal” (e mais deselvolvido); que Bom Jesus da Lapa situa-se intermediariamente entre o “formal” e o “semi-formal”; e que Monte Santo se encontra intermediariamente entre o “semi-formal” e o “espontâneo-popular”. 

9 Lembramos que o Santuário do Monte Santo foi tombado como patrimônio cultural brasileiro pelo IPHAN. Além disso, a cidade de Monte Santo também está historicamente ligada à Guerra de Canudos e ao Conselheiro, como dito. Este, aliás, é citado na mitologia do santuário como um dos seus fundadores; além disso, ele restaurou parte do caminho da Santa Cruz e, para completar, tem em Monte Santo a narrativa de um dos seus poucos milagres.

10 Para uma discussão mais refinada sobre turismo e romaria, lazer e sacrifício, etc, ver M. Reesink et al, 2007.

11 De forma simplificada, pode-se dizer que, no contexto de Monte Santo, turismo/turista está ideal-tipicamente ligado a lazer/tempo disponível/condições econômicas, enquanto romeiro/peregrinação está ideal-tipicamente ligado a fé/sofrimento. É em relação a estes tipos ideais êmicos que tanto os de dentro quanto os de foram se movem e classificam os outros.

12 Claro que o autor tem o cuidado de, na sua conclusão, dizer que não se pode afirmar que os peregrinos turistas são secularizados. Contudo, esta ressalva não é suficiente, tendo em vista o que ele afirma no parágrafo que cito.

13 Vale sublinhar que, numa abordagem interessante, Mckevitt acrescenta que os habitantes viveriam em um tempo histórico, enquanto os romeiros passariam pela experiência de um tempo cosmológico.

14 Para uma discussão detalhada do ponto de vista dos romeiros e/ou turistas, ver M. Reesink et al 2007.

15 Essa mesma busca de transformação do capital religioso em capital turístico pelos próprios nativos também pode ser vista na descrição, e discussão, de Tate (2004), sobre a festa religiosa da Semana Santa em Léon, Espanha.

16 A descrição de Kosansky (2002) sobre peregrinações judaicas no Marrocos também serve como contraponto interessante para o caso cristão. Aqui também vê-se o intercrusamento entre peregrinação, turismo, caridade e ganho econômico, em que não parece haver uma incompatibilidade entre estes termos: ou seja, em que um não significa a anulação do outro.