Observatorio de la Economía Latinoamericana

 


Revista académica de economía
con el Número Internacional Normalizado de
Publicaciones Seriadas  ISSN 1696-8352

ECONOMÍA DO BRASIL

 

NUVENS NEGRAS SOBRE A REPUBLICA: O PARAISO EM TREVAS. DESAFIOS À EMANCIPAÇÃO NO BRASIL

Paulo Alves de Lima Filho
IBEC-Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política-UNESP-Marília
palf@uol.com.br

 

Introdução

Minha geração tem os olhos postos em 1964. Ali nascemos para o tumulto da contra-revolução capitalista. Sem esta data não entenderíamos quem é Luis Inácio da Silva ou como um prócer da ditadura hoje não só é conselheiro e defensor dos democratas pequeno-burgueses no poder como, além disso, põe-se e é nesse afã aceito como defensor-mor e intérprete oficioso, na grande imprensa, da esfinge Lula[1].

            A história do Brasil é por demais complexa para que exercícios teóricos existencialistas e impressionistas dêem conta do recado de interpretá-la a contento. Não se trata de um vão apelo pró-totalidade, mas da complexidade específica de nosso devir histórico. Devir ainda esquivo mesmo após estes três últimos séculos de esforços decifratórios. De fato, como já disse alguém, o entendimento do Brasil não é para principiantes. Talvez, em maior ou menor medida, assim seja para a história em geral, mas esta que nos determina e é por nós determinada nos é particularmente áspera, recatada e surpreendentemente enigmática.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Alves de Lima Filho, P.: "Nuvens negras sobre a republica: o paraiso em trevas. Desafios à emancipação no Brasil" en Observatorio de la Economía Latinoamericana, Número 80, 2007. Texto completo en http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/


 

História e longa duração

            Afirmo sermos antes de tudo compreensíveis no tempo longo da história, na longa duração. Somos quase inacessíveis se não nos entendemos como parte da civilização ocidental, império romano ibero derramado em novos espaços, momento sucessor das guerras da Reconquista, da independência de um condado nascido de uma costela de Galícia, de uma revolução burguesa começada no século XIV – um século após o renascimento árabe - e continuada nos séculos seguintes com a invenção do negócio do Novo Mundo[2]. Uma revolução a unir contraditórios interesses específicos de nobreza e clero, burgueses cristãos e judeus assim como pequenos burgueses e se realiza primordialmente pelos capitais acumulados escravistamente nas terras coloniais. Uma revolução burguesa cristã evoluída em anti-judaica na tradição do Novo Testamento e fortemente definidora do destino da pequenina metrópole. Esta, em permanente luta e unidade com a ex-potência-mãe espanhola e demais potências a sucederem-se no tempo dos séculos seguintes à descoberta da terra dos muitos nomes, a qual enfim viria a ser Brasil. Descoberta que não é o ato primevo fundante, mas episódio projetado da revolução burguesa, momento da saga da acumulação de capital longamente decidida.

            Talvez elas sejam as mais antigas revoluções burguesas européias, as de Portugal e de Espanha, revoluções conservadoras. Inusitadas: as classes feudais cristãs e suas burguesias cristãs em seu afã de realização histórica exclusivista expropriam e cooptam pela conversão religiosa forçada, no intervalo de aproximadamente um século a mediá-las, as burguesias de outra fé religiosa ali há séculos estabelecidas[3]. As classes feudais assim transmutadas de classes feudais em aburguesadas, as burguesias cristãs e neo-cristãs enobrecidas e as burguesias judias expulsas e emigradas, unidas em conluio contraditório para a acumulação dos vastos capitais coloniais. Daí a surpresa dos nossos pequenos burgueses, há mais de um século lamuriando-se pela bastardia progenitura das burguesias nativas, supostamente infiéis aos ideários das outras revoluções burguesas européias. Nossos ignaros pequenos burgueses não sabem que a nossa burguesia nativa é a seu modo cristã e católica, escravocrata, ocidental e liberta pelo berço de outras veleidades ideológicas. Não pode ela reger-se pelos figurinos ideológicos forjados em outras condições históricas[4].

            Nobreza, clero e burgueses governam a revolução burguesa que abarca o mundo colonial, processo fora dos padrões das revoluções burguesas européias dos séculos posteriores. Revolução que se congelou durante quatro séculos na reprodução social para a acumulação do capital mercantil. O senhor de escravos das fazendas de cana e da extração ou exploração de outras mercadorias coloniais, é de fato um capitalista, um acumulador de capital, persona do capital[5]. Ao longo dos quatro séculos de colônia e outro de independência e umas três décadas de república, as outras burguesias nativas, usurpadas em suas prerrogativas de acumulação, igualmente escravocratas, irão dissociar-se de suas irmãs coloniais e ao lado dos pequenos-burgueses empurrarão a acumulação de capital a rumos mais republicanos. Eis a razão pela qual o republicanismo vinga e evolui com extremo vagar nesse mundo de burgueses coloniais poderosos.

O capitalismo e a longa duração

            Assim foi que o capitalismo propriamente dito afirmou-se na Europa como resultado da realização de revoluções burguesas distintas das ibéricas (em Espanha e Portugal, ambas, embora apontem para o negócio colonial escravocrata, se processam diferentemente). Enquanto os neo-burgueses feudais e burgueses cristãos novos e velhos e outras burguesias européias dedicaram-se a acumular o capital mercantil, outras burguesias nacionais tiveram que livrar-se de suas classes feudais (algumas tiveram, depois de vitoriosas, que se aliar a elas) entre os séculos XVII e XVIII, tendo para isso que forjar outras ideologias para poder livremente acumular capital em seu espaço nacional. Assim foi com as revoluções holandesa, inglesa e francesa, mais a norte-americana, as quais tiveram que forjar outras ideologias cristãs ou anti-cristãs para levarem a bom termo as suas revoluções anti-feudais[6].

            Ao contrário das burguesias ibéricas, submissas ao mando senhorial das classes feudais aburguesadas, todas as demais revoluções anti-feudais tiveram de derrotar as classes feudais para a livre acumulação de capital. Ao se realizarem no seu espaço histórico ancestral, em solo histórico nativo, puderam evoluir para muito mais além dos imperativos coloniais dado que a posse de colônias, para elas, será decorrência da derrota feudal.

A particularidade - o capitalismo da miséria

            E foi assim que entre nós, durante cinco séculos forjou-se uma sociedade solidamente ancorada no nível zero de humanidade, onde o trabalhador para produzir valores à acumulação privada, dentro e fora da colônia e do império politicamente independente, era despojado de sua condição humana. Reduzido a coisa, coisa de valor, mercadoria, força de trabalho em estado puro, descontaminada das necessidades da espécie animal da qual emana. Esta mercadoria sublimada de humanidade produz-se e reproduz-se em sociedade igualmente desumana, governada por classes dominantes desumadas, fortemente instaladas no nível zero de humanidade, no nível máximo de coisificação das relações sociais, de alienação ao capital. O nível zero de humanidade é o nível máximo de alienação ao capital, no caso à acumulação pentasecular do capital mercantil. À máxima miséria do trabalhador corresponderá igual correspondência de toda a reprodução social, a máxima miserabilidade da máxima acumulação possível. O único compromisso humano desta sociedade é para com a idéia de homem, vivida no seu livro sagrado, ou seja, sublimada das condições históricas concretas. Vive-se na idéia aquilo que se nega na vida. Sublima-se a humanidade do trabalhador e assim também do proprietário desse trabalho sublimado. Ambos só serão homens em Cristo. À humanidade sublimada tem-se a história sublimada.

            Assim forjar-se-á uma sociedade burguesa particular, evoluída em forma histórica capitalista também particular, o capitalismo da miséria. Assim como a desumanidade escravista via-se humanamente genérica na idéia, também se verá assim agora, sob a forma de um capitalismo genérico em processo de humanização crescente, capaz de vir a ser igual aos outros capitalismos brotados do trabalho desigualmente servil da Europa ocidental e evoluídos em capitalismos capazes de emancipar a reprodução social e até colocar a questão ainda irresolvida da emancipação do trabalho. Tal como a idéia do humano na sociedade colonial do capital mercantil estivera na Bíblia, agora a idéia de uma sociedade capitalista estará impressa na história forânea das sociedades nascidas das revoluções burguesas nacionais européias, na história dos outros, constituindo-se, de tal modo, em religião específica dos capitalismos da miséria. Essa realidade européia ou norte-americana convertida em religião indica a condição apendicial dessa nova sociedade do capital nascida no ventre colonial. A sociedade burguesa colonial escravocrata se resolverá nesse seu imanente caráter apendicial e assim ver-se-á projetada em idéia para fora de si mesma. Desse modo a assincronia se imporá na história da evolução das sociedades do capital e projetará para as sociedades do capital a imagem de si própria convertida em credo poderoso e continuista do ancestral credo bíblico. A Bíblia e a o capitalismo genérico enquanto idéia brotada da realidade de suas formas ocidentais européias e norte-americana serão naturalmente a expressão das religiões particulares das sociedades do capital oriundas do negócio colonial. Ambas as sociedades terão humanidades sublimadas, incapazes de se verem na história, na sua própria história. O capitalismo da miséria será uma nova sociedade do capital, irremediavelmente distinta daquelas das matrizes das idéias que o alienam a elas.

Revolução burguesa e revolução brasileira

            As revoluções burguesas quatrocentistas ou quinhentistas (a depender se do mundo colonial português ou espanhol) vanguardeiras e cristalizadas em sua forma mercantil escravista, não transitam naturalmente ao capitalismo propriamente dito, ao capitalismo industrial. Tal trânsito violaria o estatuto genético da poderosa burguesia colonial, sua propriedade oligárquica do poder e da terra, sua exclusividade dominante. O capitalismo da miséria herdará, desse modo, a sublimidade de sua matriz burguesa colonial. Suas burguesias comprarão a mercadoria força de trabalho de seus assalariados e serão fortemente contrárias à aceitação de qualquer responsabilidade social coletiva, estatal, pela existência destes em sociedade.

 A sublimidade burguesa ancestral é visceralmente anti-republicana. A república impõe-se exatamente por isso, por obra de minorias grão-burguesas e da pequena burguesia, mas logo seria tragada pelo feroz individualismo burguês. A sublimidade burguesa e capitalista nascidas no apocalipse colonial, no grau zero de humanidade, na descivilização máxima, na máxima alienação, se vê impossibilitada de naturalmente evoluir à universalização de uma reprodução social sincrônica àquela do capitalismo genérico europeu ou norte-americano, ou seja, de evoluir a graus mais elevados de emancipação social. Exige-se, para que tal ocorra, a revolução política. A inexistência de uma classe grão-burguesa capaz de empalmar a revolução exigirá ao longo dos séculos XIX e XX a ação primordial da pequena-burguesia.

            A questão está em que a revolução burguesa confunde-se, em nosso caso, no caso ibérico, com a criação de nosso mundo colonial. Ele é o desdobramento da revolução burguesa ibérica, a qual criará poderoso e expansivo complexo sócio-econômico burguês colonial dentro e fora da metrópole, complexo primordialmente ibero – holandês - inglês. Uma revolução burguesa ideologicamente católica e anti-judaizante (em Portugal, tardiamente) com as forças decisivas da burguesia ibérica judaica, expropriada, convertida ou emigrada. A revolução brasileira, desse modo, é etapa dessa revolução burguesa e sua marcha à industrialização ocorre de forma natural sob o ferrete da subordinação - imanentemente contra-revolucionário-, pois seu núcleo da acumulação de capital manter-se-á apendicial à ordem mundial desse complexo, manter-se-á circunvagando a órbita dos centros dinâmicos da acumulação[7]. A pequena burguesia, capaz de galvanizar as esperanças republicanas e nacionais imporá as rupturas necessárias, mas será logo absorvida pela ação conjugada das velhas e novas burguesias e suas aliadas imperialistas.

A questão da pequena-burguesia: glória e tragédia

            O coração desta classe são as Forças Armadas, a arrastar os setores profissionais liberais e letrados em geral, com forte apelo popular. A questão militar, contudo, não se restringe à sua função de classe. Mais complexa, pois se trata de ordem estatal armada e dotada de tal função política e econômica e em período tão longo de nossa história, superior à de qualquer outra classe. Ordem capaz de realizar-se economicamente através da captura de parcela importante do orçamento público para suas empresas produtivas assim como realizar-se profissionalmente, via criação de complexo de educação universitária, de institutos tecnológicos e outros específicos das forças da guerra, até transformar-se em ordem propriamente burguesa, quando constrói seu complexo industrial-militar, sob a ditadura. Capaz de comparar-se com ela somente a burguesia paulista com sua USP e seu parque industrial. Não será, porém, por muito tempo ao longo do século vinte e principalmente após a revolução de 1930, mais capaz ou poderosa que as forças armadas. Os militares estão em primeiro lugar, contraditória e indissoluvelmente ligados à luta pela soberania econômica e industrial, pois esta e somente este lhes garante autonomia bélica, e serão também artífices centrais do processo de subordinação econômica ao imperialismo. Este o segredo do sonho brasileiro de potência[8].

            A primeira onda de pequenos - burgueses militares é decisiva e comanda - principalmente a juventude militar-, após a Guerra do Paraguai, as lutas pela abolição e república, as lutas contra o monopólio grão-burguês da política republicana até a revolução de 30. Após esta, inicia-se novo ciclo de expansão dessa classe, através da universalização do ensino público. Ambas estas ondas e suas derivações no espectro político cobrirão todo o século vinte e estes inícios do século XXI, a emprestar-lhe essencial significado. Uma terceira onda iniciar-se-á nos anos sessenta e setenta, a qual dará um colorido todo particular ao espectro político atual.

A questão da pequena-burguesia conforma um tema central da revolução brasileira, das suas glórias e o de sua tragédia. Se a tragédia específica das sociedades burguesas coloniais e dos seus sucedâneos capitalismos da miséria está em expressarem o grau máximo de desumanidade possível do capital e, consequentemente, a realização sublimada de sua humanidade e realidade histórica, vedando-lhes, assim, a possibilidade de auto-percepção da sua história, outra tragédia daí recorrente é a da função central da pequena burguesia na conformação dos capitalismos da miséria até sua realização industrial. Vanguarda burguesa das mais trágicas para o povo proletário, a empurrar até as suas últimas conseqüências a perpetuação da miséria, até a traição plena a desenrolar-se hoje diante de nossos olhos, quando ela majoritariamente se aliará ao capital monopolista dominante, parido na ditadura política de 1964 e crescido e amamentado sob os sucessivos governos da democracia restrita que lhe darão continuidade até os nossos dias.

O projeto do Brasil industrial e sua realização passarão por dentro da revolução de 30 e culminarão com a ditadura da grande burguesia, iniciada em 1964 e continuada até os dias de hoje. Esta ditadura forjar-se-á sob as condições históricas da contra-revolução capitalista movida pelo imperialismo contra a auto-afirmação nacional dos povos dos espaços ex-coloniais, incluída a América Latina. A pequena burguesia e setores burgueses no poder, na vanguarda real da revolução política que se estendia desde 30 até o pós-guerra, não nutre veleidades revolucionárias capazes de levá-la a enfrentar-se decisivamente com o bloco pró-imperialista que forceja por voltar ao poder nele se firmar. No pós-II Guerra o golpe de estado será tentado desde 1945(nesta data, com êxito), no quadro da Guerra Fria, de um fatal alinhamento das forças armadas e conservadoras em geral com o imperialismo norte-americano.As forças armadas, particularmente, exercendo uma desobediência civil cada vez mais escancarada, contra os governos eleitos e contra seus próprios camaradas de armas[9]. A burguesia não será a vanguarda do povo na acepção de certa teoria da revolução brasileira[10]. Não poderá promover a definitiva redenção capitalista do capitalismo da miséria simplesmente porque, por força da história, da particularidade desta sociedade do capital, não há redenção capitalista possível, ou seja, a conquista por obra e graça da vanguarda pequeno-burguesa - dessa suposta burguesia nacional brasileira-, daquele outro capitalismo genérico no qual se projeta o burguês nativo[11]. O capitalismo realmente existente é a sociedade real das burguesias.

É assim que o golpe de estado de 1964 não encontrará resistência decidida dentro ou fora do poder. A tragédia da revolução brasileira esteve em que esta vanguarda pequeno-burguesa não somente não era revolucionária – incapaz, portanto, de enfrentar à altura um inimigo ferrenho, aberta e francamente contra-revolucionário-, como sempre adotou e permanece adotando, frente à declarada estratégia contra-revolucionária do bloco pró-imperialista, concessões conservadoras supostamente destinadas a diminuir o apetite e ímpeto bárbaro da sua contra-revolução permanente. Assim fizeram Getúlio e Jango, assim faz Lula[12]. Na luta em três frentes da vanguarda pequeno-burguesa no rumo da industrialização possível, de um outro capitalismo do capital industrial, a saber, simultaneamente contra o imperialismo, o bloco pró-imperialista e o povo (antes demais nada suas forças socialistas e comunistas), a contemporização histórica se verga aos parceiros burgueses[13]. O rigor e a barbárie da miséria e da contra-revolução não serão enfrentados decididamente. Recairá cronicamente, portanto, sobre os proletários, todo o peso do apocalipse burguês, eis o resultado da tragédia recorrente.

As três revoluções dentro do golpe de 1964 - o golpe das burguesias

            A contra-revolução capitalista promovida mundialmente e na América Latina, orquestrada e financiada pelo imperialismo – em primeiríssimo lugar o norte-americano, em se tratando do quintal latino americano-, realizou-se no Brasil através do golpe de estado de 1964. Para as classes burguesas que dele participam, trata-se da sua revolução, daí o nome inequívoco que elas deram à contra-revolução – revolução de 64, a redentora. Era a sua parte na revolução brasileira, sua marca na história, sua revolução vitoriosa contra a revolução brasileira do bloco popular, nacionalista e democrático. Essa espécie de revolução conservadora foi obra de todas as burguesias: a velha e poderosa burguesia nacional agrária colonial, a novíssima burguesia industrial parida e aleitada nas tetas públicas e as velhas e novas pequenas-burguesias urbanas, com as forças armadas à frente. O significado mais profundo dessa contra-revolução, de tão portentoso, pleno, trágico e duradouro colapso civilizacional, ainda se nos escapa, mas é sem dúvida um marco regressivo maior na formação da nação, cujas reverberações e sentido poderão vir a ser fatais para o seu devir soberano[14].

 Suceder-se-ão, ao longo da ditadura política formal, vários níveis de hegemonia compartilhada cujo eixo é o industrial-militar. O projeto liberal pleno da burguesia agrária, ainda que prospere no útero ditatorial, é adiado mais uma vez, para seu máximo desgosto. A crise geral capitalista, dez anos depois, entretanto, colocará pedras no caminho dessa hegemonia, a qual definhará política e economicamente a partir de 1974, abrindo caminho para que, a partir da segunda metade do governo Sarney, da transição transada, se afirmasse o tão velho e ansiado projeto liberal pró-imperialista.

            Não haveria mais aquela última geração de generais e coronéis da ala industrialista, anticomunista, anti-nacionalista e antidemocrática do exército, esteio da burguesia industrial golpista durante a ditadura política formal. Os arroubos transformistas das oposições, pequena-burguesia à frente, foram sendo sucessivamente enterrados. O velho programa do MDB, escrito pelas mãos dos futuros próceres do PMDB, PT e PSDB, seria rasgado. Em seu primeiro governo, Lula não só não compareceria ao velório de Celso Furtado, como também demitiria Carlos Lessa da direção do BNDES. Ao arremedo de New Deal tardio dos Planos Cruzado I e II, sob Sarney, seguir-se-ia o liberal Plano Real, centrado na estabilidade dos ganhos financeiros. No interregno, o Plano Collor faria avançar o projeto liberal, completado no longo reinado de FHC.

A primeira fala do trono de FHC dizia tudo: vinha liquidar a herança varguista. Estava decretado o fim da revolução de 1930. As velhas burguesias carcomidas anti-republicanas teriam enfim a sua revanche, agora fortalecidas com novos aliados burgueses e pequeno-burgueses, muitos de seus líderes formados em sua alma-mater uspiana, reiniciariam o projeto liberal a partir do desmonte universal do controle social sobre o capital. Ou seja, a partir do fim do ciclo das revoluções políticas e econômicas que levaram ao surgimento do New Deal e dos estados do bem-estar-social, assim como do pós-capitalismo nascido da revolução socialista de outubro de 1917 na Rússia. A partir das duas formas dominantes dos projetos de controle social do capital, perseguidas pelos povos que queriam se subtrair ao destino de barbárie promovido pelo descalabro do capital descontrolado que levara a humanidade ao holocausto de duas guerras mundiais e muitas guerras regionais que as precederam ou conviveram no entre – guerras e que apontava no pós-guerra com o holocausto nuclear.  Reiniciariam o projeto liberal sob a batuta do crescente controle universal do capital monopolista sobre a reprodução social mundial, o que se convencionou chamar de mundialização ou globalização, um novo estágio do imperialismo, nova etapa liberal batizada de neoliberal, sob o império da aceleração da guerra infinita do complexo industrial-militar[15]. A assinalar o caminho de retorno aos velhos bons tempos do diktat mundial do capital financeiro da primeira metade do século XX.

            Na história do nosso capitalismo da miséria brasileiro essa ruptura histórica seria um neo-apocalipse, um momento a assinalar o caminho de retorno ao ancestral patamar zero de humanidade do qual a revolução de trinta, dentro de suas limitações burguesas - o ferrete da particularidade de nosso capitalismo-, aos trancos e barrancos quisera se furtar. Momento a assinalar o caminho de retorno à barbárie.

Ao estado do mal-estar social por ela construído e destruído antes e depois, dentro e fora da ditadura formal, suceder-se-ia a política da estatal - desresponsabilização liberal, da irresponsabilidade social, do anti-republicanismo, da miserabilização ampliada. Sob os escombros da mais cruel das ditaduras, destruidora dos belos futuros possíveis sonhados e batalhados por gerações e gerações de brasileiros - pelo menos a maioria daquelas que desde a catástrofe da Guerra do Paraguai foram construindo uma sociedade apontada para a emancipação-, se construiria o novo cataclisma da regressão liberal privatizante e desnacionalizante, desindustrializante e recolonizadora[16]. Aprofundaria o capitalismo monopolista subalterno e moderno erigido pela ditadura forma, agora sob a forma de ditadura real[17].

“Lideranças burguesas querem repetir-se em bonapartes sem ditadura política, em democratas benfeitores; a burguesia não mais os quer, agora que os militares ganharam a capacidade de produzir seus brinquedos bélicos próprios e, tal qual bons capitalistas, querem tocar adiante seus negócios com o menor risco possível. A burguesia quer a tranqüila ditadura de maiorias burguesas no jogo parlamentar anti-heróico, cordato, burguesmente civilizado, sem intermediários imperial-executivos; quer, enfim, uma estável ditadura do parlamento sobre o povo. A grande burguesia quer enterrar a época dos heróis-presidentes, os quais, montados em seus ombros, flertavam com os militares e povo e a constrangia a assaltava nas ante-salas dos ministérios, lhe impunha grandes futuros estratégicos. Ela não precisa (ou pensa não precisar) mais de seus imperadores protetores a guia-la através do deserto antiindustrialista dos fazendeiros e seus filhos letrados, não precisa mais do espantalho popular para amedrontar a si mesma e a ralé das classes médias pias e ordeiras. Não necessita mais dos comunistas para chantagear o conservadorismo civil-militar; ao mesmo tempo que não se submete ao anticomunismo militar, agora que o esquife oficial e estatal do comunismo é velado em catacumbas vazias e o império do mal está sendo literalmente loteado e comprado pelos donos do dinheiro do mundo[18]. Aos militares lhes reserva cargos nas direções de suas empresas, e outros cargos honoríficos, assento no parlamento e negócios - eles são, de corpo e alma, novos e veros capitalistas - e, negócio feito, pois então que montem um corpo bélico de profissionais e fortaleçam o controle sobre a plebe[19]. Aos políticos, que aprendam de vez a governar em seu nome ou não mais poderão usufruir do caixa dois subtraído aos impostos. Ao povo, este que espere, pois o mar não está para peixe miúdo. Se a burguesia lhe consegue roubar o sonho do herói-presidente salvador, tentará fazer dele um respeitador crente das virtudes do capital e do livre -mercado, para que sua liberdade plena se confunda com a plena autosujeição satisfeita e honrada dos parias da democracia política.

                       (...) A economia política que conduz ao CIM[20] é a da universalização do poder do grande capital sobre a sociedade, enquanto concebe o complexo bélico como redenção do estado aos imperativos científico-tecnológicos do novo capital emergente. Complexo esse, fantasiado de redenção bélica da nação, mas, que, ao realizá-la com fundos públicos, ao conceber-se para garantir os investimentos produtivos dos capitalistas nos setores estratégicos do novo capital ao mesmo tempo que a autonomia bélica da nação - de fato redime a grande burguesia e os militares e solda a si o estado, ganhando este ainda maior autonomia frente a sociedade e igual heteronomia frente à burguesia e militares. Tudo em nome da pátria e sua segurança contra a plebe rude interna e hipotéticos inimigos externos.”[21]

A contra-revolução da pequena burguesia

            Entrementes a vanguarda política dos fragmentos da ex-oposição é majoritariamente ocupada pelas lideranças pequeno-burguesas. Com exceção dos remanescentes da ARENA, elas comandarão todo o status - quo partidário e serão sucessiva e inexoravelmente tragadas pelo projeto neo-liberal, a começar pelo PMDB. Suceder-se-á a ela a nada estranha aliança de vanguardas ideológicas do PSDB e colorida fauna da mesma extração – esta até pertencente a um recém fundado partido da rebeldia regressista liberal radical, o PRN-, a qual promoverá pela via eleitoral um verdadeiro golpe de estado branco de corte liberal e fachistóide, após campanha eleitoral no velho estilo udenista: iracunda, falsamente nacional e democrática, verborrágica, mas de fato profundamente anti-nacional, antipopular, antidemocrática. Assinalava a radicalidade das intenções da velha burguesia colonial de extração agrária e suas alianças pró-imperialistas, que seria prosseguida pelo interinato itamarfranquista e pelo duplo mandato henriquista. Já nesse momento, parcela importante da pequena burguesia e suas lideranças se postavam na vanguarda do território liberal. Restavam as do PT, cujo projeto sofria de dilema teórico insuperável.

Aparentemente postulando uma reforma capitalista de caráter social-keynesiano e contando em suas fileiras com expoentes dos socialismos democráticos pequeno-burgueses, não-revolucionários, assim como com a militância e simpatia de baluartes das escolas econômicas acadêmicas ditas progressistas, a redenção capitalista do capitalismo real das burguesias apresentava-se uma impropriedade em termos. Ora, se as burguesias haviam optado por um capitalismo liberal ou neo-liberal como se queira, como seria possível convencê-la a abandonar o seu projeto, após mais de duas décadas de gestação? Como fazê-la acreditar que a sua redenção capitalista do capitalismo, a sua revolução capitalista era errada e certa a redenção dos pequeno-burgueses do PT? Um projeto social-keynesiano exigiria à sua economia política retomar o enfrentamento dos monopólios a um nível superior àquele tentado por Sarney, assim como fazer o estado recobrar sua força capitalista reitora. Como operar tal feito se o PT não comungava com o bloco esmagado nas duas fases da ditadura, a formal e a sua continuidade pós-abertura? Como realizar uma revolução democrática, social e nacionalista se nenhuma dessas bandeiras era empunhada? Sim, pois se haveria de retomar o caminho paralisado na encruzilhada janguista e nada mais distante disso do que o PT, cujo núcleo ideológico aproximava-se muito do modernismo liberal do PSDB.

            Eis que a resposta chegaria na Carta aos Brasileiros, cujo teor exigiria ser ela melhor denominada como Carta aos Banqueiros e burguesias, burguesia industrial principalmente. Estava liquidada a charada. O último reduto pequeno-burguês também cedera ao projeto do capital reinante. Estava declarada a nova fase específica da revolução pequeno-burguesa, na qual esta adotaria aquilo que se supunha em 1993 ser o sentimento predominante da burguesia neo-liberal, ou seja,

“Após lançar o país ao caos social, cúmplice que foi e é do sonho de grande potência internacionalizada, agora quer reformas sociais e retomada do crescimento com produtividade crescente, quer social-democracia de mercado, um Capital-faire State ligeiramente social, um pouco distinto do estado do mal-estar social atual, como o define Francisco de Oliveira”[22]

Após a saída de cena dos militares, esta era ocupada por completo pelas pequenas-burguesias urbanas da matriz anti-ditatorial. A continuação da revolução conservadora das burguesias, iniciada em 1964, entrava agora em nova e surpreendente fase, a da contra-revolução pequeno-burguesa. Pela segunda vez ela dominava a coalizão burguesa, agora arrastando empós de si uma vasta massa popular. Qual dos gurus da ditadura sonharia com tal desfecho? Não poderia haver uma melhor saída para a ditadura do que o povo ser tangido à sua seringa por líderes populares da sua ex-oposição. A transição transada operara esse milagre.

            Esqueceram-se de Lucas, nossos nobres príncipes cristãos oposicionistas e co-responsáveis pela transição[23]. A transição transada foi o convite a entrar na casa assassinada pelos algozes da revolução de 30, algozes de Vargas e das vãs esperanças econômicas nacionalistas na autodeterminação enterradas com JK. Algozes das vãs esperanças na democracia, na emancipação social e econômica da nação, assim como na democracia ampliada – aquela das reformas econômicas e sociais que se avizinhavam no horizonte do governo Jango. Como se sabe, é dos convidados acomodarem-se sem magoar os donos da casa, moldarem-se aos usos e costumes destes, falarem baixinho, andarem na ponta dos pés, respeitarem a rotina, não contradizerem os hospedeiros à mesa. A ditadura não foi derrotada. Ela continuou, ela manda mesmo após a Constituinte de 88. Nesta, o rescaldo não fora glorioso para as causas emancipatórias.[24]A não-ruptura cobraria o seu preço e este seria o caminho para o inferno.

A contra-revolução da pequena-burguesia, ao acompanhar os desígnios do capital monopolista, selaria o destino da ditadura democrática da burguesia[25]. Dizíamos que ela assinala o caminho de retorno ao campo santo da desuniversalização dos direitos conquistados pelos trabalhadores, ao estágio primevo da desumanização máxima. O inferno é a realização do apocalipse de matriz escravocrata. O caminho de retorno à desimportância da política pois realização do consenso melhorista, impossibilitado de ser testemunha da história, pois imerso na contingência subordinada. Deu nisso, na continuidade da ditadura a manobra da transição transada com as altas personalidades da ex-oposição. Desse modo, a ditadura continuaria a mandar e comandar a evolução da sociedade capitalista do pós-ditadura formal. Uma a uma, as frações da ex-oposição pequeno-burguesa foram sendo tragadas pelo campo da realidade monopolista, pelo território dos seus desígnios inadiáveis. A economia política do primeiro governo Lula é a do último bastião pequeno-burgues a exercer e abandonar um projeto de alternativa capitalista ao capitalismo neo-liberal, monopolista. Deu-se conta de que só iria ao poder se aceitasse a forma específica da economia política da contra-revolução capitalista vinda de Sarney a FHC. Impôs-se a economia política da contra-revolução como única forma possível do governo burguês dos pequeno-burgueses, subordinado aos imperativos globais da dominação financeira.

Estágio contemporâneo da contra-revolução pequeno-burguesa

A contra-revolução pequeno-burguesa é a etapa contemporânea da revolução dessa classe, quando ela transforma-se em vanguarda política da hegemonia do capital monopolista, a substituir as velhas classes dominantes da primeira fase da contra-revolução capitalista vitoriosa em 1964. Dadas a eliminação seletiva dos revolucionários promovida pelos democratas golpistas e consequente anomia dos proletários, pôde a pequena-burguesia fazer-se passar por classe portadora das benesses a ocorrer após o fim do ciclo da ditadura formal, já que ela também havia sido uma classe castrada em sua autonomia e direitos. Ela estava naturalmente mais capacitada para arranjar-se nos marcos da tragédia liberal que se abatera sobre o povo na segunda fase da ditadura, a ditadura real das burguesias, sua ditadura democrática. Suas vanguardas políticas dominavam todos os partidos políticos emergentes da coalizão emedebista. Sua condição de classe letrada a fazia elevar-se e flutuar livremente sobre a massa miserável iletrada[26]. A ditadura formal permitira uma fortíssima monopolização, internacionalização e integração dos complexos produtivos do capital monopolista, os quais se realizam politicamente, agora, sob a ditadura da democracia formal desse mesmo capital e a unânime ciranda melhorista comandada pelas várias frações das vanguardas pequeno-burguesas, pela sua contra-revolução[27]. Sob a ditadura formal e real ocorrerão respectivamente a internacionalização introvertida e extrovertida (categorias apreendidas por Francisco de Oliveira)[28]. Na primeira fase, sob o comando do capital monopolista coletivo, o estado capitalista. Na segunda, sob o comando do capital monopolista privado, secundado decisivamente pelo estado posto a si subalterno, enfraquecido com as privatizações e com o desmantelamento de muitas de suas funções vitais de controle do capital.

Se a economia política da contra-revolução capitalista é adotada por todas as classes burguesas, a função social do voto, qualquer que seja o desejo dos votantes - seus projetos, esperanças-, será para estes últimos exatamente nula, ou seja, será referendar os desígnios previamente definidos dos donos do voto popular. O voto popular torna-se irrelevante. Chegamos assim a um novo grau zero da dominação e desumanização, no qual as burguesias se encontram com o humano somente através do credo neo-liberal, no qual o capital é uma entelequia viva a ocupar todo o espaço do humano e o povo explorado é sublimado. Fascinadas consigo mesmas, com seu poder e esperteza a dominar e conduzir firmemente uma massa dócil ao inferno do desamparo, as burguesias decretam o nível zero da política, a nulidade emancipadora da política burguesa[29].

O lento desdobrar-se da contra-revolução capitalista em sua fase pequeno-burguesa deve-se a condições históricas inéditas. Em primeiro lugar, a destruição metódica, sistemática e eficaz das forças revolucionárias, das suas lideranças populares, políticas, sindicais e muito em particular dos comunistas. Em segundo lugar, à criação de um poderoso núcleo econômico monopolista dominante, no qual encontra-se representada a burguesia industrial. Esta camada dominante, em terceiro lugar, poderá cooptar economicamente as novas elites políticas pequeno-burguesas, onde estão incluídas as novas lideranças sindicais, enquanto mantém esmagada e desarticulada a massa trabalhadora. O núcleo militar ex-reitor das aspirações pequeno-burguesas permanecerá fielmente subordinado ao núcleo monopolista, com o qual teceu laços político-econômicos indissolúveis.

Ou seja, a primeira fase, a fase formal da ditadura civil-militar, a fase industrial-militar, estabeleceu a inequívoca dominação do capital monopolista sobre a economia da nação e ao manter e expandir a miséria trabalhadora criou condições para a expansão da pequena-burguesia, setor social a si servil e capaz, nessas condições, de fazer carreira rápida, a mais expedita possível, rumo ao poder e ao dinheiro, suas aspirações máximas de classe. Mantidas e aprofundadas como foram essas três condições, surge, na segunda fase da ditadura, a civil-liberal, a real ou democrática, novas condições a multiplicar a força do capital monopolista.

Em primeiro lugar surge uma liderança sindical higienizada, descontaminada dos eflúvios deletéreos oriundos do bloco emancipador derrotado em 1964. As novas elites sindicais crescidas sob os vinte e um anos de tutela policial militar, não serão nem nacionalistas, ou radical democráticas e muito menos socialistas ou comunistas. Seus núcleos dominantes serão exatamente aqueles vinculados às grandes empresas monopolistas estrangeiras do setor metalmecânico (automobilístico), sediadas no cordão industrial do ABC. As aspirações de classe das lideranças sindicais se confundirão com as da pequena-burguesia: uma elite letrada, em geral especializada cuja força social a faz conviver e atuar, enfim pertencer às elites políticas dessa classe, emergentes e dominantes em todo o espectro das forças anti-ditatoriais. A carreira sindical estabelece vínculos indissociáveis com a da política, com o poder e o dinheiro, e muito especialmente com as elites do capital monopolista – empresariais, sindicais e políticas estatais[30].

Em segundo lugar, surgem novas lideranças políticas pequeno-burguesas que dominarão todos os partidos políticos brotados do MDB – do PPS ao PT, passando pelo PMDB e PSDB. Tal monopólio político conferirá ao topo mais rico dessa classe predominância crescente nos postos-chave das carreiras de classe mais prestigiadas. A implicação política conservadora é evidente. Os bons alunos das boas escolas privadas estarão naturalmente entre os bons alunos das faculdades das carreiras privilegiadas pelos pequenos-burgueses, de tal forma que aos poucos e progressivamente estas irão se transformando em seus feudos privados. Assim, no capitalismo da miséria forjado sob a ditadura sob a égide do modelo brasileiro, a pequena burguesia é jogada para o alto com o fomento deliberado e a aceleração das assimetrias. Essa fuga para o alto, ao expressar a desuniversalização dos direitos públicos republicanos (educação, saúde, moradia, etc) dessolidariza ainda mais a matriz romano-colonial mitigada no pós-30. Não se trata, portanto, de processo reduzido a núcleos mais imediatamente funcionais, como os sindicalistas, mas um processo a expressar o caráter de toda uma classe. A matriz romano-ibérica transitará para sua orientalização, uma fase romano-chinesa, onde os letrados, cada vez mais necessários para manter a máquina do capital em movimento, transformam-se em casta do poder.[31]

Contra-revolução e emancipação

Dizia, ou melhor, perorava Luis Inácio da Silva no jatinho de campanha, para a câmera de João Salles, três dias antes do segundo turno:

            “Na minha opinião, quando é que o Sem Terra começa a ter problemas?

Depois da marcha de abril de 97, alguns intelectuais ligados aos Sem-Terra começaram a dizer que os Sem Terra era o que ele não era.

Qual era a tese defendida por eles?

A tese era absurda. A tese era assim. Não havia espaço para a esquerda chegar ao poder via eleitoral (Obs. PALF: em 98). Não tinha que ficar preocupado em disputar eleição. Tinha que se preocupar em organizar a sociedade. Daí a vinte ou trinta anos a gente ia ter trinta por cento da sociedade já socialista e aí sim, a gente poderia disputar o poder e ganhar.

Mas eu não vou viver mais trinta anos e eu quero chegar ao poder logo![32]

     

O pequeno-burguês não tem autonomia enquanto proprietário de mercadorias tangíveis e intangíveis, ainda mais quando esta é sua própria força de trabalho. Sua realização se dá pela carreira rumo ao dinheiro, o poder, a fama ou a glória, estas últimas sendo premissas para as primeiras. Cada uma dessas formas permite-lhe transformar-se em proprietário de dinheiro capaz de capacitá-lo a consumidor das mercadorias propriamente capitalistas e alçar-se às esferas dos círculos do poder econômico, político e social, incluídos os intelectual e científico, para não falar dos onipresentes círculos midiáticos. Componente essencial da carreira, o tempo, a rapidez com a qual as suas quatro formas ocorrem, o prazo no qual as expectativas do pequeno-burguês se realizam. O pequeno-burguês é uma persona específica da mercadoria, seja o avarento de Molière, o comprador de almas mortas de Gogol ou o jovem Cervantes e tantos outros fidalgotes da pequena nobreza à espera de alguma prebenda real, desesperando-se no paço de Madri. De igual modo o ex-líder sindical e agora herói de classe, bi-presidente da república do Brasil, fremente de desejo de ser logo eleito.

Saída do inferno e emancipação

            O desfecho da revolução brasileira é surpreendente, inesperado, trágico para os destinos do povo, da democracia, da nação e da humanidade. A ideologia da contra-revolução capitalista, nesta fase de renovação imperialista, ao impor e expandir nacional e mundialmente o controle do capital sobre a reprodução social, condena a política à irrelevância dos arreglos interburgueses, assim como a democracia, cada vez mais subordinada aos ditames ampliados da miséria e ao desprezo pelo povo[33]. Este, composto pelos desvalidos da ordem, proletários semilivres, nômades emigrados e emigrantes, habitantes de favelas e acampamentos, baixo proletariado distante da sua realização como ordem burguesa, estacionada próxima e em aproximação inexorável ao patamar colonial desumano ancestral. A economia política do neo-imperialismo liberal aponta à recolonização da nação e, desse modo, ao recrudescimento da matriz colonial de ocupação do solo pátrio, conducente à inexorável destruição da floresta amazônica (e outros biomas) no altar da acumulação de capital repetidora do padrão primevo: queimada, destocagem, produção de alguma mercadoria colonial e depois, a paz do gado no capim sobre os cadáveres dos nativos expulsos e mortos ou degradados, a produção da proteína mais cara e bárbara e estúpida do mundo (outra mercadoria neo-colonial). Antes e durante, as inexoráveis queimadas. Esplêndidas, escandalosas, do porte de nossa miséria inimaginável, aceleradoras do efeito estufa e das alterações climáticas ainda mais irreversíveis, a contribuir poderosamente para a muito provável extinção da espécie humana em prazo otimista.

            Escapar deste inferno exige paralisar e liquidar a máquina da miséria, forma histórica do capital, adjetivo universal da sua reprodução nesta particular sociedade. Refazer a sociedade a partir das necessidades do trabalho. Congelar a devastação da floresta amazônica e outros biomas, congelar a expansão das metrópoles enfaveladas e desfavelizá-las, recaboclisar e reindianizar seus desvalidos, abrir-lhes caminhos pelo deserto até a liberdade da terra para plantar e comer e alimentar a sua prole. Garantir-lhes casa, saúde, educação, livros e demais produtos e serviços necessários e indispensáveis para si e seus filhos no patamar mais próximo possível do estágio atual da civilização humana. Garantir o atendimento de suas crescentes necessidades, de modo a ir desmercantilizando-o, resultado do processo natural de movimento da forma de organizar o trabalho dos coletivos de trabalhadores livremente associados, livres proprietários diretos dos meios de produção. Subtrair à propriedade privada o solo e subsolo da nação e dar-lhe destino adequado às reais necessidades humanas, dos seus nativos e da humanidade. Para isso tudo, controle social estreito e crescente sobre o núcleo monopolista da reprodução do capital e sobre o capital em geral, de modo a fazê-lo funcionar de pleno para o desenvolvimento o mais rápido e estável das forças produtivas. Para que estas transitem a sua forma anti-capital, adequadas às necessidades vitais da humanidade nacional e outras humanidades passíveis de caminharem juntas com a nossa. Processo esse que exige inversão obrigatória da matriz energética de modo a garantir a soberania nacional aliada às necessidades humanas de curto, médio e longo prazo( sobre a qual pesa a terrível ameaça de um novo ciclo colonial da cana). Do mesmo modo, produzir alimentos necessários e adequados ao consumo humano, subtraídos à dinâmica da acumulação monopolista e garantidores da independência e seguridade alimentar. Embora se projete para um longo período de transição socialista, companheiro do capital declinante, a igualdade acrescida deve nivelar os salários em poucos níveis compatíveis com a complexidade social do trabalho, de tal forma a conferir à acumulação do capital um sentido não só crescentemente anticapitalista, mas anti-capital. E isto só poderá ocorrer se a emancipação for um processo livremente realizado pelos próprios trabalhadores consciente e livremente associados, onde a educação for diretamente um componente indispensável e central da emancipação.

            Produzir para a desmercantilização, para a emancipação do trabalho, para a riqueza crescente como forma não mercantil de satisfação das necessidades crescentes dos trabalhadores, quando estes, portanto, subordinam diretamente a si todos os aspectos da reprodução social. Da economia à política, de tal forma a transformar crescentemente o seu controle social de um estado da revolução à revolução no estado e, por fim, a uma máquina executiva subordinada à revolução sem estado. Eis para o que se necessita de uma revolução social. Mas para que ela transite ao poder real do trabalho exige-se que este tome para si as rédeas de seu destino. Quão mais forte o núcleo emancipador do trabalho, tão mais livre está estará de iluminados ignorantes governantes do estado.

 

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            Memórias de um soldado Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.


[1] Netto, Antonio Delfin "Lula não é Chávez. Lula é um estadista" Entrevista com Delfim Netto, Revista Veja, jan.2007 e vários outros artigos na Folha de São Paulo, do mesmo teor; vide crítica de Alencastro, Luis Felipe “Memórias do século passado”, FSP, 4/01/2007: ao confessar que os críticos radicais à entrada desse senhor no 2º governo Lula são uma minoria, escancara, sem o querer, a tese deste trabalho:” Para nós -certamente uma pequena minoria-, a eventual ascensão do sr. Delfim Netto ao governo de Lula configuraria uma flagrante traição política.”

[2] Ferreira, Antonio Fonseca A acumulação capitalista em Portugal. Das origens da nacionalidade aos inícios do século XIX. Porto, Afrontamento, 1977, caps I e II.

[3] Saraiva, Antonio José Inquisição e cristãos novos. Porto, Inova, 1969; Hanson, Carl A. Economia e sociedade no Portugal barroco (1668-1703). Lisboa, D. Quixote, 1986, cap. 3º, p.62-67; cap. 4º.

[4] Blackburn, Robin A construção do escravismo no Novo Mundo. Do barroco ao moderno, 1492-1800. Rio de Janeiro, Record, 2003. p. 62-73;143-145;

[5] Marx, Karl Teorias da mais-valia  México, Fondo de Cultura Económica, 1980 p.272.

[6] Para o caso inglês, vide Hill, Christoffer O enviado de Deus. São Paulo, Cia das Letras, 1989.

[7] Sobre a definição de revolução brasileira, ver Sodré, Nelson Werneck Introdução à revolução brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, 3ª ed., págs. 9-10.

[8] Lima Filho, Paulo Alves A economia política do complexo industrial-militar. O caso do Brasil. Mimeo, São Paulo, 1993.

[9] Vide Archer, Renato Renato Archer. Energia atômica, soberania e desenvolvimento. Depoimento.Rio de Janeiro, Contraponto, 2006, p. 85-94; Sodré, Nelson Werneck Memórias de um soldado Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967; dentre outras, vide p. 577-578; 603; 628-629.

[10] Sodré, NW, Introdução...op. cit. p. 209-210.

[11] Prado Junior, Caio A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1968, 3ªed.(1ª ed. 1966), p.340-342; 344-345.

[12] Horowitz, Irving Louis revolución en el Brasil. Política y sociedad de Vargas a Goulart (1930-1964). México, Fondo de Cultura Económica 1978, 1ª reimpresión, vide p.30-31;236; vide também Sodré, NW Memórias de um soldado Rio de Janeiro, Civilização Brasileiro, 1967, p.428.

[13] Vide um autor insuspeito de radicalismo: Rodrigues, José Honório Conciliação e reforma no Brasil-um desafio histórico-cultural. Rio de Janeiro, 1965, p. 237-243.

[14] As perplexidades causadas por tal processo podemos notar em todo o espectro das vertentes teóricas derrotadas em 1964, de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Junior até Celso Furtado, acompanhados por vários outros importantes autores. Toda a obra deles, posterior ao golpe, com graus progressivos de estupefação, assinala tal questão crucial.

[15] Escobar, Pepe  Globalistan. How the globalized world is dissolving into liquid. Ann Harbor, Nimble Books LLC, 2007; Klare, Michael T. Blood and oil: the danger and consequences of America’s growing dependency on imported petroleum. New York, Henri Holt an Company LLC, 2004.

[16] Celso Furtado e outros se manifestaram com respeito a estas características regressionistas do projeto liberal; vide Lima Filho, op. cit.cap. 1, p.36-39.; 85-95; vide Horowitz, op.cit. p.243-244 (a história do golpe de estado de 1964 seguiria o curso da terceira hipótese do autor).

[17] A revolução conservadora só poderia dar frutos tais como essa modernização capitalista conservadora.

[18] Sobre o processo de pilhagem e compra dos complexos industrial-militares dos ex-países socialistas, vide Carroué, Laurent, op.cit; sobre o caos da reconversão, vide, Pomeranz, Lenina, Estudos Avançados, n º 28 Out. 92, p. 2.

[19] Declarações no sentido de reorganização de um exército "para o qual não há previsão de entrar em ação em curto prazo", foram feitas pelo General Dilermando Monteiro a Isto É/Senhor, 6/5/92, p. 5-7.

[20] CIM-complexo industrial-militar.

[21] Lima Filho, op.cit., p. 248-250.

[22] Lima Filho, op.cit., p.250.

[23]Lucas, capítulo 12, versículo 5: “Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder de lançar no inferno; sim, vos digo, a esse temei.”

[24] Fernandes, Florestan (entrevista à equipe da revista Ensaio, José Chasin, Antonio rago, Ricardo Antunes et alii, “Florestan Fernandes: Constituinte e Revolução”, São Paulo, Ensaio nº 17-18, 1989.

[25] Fernandes, Florestan, idem, p.150; fala-se sobre a forma oportunista e caudatária de ação da burguesia.

[26] Vide Ferolla, Sérgio Xavier  Folha de São Paulo, 6/11/2006, p.A3.

[27] Sarlo, Beatriz  Tempo presente. Notas sobre a mudança de uma cultura. p. 235 (contra a mimese na esquerda, na experiência argentina)

[28] Oliveira, Francisco Inovações em políticas econômico-sociais, São Paulo, Cebrap, março de 1988, mimeo.

[29] Arantes, Paulo  “A política que se tornou irrelevante é a política burguesa”, (entrevista), Cepat Informa, n. 137, set 2006.

[30] Oliveira, Francisco “Lula é a hegemonia às avessas. Uma entrevista com o sociólogo Francisco Oliveira”.O Globo, Rio de Janeiro, 4/02/2007; “O Legislativo está submisso”, OESP, 3/02/2007, A 12.

[31] Ao descrever as conseqüências da globalização, Hobsbawn aponta o capitalismo do consumo como propiciador de processo de ampla cooptação e despolitização, in O novo século (entrevista a Antonio Polito), São Paulo, Cia das Letras, 2000, p. 111-113; 117;120.

[32] Salles, João Moreita “Entreatos”, DVD, novembro de 2006 (transcrição feita por mim, PALF). Observação interessante do cineasta sobre a história e o personagem: “(...) meu filme tem o personagem Lula, mas não tem a cultura operária que o explica. No filme do Coutinho (Obs. Eduardo Coutinho, “Peões do ABC”) acontece o contrário, e nesse sentido eles se completam muito bem. A partir dos dois filmes, e principalmente de Peões, é possível compreender que o mundo que forjou Lula – aquele do ABC e da cultura operária das décadas de 1970 e 1980 – é um mundo que deixou de existir. Lula chega ao poder no momento em que o mundo que o originou já é o passado.”(Encarte que acompanha o DVD, “Entrevistas. João Moreira Salles, Walter Carvalho”.

[33] Arantes, Paulo op. cit..


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