Raíssa de Keller e Costa*
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
raissakc@yahoo.com.brRESUMO
O Patrimônio Cultural e as formas de se apropriar dele pelos diferentes agentes e atores da sociedade está relacionada a questões como tradição, memória, valorização, percepção e significados. O elo entre esses conceitos favorece a multiplicidade dos valores representativos da comunidade que podem ser difundidos na interpretação do patrimônio através do Turismo Cultural. A identidade cultural de cidades como Ouro Preto, com tamanha representatividade no âmbito do patrimônio, é adquirida e transformada ao longo do tempo por sua dinâmica, mas ainda convive com o conflito entre a preservação e a modernidade. Esse artigo tem como propósito demonstrar como essas relações podem interferir na apropriação do patrimônio pela atividade turística na cidade, mesmo com todas as suas transformações. A metodologia é bibliográfica para sintetizar alguns conceitos e possibilitar o debate. Conclui-se que o Turismo Cultural planejado e executado com responsabilidade é a melhor opção para comunidade e turistas sentirem-se pertencentes desse patrimônio.
PALAVRAS-CHAVE: Turismo, Patrimônio Cultural, Ouro Preto
ABSTRACT
The Cultural Patrimony and the ways of appropriating it by the different actors and actors of society are related to issues such as tradition, memory, valorization, perception and meanings. The link between these concepts favors the multiplicity of values representative of the community that can be diffused in the interpretation of heritage through Cultural Tourism. The cultural identity of cities such as Ouro Preto, which is so representative in terms of heritage, is acquired and transformed over time by its dynamics, but it still lives with the conflict between preservation and modernity. This article aims to demonstrate how these relations can interfere in the appropriation of the patrimony by the tourist activity in the city, even with all its transformations. The methodology is bibliographical to synthesize some concepts and enable the debate. It is concluded that the Cultural Tourism planned and executed with responsibility is the best option for the community and tourists feel that belong to this patrimony.
KEYWORDS: Tourism, Cultural Heritage, Ouro Preto.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Raíssa de Keller e Costa (2017): Apropriação do patrimônio cultural pelo turismo: a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais, Brasil, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 22 (junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/turydes/22/turismo-ouro-preto.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/turydes22turismo-ouro-preto
O patrimônio cultural possui em suas bases conceituais questões que norteiam as relações sociais como herança e memória. Considera-se aqui que o passado histórico de um lugar se mantém na memória coletiva e passa a sustentar a memória individual com a sensação de pertencimento e de valorização reforçando e construindo a identidade cultural.
Há que se considerar que o patrimônio cultural é o elemento representativo de uma sociedade e por isso os bens culturais simbolizam a memória coletiva, remete-nos ao passado. Nesse contexto, a preservação é uma forma de manter essa herança e transmiti-la para gerações futuras.
No cerne do Patrimônio Cultural e sua preservação encontra-se a relação da população com o patrimônio que reflete no significado associado pela própria comunidade local, assim como as razões pelas quais foram preservados. No entanto, essa atribuição de significados está relacionada aos sentimentos adquiridos por meio de experiências que se expressam por atitudes e comportamentos.
A análise e a compreensão dos significados do patrimônio e sua percepção pela comunidade é um elemento fundamental para o desenvolvimento do Turismo Cultural. Na atividade turística planejada a partir da sustentabilidade do atrativo turístico ou do bem patrimonial, esse último deixa de ser uma peça de curiosidade momentânea e passa a incorporar amplos significados possibilitando a interação e favorecendo a experiência no lugar, elucida Meneses (2004).
A interpretação do lugar por meio de seus significados representado através da sua história que compõe a memória e as referências do espaço urbano e da população é, portanto, compartilhado entre gerações da própria comunidade, mas também com os turistas. O sentimento de pertencimento do espaço simboliza a apropriação e a teia de significados adquiridos, resgatados ou construídos pelas pessoas ao longo do tempo.
As relações entre os conceitos de tradição e da cultura no âmbito do patrimônio cultural podem favorecer a atividade turística, se essa for conduzida como uma prática social, uma relação complexa que carece de aportes teóricos e práticas sustentáveis.
A identidade cultural da população é adquirida através de um ciclo construtivo de sua cultura, em constante transformação. O fator fundamental desse processo é a tradição e a perpetuação das manifestações culturais herdadas por gerações e que mantém viva a memória coletiva de um povo.
Em se tratando de tradição, deve-se considerar, segundo Castriota (2009), que essa seria um elo entre o tempo passado e presente e apesar de ser entendida, muitas vezes, como a dimensão cristalizada da cultura passada no presente, há sempre fatores que a modelam com o passar do tempo, seja por ações internas ou externas.
Nesse contexto, não haveria cultura estática, já que há variações que podem ser incorporadas ao longo do tempo. Segundo Clifford Geertz (1973), a interpretação das culturas é a busca por significados e sua análise. A cultura seria, então, o estudo dos símbolos e das ações simbólicas que ultrapassam o âmbito dos valores, crenças e costumes da sociedade já que está em constante transformação.
O patrimônio e o seu significado, a partir dessa perspectiva de concepção simbólica, pode ser entendido como “(...) um processo histórico em constante construção, pois este depende das apropriações que a sociedade realiza diante de tal e não somente no passado, mas também no presente”. (BRUSADIN, 2014:s/p)
As experiências da população com relação ao patrimônio refletem na sua cultura e nos processos de apropriação, pela comunidade ou pelo turismo cultural já que ambos fazem parte da concepção da identidade cultural e sua transformação. Assim, o conceito de patrimônio passa também por transformações e ampliação do seu sentido.
Originalmente o termo patrimônio significava herança, tudo que era passado de pai para filho. Esse conceito estava, inicialmente, vinculado ao patrimônio material e valorização econômica do bem. Com a evolução do termo ao longo do tempo e a contribuição da Antropologia, o termo “patrimônio cultural” passou a englobar todas as formas de manifestação cultural, os diversos grupos sociais e além dos bens móveis e imóveis passou a englobar também o “fazer popular” abrangendo a questão imaterial do termo.
Também o Patrimônio Histórico, que passou a fazer parte do conceito de Patrimônio Cultural à medida em que houve a evolução da ideia, passou a englobar não apenas monumentos, mas o entorno das edificações e características do espaço urbano. Nota-se a valorização da relação entre o entorno e o monumento como parte memorial da edificação e do cotidiano.
Nesse processo é importante destacar que a XII Conferência da UNESCO, realizada em 1962, fez recomendações quanto ao entorno dos monumentos, atribuindo ao termo Patrimônio Cultural os monumentos, os entornos e os locais de interesse. A Carta de Veneza, em 1964, determinou que o conceito de monumento abrangeria não apenas as grandes obras edificadas, mas também obras modestas que tenham um significado cultural.
Posteriormente, a Carta de Burra de 1980, cita o termo “significação cultural” para definir diversas dimensões culturais de um bem e assim designa valores estéticos, históricos, científicos ou sociais desse, assim como o seu entorno, ainda em seu aspecto material. “As opções a serem feitas na conservação total ou parcial de um bem deverão ser previamente definidas com base na compreensão de sua significação cultural e de sua condição material”. (Carta de Burra, Artigo 6º, 1980:2)
A XXV Conferência da UNESCO, realizada em Paris em 1989, finalmente, abrange ao conceito de patrimônio cultural a cultura tradicional e popular com os costumes locais, valorizando a contribuição das culturas que não são dominantes no processo de identidade cultural.
A Carta de Nara publicada em 1994 continua o desenvolvimento deste conceito considerando a globalização e sua diversidade de culturas e patrimônios, valores e autenticidade. Nessa, a conservação também está relacionada aos valores atribuídos ao patrimônio, mas, agregando-se os valores sociais.
No entanto, as questões que giram em torno do que deve ser preservado são complexas e podem ser entendidas como uma seleção do patrimônio pelos responsáveis pela preservação. As decisões sobre a conservação do patrimônio demandam uma atribuição de valores em que se opta por evidenciar determinado aspecto em detrimento de outros. Diante disso, a apropriação do patrimônio acontece de forma diferente de acordo com cada grupo social e o nível econômico e social é determinante para essa apropriação.
De qualquer maneira, os avanços no campo do patrimônio são importantes por reconhecer a inclusão das camadas populares na construção da identidade cultural e por isso os significados atribuídos ao patrimônio podem ser determinantes nesse processo.
Nesse cenário, o Turismo Cultural seria uma ferramenta moderna de interpretação do patrimônio cultural bem como de transformação da identidade cultural, já que cada grupo faz a sua leitura daquele patrimônio. De acordo com Brusadin (2014), observa-se, portanto, a necessidade de uma revisão dos paradigmas do patrimônio cultural que deve estar em sintonia com essas transformações nos valores sociais, com as tradições. A atividade turística nesse caso se vincula como forma de proporcionar o contato entre diferentes culturas.
A cidade de Ouro Preto possui um dos maiores acervos patrimoniais do Brasil, e por este motivo, um perímetro tombado e reconhecido mundialmente. A cidade foi considerada Patrimônio da Humanidade em 1980 pelo decreto de Patrimônio Mundial pela UNESCO, o que a insere em um contexto amplo de significados e formas de apropriação.
A modernidade transformou os centros históricos de acordo com o modo como a comunidade se apropria e vivencia o espaço urbano. Com isso, diante do desenvolvimento urbano e de novas demandas sociais e econômicas, o seu uso vem sendo reformulado ao longo da história mediante às necessidades das pessoas e crescente valorização do patrimônio, conciliados aos critérios de preservação que se iniciaram na década de 1920.
A excursão modernista da década de 1920 que tinha como objetivo fazer um estudo das caracterizações históricas, riquezas artísticas e arquitetônicas, intensificou os discursos pela preservação de Ouro Preto quando aconteceram os primeiros projetos de proteção de edificações. Em 1921 foi criado o Museu Histórico Nacional, MHN, e a Inspetoria dos Monumentos Históricos sob a direção de Gustavo Barroso que fez as primeiras intervenções restauradoras e patrocinadas pelo Governo de Minas, em 1928. Posteriormente, surge o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN por Lauro Cavalcanti.
Ainda na década de 1920, é perceptível através da história e de registros fotográficos que os centros das cidades históricas começaram a ser utilizados para novas demandas, tais como o comércio e o turismo. Gradualmente, desde que a questão da preservação veio à tona agregando valor aos monumentos e casarios tombados, o centro passou a se adaptar para atender a essas modernidades. Com isso, gradativamente estabeleceram-se comércios, restaurantes, meios de hospedagem, lojas de souvenires, padarias, até os padrões atuais, em que a maioria dos casarios é utilizado em sua totalidade para estas atividades econômicas ou, quando não, estão mesclados com as residências dos moradores mais antigos.
Entre 1931-1932 a promulgação de decretos municipais obrigou moradores a conservar as fachadas coloniais e em 1933 o Governo Federal declarou a cidade como Monumento Nacional, consolidando o título de cidade histórica. Com a sua inscrição no Livro do Tombo e a atuação do SPHAN, Ouro Preto foi inserida nas ações de preservação especializados em patrimônios históricos brasileiros. Anos depois, o SPHAN teria originado o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, que intensificou e fomentou as ações de preservação do perímetro tombado. Em 1980, Ouro Preto foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO protegendo quase todos os casarios e monumentos do perímetro tombado e destacando para o mundo o cenário da cidade histórica (MELO, 2013).
A cidade é considerada um dos maiores acervos patrimoniais do país e, ainda, um dos grandes polos indutores de turismo no Brasil e no mundo. Juntamente com a exploração mineral e a Universidade Federal de Ouro Preto, o turismo é uma das bases da economia da cidade. Embora reconheça-se a necessidade de maiores investimentos e envolvimento da população nesse processo.
Considerada o coração da cidade, a Praça Tiradentes, originalmente Morro de Santa Quitéria, foi construída para abrigar o centro administrativo da Vila Rica com a implantação da casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho, símbolos de poder no contexto do período Colonial.
A Praça Tiradentes, além de ser o centro do perímetro tombado de Ouro Preto é composto de diversos casarios coloniais com suas características arquitetônicas singulares que no conjunto estão envoltos entre duas edificações imponentes: O Museu da Inconfidência (antiga Casa de Câmara e Cadeia) e a Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (antigo Palácio dos Governadores). Essa Praça sempre teve grande significado cultural para a cidade pelo contexto político, social e histórico e essa valorização foi intensificada nacional e internacionalmente com as políticas de preservação.
Atualmente a Praça Tiradentes é considerada o coração da cidade pela comunidade que utiliza o local com frequência no cotidiano assim como para os turistas, já que existe ali um fluxo intenso de trânsito ligando diferentes sentidos da cidade, linhas de ônibus circulares, ônibus de operadoras de turismo, comércio abundante para turistas e comunidade, local de realização de eventos de grande notoriedade nacional. A Praça Tiradentes é um ponto de encontro, da comunidade e dos turistas. Pode-se considerar, portanto, que é um referencial para todos os envolvidos já que possibilita diversas formas de interação.
A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais - Brasil, é um símbolo do Patrimônio Cultural por todas as suas singularidades descritas ao longo desse estudo. A vivência nos lugares, especialmente em ícones desse patrimônio, como a Praça Tiradentes, é fundamental para a transmissão desses valores que deve ser amplamente difundido e acontece em seu cotidiano e dinamismo de cidade. Ainda assim, vale a pena questionar sobre a forma como acontece tanto pela população como pelos turistas, o que requer estudos quantitativos mais complexos em estudos futuros.
Deve-se destacar que a preservação da cidade é um fator importante para manter a sua tradição e possibilitar as renovadas formas de apropriação e transformação dos bens culturais. Para que esses sejam parte da cultura de futuras gerações, qualquer intervenção deverá ser planejada e executada com responsabilidade para que o bem cultural não seja danificado, respeitando-se a legislação.
A vivência na cidade faz notar que, apesar de sua importância, a preservação algumas vezes é vista como um empecilho para as transformações, novas dinâmicas e novos usos para o conforto da população; e outras vezes é a justificativa para a não intervenção ou transformação quando essa não convém ao responsável, seja pela falta de informação, recursos financeiros ou interesse pessoal.
Essas transformações temporais, assim como a dinâmica da cidade que passou por avanços tecnológicos, como qualquer outro espaço urbano, chamam a atenção para a necessidade de adequar os sítios históricos para uma visão contemporânea afim de trazer benefícios para o contexto social. Acredita-se que esse passo favoreceria a apropriação pela comunidade, e um sentimento de pertencimento com o patrimônio que deveria representar e incluir a população em suas políticas.
Nesse contexto, a atividade turística na cidade é um agravante devido ao grande número de visitantes e turistas. Mas é sabido, de acordo com a Prefeitura de Ouro Preto, que são turistas que tem uma taxa de permanência em torno de 2 dias. A maior parte é de visitantes, que nem sempre utilizam necessariamente o trade turístico e nem sempre favorecem a economia local. Em parte, pode-se relacionar à curta distância com a capital de Minas Gerais, o que facilita o passeio curto. Além disso, muitos se hospedam em repúblicas estudantis, como parentes ou amigos.
Nesse sentido, o Turismo Cultural na cidade, se planejado adequadamente, com práticas sustentáveis e pensando em inserir turistas e comunidade nas práticas de interpretação do patrimônio local seria a melhor opção para difundir todos os valores imersos e muitas vezes esquecidos por aqueles que vivem essa constante dialética entre preservação e modernidade.
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