Revista: Turydes Revista Turismo y Desarrollo.
ISSN 1988-5261


A PRODUÇÃO DO ESPAÇO TURÍSTICO VIA ACUMULAÇÃO POR DESPOSSESSÃO: O CASO DE FERNANDO DE NORONHA (PERNAMBUCO)

Autores e infomación del artículo

Itamar José Dias e Cordeiro*

Edvânia Tôrres Aguiar Gomes **

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

itamar_cordeiro@yahoo.com.br

Resumen -- Al contrario de lo que pensaba Marx, el robo característico de la acumulación primitiva no se restringe a la prehistoria del capitalismo. Los estudios de Rosa Luxemburgo y, posteriormente, los de David Harvey, amplían el entendimiento de Marx al sugerir que la dinámica de la acumulación capitalista necesita, sistemáticamente, recurrir a la toma (generalmente violenta) de los bienes ajenos. Es así como surge el concepto de "acumulación por desposesión" para explicar el proceso continuo por medio del cual el capitalismo suele apoderarse de los bienes comunes como forma de sostenir su expansión y de superar sus crisis orgánicas. Buscando explicar cómo el turismo puede ser utilizado como un instrumento para viabilizar la acumulación por desposesión, esta investigación ha analizado el caso de Fernando de Noronha (PE), una pequeña isla del nordeste de Brasil considerada como uno de los destinos turísticos más deseados del país. Los resultados indicaron que las vías para la desposesión se abren desde el momento en que el isleño se asocia con un empresario del continente. Además, se ha verificado que la actuación del Estado es decisiva en la dinámica de esa expoliación y que, específicamente en el caso de Fernando de Noronha, esa actuación es mediada por el dispositivo del intercambio de favores entre burócratas y empresarios locales.
Palavras clave: desposesión; espoliación; acumulación por desposesión; acumulación por espoliación; turismo; Fernando de Noronha.
Abstract -- To the contrary of what Marx's thought, the assault that characterizes the primitive accumulation doesn’t restrict itself to the prehistory of capitalism. The work of Rosa Luxemburg and later of David Harvey expand Marx's understanding by suggesting that the dynamics of capitalist accumulation need systematically to resort to the (often violent) taking of the goods of others. This is how the concept of "accumulation by dispossession" arises to explain the continuous process by which capitalism usually seizes common goods as a way of sustaining its expansion and bypassing its organic crises. Seeking to explain how tourism can be used as a tool to enable accumulation by dispossession, this research analyzed the case of Fernando de Noronha (PE), a small island located at the Brazilian Northeast, and considered as one of the most desired tourist destinations in the country. Our findings indicated that the ways that lead to dispossessions are opened from the moment the islander associates or leases his house to a businessman from the Continent. We could also verify that the action of the State is decisive in the dynamics of this spoliation and that, specifically in the case of Fernando de Noronha, this action is mediated by the device of the exchange of favors between bureaucrats and local entrepreneurs.
Keywords: dispossession; spoliation; accumulation by dispossession; accumulation by spoliation; tourism; Fernando de Noronha.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Itamar José Dias e Cordeiro y Edvânia Tôrres Aguiar Gomes (2017): “A produção do espaço turístico via acumulação por despossessão: o caso de Fernando de Noronha (Pernambuco)”, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 22 (junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/turydes/22/turismo-fernando-noronha.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/turydes22turismo-fernando-noronha


Introdução

Como bem lembra Marx (2004: 65), “o homem, ao produzir, só pode atuar como a própria natureza, isto é, mudando as formas da matéria”. Em outras palavras, no processo de transformação da riqueza natural em objetos da riqueza humana, a fonte é sempre a terra e a natureza que a acompanha (MARÉS, 2004). Ao fim e ao cabo, portanto, o que se verifica é que, de uma forma ou de outra, a produção de mercadorias está associada ao domínio da terra (CARLOS, 2011; MARX, 2004). Por esta razão, ainda que o trabalho constitua a fonte do valor (MARX, 2004) ele nada significa sem a aquilo que fornece o field of employment (MARX, 2004). É como diz Petty (apud Marx, 2004: 65): “o trabalho é o pai, mas a mãe é a terra”. Tal reflexão traz consigo uma inegável constatação: a privatização do espaço constitui um pré-requisito fundamental na dinâmica do capitalismo (ALBUQUERQUE, 2009).
Do exposto, infere-se que se a terra estiver livre, à disposição de todos, a tendência é que cada um trabalhe e produza para si. Nestas circunstâncias, no entanto, não há terreno fértil para o capitalismo prosperar. Para que alguém resolva, de livre e espontânea vontade, trabalhar para outrem, é preciso que esse alguém não tenha como se manter, isto é, não tenha como ter acesso à terra. Como bem sintetiza Martins (2010): a terra pode ser livre se o trabalho for escravo; mas ela precisa ser escrava (no sentido de se imporem restrições a seu acesso) se o trabalho for livre. É por esse motivo que “o monopólio da propriedade da terra é pressuposto histórico e fica sendo base constante do modo capitalista de produção” (MARX, 2004: 826).
No entanto, o que acontece quando a possibilidade do instituto da propriedade privada da terra inexiste? Como o turismo, atividade eminentemente capitalista, pode se desenvolver nestas circunstâncias? É isso a que se presta o presente estudo. Para tanto, foi escolhido como estudo de caso Fernando de Noronha justamente, uma vez que este destino reúne duas condições essenciais aos propósitos da pesquisa: i) é terra da União e, portanto, não é passível de compra/especulação pelo capitalista e; ii) trata-se de um local cuja economia orbita quase que exclusivamente em torno do turismo.
Como qualquer pesquisa científica, a presente investigação se orienta por um método científico. E como em qualquer método científico, duas são as componentes que precisam ser explicitadas (MORAES; COSTA, 1999): o método de interpretação e o método de pesquisa. O método de interpretação refere-se à concepção de mundo normatizada e orientada para a condução da pesquisa científica (MORAES; COSTA, 1999). A bem dizer, trata-se da aplicação de um sistema filosófico ao trabalho da ciência. Já o método de pesquisa refere-se ao conjunto de técnicas utilizadas no estudo. Relaciona-se, portanto, mais aos problemas operacionais da pesquisa que a seus fundamentos filosóficos (MORAES; COSTA, 1999).
No que toca ao método de interpretação, a abordagem empregada foi assumidamente materialista histórica e dialética. A opção por este método de interpretação resulta da convicção de que o espaço não deve ser visto como algo pronto, tampouco, um resultado do acaso. Se o espaço é de determinada maneira é porque alguém assim o quis; é porque houve interesse de determinados agentes que o moldaram para ser da forma como se apresenta. A questão está, portanto, em investigar as causas e não apenas descrever o que está ao alcance da vista; afinal, como recorda Harvey (2013: 197), o método realmente científico consiste em identificar os elementos que “explicam por que certas coisas acontecem de determinada forma em nossa sociedade”.
No que toca especificamente ao método de pesquisa, as técnicas empregadas foram: pesquisa em fontes bibliográficas e documentais, observação in loco e entrevistas. As pesquisas em fontes bibliográficas e documentais incluíram consulta a livros, periódicos (nacionais e internacionais) e trabalhos acadêmicos, além de revisão de literatura sobre Fernando de Noronha em documentos históricos e técnicos. A observação in loco, por sua vez, possibilitou um contato pessoal e próximo com o objeto investigado. Pôde-se, assim, obter dados originais que viabilizaram a discussão com a literatura. O tipo de observação empregado foi a sistemática e não participante. Sendo sistemática, ou seja, uma pesquisa que emprega instrumentos para a coleta de dados, o recurso utilizado para a obtenção de informações foi a entrevista. O propósito das entrevistas foi o de obter elementos que nem a observação nem a revisão de literatura foram capazes de fornecer sobre o processo de produção do espaço turístico em Fernando de Noronha. Ainda sobre as entrevistas, é preciso advertir que: uma vez que algumas delas levantaram aspectos delicados concernentes à gestão do Arquipélago, achou-se por bem omitir os nomes dos entrevistados como forma de preservar suas identidades.

Da acumulação primitiva à acumulação por despossessão

Para que haja produção de mercadorias é preciso que o homem deixe de empregar sua força de trabalho em proveito próprio e passe a empregá-la para outrem. E isso, por sua vez, só acontece a partir do momento em que o produtor se separa, ou é separado, de seus meios de produção (MARX, 2004).
Marx (2004: 827) observa que a versão burguesa pretende explicar a origem da razão pela qual alguém aplica sua força de trabalho em benefício de outro (ao invés de fazê-lo para si próprio) por meio de…
(…) uma história ocorrida em passado distante. Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. (…). Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas, e a população vadia ficou finalmente sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora tenham esses poucos parado de trabalhar há muito tempo.
Esta história, como nota Harvey (2013), busca justificar o surgimento do capitalismo como uma transição gradual e pacífica do feudalismo para o capitalismo. No entanto, a verdadeira história, como escreve Marx (2004: 829), é marcada pela “conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato”.
De acordo com Marx (2004), as bases que vão dar origem ao modo de produção capitalista estão na chamada acumulação primitiva (ou original), assim chamada justamente porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista. Marx (2004) localiza a gênese dessa acumulação primitiva no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI, mais especificamente na Inglaterra, quando da eliminação da propriedade comunal (isto é, as terras comuns), uma “velha instituição germânica que continuou a existir sob a cobertura feudal” (MARX, 2004: 838).
Conforme explica Foster (2005: 99), sendo de livre acesso, a população encontrava nas terras comunais, entre outras coisas, “madeira seca (a madeira das árvores mortas ou a madeira caída no chão na floresta), o que lhe permitia aquecer as suas casas e cozinhar”. No entanto, em um dado momento, estas terras foram cercadas e apropriadas por um determinado segmento da sociedade: uma nova nobreza “produto do seu tempo”, para quem “dinheiro era o poder dos poderes” e cuja preocupação era transformar as terras de lavoura em terras de pastagens haja vista o florescimento da manufatura da lã (MARX, 2004: 832).
Harvey (2013: 282) menciona que, embora nos estágios iniciais, o poder estatal tenha tentado preservar o campesinato contra “o poder nu e cru do dinheiro”, finalmente, ao invés de combater as ilegalidades do poder do dinheiro, o Estado acabou por se aliar a esse poder e passou a apoiá-lo ativa e abertamente. O resultado foi que, com todo o apoio do aparelho estatal (principalmente o aparelho jurídico e repressivo), as terras foram cercadas e, os que nela moravam e dela tiravam seu sustento, expulsos. Recorrendo a fontes da época, Marx (2004: 839) menciona que:
Em muitas paróquias de Hertfordshire (…), 24 arrendamentos, cada um com 50 a 150 acres em média, foram fundidos em 3 apenas. Em Northhamptonshire e Lincolnshire, cercaram as terras comuns na mais ampla escala e a maior parte dos novos senhorios aí surgidos estão transformados em pastagens; por isso, muitos senhorios não têm 50 acres arados onde existiam antes 1.500.
Note-se que as terras usurpadas não se limitavam à terra inculta, mas muitas vezes incluía aquela que era “cultivada em comum ou mediante arrendamento à comunidade” (MARX, 2004: 840). Seja como for, o fato é que no transcurso desses cercamentos (enclosures), “as habitações dos camponeses e as choupanas dos trabalhadores foram violentamente demolidas ou abandonadas à decadência total” (MARX, 2004: 832), de modo que os trabalhadores agrícolas não encontravam mais na terra que lavravam o espaço necessário para sua própria habitação.
Esse processo de expropriação do camponês recebeu um forte impulso no século XVI com a Reforma Protestante e o saque dos bens da Igreja que a acompanhou. A Reforma confiscou imensas porções de terras que à época pertenciam à Igreja Católica (proprietária feudal de grande parte do solo inglês) e enxotou os habitantes que nelas viviam. Quanto aos bens eclesiásticos, estes foram “amplamente doados a vorazes favoritos da Corte ou vendidos a preço ridículo a especuladores, agricultores ou burgueses, que expulsaram em massa os velhos moradores hereditários e fundiram seus sítios” (MARX, 2004: 835). Porções significativas de terras passaram a ser “presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou simplesmente roubadas mediante anexação direta a propriedades particulares” (MARX, 2004: 937). A usurpação seguiu de tal forma que, ainda de acordo com Marx (2004), nas últimas décadas do século XVIII, tinham desaparecido os últimos vestígios da propriedade comunal dos lavradores.
Desprovido das condições que lhe possibilitavam produzir seus víveres, o camponês viu-se obrigado a se inserir em um novo contexto segundo o qual precisaria vender, no mercado, sua força de trabalho como forma de obter um salário que lhe permitisse, também no mercado, adquirir aquilo que precisava para sobreviver (MARX, 2004). Dessa forma, além de gerar uma massa de proletários, a expropriação e a expulsão de uma parte da população rural também criou um mercado consumidor interno. Ou seja, “o mercado para bens e mercadorias cresceu, em parte porque menos pessoas podiam subsistir por sua própria conta” (HARVEY, 2013: 284).
Note-se ainda que muitos daqueles que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens feudais e com a expropriação violenta não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com a mesma rapidez com que se tornavam disponíveis haja vista que “bruscamente arrancados das suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para o dia, na disciplina exigida pela nova situação” (MARX, 2004).
Essa população rural, expropriada e expulsa de suas terras se viu, assim, obrigada a se sujeitar à rigidez do sistema de trabalho assalariado (MARX, 2004). É quando o Estado, mais uma vez atendendo aos anseios da burguesia, se encarrega de regular o salário, comprimindo-o “dentro dos limites convenientes à produção de mais-valia, para alongar a jornada de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau adequado de dependência” (MARX, 2004: 850).
Desta forma, como muito bem sintetiza Perelman (2000), a acumulação primitiva cortou os modos de vida tradicionais como tesoura. A primeira lâmina serviu para minar a capacidade das pessoas de se sustentarem. A outra lâmina foi um sistema de severas medidas voltado para impedir as pessoas de encontrarem estratégias de sobrevivência alternativas ao sistema do salário. Um conjunto de leis, muitas vezes brutais, projetadas para minar qualquer resistência contra as exigências do trabalho assalariado acompanhou a espoliação dos direitos dos camponeses, mesmo antes do capitalismo tornar-se uma força econômica significativa.
Ao aprisionar o proletariado neste ciclo de ter que vender sua força de trabalho para obter salário para comprar as mercadorias que necessitava para sobreviver, o capitalismo emergente criou as condições para a sua reprodução ao mesmo tempo em que destruiu grande parte dos negócios subsidiários e artesanais (HARVEY, 2013). Esse conjunto de fatores levou à criação de um mercado interno maior e mais forte na Grã-Bretanha, o que foi um elemento importante no desenvolvimento do capitalismo. Foi dessa forma que o florescente sistema baseado na compra e venda da força de trabalho acabou por firmar-se enquanto modo de produção dominante entre os séculos XVI e XVIII tornando-se hegemônico desde então.
O que convém notar, no entanto, é que ao longo de toda a história do desenvolvimento do capitalismo, aquelas características (o roubo e a violência) que, segundo Marx (2004) estariam circunscritas à sua fase “pré-histórica”, na verdade, sempre estiveram presentes. Como explica Harvey (2013, p.296): “Não deveríamos ver a acumulação primitiva (…) como algo que diz respeito apenas à pré-história do capitalismo. Ela continua e, nos últimos tempos, foi revivida como um elemento cada vez mais importante no modo como o capitalismo opera para consolidar o poder de classe”.
Assim, se por um lado, a acumulação primitiva representa a acumulação originária que possibilitou a transição do feudalismo para o capitalismo, criando as bases para o desenvolvimento deste último (MARX, 2004; PERELMAN, 2001); por outro lado, a depredação, a fraude e a violência que a caracterizam nunca deixaram de estar presentes na geografia histórica da acumulação de capital (HARVEY, 2004; BONEFELD, 2001; DE ANGELIS, 2001). Dessa forma, como muito bem identificou Luxemburg (1985: 254): “já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue inclusive em nossos dias”. E justamente porque parece equivocado qualificar de “primitivo” ou “originário” algo que segue em curso, Harvey (2004) vai sugerir o emprego da expressão acumulação por despossessão.
O que conceito de acumulação por despossessão vai colocar em evidência é que a espoliação não se restringe à terra. Conforme observa Harvey (2013), a espoliação pode abarcar tudo – desde o confisco do direito de acesso à terra e à subsistência até a privatização de direitos (aposentadoria, educação e saúde, por exemplo) duramente conquistados no passado por movimentos da classe trabalhadora em lutas de classe ferozes. Ou seja, a ideia de despossessão não lida apenas com o assalto de bens materiais (como na acumulação primitiva), mas também com o assédio sobre direitos alheios.
Despossessão não é o mesmo que expropriação. A expropriação, do latim ex proprietatem (fora da propriedade), que significa “retirar alguém de sua propriedade” (ALBUQUERQUE, 2006 apud CAVALCANTE FILHO, 2009), constitui uma das vias pelas quais o Estado intervém no direito de propriedade retirando-a de seu proprietário (CAVALCANTE FILHO, 2009). Já a despossessão tem a ver com o ato de desapossar ou desapoderar um pertence alheio; de privar ou despojar alguém de algo. O detalhe é que enquanto a expropriação pressupõe a existência da propriedade (recorrendo, por isso mesmo, a dispositivos jurídicos para se efetivar), a despossessão, como o próprio nome indica, atua sobre a posse e, em geral, faz uso de meios ilícitos e/ou violentos (daí a razão pela qual o termo espoliação também é utilizado).
O leque de mecanismos através dos quais a despossessão pode ser viabilizada é amplo e inclui desde a fraude na valorização de ações, crises orquestradas, esquemas de pirâmide (ponzi), dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e promoção de níveis de endividamento (HARVEY, 2004). Pode ainda fazer uso de estratégias completamente novas como a instituição de direitos de propriedade intelectual que, por meio de patentes e licenças de materiais genéticos, plasma de sementes e qualquer forma de outros produtos, são usados para pilhar populações inteiras em benefício de umas poucas grandes empresas multinacionais.
Portanto, qualquer ação que consista em tomar de um indivíduo (ou grupo de indivíduos) seus haveres (sejam eles terras, moradias, ativos financeiros, poupanças, saberes tradicionais, direito ao acesso à agua potável, ao saneamento, à saúde, etc) é passível de ser rotulada como despossessão. Quando essa despossessão é praticada como parte das estratégias de reprodução do capital, diz-se tratar-se de acumulação por despossessão ou espoliação. O que a presente pesquisa objetiva é demonstrar como o turismo tem sido utilizado pelo capital enquanto uma via para viabilizar a despossessão. Para tanto, analisou-se o caso de Fernando de Noronha, ilha pertencente ao estado de Pernambuco (Brasil).

Destrinchando a dinâmica da despossessão em Fernando de Noronha

O arquipélago de Fernando de Noronha situa-se quatro graus abaixo da linha do Equador, com coordenadas 3o 54'S de latitude e 32o 25'W de longitude e dista 545 km de Recife (PE), 360 km de Natal (RN) e 710 km de Fortaleza (CE). Faz parte de um alinhamento de montanhas submarinas, distribuídas ao longo de uma faixa com direção Leste-Oeste, que se estende desde a Dorsal Atlântica até a plataforma continental brasileira, na altura da costa do Ceará, em direção a Fortaleza. Portanto, desde um ponto de vista geológico, o arquipélago corresponde aos cimos de uma montanha submarina que se ergue a partir do assoalho oceânico, situado a uma profundidade de 4.000 m (IBAMA, 2005a) cujos picos formam ilhas e arquipélagos como o Atol das Rocas e o próprio arquipélago de Fernando de Noronha.
Os contornos atuais das ilhas foram delineados a partir dos últimos 10 a 15 mil anos, quando o avanço do mar iniciou o processo de recorte da costa. Esses processos deram origem à atual conformação do arquipélago composta por 21 formações rochosas (entre ilhas, ilhotas e rochedos) que ocupam uma área de aproximadamente 26 km2, dos quais 17 km2 correspondem à ilha principal, única habitada – IBAMA, 2005b (figura 1).
Como qualquer ilha oceânica brasileira, Fernando de Noronha é, segundo determina a Constituição Federal de 1988, em seu Capítulo II, artigo 20, inciso IV, bem da União, o que significa, entre outras coisas, que não é possível haver no local o regime de propriedade privada da terra. No entanto, na condição de proprietária da terra, a União pode, por meio de um dispositivo específico, autorizar seu uso por um particular. No caso de Fernando de Noronha, ela confere à Administração do Distrito Estadual de Fernando de Noronha – ADEFN esse poder. A ADEFN, por sua vez, optou por regulamentar o uso das terras públicas através do dispositivo denominado Termo de Permissão de Uso (TPU).
No caso de Fernando de Noronha, há dois tipos de TPU: o Termo de Permissão de Uso de Terreno (que autoriza edificar em solo da União) e o Termo de Permissão de Uso de Imóvel (que autoriza residir em benfeitorias da União). Esses Termos possuem duas características que convém destacar: i) apenas aos residentes permanentes é facultado o direito de obtê-los e; ii) uma vez outorgados, eles não podem ser vendidos ou transferidos a terceiros.
Note-se que, ao vincular o direito de obtenção dos TPU à condição de residente permanente, a ADEFN criou obstáculos à ocupação do solo e/ou dos imóveis por não-ilhéus. Ou seja, em tese, apenas aos ilhéus estaria assegurada a possibilidade de explorar economicamente o território. Isso significa que quem não é residente permanente em Fernando de Noronha não pode, por exemplo, abrir uma pousada na ilha. Na prática, entretanto, não foi o que aconteceu e, decididamente, não é o que acontece ainda hoje. O que se tem observado é que boa parte das pousadas que hoje existem na ilha não são geridas pelos moradores permanentes. E isso tem uma relação direta com a atividade turística.
Por diversas razões, visitar Fernando de Noronha é uma experiência dispendiosa. Por conta disso, há uma tendência do turista exigir uma excelente qualidade na hospedagem. Ocorre que, via de regra, o ilhéu não tem condições de oferecer os níveis de conforto exigidos. E isto, em grande parte, porque o elevado custo de vida da ilha impede o reinvestimento na pousada de parte do dinheiro ganho com o turismo. Como explica um entrevistado:
(…) o morador da ilha nunca teve dinheiro para construir nada (…). Ele não tem dinheiro porque aquele dinheiro que ele recebe, ele vai comer (…) ele vai fazer uma pequena melhoria… pelo menos para melhorar a cozinha, botar portas melhores, mas ele não tem dinheiro (…) para uma grande reforma; ele não tem dinheiro para fazer um grande investimento.
A contração de um empréstimo poderia ser uma opção. No entanto, o fato de não serem proprietários do solo e/ou dos imóveis que ocupam, impossibilita aos ilhéus submeter o terreno/imóvel como garantia exigida por instituições de crédito. É neste contexto que surge um clima favorável à emergência de uma associação entre moradores locais e investidores externos na qual os primeiros entram com o solo e/ou imóvel e os segundos com os meios financeiros que faltam aos ilhéus para construir, ampliar ou reformar uma pousada.
Trivial e corriqueiro em circunstâncias nas quais existe o instituto da propriedade privada da terra, esse tipo de associação, no entanto, assume contornos particulares em se tratando de Fernando de Noronha. O principal deles, conforme explicou um entrevistado, é que:
Na maioria das vezes, ele [o ilhéu] perde. De que forma? Ele se associa e sai da Ilha (…), aí ele vem morar aqui [em Recife] e vem viver de renda (…). Aí ele faz um contrato de, por exemplo, uns 10 anos com valor fixo (…) e vem pra cá [Recife] viver de renda, “luxar” e gastar esse dinheiro; [ele] não vai nem investir em um bem, muitas vezes (…). E o cara [empresário do continente] que tá lá [em Fernando de Noronha] vai administrar [o empreendimento] (…).
Em outras palavras, o que acontece é que, com essa associação, o empresário (investidor externo) passa a gozar do direito a permanecer na ilha na condição de residente temporário. Ao longo dos 10 anos em que vive na ilha (tempo exigido por lei para pleitear a condição de residente permanente), o empresário assume todas as obrigações financeiras referentes ao estabelecimento e paga uma renda ao ilhéu. Ao fim destes 10 anos, ilhéu e empresário (este último já na condição de residente permanente) se dirigem à Administração da ilha onde o primeiro expressa sua “vontade” em ceder seu TPU ao segundo. É assim que, via de regra, o ilhéu perde/vende sua casa em Fernando de Noronha. Pode acontecer ainda, e isso não é raro, de alguns empresários mais influentes conseguirem o título de residente permanente bem antes dos 10 anos regulamentares. Há casos, conforme relatado por alguns ilhéus, de títulos de residente permanente expedidos com apenas 3 anos de residência temporária.
E para os ilhéus que, por qualquer motivo, optaram por não se associar, resta ainda a possibilidade do arrendamento. Nesse caso, o ilhéu costuma arrendar sua casa para um empresário, geralmente por R$ 5.000,00 por mês (em alguns casos esse valor pode chegar a R$ 10.000,00), para ir viver dessa renda no continente ou mesmo no exterior. Como nota Cleto (2013: 127): “Arrendar a casa virou um plano de carreira, acima da ligação com a terra e a identidade noronhense”.
Esta questão fica ainda mais complexa quando se verifica que essa relação de arrendamento não se dá apenas entre ilhéu e empresário externo. Constatou-se que essa relação também existe entre os próprios ilhéus. Não é incomum o caso de grandes pousadas arrendarem as pequenas hospedarias para administrá-las ou ainda para servirem como alojamento para seus funcionários. O que aconteceu foi que, no rastro do desenvolvimento da atividade, surgiram novas pousadas e, com elas, a necessidade de mais funcionários. Carecendo a ilha de recursos humanos qualificados, alguns meios de hospedagem (sobretudo, os maiores) passaram a recorrer a pessoas de fora da ilha. Precisando de alojamentos para este novo contingente, esses meios de hospedagem viram no arrendamento das pequenas pousadas a solução para a acomodação de seus funcionários.
Em qualquer um dos casos, seja se associando com um investidor/sócio externo, seja alugando (arrendando) para esta figura externa ou mesmo interna, o ilhéu precisa deixar sua casa a fim de que a mesma funcione integralmente como pousada. E diante disso, restam-lhe duas opções: se mudar para a casa de um parente na própria ilha, ou se mudar para o continente.
No caso de Fernando de Noronha, se mudar para a casa de um parente não é algo tão simples: as casas são pequenas e, por conta dos trâmites necessários e dos preços dos materiais de construção, qualquer ampliação é uma tarefa burocrática e dispendiosa. Além disso, devido ao espaço exíguo, a disponibilidade de novos lotes para construção é bastante restrita. Por essas razões, quando acontece de arrendar sua casa e se mudar para a de um parente na ilha, ao ilhéu não resta outra opção que não a de construir um “puxadinho”.
No caso do ilhéu que se muda para o continente (seja por opção pessoal, seja porque não possui parentes na ilha), este passa a viver da renda paga pelo empresário externo. No continente o que costuma ocorrer é uma rápida depreciação do dinheiro, afinal, no continente o ilhéu passa a ter acesso a uma (enorme) gama de produtos/serviços que não dispunha em Fernando de Noronha. É aí que muitos começam, “seja por inexperiência, seja por ignorância”, para usar as palavras de um entrevistado, a gastar mais do que podem. Conforme se apurou junto a alguns entrevistados, não foram poucos os casos de ilhéus que, tendo ido viver de renda do continente, acabaram sem dinheiro e, ao mesmo tempo, sem ter para onde voltar, uma vez que já haviam cedido o TPU.
Outra questão fundamental e que está diretamente ligada a estes arrendamentos é a possibilidade de perda do Termo de Permissão de Uso. Recorde-se que o TPU constitui um ato praticado dentro do poder discricionário da Administração, por meio do qual é outorgado a um particular o uso de um bem público imóvel (MEIRELLES, 2009). Durante sua vigência, é assegurado ao permissionário o uso especial e individual do bem público, conforme as condições estipuladas pela Administração que, no caso específico de Fernando de Noronha, desautorizam expressamente o aluguel do imóvel. Como texto padrão, consta logo na primeira cláusula do Termo de Permissão de Uso que é…
(…) expressamente proibido o desmembramento, a sua cessão, empréstimo ou locação, total ou parcial, ou qualquer forma de alienação, sem autorização da ADEFN, sob pena de revogação unilateral da Permissão, sem direito a qualquer reparação pecuniária [grifo nosso].
(…) Fica igualmente proibida a hospedagem de turistas ou visitantes, mediante estada remunerada, no Imóvel ora dado em Permissão de Uso.
Ou seja, ao arrendarem suas casas, os ilhéus deliberadamente ferem a essência do TPU e incorrem em sanção prevista no Decreto Distrital nº 18 de 06 de fevereiro de 2004:
Art. 20. Constituem motivos para o Administrador Geral declarar a perda da condição de residente (…):
I-residente permanente- a cessão irregular do seu direito de uso de imóvel público, bem como, o desvirtuamento da destinação prevista no respectivo Termo de Ocupação ou Permissão de Uso (…) [grifo nosso].
Retomado pela ADEFN, o TPU fica disponível para ser utilizado conforme a conveniência do Estado. E a conveniência do Estado, como sempre, é assunto que demanda particular atenção.
Se tem algo que a história da acumulação por despossessão deixa evidente é que, sem a intervenção do Estado, a espoliação não seria possível (AMARAL, 2012). Como bem lembra Everit (1967 apud PERELMAN, 2001), ainda que na aurora do modo de produção capitalista os cercamentos das terras tenham sido uma condição necessária, eles não foram suficientes para lançar os camponeses no mercado de trabalho. Isto porque, mesmo depois das terras cercadas, sempre era possível encontrar nos arbustos e na vegetação rasteira os elementos necessários para atender às necessidades básicas. A quase tudo, por mais insignificante que fosse, poderia ser dado um bom uso pelo camponês ou sua esposa. A situação só muda, efetivamente, a partir do momento em que a burguesia abrigou-se atrás de um quadro jurídico explícito e codificado composto por um conjunto de dispositivos disciplinares voltados para rejeitar os “direitos” que o campesinato tinha adquirido e preservado (FOUCAULT, 1979 apud PERELMAN, 2001). E isso só era (e ainda é) possível de ser feito por aquele que detém o monopólio do direito de elaborar leis e punir àqueles que as desobedecem: o Estado.
Embora o Estado seja visto, desde o ponto de vista do planejamento turístico, como um elemento fundamental porque oferece coesão, ordem e direcionamento ao destino turístico (fazendo-o funcionar com o mínimo de conflitos) e, ainda que na teoria, arbitre pelo interesse coletivo e em favor do bem comum, o fato é que a atuação do Estado não é desinteressada… nunca foi. Como lembra Mandel (1969), o árbitro (o Estado) não é neutro. Pelo contrário, o Estado constitui a entidade política, o corpo político, mais capaz de orquestrar arranjos institucionais e manipular as forças de acumulação do capital para assegurar o padrão mais vantajoso para os interesses capitalistas dominantes (HARVEY, 2004).
Em suma, como diriam Marx; Engels (2003: 28), o Estado “é apenas um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”. É por isso que, em se tratando de acumulação por despossessão, como diz Harvey (2004), o Estado constitui um elemento sem o qual esse processo não pode ser explicado. Com efeito, ao analisar a história da acumulação por despossessão, o que se constata é que a atuação do Estado se manifestou de diversas formas: cessão de seu aparato militar para viabilizar o cercamento das terras comunais relatadas por Marx (2004), chantagens, ameaças (explícitas ou veladas), embargos e outras manipulações.
Ao mesmo tempo, é preciso considerar que o Estado nada mais é, como lembra Mandel (1969), que um conjunto de instituições permanentes que incluem o exército, a polícia e os altos administradores nos departamentos governamentais (servos-chave dos serviços). Sendo assim, o Estado, em si mesmo, não tem intenções; não age. São as pessoas que O representam (estas sim, possuidoras de intenções e estando na condição de decidir) que agem… nem sempre no interesse coletivo e em favor do bem comum. As pessoas são passíveis de agirem em seu próprio interesse (ou de sua classe) se a posição social que ocupam assim permitir; e isso, no caso de Fernando de Noronha, explica muita coisa.

O binômio Poderes-Favores: elos entre Política e Capital na produção o espaço em Fernando de Noronha

O que se percebe na dinâmica da espoliação em Fernando de Noronha é que a mesma não pode ser adequadamente compreendida sem que se recorra à relação entre poderes e favores. Segundo um entrevistado, para certas (grandes) pousadas, os alvarás de funcionamento são dados mais como retribuição a um favor prestado do que como o resultado de um trâmite legal pelo qual todos deveriam passar. Foi isso, por exemplo, que aconteceu com uma certa pousada que, de acordo com o referido entrevistado, estabeleceu uma mecânica segundo a qual festas, jantares, passeios de barco e hospedagens para a elite administrativa do Distrito Estadual (independentemente da gestão) e seus parentes/amigos eram oferecidos em troca de favores quando esses se fizessem necessários. Foram essas “gentilezas” que asseguraram o sucesso e a agilidade dos trâmites legais necessários para, por exemplo, a ampliação da dita pousada.
Aos menos favorecidos que não dispõem desse “trânsito político”, por outro lado, as condições e restrições sempre se fizeram e se fazem aplicáveis. É exatamente isso que também constata Jornal do Commercio (2011) quando diz que “as leis na República de Noronha se ajustam às conveniências políticas. São códigos próprios. Estabelecidos em função de práticas nem sempre republicanas. O que é proibido a muitos vira autorização para poucos”.
Em suma, o que se passa em Fernando de Noronha é que a produção do espaço é ditada por meio de uma dialética entre poderes e favores. Da parte de quem oferece favores, a motivação é a perspectiva de obtenção de condições especiais e vantagens para a operação de seus empreendimentos; da parte de quem as aceita (que é quem detém o poder), a motivação é o usufruto das benesses que a posição proporciona. Um entrevistado expôs a situação de uma forma bastante eloquente:
Qual é o compromisso que tem o Administrador que sai de Recife e vai administrar problemas em Noronha? (…) quem vai para lá [para a direção da ADEFN], vai pelo cargo e pelas benesses do cargo: (…) tem boa casa para morar, (…) volta para Recife na hora que quer, (…) vai lá para ficar com uma certa mordomia, sendo cortejado por todos (…). [O Administrador] é um homem de posses, um homem de elite, um homem que está distante da população comum. A população comum é pra pedir, e aí, depois de um certo tempo ele [o Administrador] se aborrece com os pedidos, porque o pedido é só “eu dou, mas não tenho volta”; já no caso do empresário [o pedido] tem [volta]. Com o empresário ele [o Administrador] tem regalias, tem o convívio entre os pares (…). O Administrador vai para a casa do ilhéu? Vai não! Ele vai para o restaurante do [empresário] Fulano, para a pousada do [empresário] Beltrano (…).
É essa relação entre Política e Capital que explica porque uma ilhéu, ao solicitar uma autorização para reformar o telhado de sua casa, teve que esperar sete meses até consegui-la (JORNAL DO COMMERCIO, 2011), ou porque outra ilhéu, necessitando de folhas de compensado para consertar a cama quebrada, precisou passar por um moroso procedimento administrativo (SANTONIERI, 2006), ao passo que a construção da Pousada Maravilha, uma das mais luxuosas da ilha, foi celeremente autorizada pela Administração não obstante manifestação da comunidade em sentido contrário.
A atuação do Estado em favor do capital está, aliás, longe de ser discreta. De acordo com uma informação ventilada por uma ex-gestora, a intenção da ADEFN é, já há algum tempo, a de desenvolver também o segmento de luxo. No entanto, essa pretensão fica travada devido à incipiência da oferta. Desta forma, no entendimento da Administração da ilha, a única alternativa para resolver essa questão seria a atração do capital externo de modo a se investir na qualidade desejada para a prestação de um serviço de luxo.
Sobre isso, cumpre precisar que a questão a ser discutida não é, propriamente, se Fernando de Noronha deve ou não ser um destino de luxo. A questão que, efetivamente, merece ser posta em análise tem a ver com quem tem o direito de explorar a atividade… que no caso, segundo a pretensão da Administração, não é a comunidade local. A partir do momento em que a ADEFN entende que um serviço de qualidade somente pode ser prestado por empresários externos, rompe-se com a possibilidade de que os ilhéus o façam. O problema disso é que não resta ao ilhéu outra opção que não a de vender sua força de trabalho. Neste sentido, entende-se que, sob a alegação de não possuírem o savoir faire necessário, os ilhéus estão sendo espoliados do direito em explorar a atividade turística em um espaço que é seu.
Mas a espoliação pode vir também via manobras do próprio poder público. Conforme já exposto, há um limite no número de pousadas que podem funcionar em Fernando de Noronha. Esse quantitativo é controlado pelo alvará de funcionamento: as pousadas que possuem alvará são chamadas de regulares (formais), ao passo que as que não possuem são classificadas de informais. O que convém acrescentar é que, hoje, várias das pequenas pousadas que possuem alvará de funcionamento operam, na prática, como alojamento de funcionários de pousadas maiores. O que se apurou em conversas com (ex)funcionários da Administração é que cogita-se uma revisão no sistema de classificação de meios de hospedagem para facilitar a criação de uma nova categoria: o alojamento. Com essa nova categoria, a intenção, ainda segundo esses (ex)funcionários, é liberar o alvará de pousada para àquelas que estão na informalidade.
Ora, em um contexto no qual a concessão de autorizações pauta-se num critério de seletividade (em função do que a parte interessada na autorização pode retornar em termos de favores ou “mimos”) não é impossível imaginar (uma vez que a ausência de evidências não permita afirmar de maneira categórica), que esses alvarás sejam prioritariamente destinados, para usar as palavras de Marx (2004), a alguns “favoritos da Corte”.
A partir de reflexões como essas, vem à tona, e com todo vigor, a proposta de Harvey (2004) a propósito da despossessão. Isto porque, o que se verifica em Fernando de Noronha é um processo de despossessão que não se limita simplesmente à despossessão de casas, mas à despossessão do próprio espaço.

A despossessão do espaço e seus desdobramentos

Seja arrendando sua casa, seja associando-se com empresários, há sempre a possibilidade do ilhéu perder ou vender sua moradia para o investidor de fora. Assim, o que se tem é que o ilhéu é, invariavelmente, empurrado para fora de sua casa e, em última instância, da ilha. Estes que partem são, portanto, privados da convivência e das referências que tinham com um espaço que lhes era familiar e o qual ajudaram a produzir. Nestas circunstâncias, e não há como dizer isso de outra forma, os ilhéus são espoliados de seu espaço.
Quanto aos que permanecem, lhes resta testemunhar os que partiram serem substituídos por moradores temporários (funcionários de pousadas) e turistas. Embora seja legítimo dar o benefício da dúvida e esperar que algum tipo de relação positiva possa vir a florescer desses novos arranjos, a experiência tem mostrado que a tendência é que ocorra o oposto. Nos depoimentos dos ilhéus foram recorrentes as alegações de que, com o desenvolvimento do turismo, aquilo que anteriormente era marcado por relações de solidariedade entre as pessoas, passou à condição de relações comerciais mediadas pela possibilidade de lucro.
Outro desdobramento dessa saída sistemática de moradores é o esfacelamento do poder de mobilização local. Neste ponto, é interessante resgatar a acepção gramsciana segundo a qual a tomada da hegemonia pelas classes dominadas não se dará por meio de ataques frontais (“guerra de movimento”) e sim por meio de uma ocupação progressiva de espaços (“guerra de posições”). Assim, se se assume, como Gramsci (2000), que a conquista do poder é precedida por uma longa batalha pela hegemonia e pelo consenso, fica evidente que a mudança só é possível via uma luta cotidiana e de longo prazo envolvendo a participação consciente da grande maioria da população (COUTINHO, 2003).
Ocorre que, no caso de Fernando de Noronha, a partir do momento em que os residentes são substituídos por turistas, criam-se as condições para a produção de um espaço no qual as possibilidades de resistência, articulação e cobrança da comunidade local junto ao poder público pela melhoria de vida na ilha atrofiam-se e tendem a desaparecer. Isto porque turistas nada mais são do que meros passantes, isto é, pessoas que não vivem os problemas da ilha. Os verdadeiros atores contra-hegemônicos são os ilhéus. São estes que, sofrendo direta e diariamente as desventuras de viver em um espaço que não é pensado para eles, encontram a motivação necessária para se mobilizarem e reivindicarem um outro espaço. Logo, o desaparecimento dessas pessoas do espaço insular deve ser objeto de especial preocupação; afinal, sem uma população local que se mobilize pelo seu espaço, as condições tornam-se ideais para a constituição de um espaço que busca atender apenas aos interesses hegemônicos.
Quando é esse o caso, o próprio espaço tende a perder o sentido, a se converter em um “presente sem espessura, quer dizer, sem história, sem identidade; (…) espaço do vazio” (CARLOS, 1999: 28). Enfim, tende a transformar-se um espaço do provisório e do efêmero, no qual as relações entre os indivíduos são impessoais e sem referências comuns a um grupo. Dessa forma, o ilhéu que (por enquanto) permanece em Fernando de Noronha vê a tessitura do espaço que ajudou a criar se desmanchar. Para estes, ainda que em outro sentido, o espaço também “desaparece”. Trata-se de outra forma de espoliação; uma espoliação que não tem a ver com a perda do espaço propriamente dito (como no caso dos que partiram), mas sim das referências que o constituem.

Conclusões

Tendo em conta o potencial do turismo para transformar o espaço e, por isso mesmo, indo além da perspectiva ingênua e simplista que o enxerga somente enquanto uma panaceia econômica para as localidades (em particular, as insulares), a presente investigação se propôs a sustentar uma tese segundo a qual o turismo pode se constituir em um mecanismo que viabiliza a acumulação por despossessão. Diante disso, a presente pesquisa se propôs a esclarecer como o turismo pode ser utilizado para viabilizar essa acumulação por despossessão por meio da análise do caso de Fernando de Noronha.
O que se constatou foi que o lugar do turismo na dinâmica da espoliação é servir como uma espécie de vetor: por meio da atividade turística, o capitalista externo chega a Fernando de Noronha, aí se instala e produz o espaço conforme seus interesses. É no turismo que o capital encontra a justificativa para aportar e se reproduzir em um contexto onde simplesmente não se pode comprar a terra. Dessa forma, o caso de Fernando de Noronha ensina que, de fato, as vias da despossessão são variadas. Não existe um, mas sim diversos caminhos que podem ser percorridos; o turismo é um deles.
No entanto, ainda que conduzida pelo capitalista em sua ânsia de lucro, o processo de despossessão não se resume a este único sujeito. Isto porque, mesmo sendo o principal interessado em pilhar os haveres alheios, a atuação do capitalista quase sempre esbarra na necessidade da chancela do Estado que, devido ao monopólio do aparato jurídico, é o único ente capaz de legitimar como socialmente aceito um processo de despossessão. Disto conclui-se que não é possível discutir despossessão (ao menos em Fernando de Noronha) sem que se considere a atuação do Estado como ente ativo e decisivo nesse processo.
No “microcosmo” de Fernando de Noronha viu-se que a atuação do Estado, representado pelos burocratas (que, imbuídos das prerrogativas legais, decidem pelas ações de espoliação atendendo a determinados interesses que, não por acaso, são os das classes hegemônicas), se pauta pela troca de favores: mimos de um lado resultam em benefícios e agilidades burocráticas do outro. E vice-versa: favorecimentos de um lado (quando já não são, eles próprios, uma resposta) resultam em certos agrados para o burocrata e/ou seus familiares. É esse ciclo vicioso que, em grande medida, dita o ritmo da produção do espaço pela via da despossessão em Fernando de Noronha.
Em uma escala geográfica mais ampla (isto é, aquela que se passa em qualquer lugar no continente), possivelmente as ações de despossessão legitimadas pelo Estado teriam como fato gerador (ou recompensa) o dinheiro ou mimos mais requintados do que um pernoite de hotel, um jantar, um convite para uma festa ou um passeio de barco; no entanto, em Fernando de Noronha esses pequenos mimos (que permitem melhor desfrutar da vida na ilha) são bastante apreciados enquanto moeda de troca.
O que o caso de Fernando de Noronha ainda tornou evidente foi que a despossessão tem uma repercussão espacial significativa: o desmantelamento daquilo que Lefebvre (1991) denomina “espaço vivido”. Aquele espaço que, teoricamente, seria o espaço de resistência da comunidade, o espaço no qual a mesma consegue se articular de modo a resignificá-lo e vivê-lo (apesar das imposições gestadas e implementadas de acordo com os interesses hegemônicos) tende, num contexto marcado pela lógica da espoliação, a se desmanchar. Isto porque, ao se expurgarem os indivíduos, elimina-se o elemento basilar que empresta coesão e unidade ao espaço. E dessa forma, rompem-se as resistências. Assim, não é somente a perspectiva de aceder às terras e imóveis que interessa ao capitalista, mas também o solapamento dos elementos de resistência; até mesmo porque, com a desestruturação do tecido social local, a assimilação de terras e imóveis pelo capitalista torna-se mera questão de tempo.

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* Itamar José Dias e Cordeiro: Professor Adjunto do Departamento de Hotelaria e Turismo (Universidade Federal de Pernambuco). Doutor em Geografia; Mestre em Geografia; Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental; Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente; Bacharel em Turismo e Tecnólogo em Gestão Ambiental (IFPE).

** Professora Titular do Departamento de Geografia (Universidade Federal de Pernambuco). Doutora em Geografia, Mestre em Geografia e Bacharel em Geografia.


Recibido: 07/06/2017 Aceptado: Junio de 2017 Publicado: Julio de 2017

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