Jean Henrique Costa
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
jeanhenrique@uern.brPara citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Jean Henrique Costa (2015): Radiografia crítica dos megaeventos no Brasil, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 18 (junio 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/turydes/18/megaeventos.html
2013. Heterogêneos protestos em ruas brasileiras marcaram o slogan “Não vai ter Copa”. Milhares de pessoas protestaram publicamente – em cidades distintas do país – contra a execução de um megaevento de luxo (padrão FIFA) num país de escolas, transportes e hospitais públicos sem padrão algum. Numa estrutura socioeconômica como a brasileira, marcada por contradições estruturais gritantes, um evento como a Copa do Mundo certamente seria o fermento para uma instigante política cotidiana contra certos abusos de poder comumente efetivados no país.
2014. Ano de Copa do Mundo no Brasil. Os 7 x 1 sofridos pela seleção canarinho, antes mesmo da grande final, contra a pragmática seleção alemã, não chegaram nem perto do polêmico jogo dos bastidores de um megaevento marcado por interesses econômicos, políticos e simbólicos para o país e demais organizações envolvidas.
Para entender a natureza e os bastidores desse caldeirão de protestos o livro aqui resenhado representa um apreciável exercício crítico acerca dos megaeventos, em especial, a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos no Brasil (2016). Apesar de sua curtíssima extensão, apenas 94 páginas, o livro não deixa de ser um gigante ao não desobrigar-se da crítica. Com 10 pequenos capítulos, além de uma introdução e uma pequena seção cronológica sobre os megaeventos apontados durante o corpo do texto, esta encurtada obra expressa uma pujante crítica ao urbanismo contemporâneo e seu modelo privatista (e excludente) de cidade. Trata-se de uma crítica ao chamado neodesenvolvimentismo, isto é, “a inclusão das cidades na política de crescimento econômico” (MARICATO, 2014, p. 20), perspectiva que vai contra a cidade, pois, ao valorizar o capital, ignora a política urbana e o uso e a regulação do solo, além de excluir (ou incluir precária e perversamente) aqueles que não preenchem os requisitos básicos para o ingresso na lógica luminosa do capitalismo global.
A apresentação de João Sette Whitaker Ferreira (intitulada Um teatro milionário) ilustra bem o esforço e intenção da obra: entender os megaeventos esportivos no âmbito do combate a chamada degradação urbana. Ensaia-se a crítica da reflexão de que uma imagem positiva da cidade atrai investimentos (novos fluxos de capital financeiro), dinamiza o turismo, a imagem do governante, revigora o marketing urbano e aquece os mercados imobiliários e da construção civil, tudo isso ao preço de uma forte segregação e elitização dos espaços urbanos. Esta introdução abre o escopo do livro, dando vozes aos capítulos posteriores (produções acadêmicas, governistas e até mesmo populares, como o capítulo final produzido pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Dez capítulos estruturam o livro: Ermínia Maricato (A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a desigualdade urbana); Nelma Gusmão de Oliveira (Jogo espetáculo, jogo negócio); Jorge Luiz Souto Maior (Lei Geral da Copa: explicitação do estado de exceção permanente); José Sérgio Leite Lopes (Transformações na identidade nacional construída através do futebol: lições de duas derrotas históricas); Andrew Jennings (A máfia dos esportes e o capitalismo global); Luís Fernandes (Para além dos Jogos: os grandes eventos esportivos e a agenda do desenvolvimento nacional); Raquel Rolnik (Megaeventos: direito à moradia em cidades à venda); Carlos Vainer (Como serão nossas cidades após a Copa e as Olimpíadas?); Antonio Lassance (A Copa, a imagem do Brasil e a batalha da comunicação); e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (O que quer o MTST?).
Ermínia Maricato enfaticamente já abre o livro descortinando a lógica capitalista aplicada ao urbanismo e à gestão das cidades:
Revitalização, reabilitação, revalorização, requalificação, reforma não importa o nome dado ao processo que reúne capitais internacionais ‘especializados’ no urbanismo do espetáculo e que utiliza como álibi megaeventos esportivos, culturais ou tecnológicos: com frequência, são as mesmas instituições financeiras, as mesmas megaconstrutoras e incorporadoras e os mesmos arquitetos do star system que promovem um arrastão empresarial a fim de garantir certas características a um pedaço da cidade que se assemelha, no mais das vezes, a um parque temático [...] Endividamento, especulação imobiliária e gentrificação são marcas que, com raras exceções, acompanham essas custosas transformações, tão comumente alardeadas como vantajosas (MARICATO, 2014, p. 18).
Para Maricato, esse assalto às economias locais não ocorre exclusivamente por causa dos megaeventos. Trata-se de um processo maior e anterior, resultado da expansão da globalização neoliberal. Os megaeventos apenas potencializam suas estratégias. Nesse cenário, a cidade moderna, aquela que interessa ao capital, passa a ser gerenciada como uma “cidade-mercadoria”, “cidade-empresa”, objetivando dar vazão aos interesses do capital. Como resultado,
A dilapidação do fundo público, seguindo leis casuísticas e apressadas, além de projetos incompletos, se dá sob o argumento do ‘legado’ que, após o megaevento, restará em benefício de toda a população. No entanto, a experiência mostra que esse cenário tende a contrariar as necessidades locais e sobrar como um conjunto de ‘elefantes brancos’ [...]. Algo semelhante ocorre com as obras de mobilidade e de moradia. O interesse social é álibi para um milionário movimento de construção, que, entretanto, ignora as reais necessidades populares. Uma tendência geral de expulsão dos pobres da cidade, com a valorização imobiliária, vinculando-se à distinção de classe, é o que se verifica (MARICATO, 2014, p. 18).
Todo esse processo não ocorre somente por via da hegemonia econômica. Sem o aparato legal que legitime a expansão capitalista o processo não chegaria a ser tão promissor. Destarte, o Estado precisa ser ator ativo na construção e condução de certos interesses hegemônicos. Para tanto, Jorge Luiz Souto Maior traz uma das reflexões centrais do livro: a privatização do público por meio do estado de exceção permanente. Para ele, “a Lei Geral da Copa (LGC), n. 12.663/2012, foi, assumidamente, fruto de um ajuste firmado entre o governo brasileiro e a Fifa, uma entidade privada, visando atender os denominados padrões Fifa de organização de eventos” (SOUTO MAIOR, 2014, p. 35). Nesse sentido, “esse acordo, com propósitos econômicos e políticos, mascarados de ‘felicidade do povo’, implicou a suspensão da vigência de várias normas constitucionais” (SOUTO MAIOR, 2014, p. 35). Suspenderam-se, em prol da Fifa, por exemplo, direitos do consumidor (flexibilizando-se o Código de Defesa do Consumidor); criaram-se ruas exclusivas para a Fifa (Fan Fest); demarcaram-se regras comerciais estranhas ao lugar no entorno das áreas dos estádios; flexibilizaram-se direitos fundamentais do trabalhador, instituindo o trabalho voluntário para uma instituição com fins lucrativos; dentre outros casos de manutenção de um efetivo estado de exceção.
Os bastidores políticos e empresariais deste jogo de interesses econômicos são destacados com forte rigor de denúncia e investigação jornalística pelo escocês Andrew Jennings. O jornalista aponta uma série de ligações obscuras entre empresários, gestores globais do esporte e políticos, buscando caracterizar o mercado global de poder da Fifa e do COI (Comitê Olímpico Internacional). Para Jennings, os esportes, em especial o futebol, por ser o mais popular de todos, tornaram-se uma arma estratégica na criação de novos mercados globais. Por conseguinte, “tocar o futebol mundial é hoje uma operação destinada a servir às corporações” (JENNINGS, 2014, p. 55). O autor afirma que organizações esportivas estão na esfera pública, são financiadas por dinheiro público e detêm poder. Desta forma, não há razão para se esquivarem do exame crítico. Para Jennings, a Fifa criou um modelo institucionalizado de corrupção global, exportando “corrupção de Zurique ao mundo”. Junto ao Comitê Olímpico Internacional, “reivindica ‘autonomia’ para o esporte, alegando que governos não devem ter permissão de interferir na ‘independência’ das federações esportivas. E a sugestão de que essas federações devem operar acima da lei é aceita pela maior parte dos governos, na maior parte do tempo” (JENNINGS, 2014, p. 56).
Recusando este “modelo Fifa” de gestão da vida pública, Carlos Vainer se questiona, então, como serão nossas cidades após a Copa e as Olimpíadas? Em uma metodologia multidimensional, considerando as dimensões institucional, urbanística, legal, fundiária-imobiliária, ambiental, escalar, simbólica e política, compreende que:
[...] os megaeventos contribuem e contribuirão para gerar cidades mais desiguais e segregadas, em que as parcerias público-privadas operam como meios de transferência líquida de recursos públicos (financeiros, fundiários, políticos) para o setor privado. Nossas cidades terão problemas ambientais ainda mais graves e serão ainda menos capazes de lidar com os desafios de uma mobilidade urbana asfixiada. As novas formas institucionais de exceção e o governo paralelo também tornam nossas cidades e seus governos mais autoritários e menos transparentes (VAINER, 2014, p. 77).
Diante disso, este livro se torna um mosaico heterogêneo de visões sobre a Copa de 2014, que inclusive se abre a agenda oficial do Governo. O capítulo de Luís Fernandes (secretário executivo do Ministério do Esporte), intitulado “Para além dos Jogos: os grandes eventos esportivos e a agenda do desenvolvimento nacional”, dá um certo otimismo ao texto. Fernandes acredita, enfaticamente, no suposto legado da Copa, dado pela possibilidade de captação de investimentos externos e de transformação material de realidades atingidas pelos investimentos. “Peleguismo” ou não, a crítica não pode se fechar ao debate com a agenda oficial daqueles que gerenciam o poder.
Do mesmo modo, o livro traz uma manifestação de reconhecimento reflexivo e respeito ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), com o último capítulo – O que quer o MTST? Produzido por Guilherme Boulos, Josué Rocha e Maria das Dores, e aprovado coletivamente pelo MTST, fecha-se o livro com a belíssima reflexão abaixo:
Onde há megaevento há aumento da especulação imobiliária. No Brasil não foi diferente. A Copa enrijeceu ainda mais os muros sociais das cidades brasileiras. E antes mesmo de começar já definiu seus perdedores e vencedores. Os perdedores fomos nós, moradores da periferia, que vimos o aluguel abocanhar nossa renda. As vencedoras foram as grandes empreiteiras, que levaram dinheiro público a rodo para obras de finalidade social duvidosa. Como denúncia dessa disparidade, ocupamos suas sedes ao lançar a campanha ‘Copa Sem Povo, Tô na Rua de Novo’. [...] A cidade privada para poucos é a cidade da privação para a maioria. Entendemos que essa mudança passa por uma profunda reforma urbana, que deve rediscutir a apropriação social do espaço, dos bens e dos serviços urbanos. [...] Entendemos ainda que uma mudança dessa natureza não virá do Congresso Nacional, com seus parlamentares financiados até o pescoço pelo capital imobiliário. Ela vem de baixo (MTST, 2014, p. 86-87).
O trecho acima expressa reflexão, desabafo e convite político. O texto significa uma possibilidade ampla para se rediscutir a lógica política desses megaeventos e suas repercussões econômicas, sociais e espaciais nos territórios. Para Rolnik (2014, p. 70), é evidente que sediar grandes eventos esportivos traz ganhos e potencializa elementos da dinâmica econômica dos países-sede. Contudo, deve-se questionar: ganhos para quê e ganhos para quem? Para Rolnik, a resposta a essas perguntas está diretamente relacionada ao processo de tomada de decisões sobre quais, onde e como serão os investimentos.
No caso das cidades brasileiras, nenhum dos projetos urbanos relacionados à Copa foi definido a partir de um amplo processo de discussão com a sociedade [...] No fim das contas, os impactos sociais da preparação para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos do Rio engrossaram o caldo do profundo descontentamento da população com a vida em nossas cidades (ROLNIK, 2014, p. 70).
A Copa já passou. As Olimpíadas estão chegando. Outros jogos poderão vir e, para além do esporte, outros eventos e obras faraônicas levadas a cabo pela justificativa do “legado” também virão. O capital não dorme! Protestos virão certamente. Como destacou Rolnik (2014, p. 70), estes protestos nascem da reivindicação pelo “direito à cidade”, contra uma cidade que nega o direito básico de inclusão do sujeito no espaço público. O que resta considerar e avaliar é até que ponto esses protestos poderão ir além das estruturas vigentes, rompendo uma hipotética lógica reformista conservadora.
O desejo de mudança já foi anunciado por parcelas plurais da população brasileira. O desafio será pensar, então, a natureza dessa mudança, seus limites e suas possibilidades. Certo ou não, um sentimento já foi impregnado nos anos que antecederam a Copa: o capital e a política parasitária encontrarão resistências. A política profissional precisará, em suas articulações com o capital global, de maior planejamento para a realização de seus objetivos corporativos. A população não será passiva.
Entretanto, é bom salientar, como destacou Antonio Lassance, que “a Copa sempre foi um alvo errado dos protestos. É o arremedo de quem malha o Judas fingindo que enfrenta o Império Romano” (LASSANCE, 2014, p. 80). “No Brasil existe uma manada de mamutes brancos. Chama-se dívida pública. O Brasil gastou, em 2013, R$ 248 bilhões com o pagamento de juros, segundo dados do Banco Central. O que se paga de juros da dívida daria para construir um estádio do Mineirão por dia” (LASSANCE, 2014, p. 83). Por conseguinte, o grande gargalo não foi e nem será a promoção da Copa ou de qualquer outro megaevento num país como o Brasil, mas sim, a lógica política inerente aos grupos hegemônicos promotores do grande jogo do capital. O capital global não tem ética esportiva. Somente a vitória interessa. Contudo, mesmo o maior adversário pode ser derrotado. A população já mostrou que, na política como na vida, não há vitória antes do apito final. E isso o esporte também nos ensina cotidianamente.
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