Revista: Turydes Revista Turismo y Desarrollo


NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE EM THEODOR W. ADORNO

Autores e infomación del artículo

Jean Henrique Costa (CV)

Marcela Amália Pereira Cabrita (CV)

Tássio Ricelly Pinto de Farias (CV)


Resumo
Este ensaio objetivou apreender algumas reflexões presentes em Theodor W. Adorno para se pensar o lazer e o consumo do tempo livre nas sociedades contemporâneas. Fundamentalmente a partir das discussões acerca da semi-formação (Halbbildung), da indústria cultural (Kulturindustrie) e do tempo livre (Freizeit), entende-se o lazer como um fenômeno indissociável do espírito de nosso tempo, marcado, segundo Adorno, pela heteronomia cultural, pela transformação do homem em estatuto de coisa e pela ideologia como propaganda do mundo. Assim, este sucinto escrito pretende expor algumas contribuições de Theodor W. Adorno para a construção de uma teoria crítica do lazer, discutindo especificamente a semiformação cultural, o tempo livre como prolongamento do trabalho e a indústria cultural como ideologia e propaganda do mundo, buscando inferir de que forma esses três debates podem contribuir para o entendimento das formas plurais de vivência do lazer nas sociedades atuais, marcadas pelo avanço do capitalismo sobre a cultura de tal forma que a tornou uma mercadoria aos olhos do chamado Mundo Administrado (verwaltete Welt).
Palavras-Chave: Tempo Livre, Lazer, Theodor W. Adorno.

NOTES ON FREE TIME AT THE WORK OF THEODOR W. ADORNO

Abstract
This paper aimed to understand some reflections present in Theodor W. Adorno to think of leisure and consumption of free time in contemporary societies. Fundamentally, starting from discussions about the semiformation (Halbbildung), the cultural industry (Kulturindustrie) and free time (Freizeit) means leisure as an inseparable phenomenon of the spirit of our time; according to Adorno, leisure is marked by cultural heteronomy, by the transformation of man into statute of thing and by ideology as advertisement of world. Therefore, this brief writing is to present some contributions of Theodor W. Adorno to construct a critical theory of leisure, specifically discussing the cultural semiformation, free time as an extension of the work and the cultural industry as ideology and advertisement of world, trying to infer how these three debates can contribute to the understanding of plural forms of experiencing leisure in contemporary societies, marked by the advance of capitalism on culture so that became a merchandise the eyes of the so-called Managed World (verwaltete Welt).
Keywords: Free Time; Leisure; Theodor W. Adorno.

"Todos têm que se dedicar a algo o tempo todo. O tempo livre exige ser gasto até o fim. Ele é planejado como empreendimento, preenchido com vistas a todos os eventos possíveis ou pelo menos com deslocamentos em velocidade máxima".
Theodor W. Adorno (2008, p. 134-135)
Minima Moralia (aforismo 91).



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Jean Henrique Costa, Marcela Amália Pereira Cabrita y Tássio Ricelly Pinto de Farias (2014): “Notas sobre o tempo livre em Theodor W. Adorno”, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 17 (diciembre 2014). En línea: http://www.eumed.net/rev/turydes/17/tiempo-livre.html


Este ensaio objetivou aproveitar algumas reflexões presentes em Theodor W. Adorno para se pensar o lazer e o consumo do tempo livre nas sociedades contemporâneas. Fundamentalmente a partir das discussões acerca da semiformação (Halbbildung), da indústria cultural (Kulturindustrie) e do tempo livre (Freizeit), entende-se o lazer como um fenômeno indissociável do espírito de nosso tempo, marcado, segundo Adorno, pela heteronomia cultural, pela transformação do homem em estatuto de coisa e pela ideologia como propaganda do mundo. Deste modo, não há como se pensar lazer e tempo livre longe das relações sociais concretas, históricas e, portanto, sujeitas aos imperativos da integração social.

Nesse sentido, este estudo vem apresentar – ou (re)apresentar – a obra de Theodor W. Adorno para os chamados estudos do lazer e do tempo livre, campo interdisciplinar em que o autor ainda não é tão lido, sobretudo no Brasil. Autor de uma obra de difícil compreensão, Adorno necessita ainda de maiores reflexões acerca de suas ideias1 . Logo, esta breve reflexão vem tentar preencher uma lacuna existente, na medida em que traz as ideias de Adorno para um campo do conhecimento ainda marcado por uma visão muito instrumental do fenômeno do lazer. Assim, seguindo o pensamento crítico adorniano, é necessário que o lazer seja pensado para além do simples fato do entretenimento, ou ainda, da funcional reposição das energias vitais para o trabalho.

O texto estrutural de apoio deste ensaio é Tempo Livre, “um texto que surgiu de uma conferência transmitida pela ‘Rádio Alemanha’ em 1969 – ano da morte de Adorno –, que tem por objetivo tratar da questão do ‘tempo livre’” (NASCIMENTO; MARCELLINO, 2010, p. 03). Este texto foi publicado no Brasil originalmente em Palavras e Sinais, de1995, tradução brasileira de Stichworte: kritische modelle 2 (Frankfurt am Main, Suhrkamp).

            Iniciando o debate, entende-se como tempo livre todo e qualquer tempo que se passa longe do trabalho ou das distintas obrigações cotidianas. Diferentemente do sentido comum de ócio, que expressaria algo mais contemplativo, o tempo livre está atrelado e anda lado a lado com o trabalho. Mas até que ponto se tem realmente um tempo livre? O que poderia ser esse tempo livre? Que tipo de "diversão" caberia nele? Essas e outras questões são levantadas quando pensamos mais profundamente o que é o tempo livre vigente sob relações capitalistas.

Adorno (2002, p. 103) abre o problema do tempo “livre” com uma máxima presente em todo o ensaio: “o tempo livre é acorrentado ao seu oposto”. Assim, para ele, o tempo livre depende fundamentalmente das relações concretas que esse mantém com a sociedade. Por conseguinte, não há como se dissociar as práticas do tempo livre do modo de produção vigente. Tal dissociação traz, em si, metodologicamente um viés ideológico. O mesmo sangue que corre no lazer corre também no trabalho. Logo, em Adorno (2002, p. 103), “o tempo livre dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantém as pessoas sob um fascínio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade”. Assim, para ele, “numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções” (ADORNO, 2002, p. 104).

O problema da integração (tema que permeia toda discussão acerca da indústria cultural, da ideologia e da semiformação em Adorno) é central para entender o prolongamento da não liberdade do tempo livre. Aliás, para Adorno, o termo livre só funciona como paródia. Não há liberdade efetiva, real, concreta. Entenda-se por liberdade como paródia apenas a liberdade de se integrar numa ordem que não liberta das amarras vigentes. Como já estava posto na Dialética do Esclarecimento em 1947: a máquina gira sem sair do lugar.

Nesse ínterim, a semiformação se torna o grande maestro da integração.

A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização (ADORNO, 1996, p. 388-411).

Zuin reforça este entendimento:

Compreende-se o conceito semiformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivíduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da miséria espiritual como para a manutenção da barbárie social. E o contexto social no qual a barbárie é continuamente reiterada é o da indústria cultural hegemônica (ZUIN, 2001, p. 10).

Vê-se, pois, que com o avanço da semiformação e da indústria cultural a organização do tempo livre passa cada vez mais a depender de critérios objetivos do que da autonomia do indivíduo. A heteronomia, expressão kantiana, vira uma regra. Um exemplo é a ideologia do hobby ditada pela indústria cultural, que nada mais é do que exercer alguma atividade durante o tempo livre. Exemplos “dessas atividades apontadas por Adorno eram os hobbies, ocupações que serviam apenas para matar o tempo e que todas as pessoas deveriam ter, fossem eles significativos ou não para elas” (FERNANDES, 2010, p. 34). Percebe-se, com isso, que até as atitudes mais simples tendem a passar pelo mercado. Tudo é pensado e colocado de forma que permita que a vida social se torne mais planejada, principalmente com a expansão das chamadas atividades do tempo livre (indústria do entretenimento), oportunizadas pela redução legal da jornada de trabalho. O tédio passa a ser, então, uma enfermidade marcante nas sociedades administradas.

De fato, o chamado tempo livre do trabalho, o que chamaremos aqui de tempo liberado do trabalho, aumentou. “Já agora, o tempo livre aumentou sobremaneira; graças às invenções, ainda não totalmente utilizadas — em termos econômicos — nos campos da energia atômica e da automação, poderá aumentar cada vez mais” (ADORNO, 2002, p. 104). Contudo,

[...] Se se quisesse responder à questão sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia; deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade, em si mesma (ADORNO, 2002, p. 104).

Assim, para Adorno o tempo livre tanto não pode ser pensado dissociado do tempo das obrigações, bem como, das possibilidades efetivas de dominação. A extensa citação abaixo, fruto de um depoimento biográfico do autor, ilustra o argumento:

Eu não tenho qualquer hobby. Não que eu seja uma besta de trabalho que não sabe fazer consigo nada além de esforçar-se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a idéia de que se tratasse de hobbies, portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie — que se tomaram como que coisas naturais — não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra hobby seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa que isto comporta; como alguém que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as próprias intenções. Esse aspecto conta, não em último lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horário de trabalho não se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilégio agora se tornasse benefício de todos — e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal —, eu imaginaria este tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse, por sua vez, modificado (ADORNO, 2002, p. 105-106).

Deste modo, quando se considera o trabalho uma coisa significativa, prazerosa e gratificante, para Adorno, não se consegue considerá-lo oposto ao tempo livre. Por isso não há porque denominar o que se faz no não-trabalho de hobby. A imensa vontade de ocupar o tempo livre com algo que não lembre o trabalho, com coisas que escapem a ele, é prova de que não se consegue esquecê-lo. Assim, fica claro que, lá onde mais nos escondemos do trabalho, onde mais tentamos nos refugiar dele, no tempo livre, ele está presente como que “por baixo do pano” (ADORNO, 2002, p. 107).

Uma outra forma de percepção do problema é simplesmente reparar como organizamos o nosso fim de semana em função do nosso trabalho. Tudo é projetado como forma de negar o trabalho, mas acaba sendo uma extensão dele. Bebe-se no sábado a noite toda (já que não se trabalha no domingo); no domingo, bebe-se somente até às dezesseis horas; depois disso, deve-se descansar, pois logo será segunda-feira e toda rotina de trabalho será retomada. Sem esquecer que o próprio ato de beber quer dizer “esquecer o trabalho”, ou então, sentir-se “livre”, porém, à todo momento pensando em retomá-lo. Por isso diz Adorno (2002, p. 103): “Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade.”, pois a separação entre sujeito e trabalho é impossível já que, no modo de produção capitalista, “não se pode traçar uma divisão [...] entre as pessoas em si e seus assim chamados papéis sociais” (ADORNO, 2002, p. 103-104).

Para não deixarmos de mencionar formas de lazer destacadas por Adorno (2002, p. 106) como “fenômenos específicos do tempo livre”, apontamos aqui o turismo e o camping, que “são acionados e organizados em função do lucro”. Destarte, sob as relações capitalistas, no tempo livre se prolongam formas de vida social organizadas segundo o regime do lucro. A indústria cultural cuida de manter a administração da cultura. A indústria cultural é a ferramenta indispensável para a manutenção e perpetuação do mundo administrado (verwalteten Welt), pois como aponta Ramos (2004, p. 61), a “interiorização das necessidades socialmente geradas e a administração monopolizada de suas satisfações podem significar, através da dominação material dos indivíduos, o controle dos corpos e, por decorrência, das mentes”. Dessa forma, o que muitos chamam de manifestação da cultura popular, entendemos ser muito mais uma cultura industrializada, produzida como forma de perpetuar a dominação dos indivíduos no capitalismo, mas não como forma de se opor a ele.

Mas o que vemos, ab initio, é que o tempo livre tornou-se planejado e abertamente uma mercadoria. Um bem que além de ser algo imposto é também excessivamente cobrado pelos próprios sujeitos. Não ter lazer e não consumir no lazer significa estar fora de toda uma rede de signos e significados no capitalismo. Ninguém quer ficar de fora! "O tempo livre segue como reflexo do ritmo de produção imposto heteronomamente ao sujeito, que forçosamente é mantido também nas fatigadas pausas" (ADORNO, 2008, p. 171). O tempo livre tornou-se, então, um negócio altamente rentável que é oferecido e quase forçado a ser consumido da mesma maneira para toda a sociedade, como Adorno deixa claro na expressão negócios do tempo livre (Frei-zeitgeschiffl). A indústria cultural se torna, pois, o maestro desta semiformação.

“A indústria cultural seria a capacidade de produzir o produto e ao mesmo tempo criar sua necessidade de uso, ou seja, a indústria cultural seria um conceito e também um processo” (MEZZAROBA, 2009, p. 03). Para Adorno (2008, p. 104), “cada enunciado, cada notícia, cada ideia está formada de antemão pelos centros da indústria cultural". A indústria cultural é responsável por perpetuar a nossa condição de vida irrefletida (o que Adorno chamou de vida danificada beschädigten Leben), na medida em que nos incentiva a consumir e nos distancia da reflexão acerca do trabalho necessário para bancar o consumo. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p. 112-114):

[...] a indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os indivíduos é mediado pela diversão [...]. A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela [...]. A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. [...] O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento –, mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. [...] o pensamento é ele próprio massacrado e despedaçado.

A passagem acima se refere à coesão do modo de produção capitalista (sua imensa capacidade de integração), a forma como ele aos poucos se torna cada vez mais fortalecido à medida que cria em nós a necessidade que ele mesmo virá suprir. Assim, a íntima relação entre indústria cultural e tempo livre se evidencia no fato de justamente no tempo de não-trabalho (livre) pararmos para consumir os produtos da indústria cultural que, transvestidos em produtos culturais, nos oferecem a fuga do trabalho, sendo uma forma de descansar dele para, inconscientemente, retornarmos a ele dispostos a produzir mais. E mesmo quando não estamos consumindo nada, ocupamos nosso tempo com coisas que prolongam a nossa condição de sujeitos coisificados, com práticas que nada acrescentam à nossa reflexão diante da vida e do mundo. A reflexão mais densa de Adorno é pensar, pois, os riscos estruturais da dominação a partir de elementos banais do cotidiano. Logo, o que se faz fora do trabalho repercute estruturalmente no trabalho. No tempo supostamente livre não esquecemos a lógica do trabalho. Aceita-se e se nega contraditoriamente o trabalho e suas dimensões.

Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caráter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre (ADORNO, 2002, p. 106-107).

Para Adorno e Horkheimer (1985), o lazer é apenas uma fase projetada do próprio trabalho, pois à medida que os indivíduos não aproveitam o descanso para refletirem sobre suas condições de existência, permanecem alienados ao próprio sistema, e, substancialmente, aproveitam os dias de folga para mergulharem nos devaneios do consumo. Tudo é projetado de forma tal que os homens não se detenham na reflexão acerca do estado de suas vidas e condições de trabalho. Com isso surge a configuração de que eles são programados para trabalhar e consumir. O próprio ócio vai se tornando apenas um consumo, pois neste momento a publicidade invade os lares através da TV, do filme, da música produzida para o mercado e de diversas outras mercadorias.

[...] os indivíduos, na necessidade de momentos de lazer e fuga do trabalho, submetem-se aos produtos da indústria cultural que, por sua vez, prometendo essa fuga do trabalho, oferecem sempre atrações que reproduzem o cotidiano do trabalho como se fosse novidade (FERNANDES, 2010, p. 28).

No tempo livre, o qual se acostumou chamar de lazer por oposição ao tempo de trabalho (não-livre), “são introduzidas [...] formas de comportamento próprias do trabalho” (ADORNO, 2002, p. 107). Para ilustrar exemplificamos com o turismo feito por um motorista profissional, que dirige quarenta horas semanais e ao chegar ao fim de semana se obriga a pegar a estrada em direção à praia e dirigir novamente uma ou duas horas, para dizer na segunda-feira aos seus colegas: “fui à praia no fim de semana”, sem ao menos refletir que fez no seu tempo livre aquilo que já havia feito em toda a sua semana de trabalho. O mesmo acontece com um trabalhador da construção civil que passa o dia inteiro realizando movimentos com tijolos, telhas, etc., e que a noite se dirige à academia para malhar e repetir os movimentos realizados o dia todo. Portanto, observa-se que existe tanta imposição para o tempo livre que nos tornamos reféns dele. O tempo livre passou a ser uma obrigação que a sociedade tem com ela mesma e não um momento “livre” no qual se possa exercer atividades de livre escolha.

Entrementes, o ideal seria que todos os indivíduos tivessem algo construtivo para fazer no seu tempo livre. Mas não é isso que ocorre. De uma forma geral, ocorre o contrário: vemos uma falta de liberdade de poder fazer o que se gosta e o que se quer. A heteronomia é dominante, seja pelas condições educacionais, seja pelas condições materiais de existência. “Para Adorno, as pessoas só se adaptavam ao sistema capitalista desenvolvendo papéis que lhes eram impostos pela sociedade, ou seja, não faziam o que gostavam, mas o que lhes cabia fazer” (FERNANDES, 2010, p. 33).

Assim, os indivíduos, de individualidade debilitada, não possuem liberdade, nem dentro, nem fora do trabalho. Segundo Adorno, a separação entre as esferas da produção e da não-produção está na consciência.

[...] a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma a consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho — precisamente porque é um mero apêndice do trabalho — vem a ser separado deste com zelo puritano (ADORNO, 2002, p. 106).

“Essa rígida divisão da vida em duas metades enaltece a coisificação que entrementes subjugou quase completamente o tempo livre” (ADORNO, 2002, p. 107). Para Adorno a liberdade vigente hoje é organizada, logo, torna-se coercitiva. A representação do mundo como mundo administrado nada tem de apocalíptica. A ideologia do hobby já citada é exemplo disso. Todos buscam se enquadrar na moda dos lazeres contemporâneos. A lista é enorme: artes marciais (o chamado mixed martial arts hoje é prova disso), esportes radicais, viagens, etc. Adorno (2002, p. 107) mostra que, se um indivíduo não possui um hobby, “se não tens ocupação para o tempo livre então tu és um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o teu tempo livre”.

Importa destacar que é essa necessidade de liberdade das pessoas que gera esse comércio do tempo livre. É a partir do momento em que se deseja algo que a indústria cultural comanda o tempo livre dos indivíduos. Podemos perceber essa dominação simbólica em outro exemplo que Adorno cita: quando um indivíduo sai de férias é esperado dele não só que aproveite, mas principalmente que volte com algo que indique que o mesmo estava realmente de férias. Pensando nisso é citado o exemplo do bronzeado, algo característico de quem está de férias. Além disso, o bronzeado deixou de ser apenas um sinal de saúde e vida ao ar livre para ser também comercializado. “Mais do que servir para auxílio de um determinado flerte, a obrigatoriedade da tez bronzeada concerne ao necessário reconhecimento dos outros de que o indivíduo conseguiu se desvencilhar por algum tempo do trabalho, afirmando a sua pretensa liberdade” (ZUIN, 2001, p. 14).

Nesse meio tempo, a sutileza metodológica de Adorno (2002, p. 108) se apresenta no modelo de análise da dominação: “a integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas”.

O grande resultado disso é o estado de letargia no qual vivem os indivíduos. O tédio se torna a materialização e prova deste estado. Para Adorno (2002, p. 110),

O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido [...] Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo.

Este cinza objetivo se materializa na perda da criatividade (e, com ela, a redução das possibilidades concretas de fuga do sempre-igual). A falta de criatividade (leia-se fantasia) torna as pessoas desamparadas no consumo do tempo livre.

A pergunta descarada sobre o que o povo fará com todo o tempo livre de que hoje dispõe — como se este fosse uma esmola e não um direito humano — baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre. [...] Sob as condições vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem é muito melhor que o ominoso hobby (ADORNO, 2002, p. 111).

Para Adorno, tempo livre produtivo, ou seja, aquele distante da heteronomia, somente pode ser possível para pessoas emancipadas. O que resta para a grande massa que vive sob o escudo da heteronomia é a pseudoatividade, intitulada por Adorno (2002, p. 113) como “ficções e paródias daquela produtividade que a sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e não quer muito nos indivíduos”. Assim, retomando o início do texto, o tempo livre não está em oposição somente ao trabalho, mas o segue diretamente como sua sombra.

Esta pseudoatividade enquadra os indivíduos numa auréola da livre escolha quando, de fato, tudo já está escolhido previamente. Os filmes, músicas, jogos. etc. divergem apenas na aparência da livre concorrência. Em essência, contêm o mesmo objetivo da indústria cultural: a manutenção da condição estrutural de dominação dos indivíduos, dentro e fora do trabalho.

Mas em que este texto Tempo Livre avança na teoria crítica (Kritische Theorie) adorniana? Que Adorno podemos encontrar nele? Primeiramente, trata-se de um Adorno que mantém fortemente o tom crítico e sempre fiel ao espírito da Teoria Crítica, sem se deixar encantar pelos encantos da diversidade cultural, tampouco pelas teorias conciliatórias da relação indivíduo-sociedade. Segundo, e esta é a grande inferência, neste texto vemos um Adorno refinando sua teoria, ao apontar possibilidades de questionamento do poder de sedução da indústria cultural. Ao realizar um estudo, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, percebe que nem tudo que é emitido pela indústria cultural pode ter eficácia efetiva.

O estudo era relativo ao casamento da princesa Beatriz, da Holanda, com o jovem diplomata alemão Claus Von Amsberg. Deveríamos verificar como o povo alemão reagia a este casamento, o qual, difundido por todos os meios de comunicação de massas e minuciosamente descrito pelas revistas ilustradas, era consumido durante o tempo livre. Dado o modo de apresentação e a quantidade de artigos que foram escritos sobre o acontecimento, atribuindo-lhe importância extraordinária, esperávamos que também os telespectadores e os leitores o considerariam igualmente importante. Acreditávamos, em especial, que operaria a hoje típica ideologia da personalização, que consiste em atribuir-se importância desmedida a pessoas individuais e a relações privadas contra o efetivamente determinante, desde o ponto de vista social, evidentemente como compensação da funcionalização da realidade (ADORNO, 2002, p. 115).

Diante desta constatação, de base empírica vale destacar, Adorno apresenta os limites do poder da indústria cultural e, estruturalmente, abre caminho para se pensar resistências diversas na produção e no consumo do tempo livre. Com o estudo Adorno percebeu que uma parte da audiência se portou de modo bem realista em relação ao acontecimento e avaliou com sentido crítico os fatos narrados. Assim, há na obra adorniana possibilidades de resistência mesmo no consumo dos veículos de comunicação de massa. A passagem abaixo é sinóptica desta condição:

Em conseqüência, se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles. É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isto coincidiria com o prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições fundamentais permanecem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona assim tão sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dúvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode envolvê-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas (ADORNO, 2002, p. 116-117).

            Portanto, na parte final do ensaio Tempo Livre, apresenta-se o grande trunfo de esperança na obra adorniana: “Renuncio a esboçar as conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade [Freiheit]”. (ADORNO, 2002, p. 117)

Assim, não há concordância com grande parte da literatura hoje produzida sobre a indústria cultural que enxerga o pensamento adorniano permeado por um pessimismo totalizador. A crítica desse autor não se encerra totalmente nesse tal pessimismo à medida que deságua na possibilidade – utópica – do tempo livre se tornar “tempo livre produtivo”. No entanto, conforme o próprio Adorno (2002, p. 113), “tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas [...]”, daí a importância da educação, pois ela seria a única capaz de promover tal emancipação. Esse processo de emancipação se daria inicialmente pela via da negatividade, ou seja, deveria “simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente” (ADORNO, 1995, p. 183), ou seja, esse processo deveria ser iniciado a partir da tomada de consciência dos meios pelos quais o capitalismo, através da indústria cultural, tem administrado o mundo.

O mesmo Adorno que afirma em 1947, na Dialética do Esclarecimento, que nunca se chegou a uma verdadeira individualização, afirma também em 1969, em Tempo Livre, que “os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung]” (2002p. 116), e o primeiro passo para essa resistência, para o exercício mínimo da liberdade, seria dado por aquelas pessoas que “interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência” (ADORNO, 1995, p. 183).

Portanto, apesar de não negar a alienação das massas, Adorno entendeu que ela parece muito mais uma alienação “consentida”, e como disse o mesmo, “as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva” (ADORNO, 2002, p. 116). Interpretamos aqui essa “reserva” como um resquício de consciência. É como se a consciência crítica ainda não tivesse sido completamente dissolvida.

Tanto em Tempo Livre como em Educação e Emancipação Adorno expressa alguma fé na recuperação da autonomia por parte das massas. Ou seja, “embora originalmente pessimista, a tendência, no decorrer da obra de Adorno, é o caminho para o otimismo diante das possibilidades ‘utópicas’ do ‘tempo livre’” (FERNANDES, 2010, p. 47). No entanto, não sob as condições vividas na Europa até o final da Segunda Guerra Mundial. Primeiro, por causa dos regimes totalitários e autoritários; segundo, porque lá onde o homem se afirmou mais esclarecido, na Alemanha dos grandes filósofos, aconteceu também o holocausto, o que para Adorno foi a maior prova de que a racionalidade técnica havia destruído o sonho da razão emancipatória; por fim, por ter sido a indústria cultural utilizada para todas essas mazelas sociais, desde o culto à imagem do führer até a exaltação do orgulho alemão através dos filmes de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich. A imaginação havia sido obliterada, e junto a ela, toda capacidade criativa.

“Adorno defende que o tempo livre deveria ser aquele que o indivíduo tem por benefício, e não por privilégio, para decidir, escolher e organizar segundo suas próprias vontades” (FERNANDES, 2010, p. 37). E como Adorno já havia dito, a indústria cultural anda de mãos dadas com o tempo livre, pois é ela quem dita às regras do que deverá ser consumido, colocando no mercado o que se quer e deixando a sociedade estruturalmente sem escolha efetiva (real). Contudo, é justamente no meio desse turbilhão de acontecimentos que vemos que nem tudo é aceito ou pelo menos não totalmente aceito.

O texto de Adorno foi publicado em 1969. Embora tenham se passado 45 anos da publicação do texto de Adorno sobre o lazer, datado de 1969, e o contexto histórico seja completamente diferente, o texto é incrivelmente atual. A reflexão de Caniato a seguir corrobora o argumento:

Certamente, as intervenções embebidas em teorizações que negligenciam na identificação e análise dos determinantes disruptivos de natureza social na estruturação das subjetividades [...] vem ratificando o agravamento das condições concretas do viver humano sem sequer ser identificada a exigência de integridade psicossocial para que os homens exerçam sua condição de sujeitos históricos e efetivem as mudanças nas instituições culturais e na ordenação social que viabilizem a preservação da vida humana [...]. Isto porque na contemporaneidade, não há dúvidas de que o capital é o grande Senhor da sociedade [...] (CANIATO, 2003, p. 6-7).       

              Estruturalmente os indivíduos vivenciam diversas imposições. Sejam elas na própria família, no trabalho, na escola, religião, distintas ideologias, etc. Não importa o grupo social, todos vivenciam estas imposições. Como cada indivíduo lida com tais imposições é que faz a diferença. “Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo” (ADORNO, 1971, p. 287). Deste modo, não há como pensar o lazer sem refletir acerca de toda estrutura educacional hegemônica. O lazer é reflexo, pois, diretamente da educação vigente no espírito de nosso tempo, marcado por ideais de competitividade, individualismo e pragmatismo. Também não há como pensar o lazer sem pensar nos tempos sociais em que está inserido, dentro e fora do mundo das obrigações. O mesmo ocorre com a indústria cultural: o cerco sistêmico, a capacidade crescente de prescrição de desejos e o consumo como dominação do sujeito impactam diretamente na relação do indivíduo com o lúdico, o ócio... Assim, num contexto de educação para o status quo, de existência de um “tempo livre” que não liberta e que aprisiona no consumo (e em mais trabalho), além de todo avanço sistêmico da indústria cultural, o lazer deixa de ser, muito provavelmente, um momento lúdico-criativo para se tornar tempo e ação de mais ideologia, de mais consumismo, de mais práticas não-emancipatórias do indivíduo (mais conformismo). O lazer deve educar, nele e para além dele. Contudo, todos os limites apontados por Adorno mostram que o consumo do tempo livre tinha se tornado cada vez mais a produção de mais dominação.

Mesmo assim,

Embora originalmente pessimista, a tendência, no decorrer da obra de Adorno, é o caminho para o otimismo diante das possibilidades “utópicas” do “tempo livre”. [...] Assim, suas contribuições são fundamentais para entendermos o lazer mercadoria (simples atividades colocadas no mercado de consumo, que não obedecem a outro critério senão o do lucro financeiro imediato) (FERNANDES, 2010, p. 47).

Logo, fecha-se (ou se abre, depende da perspectiva) este ensaio com a confiança de que a teoria crítica adorniana contribui decisivamente para evitar uma elaboração conceitual instrumental do lazer como mera recreação. Trata-se, pois, de um rico referencial teórico crítico e disposto a denunciar as armadilhas do status quo, dentro e fora do tempo livre.

Referências

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1 Em apreciação a obra de Adorno, Cohn (1994, p. 07) nos alerta para o fato que “Adorno é tido como autor de leitura particularmente difícil”. Segundo afirma, “quem gosta de tudo pronto e arrumado, não deve ler Adorno. Essa leitura é para quem está disposto a uma experiência instigante, às vezes exasperante, mas sempre fecunda” (COHN, 1994, p. 22). Terry Eagleton assim reforça tal assertiva: “[...] cada frase de seus textos é, por assim dizer, obrigada a trabalhar em excesso; cada sentença deve tornar-se uma obra-prima ou um milagre da dialética, fixando um pensamento um segundo antes que ele desapareça em suas próprias contradições [...] Todos os filósofos marxistas devem ser pensadores dialéticos, mas com Adorno pode-se sentir o esforço e a dificuldade desse estilo vivo em cada frase, numa linguagem construída contra o silencio, na qual tão logo o leitor percebe a unilateralidade de um argumento, o seu oposto é imediatamente proposto” (EAGLETON, 1993, p. 247-248).


Recibido: 01/08/2014 Aceptado: 10/09/2014 Publicado: Diciembre de 2014

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