Contribuciones a las Ciencias Sociales
Noviembre 2014

A DIFÍCIL PRESERVAÇÃO DE BENS CULTURAIS INTEGRADOS AO PATRIMÔNIO EDIFICADO: O CASO DAS ESCARIOLAS PELOTENSES



Daniele Baltz da Fonseca (CV)
Margarete Regina Freitas Gonçalves (CV)
daniele_bf@hotmail.com
Universidade Federal de Pelotas



RESUMO

Este estudo aborda a problemática da patrimonialização de bens que estão nos interiores de um patrimônio constituído por edificações que, na sua maioria, possuem uso residencial. O limite entre o público e o privado sempre se constituiu num campo de batalhas entre aqueles que lutam pela manutenção dos bens dignos de serem preservados e os proprietários de imóveis, que por vezes, sentem-se economicamente prejudicados pelas leis de proteção ao patrimônio. As legislações que versam sobre a tutela do patrimônio privilegiaram a preservação das dimensões arquitetônicas e urbanas, garantindo a preservação dos interiores das edificações a poucos exemplares. Nota-se a perda progressiva de exemplares de revestimento de escariola dos imóveis pelotenses que estão protegidos através de um inventário do patrimônio cultural da cidade. O estudo encerra-se apontando um caminho para a preservação baseado em uma campanha de identificação e reconhecimento de valores a serem atribuídos a estes bens.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, estuques, escaiola, bens culturais, bens integrados.

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da Fonseca, D. y Freitas Gonçalves, M.: "A difícil preservação de bens culturais integrados ao patrimônio edificado: o caso das escariolas pelotenses", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Noviembre 2014, www.eumed.net/rev/cccss/30/escaiola.html
Introdução

Este artigo aborda a problemática da patrimonialização de bens que estão nos interiores de um patrimônio constituído por edificações que, na sua maioria, possuem uso residencial.
O limite entre o público e o privado sempre se constituiu num campo de batalhas entre aqueles que lutam pela manutenção dos bens dignos de serem preservados e os proprietários de imóveis, que por vezes, sentem-se economicamente prejudicados pelas leis de proteção ao patrimônio.
As legislações que versam sobre a tutela do patrimônio privilegiam a preservação das dimensões arquitetônicas e urbanas, garantindo a preservação dos interiores das edificações a poucos bens. Um exemplo disso tem-se na cidade de Pelotas-RS, que possui aproximadamente dois mil imóveis registrados no seu inventário do patrimônio cultural, sob diferentes níveis de proteção que não garantem a proteção dos interiores, e somente uma pequena parcela, de aproximadamente cinqüenta imóveis está protegida por legislação (municipal, estadual ou federal) que garante (ou deveria garantir) a proteção das características arquitetônicas e artísticas dos seus interiores e exteriores.
Com a ampliação do conceito de cultura, surgiram novos olhares sobre o que deveria ser protegido sob a égide do patrimônio. A evolução atual do conceito de patrimônio consiste na substituição de “bens da civilização” por um “patrimônio mundial de culturas”. Neste sentido, a imagem de patrimônio que era de uma leitura histórica através dos bens, passa a um inventário das variações dos artefatos da humanidade no espaço e no tempo. O significado de patrimônio na contemporaneidade passa a ter uma perspectiva antropológica, considerada também, mais democrática. No entanto, este patrimônio, de matriz antropológica é invisível, comparado ao monumento histórico que era indício visível e também o signo de uma vontade de transmissão. (POULOT, 2008, p. 224-227)
Através dessa nova forma de se pensar patrimônio passa-se a valorizar objetos culturais, que representam formas de vida e relações sociais. Busca-se, então, olhar o interior das edificações históricas com lentes menos opacas, de forma a tentar compreender a relação entre os espaços divididos e o meio de vida das pessoas que os habitavam. De forma análoga, na decoração dos espaços interiores também podem ser percebidas relações sociais, seja do proprietário em seu meio social ou, ainda, dos artífices que executavam os mais diferentes acabamentos de construções e sua interação com colegas e proprietários.
É sobre estes argumentos que se propõe discutir as possibilidades de patrimonialização das escariolas pelotenses. As escariolas, tipo de estuque que reveste as alvenarias de ambientes interiores das edificações, apresentam um acabamento liso, de aspecto polido e são pintadas a fresco com motivos que simulam incrustações de pedras ornamentais, tais como o mármore, além de frisos e molduras. Esta técnica de simulação de mármores é denominada stucco-lustro, mas no Brasil e na península ibérica é chamada de escaiola, ou ainda, de escariola como é o caso de Pelotas e outras cidades do sul do Brasil.

Sobre o Conceito de Patrimônio Cultural

            Serão colocadas aqui, apenas as definições mais atuais de patrimônio cultural, desenvolvidas ao longo do século XX, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, atendo-se à bibliografia mais atual, não necessariamente rediscutindo as origens da evolução histórica do conceito.
            De acordo com Regina Abreu (2009, p. 36), o final da Segunda Guerra Mundial foi um ponto de inflexão da conceituação de patrimônio, que era, até então, pensado como patrimônio nacional, ou seja, o conjunto de bens que representam uma Nação. A criação da Unesco, na década de 1940, buscou a aproximação das nações através da quebra de antagonismos e, neste contexto, surgiu a idéia de patrimônios culturais da humanidade – uma espécie de acervo das realizações do gênero humano. O conceito antropológico de cultura foi outra discussão que tomou porte no pós-guerra, contrapondo-se às tendências racistas que incitaram os conflitos. A ampliação do conceito de cultura trouxe resultados diretos na concepção do que seja o patrimônio:

O antropólogo Lévi-Strauss, bastante atuante no período, chamou atenção para o fato de que o relacionamento entre as culturas seria a forma mais positiva de atualizar o ideário da igualdade dos homens, em suas realizações particulares. Delineava-se a ideia de que havia um patrimônio cultural a ser preservado e que incluía não apenas a história e a arte de cada país, mas o conjunto de realizações humanas em suas mais diversas expressões. (ABREU, 2009, p. 37)

            A cultura passou a ser compreendida como hábitos, costumes, tradições, crenças e outras tantas formas de realizações da vida em sociedade, sejam elas materiais ou imateriais. Com isto, percebeu-se que dentro de um dado contexto nacional coexistiam diferentes culturas e que delas se originavam bens culturais, materiais ou imateriais (intangíveis).
            A própria Constituição Federal brasileira demonstrou esta compreensão ao conceituar o patrimônio nacional incluindo os bens de natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
            O final do século XX já apontava a tendência de crescimento das patrimonializações de bens culturais, impulsionada pelos estudos dirigidos às manifestações culturais e o desejo de salvaguardá-las. Houve um aumento na reivindicação dos patrimônios específicos de determinados grupos étnicos, gêneros ou representativos de determinadas classes sociais, “todos passaram a estar convencidos de ‘ter seus próprios patrimônios’ e da necessidade de preservá-los” (ABREU, 2009, pp. 37-38).
            O patrimônio tornou-se instrumento de desenvolvimento local ou nacional, na atual sociedade de consumo e de cultura de massa, seu uso e interpretação são condicionados ao turismo e às práticas mercantis do saber e do lazer. Neste contexto, segundo Dominique Poulot (2009, p. 200), usando a expressão de David Lowenthal, “o patrimônio tornou-se o objeto de uma ‘cruzada popular’”.
            Sobre a “produção” de patrimônios culturais, é importante pensá-la, não como o acúmulo de determinados bens, de forma isolada, mas como a medida de proteção de certos bens que podem ser tomados como uma narrativa que visa descrever a formação da nação, mapeando conteúdos simbólicos a fim de constituir o que poderia ser a identidade da nação (FONSECA, 2009, p. 66).

UMA QUESTÃO DE VALOR

O que torna um bem digno de ser considerado patrimônio são os valores a ele atribuídos pela comunidade ou pelos órgãos oficiais. Os valores podem ser artísticos, estéticos, históricos, econômicos, ligados ao uso, entre outros e sempre estiveram no centro das discussões sobre o que preservar e como conservar. (CASTRIOTA, 2009, pp. 93 – 95).
            Para Sabino (2005), valor não é um conceito unívoco, e deve ser usado com o significado específico, de forma a evitar as inconsistências:

Valor, num sentido genérico, designa qualidade de importância, excelência, primazia, preponderância. Todavia, o termo valor tem inúmeras acepções: econômica, jurídica, ética, comercial, ontológica e outras tantas mais. Em cada uma de suas acepções o valor pode ser objeto de estudos filosóficos, que fixam o conteúdo específico adequado a cada uma delas. Valor, portanto, não é um conceito unívoco e, em conseqüência, quando dele se trata é necessário identificar o significado específico considerado, a fim de evitar equívocos. (SABINO, 2005, s/p)

            ainda não se falava sobre patrimônio cultural quando, no início do século XX, Riegl escreveu o “Culto Moderno aos Monumentos”, obra em que coloca questões valorativas concernentes aos monumentos. Inicialmente, o texto trazia o conteúdo “de uma conferência dirigida à uma plateia erudita” (SCARROCCHIA, 1990. apud. SANCHES, 2011, p. 03) e tinha como objetivos “fundar práticas, motivar decisões e sustentar uma política”.  (WIEKZOREC, 1983. apud SANCHES, 2011, p. 03). Mais de um século depois da publicação do Culto Modernos aos Monumentos, é possível afirmar, conforme explicita o Prof. Pedro Sanches (2011), que seu conteúdo continua atual.

Escrito numa época em que ainda era preciso afugentar velhos sistemas taxonômicos[...], dedicados à ordem natural e eterna das coisas, o pequeno texto de Riegl parece teimar em manter-se atual. Sobretudo porque muitos de nós, dotados ou não de “cultura estética”, estamos longe de perceber que o valor de um monumento é algo múltiplo e relativo; e qualquer ação de conservação ou de restauro é necessariamente determinada por um desejo subjetivo, por algo, de fato, indeterminado. (SANCHES, 2011, p. 11).

            A partir do início do século XXI, nota-se o crescimento da necessidade de se explicitar a operação de atribuição de valores, justificado pela complexidade que o conceito de patrimônio vem tomando, tanto pela sua ampliação como pelo deslocamento do conceito (CASTRIOTA, 2009, pp. 93 – 95).
            Dominique Poulot (2008, p. 229) também concorda com isto ao afirmar que a importância valorativa reconhecida a determinado patrimônio é uma exigência da forma como é gerido, que também é feita por meio destes valores. Diversos países do mundo estabelecem listas de valores que podem ser usados pela população para reivindicar determinado sítio ou objeto. O nivelamento valorativo seria uma forma de reconciliar interesses divergentes, quando necessário, e legitimar a intervenção pública.
            Valor, num conceito jurídico, “é uma norma que se coloca diante de condutas humanas reais como um dever-ser. O valor das coisas não emana da coisa em si [...] sendo, isso sim, um atributo da conduta humana”. (SABINO, 2005, s/p).
            Ao se apontar um determinado bem como digno de preservação, uma série de valores, sentimentais, morais e culturais lhe é atribuída. No entanto, este incremento de valor não corresponde ao aumento do seu preço, que por vezes, diminui frente às restrições impostas pelas leis de preservação. (SILVA, 2005, p. 32). É, geralmente, este o motivo que move verdadeiros embates entre proprietários, poder público e defensores do patrimônio cultural.
     Frente a isto, torna-se ainda mais difícil requerer a proteção de bens culturais que estão nos interiores das edificações. É necessário, portanto, investigar para atribuir valores culturais, históricos, artísticos, entre outros.
Com relação às escariolas, os valores que podem ser exaltados estão implícitos em questões culturais envolvidas com o uso desses revestimentos ou explícitos nos valores artísticos de que são depositárias.

As paredes de escariola – o legado material da cidade de Pelotas/RS

Supõe-se que já foram muitas, segundo resultados preliminares de um inventário das escariolas em Pelotas 1, estima-se que aproximadamente 10% dos imóveis que constituem o Inventário do Patrimônio Cultural Pelotense ainda possuem alguma parede escariolada. (FONSECA; SANCHES, 2013)
As paredes de escariola não são visíveis externamente. Elas estão dentro das residências, adornando interiores, salas de jantar, corredores, escadarias e vestíbulos. Quando a porta externa das casas é mantida aberta, podem ser vistas no hall de entrada.
O que se convencionou chamar por escariola é, na verdade, um tipo de estuque liso usado para dar um acabamento polido às paredes. O verbete estuque do dicionário de arquitetura de Corona e Lemos (1972), parece bastante completo, incluindo diferentes definições do deste termo. Já o verbete “escaiola” do mesmo dicionário faz alusão a uma massa de pasta de cal, areia e pó de pedra usada para recobrir paredes rebocadas.
Enquanto revestimentos das alvenarias, os estuques possuem dupla função. A primeira delas diz respeito à proteção dada às alvenarias em relação às intempéries, conferindo-lhes a diminuição da capacidade de absorção de umidade e aumentando a resistência mecânica final do conjunto. A segunda função é estética. Os estuques cobrem as alvenarias de pedra, de tijolos ou de madeira, oferecendo ao executor inúmeras possibilidades estéticas dadas através de diferentes técnicas de acabamento. Algumas dessas possibilidades estéticas são: a saliência (elementos tridimensionais aplicados ao revestimento), o esgrafito, o brunimento e a pintura.
Com a aplicação de ornamentos salientes o estuque adquire efeitos tridimensionais. Nas fachadas das edificações do período eclético isso implica, em sua maioria, na execução da ornamentação que consiste em frontões, entablamento, pilastras, umbrais de portas e janelas, e todo o tipo de adorno realizado com massa a base de cal que se adere à fachada com o propósito de decorá-la. 
Com a técnica do esgrafito a ornamentação é feita com a sobreposição de camadas de estuque pigmentadas com diferentes cores. Um desenho é removido da camada superficial revelando sua forma com o fundo na cor da camada subjacente.
Através do brunimento o estuque adquire acabamento refinado, bastante utilizado no interior das edificações do período eclético. Desta forma, a massa, geralmente composta por pasta de cal e pó de mármore, adquire aspecto lustroso que lembra mármore polido. Com a adição de diferentes pigmentos através de pintura afresco ou meio fresco, é possível simular diferentes pedras ornamentais, incrustações de mármore ou mesmo efeitos tridimensionais. As técnicas de simulação de mármores nas quais o acabamento é pintado afresco são conhecidas como stucco-lustro. AGUIAR (1999, p. 352).
Também é possível simular pedras ornamentais com técnicas onde se coloca pigmentos na argamassa e misturam-se massas de diferentes tonalidades. As massas eram cortadas em fatias finas e comprimidas contra as paredes. Esta técnica é chamada de stucco-marmo e quando usado para fazer a simulação de incrustações de pedra, era denominado de verdadeira scagliola. O acabamento dessa técnica é mais difícil e implica em grande desbaste. AGUIAR (2001, p.352).
De acordo com Aguiar (2001, p. 258) a técnica de simulação de pedras ornamentais através da pintura é denominada stucco-lustro, portanto, este seria o nome da técnica do acabamento utilizado nas paredes das casas pelotenses. No entanto, o autor Aguiar já reconhece a corruptela que se estabeleceu com o termo “escaiola” na península ibérica:

Em Portugal e em Espanha, perdeu-se o significado original do termo “escaiola”, que derivava da escagliola italiana e que, nos últimos dois séculos, por corruptela ou por simplificação, passou a designar, sem o ser, a técnica do stucco-lustro e até, por vezes, do stucco-marmo, situação que leva a algumas confusões terminológicas propagadas até aos nossos dias. Entre nós é muito comum chamar “escaiolas” a todo o tipo de fingimento de pedra [...].  AGUIAR (2001, 258).

Esta simplificação, no entanto, estendendo-se até o Brasil. Há ainda uma variação lexical que acontece em Pelotas e outras regiões do sul do Brasil2 . Em Pelotas é comum ouvir-se “escariola” e “escaiola”, quando se refere a este estuque lustrado e pintado com falso mármore. Segundo Sanches, Pala e Alves:

O termo “escariola” é a variante lexical local [Pelotas] para designar um tipo de pintura a fresco aplicada sobre massa lisa, fina e lustrosa de estuque, produzida com grande apuro técnico e artístico em dimensões generosas, típicas do sistema construtivo a base de cal.

Para estes mesmos autores, a mudança lexical segue uma escala progressiva que se inicia na fala informal de grupos socioeconômicos intermediários passando para a fala de grupos socioeconômicos mais altos para, então, ser incorporada em situações formais de fala e logo em escrita. É importante salientar que o termo “escariola” aparece escrito em anúncios de prestação de serviços de decoração de interiores e em entrevistas com pessoas que executavam esses estuques, conforme exemplifica a Figura 1. (SANCHES; et. al. 2013, s/p).

O legado imaterial presente nas escariolas pelotenses

            A necessidade de protegerem-se os espaços interiores dos edifícios históricos pode ser compreendida através da busca por respostas a dois questionamentos. O primeiro seria: o que se pode compreender de uma sociedade analisando seus edifícios e sua paisagem cultural? O segundo, de forma análoga, seria: o que se pode entender de um edifício e de uma paisagem cultural a partir da sociedade que a construiu? Através destes questionamentos já é possível supor, no mínimo, que a paisagem cultural está diretamente interligada à sociedade que a construiu. (ZARANKIN, 2002, p. 36).
            A arquitetura é mais do que a simples arte de projetar e construir edifícios. Numa conceituação clássica, Vitrúvio já a classificava sob três aspectos: firmitas, utilitas e venustas (firmeza, utilidade e encanto), apontando suas dimensões técnica, utilitária e estética. Na atualidade, a conceituação de arquitetura é bastante debatida entre os teóricos desta área, sendo que contribuições novas em relação à de Vitrúvio surgem com posturas que passam a ver a arquitetura de forma bem mais complexa, como por exemplo, como um ato de comunicação. (ZARANKIN, 2002, p. 37).
            Bruno Zevi, arquiteto italiano, avança nesta discussão ao definir três enquadramentos conceituais: 1) as definições culturais, psicológicas e simbolistas, nas quais se supõe que a arquitetura materializa-se no espírito do povo através do tempo e do espaço; 2) definições funcionalistas e técnicas: a arquitetura, enquanto construção, precisa ser usada, o que traz especificidades funcionais sobre o espaço, dimensão entre outras características; e também precisa ser erigida, o que determina as questões técnicas envolvidas, como o material que será utilizado, sua capacidade de carga, etc.; 3) definições lingüísticas: as quais consideram a arquitetura como uma linguagem. Através dos estilos se poderiam interpretar discursos transmitidos. (ZARANKIN, 2002, p. 37-38).
            Há, portanto, “relação entre a arquitetura e seu contexto histórico, social e simbólico”. Zarankin (2002) afirma, ainda:

Que as pessoas comecem a perceber intencionalidades no entorno em que se desenrola sua vida cotidiana, percebendo que se trata de dispositivos do poder destinados a regular suas vidas [...] Em nosso caso, descartamos aquelas abordagens reducionistas que vêem a arquitetura a partir de visões utilitárias e funcionalistas, nublando a relação entre esta e a sociedade da qual faz parte. [...] [A arquitetura] sempre deve ser entendida como um produto cultural, condicionando sua interpretação ao contexto social ao qual pertence. (ZARANKIN, 2002, p.38).

Assim, podemos supor que as escariolas, como bens integrados às edificações, também são um produto cultural, construídas por e para uma determinada sociedade. De forma mais específica, é possível afirmar que elas sejam uma forma de comunicação, um código. Através delas é possível fazer leituras da sociedade que as construiu.
As leituras oferecidas pelas escariolas sobre a sociedade que as construiu se relacionam, num primeiro momento, com as casas nas quais foram executadas e seus proprietários. Sobre este contexto social, a pesquisa de campo sobre esses revestimentos já permite supor que as casas maiores, supostamente mais refinadas, apresentam mais cômodos escariolados que casas menores, e mais simples.
            Geralmente, o primeiro cômodo a ser escariolado é o vestíbulo, localizado entre a porta da rua e uma segunda porta que o separa do espaço interno da residência, conhecida como “quebra-vento”. Supõe-se que a porta exterior, que se abre diretamente para a calçada, seria aberta sempre que a família estivesse disponível para receber alguma visita, enquanto a segunda porta permaneceria fechada. Desta forma, este vestíbulo pode ser visualizado pelas pessoas que transitam na calçada e por este motivo seria um espaço decorado de forma mais cuidadosa. Nestes espaços é comum serem observadas soleiras de mármore, ladrilhos hidráulicos e paredes de escariola.
            Nas casas menores e mais simples as escariolas apareceriam com mais frequência nestes vestíbulos, e menos frequentemente em corredores ou salas de jantar. Nas casas maiores, ligadas à famílias de mais posses, as escariolas aparecem com frequência em diferentes cômodos: vestíbulos, escadas, corredores, salas de jantar, cozinhas e banheiros3 .
            Outro aspecto, menos explorado, sobre as escariolas, diz respeito às pessoas que as faziam. Há pouquíssima informação sobre os artífices que realizavam esses revestimentos, constituindo, este nicho, num terreno inexplorado, pronto para ser desbravado pelos pesquisadores.
             
            É possível afirmar que o declínio do uso da escariola como revestimento das paredes se iniciaria com as transformações sociais ocorridas na década de 1940. A indústria colabora através da colocação no mercado de produtos de “qualidade superior”. Um deles é cimento Portland cujo barateamento provocado pela crescente industrialização provoca grandes alterações nas formas de construir. Outro produto, considerado de melhor qualidade em relação às escariolas foi o azulejo. Nas cozinhas e banheiros a escariola era usada por ser mais impermeável e lavável que um revestimento comum. Este revestimento aos poucos foi sendo substituído em virtude da maior higiene proporcionada pelos azulejos vidrados.

Escariolas como Patrimônio Cultural pelotense: preservar para não acabar

As escariolas que existem nos casarões da cidade de Pelotas consistem em um acabamento de revestimento de alvenaria de fina espessura (aproximadamente 3 mm),  geralmente, composto por uma massa feita de pasta de cal e pó de mármore e, em alguns relatos, consta a utilização de cimento branco4 . A simulação das incrustações de pedras ornamentais era feita através de técnicas de pintura afresco. Após a pintura o acabamento era brunido com espátulas metálicas enquanto era aspergida uma solução de sabão em água. As figuras 2, 3 e 4 exemplificam diferentes escariolas encontradas no interior do casarões da cidade de Pelotas.
Durante o ano de 2013 o GEPE, grupo de estudos e pesquisa em estuques, que elabora um inventário das escariolas pelotenses analisou, três composições desses revestimentos que foram demolidas em função das demandas econômicas locais. As figuras 5 e 6 identificam e localizam uma das escariolas analisadas.
            A casa da figura 6 é, aparentemente, da década de 30 ou posterior. A escariola que se percebe na figura 5 é de um tipo que se repete na cidade no qual se percebe o pano superior e o pano inferior divididos por um friso a uma altura de aproximadamente 90cm do piso. No pano superior e no pano inferior percebem-se apainelados emoldurados sobre um fundo marmoreado realizado em tonalidades de azul claro e ocre. Neste caso, o estêncil foi utilizado o friso e numa segunda moldura sobre o fundo marmoreado.
            A casa da figura 8 foi construída entre o final do século XIX e início do século XX. Possuía a composição de escariola apresentada na figura 8, localizada no vestíbulo e escadaria de acesso ao segundo pavimento. Segundo relatos dos funcionários da obra que acontecia nesta edificação, havia outra composição no andar superior, que já estava demolida.
            A composição da figura 7 era típica para as paredes de escadarias. O pano superior e o inferior eram divididos por um friso inclinado que acompanhava o ângulo da escada. O apainelado inferior acompanhava o mesmo ângulo e o apainelado superior formava um trapézio, ele era horizontal na parte superior – acompanhando o forro – e  inclinado, na parte inferior - acompanhando o ângulo da escada.  
            Decorações com estêncil eram usadas na moldura ao apainelado superior e no friso. Percebia-se o efeito tridimensional causado pela técnica do trompe l´oeil5 em todas as molduras. O marmoreado do fundo era de tonalidade alaranjada, enquanto os apainelados simulavam um mármore branco com veios em tonalidades acinzentadas.
            A edificação da figura 11 parece ter sido construída entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Apresenta uma composição diferenciada de escariola no vestíbulo, onde havia uma escada que vencia a altura do porão alto. O pé direito do vestíbulo era bastante alto e a composição da escariola era dividida em dois panos. O pano inferior (figura 10) era composto por pseudoblocos marmoreados em tonalidade que varia do marrom bege. Uma larga faixa de aproximadamente cinquenta centímetros dividia o pano inferior do pano superior a uma altura de aproximadamente 3 metros. Esta faixa não possuia qualquer efeito em trompe l´oeil ou estêncil, apenas um marmoreado de tonalidades que variavam entre o amarelo ocre e azul (figura 10). Sobre esta faixa divisória o pano superior compunha-se com uma moldura larga de um marmoreado de tonalidades que variavam do marrom ao laranja. O apainelado era de um marmoreado claro de tonalidade cinzenta, emoldurado por uma faixa estreita de marmoreado azulado claro geometrizado com cantos torcidos. (figura 9).
            As demolições desse tipo de revestimento são legalmente permitidas, uma vez que muito poucos imóveis da cidade de Pelotas têm protegidas as suas características artísticas e arquitetônicas dos interiores. O inventário do Patrimônio Cultural Pelotense constitui-se em uma ferramenta que busca a salvaguarda desse patrimônio em nível urbano, não se atendo, de forma efetiva aos interiores.

Considerações Finais

            Há, de fato, poucos estudos que se voltam para os bens integrados ao patrimônio cultural arquitetônico, razão do pouco conhecimento acerca dos valores culturais que lhes podem ser atribuídos. Se o caminho da patrimonialização passa, necessariamente, por atribuição de valores, seria importante, então, relacionarem-se os valores intrínsecos às escariolas peloteses em relação a esta sociedade para se encontrarem as razões que incitariam a sua salvaguarda de forma mais efetiva e transmissão para posteridade.
            Não se pretende, neste ensaio, sugerir os valores culturais que tornam as escariolas pelotenses dignas de proteção. Apenas apontar, através de uma apresentação sucinta, diferentes aspectos culturais refletidos nestes revestimentos. 
            As poucas escariolas que ainda restam estão escondidas no interior das residências, o que as torna invisíveis aos olhos da população e do poder público. Esta condição também as torna vulneráveis, visto que pouco se sabe sobre o que tem sido feito delas. Ainda que não haja uma proteção legal, acredita-se que o conhecimento, reconhecimento e apropriação por parte da população poderiam contribuir para a diminuição das demolições, até que se pudesse apontar, pelo menos algumas, que, em função do valor cultural do qual seriam depositárias, deveriam ser cuidadas com maior atenção. Espera-se com isto valorizar o patrimônio cultural da cidade de forma geral, relacionando a qualidade dos bens arquitetônicos com a qualidade dos espaços que eles envolviam.
            Assim, desenha-se o que se deseja para o patrimônio cultural: que através dele seja possível transmitir um discurso, não permitindo que o legado seja uma série de objetos soltos e sem contexto, uma casca arquitetônica vazia, oca, sem sentido, sem significado e sem identidade com a cultura local.
           

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1 O inventário está sendo realizado através do Grupo de Estudos e Pesquisa em Estuques, do curso de Conservação e Restauro da UFPel. A realização do inventário é coordenada pela Profa. Ms. Daniele B. da Fonseca, com colaboração do Prof. Dr. Pedro Luis Machado Sanches. A primeira fase do inventário observou aproximadamente 800 imóveis da zona central da cidade de Pelotas, referentes à área do segundo loteamento e identificou XX imóveis que possuem alguma parede escariolada.

2 Na sua dissertação de mestrado, José Luiz Ungericht, trata do revestimento de escariola e afirma que a diferença entre escaiola e escariola seria a utilização de areia fina ou pó de mármore na primeira, enquanto a segunda seria uma argamassa de pasta de cal e cimento. UNGERICHT, José L. Acabamento de parede de alvenaria com revestimento de escariola. 2002. 99 p. Dissertação (Mestrado em Engenharia C ivil) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, junho de 2002.

3 Sobre cozinhas e banheiros, é difícil afirmar se tinham suas paredes escarioladas, o levantamento das escariolas mostrou que restam poucas cozinhas e banheiros com esse revestimento. Supõe-se que muitos tiveram escariola, mas a colocação de azulejos sobre as paredes seria uma opção higiênica, assim que estes passaram a estar disponíveis no mercado. As casas mais antigas pesquisadas (2ª metade do século XIX) não tinham banheiros originalmente e quando estes foram construídos, já havia a opção do azulejo.

4 Relato de entrevista de escariolista que trabalhou, sobretudo nas décadas de 50 e 60 do século XX e, portanto, fase em que o cimento, em virtude do aumento da produção industrial, começou a superar a cal em utilização.

5 Traduzido de forma livre para “engana olho”, técnica de pintura que simula efeitos tridimensionais como saliências.