Cassia Karimi Vieira Cativo (CV)
Patrício Azevedo Ribeiro (CV)
Andreza Gomes Weil (CV)
karimivieira@hotmail.com
Universidade Federal do Amazonas
RESUMO
O artigo objetiva discutir sobre as condições de trabalho dos coveiros na cidade de Parintins, Estado do Amazonas, sinalizando o impacto na saúde desses trabalhadores. Trata-se de uma pesquisa realizada com quatro coveiros à luz da abordagem qualitativa com uso de formulários envolvendo questões abertas e fechadas. Refletir sobre tal temática se faz relevante, tendo em vista o local em que estão inseridos, muitas vezes de forma inadequado. Os resultados evidenciam alguns pontos que desvelam a precarização no processo de trabalho desses trabalhadores, tais como: salários baixos, insalubridade no lócus de atuação, desconhecimento sobre seus direitos trabalhistas, entre outros.
Palavras-Chave: Coveiro, Trabalho, Saúde.
ABSTRACT
The article discusses about the working conditions of the gravediggers in the city of Parintins, Amazonas state, signaling the impact on health of these workers. This is a survey with four gravediggers in the light of the qualitative approach with the use of forms involving open and closed questions. Reflect on this topic is relevant, considering the place where they live, often inappropriate manner. The results highlight some points that reveal the precariousness of their employment process, such as low wages, unsanitary the locus of action, lack of knowledge about their labor rights, among others.
Keywords: Digger, Labor, Health.
Para ver el artículo completo en formato zip pulse aquí
INTRODUÇÃO
Por que estudar as condições de trabalho dos coveiros, mediante um cenário de tantos outros focos ou categorias de trabalhadores que vivenciam o trabalho precário? O interesse em estudar tal temática surgiu a partir dos debates na disciplina “Tópicos Especiais” com ênfase na saúde do trabalhador, proferida no curso de Serviço Social do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia – ICSEZ/UFAM, no semestre 2013/2, a qual instigou os alunos a conhecerem o universo dos trabalhadores que são “invisíveis” aos olhos da sociedade. Assim, optou-se pelo contexto que desvela as condições de trabalho dos coveiros, pois, estes são uma categoria de trabalhadores essenciais para qualquer sociedade e muitas vezes tornam-se invisíveis dentro dos muros dos cemitérios e vivenciam a precarização nas suas condições de trabalho.
Esse estado de trabalho pode se compreendido sob dois aspectos. O primeiro está na ausência ou redução dos direitos trabalhistas onde essa nova dinâmica imposta pelo mercado de trabalho, faz com que esses trabalhadores vivenciem novas formas de contrato ou passe a viver na informalidade trabalhista. O segundo reflete nas condições de trabalho vivenciadas por estes trabalhadores.
Na atual dinâmica imposta pelo sistema capitalista de produção, até os que lidam com a morte foram obrigados a vivenciarem essa nova leitura acerca do mundo do trabalho. Os coveiros que há algum tempo atrás só cumpriam o papel de sepultar os mortos, hoje desenvolvem atividades múltiplas dentro de seu universo trabalhista. Por outro lado, essa dinâmica que eles vivenciam não os possibilita desempenharem suas atividades laborais de forma digna, ou seja, desenvolvem suas atividades de forma precarizada as quais refletem na sua saúde e no convívio familiar.
Diante disso, este trabalho resulta de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão, bem como pesquisa de campo desenvolvida no cemitério municipal da cidade de Parintins, Estado do Amazonas. Utilizou-se a abordagem qualitativa, pois “preocupou-se com a compreensão, com a interpretação dos fenômenos, considerando o significado que os outros dão a sua prática” (GIL, 2009, p. 68), e uso de formulários com perguntas abertas e fechadas os quais foram aplicados junto a 04 (quatro) coveiros que trabalham no cemitério São José, além do diário de campo.
Assim, o objetivo do artigo é discutir sobre as condições de trabalho dos coveiros na cidade de Parintins, sinalizando o impacto de tais condições na saúde desses trabalhadores. Entende-se que o debate ora em questão assume relevância, pois se trata de um contexto que envolve uma categoria de trabalhadores os quais, muitas vezes, tornam-se invisíveis aos olhos da sociedade e vivenciam, assim como outras profissões, a precarização no seu cotidiano de trabalho, refletindo na saúde e no convívio familiar. Trata-se de um trabalho introdutório, cujas discussões serão mais bem aprofundadas e problematizadas em uma pesquisa de iniciação cientifica, em fase inicial, além de abrir as portas para outras pesquisas que possam contribuir na dinâmica vivenciada por esses trabalhadores.
A categoria trabalho faz parte do processo sócio-histórico das sociedades. Este permite ao homem a interação com o meio no qual está inserido. É criado e reinventado de acordo com as perspectivas de cada sociedade. Assim, entende-se que cada grupo desenvolve o ato de trabalhar sob diversos ângulos e consequentemente as suas formas de produção.
Na concepção materialista da história, o trabalho é visto como a primeira atividade humana pela qual o homem modifica a natureza e a si mesmo, tendo em vista bens e serviços que necessita para sobreviver. Para tanto, necessita dos elementos como a força, os objetos e os meios para melhor concretude da atividade humana.
O trabalho não é apenas a busca das satisfações físicas e biológicas, mas, sobretudo, a busca da satisfação pessoal, da identificação do sujeito como agente ativo e transformador do meio em que está inserido.
Porém, esse processo de trabalho produz também suas contradições, pois, ao mesmo tempo em que o trabalhador produz riquezas, também se ver estranho a esse processo, ou seja, o que é produzido por ele não é visto como sendo seu produto final, mais como um objeto que lhe é desconhecido.
O Estranhamento é o afastamento do homem de sua essência humana, é a sua conversão em coisa, sua retificação. Uma sociedade estranhada é uma sociedade que cria, por sua lógica estrutural, barreiras estruturais para o livre desenvolvimento das potencialidades humanas (NAVARRO; PADILHA, 2007, p. 15).
Essas barreiras impostas pela sociedade faz com que o trabalhador vivencie a precarização nas suas formas de trabalho, logo, essa precarização reflete no modo de vida com o qual ele reproduz sua existência, fazendo com que suas potencialidades humanas não sejam desenvolvidas, impondo barreiras para o seu desenvolvimento social, intelectual e humano.
O debate sobre o mundo do trabalho é um fenômeno que ocorre mundialmente. As diversas crises econômicas mundiais tem levado o mercado financeiro a desenhar novas relações entre o trabalhador e seu campo de atuação. Essas novas relações impostas pelo modo de produção capitalista obrigam o trabalhador a se metamorfosear, fazendo com que ele crie novos mecanismos para sua sobrevivência.
Galeazzi (2006) argumenta sobre a precarização do trabalho como uma das situações laborais que se tornaram expressivas nesta nova sociedade neoliberal. Assenta-se no bojo da redução dos direitos sociais, condições inadequadas para o desenvolvimento produtivo desses trabalhadores e, consequentemente gerando riscos a sua saúde.
Nessa direção, os trabalhadores de cemitério também convivem com a perca dos direitos trabalhistas, condições inapropriadas no seu local de trabalho e a baixa qualificação profissional que, por sua vez, gera baixos salários refletindo na sua vida familiar. Por entender que a discussão sobre a temática envolve diferentes pontos de vista, logo, não há uma unanimidade conceitual, neste trabalho, associamos “trabalho precário” a quatro características principais, a saber: “I – insegurança no emprego; II – perdas das regalias sociais; III – salários baixos; IV – descontinuidade do tempo de trabalho” (SÁ, 2010, p. 02).
Esta compreensão sinaliza para a ideia de que o trabalho precarizado se opõe aos padrões formais e tradicionais de contratação de pessoas, pois na precarização laboral o trabalhador não possui um contrato formal que lhes assegure direitos sociais (férias, FGTS, aposentadoria e outros), ou uma determinação específica do tempo de execução de suas tarefas.
A precarização laboral tem surgido como uma preocupação para a sociedade contemporânea, pois não diz respeito apenas às formas de contratações dos trabalhadores, mais refletem principalmente no modo de vida que eles estão vivenciando, ou seja, “esse deslocamento do desenvolvimento para a luta contra a pobreza, faz com que o emprego deixe de ser uma questão econômica para ser uma questão social, sem que a racionalidade do capital em nada se altere” (TAVARES, 2002, p.19).
Desse ponto de vista, é possível perceber a dinâmica na qual os trabalhadores estão envolvidos, trabalhando cada vez mais para a manutenção e a (re)produção de capital, porém, sem que ocorra a distribuição igual entre as partes, refletindo de forma precária em suas condições de subsistência.
Nesses termos, Marx (apud NAVARRO; PADILHA, 2007, p. 15) enfatiza que:
O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral (grifo do autor).
O trabalhador passa a produzir cada vez mais riqueza para os proprietários dos meios de produção e neste processo consolida ainda mais o antagonismo de classes sociais, e percebe as riquezas que produz como algo que não lhe pertence e está distante da sua realidade.
Em meio a este processo, estabeleceu-se um paradoxo na sociedade, a qual ver o mercado de trabalho absorver um elevado número de trabalhadores, todavia, não os possibilita estabilidade profissional, salários condizentes às tarefas desempenhadas por eles, jogando-os ainda mais para a situação de informalidade profissional.
Essa verticalização cria no mercado consequências associadas ao risco social, pois as novas configurações que o mercado financeiro vem desenhando impõem ao trabalhador, novas formas de contratação através dos contratos temporários os quais não asseguram aos contratados estabilidade profissional, crescimento na carreira, nem tão pouco os direitos assegurados por lei, mais busca mecanismo como, por exemplo, o trabalho terceirizado para aumentar a lucratividades das empresas.
Compreende-se por terceirização como um dos reflexos da precarização do mundo do trabalho, onde as empresas não garantem aos seus funcionários estabilidade profissional, aprimoramento de suas técnicas de serviço, não lhes assegura seus direitos sociais, desmobilizando assim a organização sindical. Logo, torna-se difícil o diálogo entre trabalhador e a empresa, pois sem a articulação dos sindicatos juntos a elas, a luta pela efetivação de anos de conquistas desses trabalhadores acaba não se efetivando.
Neste sentido, Miranda (2005, p. 8) faz a seguinte reflexão:
Há duas modalidades características de terceirização, uma primeira modalidade é aquela em curso a nível mundial, justificada pela busca de produtividade, qualidade, competitividade e inclui transferência de inovação tecnológica e de politica de gestão da qualidade para as empresas subcontratadas. Uma segunda modalidade entre as empresas brasileiras, é aquela determinada basicamente pela redução de custos e, sua rápida ampla doação tem provocado uma evidente precarização das condições de trabalho e de emprego no país.
O reflexo dessa terceirização faz com que a classe trabalhadora viva em constante preocupação com sua situação trabalhista, pois com essa desvalorização da mão de obra, não há segurança na permanência do emprego, são trabalhadores que a qualquer momento podem ser descartados pelo mercado de trabalho e compor o exército internacional de reserva.
O medo do desemprego, da insegurança econômica instala-se constantemente na vida desses trabalhadores, os quais são obrigados a se sujeitarem às condições precarizadas em seu ambiente de trabalho, a exaustivas jornadas de trabalho, salários baixíssimos, por medo de serem incorporados entre os trabalhadores internacionais de reserva.
Com o desenvolvimento do capitalismo, introduziram-se, de forma estrutural e aparentemente definitiva, as práticas flexíveis de gestão da força de trabalho não em benefício dos trabalhadores. Muito pelo contrário, o enxugamento e flexibilidade nas empresas significaram perdas consideráveis de emprego, de estabilidade, de qualidade de vida e de dignidade aos milhões de trabalhadores que dependem dos seus salários para sobreviverem (PADILHA, 2010, p. 03).
O desenvolvimento do capital trouxe para a classe trabalhadora consequências nocivas no que diz respeito aos direitos trabalhistas, flexibilização, salários, formas de contratação, jornada de trabalho e outros, que refletem de forma prejudicial nas condições de vida desses trabalhadores.
Na luta para fugir do desemprego muitos trabalhadores buscam o aperfeiçoamento profissional, tornam-se trabalhadores com um múltiplo conhecimento criando uma classe de trabalhadores “ainda mais diferenciada, entre qualificados/desqualificados, mercado formal/informal, homens/mulheres, jovens/velhos, estáveis/precários, imigrantes/nacionais etc. (ANTUNES, 2009, p. 189).
Assim, o mundo do trabalho passa a vivenciar mudanças significativas no mercado de trabalho. Em outras palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional. “Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado a economia informal, ao setor de serviço etc.” (Idem, p. 205). Assim, o mundo do trabalho passou por uma significativa heterogeneização, complexificação e fragmentação.
Desta feita, o trabalhador é envolto em uma rede de relações que fazem com que sua força de trabalho seja cada vez mais desvalorizada, refletindo nas suas condições de vida (saúde, educação, lazer, segurança, etc.) e consequentemente refletindo em sua vida familiar.
Em meio ao conjunto dos trabalhadores que vivenciam o processo da precarização nas relações de trabalho estão os coveiros, haja vista que, por conta de suas condições cotidianas de trabalho, estão expostos a condições de risco de morte, muitas vezes desconhecem seus direitos trabalhistas e estão invisíveis aos olhos da sociedade capitalista. Por isso, a importância de se discutir sobre tal questão.
Este tópico se propõe a discutir sobre as condições de trabalho dos coveiros na cidade de Parintins/AM tendo por base a pesquisa de campo realizada junto a estes trabalhadores, conforme já sinalizado na introdução. Assim, à luz das concepções teóricas buscam-se desvelar quem são os coveiros no bojo da categoria de trabalhadores assalariados, suas relações no cotidiano de trabalho e o que esta realidade impacta na própria vida, tendo em vista ser o coveiro um sujeito partícipe na sociedade, logo, desígnio dos direitos sociais.
A pesquisa foi realizada no único cemitério da cidade de Parintins/AM denominado de São José Operário, onde foram feitas observações assistemáticas, conversas informais com os trabalhadores do cemitério. Isto foi importante para conhecer as características do trabalho dos coveiros e suas condições de trabalho e de que forma eles estão organizados politicamente. Após as observações foram convidados a participar da pesquisa os 04 (quatros) trabalhadores que efetuam o sepultamento no cemitério da referida cidade.
2.1 Quem são os coveiros?
De acordo com a Classificação Brasileira de ocupações, os coveiros atuam nos auxiliadores dos serviços funerários, “constroem, preparam, limpam, abrem e fecham sepulturas. Realizam sepultamento, exumam1 e cremam cadáveres, trasladam corpos e despojos”. Dentro dos serviços que lhe são atribuídos está, também, a “conservação dos cemitérios, máquinas e ferramentas de trabalho. Zelam pela segurança do cemitério” (MTE/CBO, 2002)2.
Apesar de ser uma dos campos de trabalho mais antigos, poucas modificações aconteceram no decorrer do tempo para a melhoria de sua atuação profissional. Não existe qualquer curso que capacite esses trabalhadores no momento em que adentram ao universo de trabalho, além disso, existem situações que pela ausência de material de trabalho eles são obrigados a improvisar suas ferramentas para poderem atuar. No quadro abaixo é possível conhecer o perfil dos sujeitos que participaram da pesquisa.
Sujeitos |
Idade |
Estado Civil |
Escolaridade |
Naturali- |
Filhos(as) |
Local onde mora |
Tempo de profissão |
Coveiro A |
52 |
Divorciado |
Nunca estudou |
Parintins/AM |
4 |
Reside com amigos |
26 anos |
Coveiro B |
29 |
Casado |
Ensino Médio Completo |
Parintins/AM |
3 |
Casa alugada |
3 meses |
Coveiro C |
43 |
Casado |
Ensino Médio Completo |
Parintins/AM |
3 |
Casa própria |
22 anos |
Coveiro D |
39 |
Casado |
Ensino Fundamental Incompleto |
Sobral/CE |
3 |
Casa Própria |
10 anos |
Quadro 1 – Perfil dos participantes da pesquisa |
Para cada coveiro que participou da pesquisa foi feita uma identificação como forma de resguardar sua identidade pessoal e manter o compromisso ético por parte do pesquisador. Porquanto, os sujeitos foram identificados como Coveiros A, B, C e D.
Com base na leitura do quadro, é possível perceber que a maioria dos profissionais que desempenham a função de coveiros estão há mais de 10 anos nessa profissão. Chegam geralmente cedo, entre 07 (sete) horas da manhã, todavia, em casos excepcionais (quando os cadáveres estão em decomposição, e não suportam ser velados) são obrigados a estarem fora de seu horário habitual de trabalho.
Esta profissão é predominantemente do sexo masculino, sendo que muitos destes encontram-se neste emprego tendo em vista a baixa qualificação profissional que não lhes permitiu almejar outras profissões. No caso dos coveiros pesquisados, apenas 02 (dois) possuem ensino médio completo.
A baixa escolaridade da população nos países subdesenvolvidos é proveniente, muitas vezes, de situações em que crianças se encontram em idade escolar são obrigadas a integrar o mercado de trabalho, quase sempre informal, para contribuir na renda familiar, isso momentaneamente é positivo para a família, mas posteriormente esses indivíduos serão trabalhadores adultos com baixa qualificação e encontrarão dificuldades para se colocar no mercado de trabalho. Resultado disso, esses trabalhadores vão trabalhar em empregos que exigem pouca qualificação e que oferecem baixos salários (MUNDO EDUCAÇÃO, 2014)3.
A baixa escolaridade é um dos fatores que levam essas pessoas a buscarem a profissão de coveiro. Quando perguntado se desejavam ser coveiro, os mesmos foram unânimes em dizer que “não”, e que se existisse outra oportunidade, um grau de estudo melhor, eles almejariam outras profissões. Muitos vieram de comunidades ribeirinhas do município de Parintins, em busca de dar continuidade em seus estudos4 e quando encontraram oportunidade aceitaram o trabalho e estão atuando no cemitério.
Aqueles que já trabalham nesta profissão há mais de 20 (vinte) anos, como é o caso do coveiro A, que possui 52 (cinquenta e dois) anos e trabalha há 26 (vinte seis) anos, ou seja, metade de sua vida foi vivenciada na função de coveiro. E devido a precariedade no espaço de trabalho sua vida foi reduzida “[...] à tempo de trabalho estranhado em operação cotidiana de despersonalização do homem ou de perversão/inversão do ‘núcleo humano’ em ‘núcleo animal’ (ALVES, 2010, p. 25).
Nessa linha de análise, Marx (apud ALVES, 2010, p. 25) explicita que:
O homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar; quando muito ainda, habitação, adornos, etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano animal (grifo do autor).
Essa inversão de papeis em que o trabalhador é obrigado a se metamorfosear surge das condições em que o sistema capitalista impõe a classe trabalhadora, pois com a precarização de seu trabalho, salários baixos e consequentemente a proletarização de sua vida faz, com que “o custo do operário se reduza quase que exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência” (MARX; ENGELS, 1999, p. 18).
2.2 Trabalho do coveiro
A pesquisa revelou que todos os entrevistados nunca trabalharam em outro cemitério; realizam em média de 3 (três) a 5 (cinco) sepultamento por dia. Estão vinculados ao cemitério por meio de contratos de trabalho, os quais não tem acesso a este contrato, somente os contracheques que são oferecidos pela prefeitura e recebem 1 (um) salário mínimo no valor de R$ 750, 00 (setecentos e cinquenta) reais.
Segundo Moraes e Mont’alvão (apud PESSOA et al, 2002), toda atividade implicada no trabalho, junto com seu ambiente físico e social, exerce no trabalhador diversos constrangimentos, com inúmeros gastos, tanto físicos e mentais como emocionais e afetivos, o que lhe acarreta desgastes e custos humanos.
A atividade de coveiro não diverge das outras atividades, contudo, chama atenção que, estes trabalhadores exercem suas atividades independentemente de qualquer hora que forem chamados. Começam suas atividades cavando ou rompem com as sepulturas de cimento, as jazidas em que os corpos serão depositados com o uso da força humana.
As falas dos trabalhadores clarificam esta assertiva:
Já fiz muitas exumações. Perdi a conta de quantas, no começo é muito difícil, mas depois a gente acaba acostumando e faz normalmente, hoje eu não tenho medo de fazer isso (COVEIRO A, 2014).
O nosso trabalho é fazer cova, exumar, deixar o cemitério limpo, não deixar que quebrem as coisas e ficar em alerta pra quando precisar a gente vim trabalhar (COVEIRO B, 2014).
A gente não tem hora pra chegar, porque isso depende muita de cada situação. Tem vezes que alguém morre afogado, então a hora que chamarem a gente, aí temos que tá aqui (COVEIRO C, 2014).
O mais difícil é quando tem que sepultar pessoas afogadas, o cheiro é muito forte e tem que vim cedo, geralmente agente faz logo que o corpo é encontrado, mas alguém tem que fazer esse trabalho, porque se a gente não faz quem vai fazer? (COVEIRO D, 2014).
Os depoimentos desses trabalhadores apresentam um universo desconhecido para muitas pessoas, pois pouco se conhece sobre o mundo atrás dos muros do cemitério. Contudo, esses trabalhadores são essenciais para o processo que culmina a vida e a morte, pois como eles mesmos afirmam, “se agente não existissem quem iria enterrar os mortos” (COVEIRO D, 2014). Apesar de serem importantes para a sociedade esses profissionais assim como tantos outros vivenciam a situação de precarização de suas condições de trabalho, refletindo nas esferas de sua vida social e familiar.
3.3 A precarização nas condições de trabalho e os reflexos na saúde
O trabalho de coveiro é uma profissão que requer todo cuidado devido sua prática com corpos em decomposição, sol, chuva, estresse, sendo obrigatória a utilização de equipamentos de segurança e mesmo que essa profissão já exista ao longo dos anos, muitos ainda “utilizam de improvisação do ferramentário, adaptação de equipamentos sem instruções ou treinamento específico, além de uma grande carga emocional, dado que, eles vivenciam diariamente a dor, a perda, o luto (PESSOA et al, 2002, p.13).
Não existe hora para as atividades exercidas pelos coveiros e muito menos chuva ou sol. Muitas vezes a exposição ao sol acaba fazendo com que esses trabalhadores sintam-se fadigados ao final do dia. A norma regulamentadora do trabalho no artigo 17 versa que: “as condições ambientais de trabalho e a organização do trabalho devem estar adequadas às características psicofisiológicas dos trabalhadores e à natureza do trabalho a ser executado” (BRASIL, 2001, p. 56). Todavia, as condições em que esses trabalhadores estão expostos fazem com que isso acarrete danos a sua saúde.
Possíveis sinais, visíveis ao operário exposto a temperaturas altas, são identificáveis, como: sensação geral de mal-estar, mesmo com ritmo de trabalho imposto, e predisposição ao trabalho. É notória a diminuição produtiva, pele avermelhada e frequência cardíaca aumentada fortemente. Com a contínua exposição ainda podem ocorrer: fortes dores de cabeça, tontura, falta de ar seguida de vômitos e câimbras musculares. Um quadro de inconsciência muitas vezes se instala no trabalhador, o que pode levar a morte (PESSOA et al, 2002, p. 9).
A exposição ao sol e sob altas temperaturas fazem com que esses trabalhadores fiquem vulneráveis a diversas doenças, como doenças de pele, a frequência cárdica aumenta, dores pelo copo, vermelhidão e outros. Essas questões puderam ser percebidas quando perguntados a eles como se sentiam ao final do dia:“me sinto estressado, cansado, principalmente quando tenho que realizar muito sepultamento, aí a gente fica no sol, no fim da tarde tô quebrado” (COVEIRO B, 2014).
Além da exposição ao sol, outras doenças surgem no ambiente de trabalho devido às condições precárias em que eles estão expostos. Eles fazem movimentos repetidos, ficam expostos a agentes químicos (devido à decomposição dos corpos), biológicos (bactérias, fungos, parasitas) e doenças relacionadas ao sistema respiratório como foi descrito por um dos trabalhadores: “eu apanhei alergia aqui e renite, porque a gente mexe com isso, ai já viu” (COVEIRO C, 2014).
A fala do entrevistado C converge com a afirmativa de Pêgas, Santos e Guijarro (2009 p. 74) quando estes discutem que:
O trabalhador coveiro está exposto a outros riscos ocupacionais, como aos agentes químicos: poeiras, pós e produtos em geral; os físicos: radiações e ruídos; os biológicos: vírus, bactérias, parasitas, sangue e outros fluídos, além dos psicossociais caracterizados pelo estresse, fadiga e baixa qualidade de vida.
Por se encontrarem exposto a agentes biológicos e químicos os coveiros são suscetíveis a adquirirem diversas doenças, os quais refletem em condições precárias de sua saúde e que tem como desdobramento a sua convivência no ambiente familiar.
Por outro lado, a ausência de material de segurança contribui para que esses trabalhadores estejam sujeitos ao risco de doenças. Quando perguntado a eles sobre os materiais de segurança, eles relataram a mesma resposta: “vem se a gente tiver cobrando do administrador, porque por eles mesmos não vinham nada pra cá” (COVEIRO B). Compartilhando da mesma ideia outros afirmaram que: “olha os materiais é a farda, às vezes luva, algumas vezes vem máscara, mas é difícil, a maioria das vezes a gente só ganha a farda e só!” (COVEIRO C).
Para muito desses trabalhadores, os problemas de saúde não estão somente relacionados com as questões físicas, mas a sua vivência diária como a morte, muitas vezes leva a desdobramentos psicossomáticos, que refletem na sua saúde mental.
Outro problema que esses trabalhadores enfrentam é a ausência de informação quanto a sua situação trabalhista. Estes coveiros desconhecem quais são seus vínculos empregatícios com a prefeitura. Desconhecendo se é repassado ou não sua contribuição para a previdência social, ou seja, “direitos derivados do trabalho, como seguro desemprego, aposentadorias, pensões e seguro saúde, também instituiu diversos benefícios assistenciais, com intuito de reduzir desigualdades e responder à satisfação de necessidades básicas e específicas” (BOSCHETTI, 2009, p. 7). Desta feita, a perca dos direitos trabalhistas é uma das características da precarização do trabalho.
Destarte, esses trabalhadores vivem em processo de precarização de sua saúde, já que possuem baixos salários, condições inadequadas de trabalho, e estão expostos a diversos agentes que comprometem o seu desenvolvimento social e familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A década de 90 representou para o cenário brasileiro mudanças significativas e controversas, sobretudo no mundo do trabalho. Este processo fomentou a redução e desregulamentação de postos de trabalho, contratos temporários, perca dos direitos trabalhistas que refletiram na condição de vida e saúde da classe trabalhadora.
Através desse processo de precarização, as relações estabelecidas entre empregados e patrões acabam configurando-se como relações puramente mecânicas. Em muitos casos, essa precarização do trabalho tem trazido novas configurações de contratação como os trabalhadores terceirizados. Esses trabalhadores são contratados por um período de tempo e após o término do mesmo são dispensados de seu vínculo empregatício.
Por outro lado, os ambientes de trabalho também são determinantes para que esse trabalhador desenvolva risco a sua saúde, ou seja, a ausência de equipamento de segurança, a falta de higiene, excesso de peso e outros, são fatores que fazem com que a saúde do trabalhador fique mortificada.
Com os coveiros que trabalham no cemitério de Parintins não é diferente. Esses profissionais estão expostos as mais diversas situações em seu ambiente de trabalho. Agentes biológicos e químicos estão em todo momento acompanhando esses trabalhadores que, em sua maioria já adquiriam doenças devidas às condições em que estão submetidos.
Para o fim que se propõe, o trabalho verificou que esses trabalhadores de cemitério vivenciam a situação de precarização de suas condições de trabalho, seus direitos trabalhistas, condições dignas de execução de suas atividades, o que reflete de forma negativa na qualidade de vida.
Chama atenção para o fato de que são cidadãos inseridos no mercado de trabalho, contudo, seus direitos sociais não estão sendo garantidos conforme prescreve as leis trabalhistas. É necessário que o poder público assuma seu papel enquanto gestor e possibilite a esses trabalhadores melhores condições de trabalho e, consequentemente terão uma mais digna frente à conjuntura do sistema vigente. Assim, sem pretensões de concluir, entende-se que a discussão aqui apresentada abre um campo, indubitavelmente a ser explorado.
REFERÊNCIAS
ALVES. Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório: o novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha. Disponível em: <http://www.giovannialves.org/Artigo_GIOVANNI%20ALVES_2010.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. (Coleção Mundo do Trabalho) .
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010.
BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. Texto escrito para o curso de especialização lato sensu em Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. CFESS/ABEPSS: 2009.
GALEAZZI, Irene. Precarização do trabalho. In: CATTANI, Antonio David; HOLZMANN, Lorena. Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Ed. Ridendo Castigat More. Versão para eBook. Fonte digital. Rocket Edition de 1999.
MIRANDA, Carlos Roberto. Ataque ao mundo do trabalho: terceirização e seus reflexos na segurança e saúde do trabalhador. Disponível em: <saudeetrabalho.com.br>. Acesso em: 20 nov. 2013.
MTE/SPPE. Classificação Brasileira de Ocupações: CBO, 2002. Brasília: TEM, 2002.
NAVARRO, Vera Lucia; PADILHA, Valquíria. Dilemas do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Psicologia & Sociedade, n. 19, p. 14-20, 2007. Edição especial.
PADILHA, Valquíria. Qualidade De Vida No Trabalho Num Cenário De Precarização: A Panaceia Delirante. Revist. Trab. Educ. Saúde. Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 549-563, nov.2009/fev. 2014.
PESSOA, E. B.; FILGUEIRAS E. V.; LUCENA F. A. N.; MACIEL, M. L.; CALHEIROS, R. P.; CORREIA, W. F. M. Análise ergonômica do posto de trabalho do coveiro. In: Anais do VII Congresso Latino Americano de Ergonomia – ABERGO. Recife, Brasil, 2002.
PÊGAS, Dayana de J.; SANTOS, Fanny Eisenhut de Amorim; GUIJARRO, Janaina de Oliveira . Saúde Ocupacional Dos Trabalhadores de Cemitérios. Rev enferm. UFPE, Jan/Mar. 2014.
SÁ, Teresa. Precariedade e Trabalho precário: consequências sociais da precarização laboral. Configurações [online], 2010. Edição de Fev. 2012. Disponível em: <http://configurações.revues.org/203> . Acesso em: 06 maio de 2013.
TAVARES, Maria Augusta. Trabalho informal: os fios (in)visíveis da produção capitalista. Revista OUTUBRO, São Paulo: Instituto de Estudos Socialistas, n. 7, 2002.
1 Exumar significa retirar os restos mortais humanos da sepultura com a finalidade de atender aos recursos da Justiça na averiguação da exata causa de morte.
2 Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso em: 07 mar. 2014.
3 Disponível em: http://www.mundoeducacao.com/geografia/paises-subdesenvolvidos-os-problemas-sociais.htm. Acesso em: 02 fev. 2014.
4 Em algumas comunidades ribeirinhas do Amazonas, o ensino regular funciona de 1º (primeiro) ao 5º (quinto) ano. O que obriga muitas crianças a se deslocarem de suas comunidades para outras, que oferecem o ensino do 5º ao 9º (nono) ano. Já o ensino médio é ofertado pela modalidade da Educação de Jovens e Adultos - EJA. Por conta dessa situação, muitos pais dão a tutela de seus filhos para parentes e amigos cuidarem, para que desse modo eles possam estudar, quando não eles mesmos mudam-se para a sede do município localizando-se muitas vez e áreas de ocupação desordenada.