Contribuciones a las Ciencias Sociales
Noviembre 2014

CASA-MUSEU, MUSEU-CASA OU CASA HISTÓRICA? UMA CONTROVERSA TIPOLOGIA MUSEAL



Micheli Martins Afonso (CV)
Juliane Conceição Primon Serres (CV)
mimafons@gmail.com
Universidade Federal de Pelotas



RESUMO
O presente texto objetiva expor o conceito etimológico associado a uma tipologia museológica em processo de consolidação: as Casas Históricas, Casas-Museus ou Museus-Casas. Pretende-se desvelar algumas características da sua gênese, singularidades enquanto instituição de guarda e o processo de classificação. Estes locais de memória não possuem uma categorização mundial alicerçada, apesar da crescente ampliação dos estudos nesta área, fator que dificulta a gestão, pesquisa e aplicação de diversas outras premissas museológicas dedicadas a estes espaços. A pesquisa está pautada em revisão bibliográfica sobre o tema Casas-Museu, além de análise das diferentes tipologias destas instituições a partir da classificação mundial preliminar estabelecida pelo DEMHIST.

Palavras-chave: Casa-Museu, Museu, Memória, Patrimônio, Instituição de guarda, Tipologia Museológica.

HOUSE-MUSEUM, MUSEUM-HOUSE OR HISTORICAL HOUSE? A MUSEUM CONTROVERSY TYPOLOGY

ABSTRACT
            The present text has the intention to expose the etymological concept associated to a museum typology, in a process of consolidation: the Historical Houses, House-Museums or Museum-Houses. The intention is to unveil some characteristics of its genesis, singularities as institutions of guard and the process of classification. These local of memories do not possess a solid world categorization despite of the increase of studies in this area, a factor that setbacks the management, research and applicability in several other museum propositions dedicated to those spaces. The research is based in a bibliographic review about the theme House-Museums and the analysis of different typologies of those institutions from the preliminary world classification stablished by DEMHIST.
 
Keywords: House-Museum, Museum, Memory, Patrimony, Institution of guard, Typology, Museology.

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Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Martins Afonso, M. y Primon Serres, J.: "Casa-museu, museu-casa ou casa histórica? Uma controversa tipologia museal", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Noviembre 2014, www.eumed.net/rev/cccss/30/casa-museu.html

INTRODUÇÃO

            Em sua origem histórica, o Museu está relacionado aos lugares de oferendas dos thesaurus, aos poucos transformado em instituição dedicada ao conhecimento, com bibliotecas, observatórios, depósito de coleções; em Roma se desenvolveu o colecionismo privado e o incentivo ao colecionismo público; o ocidente medieval se impôs a ideia de colecionismo como tesouro: peças raras, exóticas, vindas das Cruzadas, do Oriente, as relíquias de santos, tendo a Igreja como grande colecionadora do período (HERNÁNDEZ, 2001, p. 31-33). As obras de arte, as relíquias, a arte sacra e tantas outras preciosidades ostentadas no Renascimento deram lugar, a partir do século XV, ao interesse da sociedade por objetos estranhos, extraordinários, que despertassem uma curiosidade científica (ECO, 2010). Esta característica específica de colecionismo deu origem às “wunderkammer1, ou seja, as câmaras das maravilhas ou gabinetes de curiosidades, precursores dos nossos museus de ciências naturais” (ECO, 2010, p. 201). Estes espaços dedicados ao colecionismo, os quais reuniam uma série de antiguidades com tipologias diversas de objetos e peças exóticas, estavam disponíveis para exposição, apreciação do colecionador e de seus convidados. Alguns séculos mais tarde com a Revolução Francesa, se iniciou um processo social preservacionista, assim como o desenvolvimento da noção ocidental de patrimônio cultural que são as raízes do conceito que conhecemos atualmente (POULOT, 2009). Após a Revolução Francesa, as coleções e os bens culturais que até então eram de desfrute apenas da nobreza, passam a ser públicas, instigando a criação de museus na Europa e América. Neste sentido, se tem a criação do primeiro Museu aberto ao público: o Museu do Louvre em 1793. Entretanto, antes da abertura deste Museu já existia desde 1683 o Ashmolean Museum, com coleções de história natural, arqueologia, entre outros.

            A partir do século XIX, surge mundialmente uma tipologia museal específica: a Casa-Museu (PONTE, 2007, p. 167). São instituições que representam o desvelo da vida privada à curiosidade social. Estes locais de memória (NORA, 1993) nasceram da ânsia de uma parcela social em preservar a memória de um (a) personagem de destaque em um grupo, compartilhar o seu legado e instituir suas raízes no cerne da sociedade.

Uma Casa-Museu corresponde a uma tipologia específica de museu, que está em processo de categorização e ampliação dos estudos sobre sua gênese. Cada Casa-Museu possui uma particularidade, um tipo de acervo, consiste num refúgio doméstico que expõe um recorte de uma determinada época, projeta a memória de um personagem social, evidencia uma coleção de valor inestimável, retrata a vida doméstica de um determinado grupo, satisfaz a curiosidade dos visitantes em observar um aspecto de uma intimidade, entre outros. A partir desta perspectiva “a casa não é mais apenas um objeto arquitetônico, nem sequer apenas um objeto cultural. A casa se transforma em continente de um conteúdo, em suporte de um significado maior” (HORTA, 1997).

            Este artigo pretende expor a problemática das Casas Históricas, Casas-Museus, ou Museus-Casas como são amplamente conhecidas no Brasil, desvelando aspectos da sua gênese e singularidades enquanto instituição de guarda e locais de memória. Este gênero museal começou a ser amplamente difundido desde o ano de 1998, com a criação de um comitê Conselho Internacional de Museus, o DEMHIST - Comitê Internacional para os Museus de Casas Históricas. O DEMHIST é responsável por auxiliar na institucionalização e gestão desta categoria de museu, a qual abriga registros de uma memória social sempre representada por um (a) personagem de destaque para uma comunidade, independente da sua condição social.

            O aporte metodológico utilizado neste texto corresponde a uma revisão bibliográfica sobre o tema Casas-Museu, que faz parte da construção de uma dissertação de mestrado em Memória Social em Patrimônio Cultural, pela Universidade Federal de Pelotas, em fase de desenvolvimento, a qual investiga a temática das Casas-Museus no Brasil, além de avaliar a problemática da conservação nestes locais.

CASA-MUSEU, MUSEU-CASA OU CASA HISTÓRICA?

            Os estudos relativos à temática das Casas-Museu ainda são recentes, apesar dos crescentes esforços nas pesquisas relativas a esta abordagem, tanto no meio acadêmico como no institucional. Alguns estudos sobre este tema exploram a ampla área museológica, não aprofundando nas especificidades desta tipologia, devido à amplitude do tema, às diversas instituições ainda não exploradas e as poucas publicações específicas na área. Este aspecto é refletido não só nas classificações das diferentes tipologias, mas até mesmo no modo como estas instituições são referidas. Como exemplo pode-se citar o caso Luso-brasileiro, o qual Portugal utiliza para esta tipologia museal o termo Casa-Museu, enquanto aqui no Brasil é mais usual a referência por Museu-Casa. Em algumas bibliografias, incluindo nomeadamente as norte-americanas, admite-se a utilização da palavra Casa-Histórica, para a mesma categoria de museu.

[...] Se para os latinos os conceitos de casa-museu e casa histórica são distintos, por sua vez, para os anglo-saxonicos, uma casa-museu pode assumir o conceito de casa histórica. Como exemplo desta afirmação está o próprio nome do comitê do ICOM, direcionado para o estudo das casas-museu - DEMHIST (Demeures Historiques) (PONTE, 2007, p. 22).

            António Ponte, ainda descreve com maior clareza as diferenças entre Casa-Museu e Casa Histórica, onde afirma que as casas históricas só devem ser consideradas como Casas-Museu se práticas museológicas forem praticadas no seu interior, e não apenas por constituírem exemplos históricos de residências.

Em Portugal, considera-se a casa histórica como uma estrutura relacionada com alguma figura pública de relevância nacional, regional ou local, ou com algum acontecimento da história do país ou de um determinado local, sem que, contudo, tenha implícito o trabalho e a função museológica. Não tem inclusivamente de estar aberta ao público. (PONTE, 2007, p. 23).

            A diferença de nomenclatura ao referenciar este tipo de instituição de guarda - Casa-Museu ou Museu-Casa - é definida por Regina Matos no 1º Seminário Sobre Museus Casas, a qual indica que nos “museus-casas [...] o acervo pertence à própria casa. Nas casas-museus, o acervo tem seu valor independentemente do local onde elas estavam inseridas” (MATOS, 1997, p. 47). Entretanto, esta afirmação não é considerada nas classificações Luso-Brasileiras, tendo em vista que independente do valor do acervo, da composição deste espaço, do prédio e espólio serem ou não originais à época de vivência no âmbito de uma “casa”, as definições de Casa-Museu ou Museu-Casa são empregadas nos países que assim as designam, independente da tipologia da nomenclatura utilizada.

            De fato, a principal premissa para que uma instituição de guarda seja instituída como Casa-Museu, diz respeito à constituição histórica do ambiente ou a reconstrução da memória do mesmo, através de objetos, documentos, e ações que identifiquem o patrono (a) e a sua relação com uma vivência íntima. Esta homenagem deve ser baseada na utilização de objetos que pertenceram ao ser ou grupo homenageado, além de sempre estar relacionado com as vivências do homenageado em um ambiente íntimo, a sua residência. Além disso, para que seja considerada como instituição de guarda necessita ser inerente ao local a atribuição de práticas museológicas efetivas, como exposição, conservação, educação, documentação, entre tantas outras ações que compreendem a área museológica e, sobretudo, serem abertas ao público.

            Uma Casa-Museu não exclui a aplicação de práticas inerentes aos museus tradicionais pelo fato de ter sido originalmente uma residência. Consiste em uma instituição de guarda que no passado abrigou as vivências e lembranças de uma pessoa/família, ou um local que reconstrói estas memórias. A missão de uma Casa-Museu pode variar, mas em suma estima-se que preserve o edifício, os bens culturais que abriga, exerça práticas museológicas, entre outros. Não menos importante, mas principalmente caracterizador deste tipo de instituição de guarda: deve manter viva a memória ali contida do seu homenageado.

Uma Casa-Museu apresenta um ambiente cotidiano que oferece um contato direto com o reflexo do passado/presente de uma parcela da sociedade, satisfazendo a curiosidade dos visitantes em espreitarem aquele arranjo familiar e que precisa ser preservado (HORTA, 1997, p. 113 - 114).

Segundo Ponte uma Casa-Museu:

[...] deverá reflectir a vivência de determinada pessoa que, de alguma forma, se distinguiu dos seus contemporâneos, devendo este espaço preservar, o mais fielmente possível, a forma original da casa, os objectos e o ambiente em que o patrono viveu, ou no qual decorreu qualquer acontecimento de relevância, nacional ou local, e que justificou a criação desta unidade museológica (2007, p.25).

            A qualidade simbólica do espaço expositivo de uma Casa-Museu induz o visitante a buscar nos objetos exibidos de uso íntimo de uma determinada personalidade, referências que remetam às suas próprias lembranças. Segundo Ecléa Bosi, em uma casa “tudo é tão penetrado de afetos, móveis, cantos, portas e desvãos, que mudar é perder uma parte de si mesmo; é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver.” (2006, p. 436). Os primeiros habitantes da casa que hoje é uma Casa-Museu, já não habitam mais seus cômodos, mas as suas memórias, os seus modos de viver estão presentes e vivos na organização do local e nos objetos que muitas vezes se encarregam de contar esta história.

            As redes que se constroem a partir de uma única residência influenciam no modo de viver dos habitantes daquele local, assim como nos hábitos dos indivíduos que ali frequentam, de acordo com Rosaelena Scarpeline:

O espaço da casa traz inserido nele a vida de seu proprietário e de seus familiares, que ali viveram por tempo longo ou curto e construíram um espaço com usos e significados próprios. Abrange também às teias extra familiares composta de amigos, vizinhos, negócios e empregados. Seus hábitos culturais e intelectuais, alimentares e de higiene, religioso e de lazer formando um conjunto de relações que servem de ponte entre o público e o privado. (2012, p. 78).

            De uma forma mística (fetichista?), os visitantes de uma Casa-Museu são bombardeados por sensações que remetem a um cabedal de lembranças, talvez impossíveis de serem despertadas em outras tipologias de instituições museológicas. O cheiro do um aposento, um modo específico de organização de uma mesa de jantar, o barulho que faz a madeira de um assoalho antigo durante o percurso expositivo, a altura de uma porta, entre tantas outras especificidades que transportam o visitante à infância ou a períodos específicos de sua vivência, estão retratados em uma Casa-Museu. Até mesmo as memórias não próprias da vivência do espectador, mas que foram incorporadas a gerações nas lembranças de família podem ser afloradas durante a visita a uma instituição com esta tipologia. Neste sentido, Bosi afirma que “a criança ouve com prazer os episódios da infância dos avós que, à força de serem evocados, chegam a formar um quadro com certa harmonia” (2006, p. 420) que se mescla no presente às suas próprias recordações de experiências vividas.

O reconhecimento das lembranças depende do presente, e é no presente que a ressignificação das imagens é feita ativando a memória. Segundo Paul Ricoeur:

Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la principalmente disponível, se não acessível. Disponível como a espera de recordação, mas não ao alcance da mão, como as aves do pombal de Platão que é possível possuir, mas não agarrar. (RICOEUR, 2012, p. 441).

            Auxiliadas pelo percurso expositivo, as Casas-Museu transportam os visitantes a vivências familiares, da mesma forma que os museus de história, mas com uma intensidade muito mais íntima, reagindo com a memória pessoal e coletiva de um indivíduo (HALBWACHS, 2003).

            As Casas-Museu são também uma categoria dos museus de história, instigando os visitantes ao confronto direto com um período que não voltará, mas que ao mesmo tempo está vivo nos objetos e organização museal. Josep Ballart Hernández indica que:

“Os Museus de história seguem evocando a imaginação dos homens e das mulheres de hoje, necessitados de lenitivos que os aliviem da pressão da vida moderna e dos efeitos da aceleração das mudanças tecnológicas”. (2007, p. 70).

            O sentir-se em casa é experimentado ao visitar uma Casa-Museu. Mesmo que por experiências próprias aquele modelo de lar não tenha nenhuma coincidência com a situação real do indivíduo, o visitante é posto a imaginar, ainda que apenas no decorrer do tempo de visitação, como seria morar naquele espaço.  A Casa é o “fundamento material da família e pilar da ordem social” (PERROT, 2012, p. 285), ela confere conforto físico e mental aos seus moradores, já que ter um lar, um local para morar, significa para a maioria das culturas possuir um ponto de apoio. A residência familiar “é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a partir dela, em todas as direções” (BOSI, 2006, p. 435), influenciando, este espaço, nas relações que se tem em sociedade. A interação social acontece em diversos lugares, mas é no interior da moradia que o indivíduo mostra as suas verdadeiras características, desvela os seus anseios, suas dúvidas, seus objetivos, planeja a vida, constrói uma família.

[...] quando se entra numa casa-museu, para além dos sistemas de vida doméstica, observando os objectos na sua forma original ou próxima dela, penetra-se diretamente na intimidade de alguém, uma pessoa muitas vezes introvertida e que nunca pensou neste espaço para ser fruído por estranhos. [...] A memória pessoal, reflectida no espaço privado, transforma-se em memória colectiva, o espaço pessoal trona-se espaço público, procurado por quem pretender chegar ao íntimo de uma certa personalidade. (PONTE, 2007, p. 26).

            Todos os papéis que o indivíduo é induzido a interpretar em sociedade seja uma postura de bom funcionário, a imagem de amigo fiel, o modelo de colega ideal, entre outros, são humanizados dentro de um lar, expondo o indivíduo as suas fragilidades, angústias e defeitos enquanto ser humano. O lar é o cerne do seu mundo, cada canto desta moradia reflete a identidade dos proprietários. Ao mesmo tempo, os gestores de uma Casa-Museu podem por vezes enfatizar algumas qualidades do personagem homenageado em detrimento de outras, ocultar defeitos, criar um perfil que seja mais atrativo aos olhos do público visitante, forjando uma identidade que não se destaca da realidade, mas pode não apresentar todas as suas faces, todavia sem interferir na originalidade do local, e respeitando a história e memória do patrono (a).

            A escolha e disposição dos objetos que compõem o cenário de uma casa espelham as características únicas dos moradores do local. Mesmo que a habitação seja um conjunto habitacional moderno, onde o edifício é padronizado para todos os moradores, a identidade de cada família se revela nos pequenos detalhes, notados ainda na entrada da casa:

O homem precisa organizar os espaços internos de sua casa procurando melhor desenvolver suas atividades biológicas, culturais e mecânicas. Sua liberdade e criatividade são exercidas no momento em que ele toma posse dos espaços, é quando ele transforma uma casa em lar, dando a ela “sua cara”, instituindo novos modos e usos, recheando os ambientes com seus pertences, suas lembranças e memórias, transformando o local em lugar único. (SCARPELINE, 2012, p. 81).

            Todas as escolhas realizadas para a construção de um lar implicam em um bem estar posterior, em um bom viver dentro daquele ambiente que abrigará as memórias viscerais. Os detalhes empregados em cores, texturas, customização dos cômodos e mobiliários, deixam marcas identitárias que podem ser lidas pelos visitantes que frequentam aquela morada. A herança cultural introspectiva às famílias, assim como as tradições que são seguidas pelos grupos estão sempre presentes, em maior ou menor intensidade, no arranjo do lar. As convenções sociais serão aprendidas no âmago da residência. Alain Collomp indica que os “lugares designados nos cômodos da casa, ritual de mesa, aprendizagem desde a mais tenra infância de atitudes, gestos e palavras no interior da casa e fora” (2012, p. 503) visava manter uma hierarquia dentro do lar, instruindo as crianças para a vida em sociedade.

            Uma Casa-Museu impele a uma experimentação de algo que nunca foi vivido, mas pode ser sentido, tendo em vista que a Casa é o “local de nossas delícias e servidões, de nossos conflitos e sonhos; o centro, talvez provisório, de nossa vida” (PERROT, 2012, p. 7).

            Mario Chagas aponta que independente do status social da habitação, desde a mais simples choupana aos grandiosos palácios, “das casas-grandes às senzalas, dos grandes apartamentos em condomínios luxuosos às precárias moradias de favelas” (2013, p.1) todas cumprem a sua função enquanto moradia. Chagas ainda indica que:

As casas museus (sejam elas casas das camadas populares, das classes médias ou das elites sociais e econômicas), a rigor, são casas que saíram da esfera privada e entraram na esfera pública, deixaram de abrigar pessoas, mas não deixaram necessariamente de abrigar objetos, muitos dos quais foram sensibilizados pelos antigos moradores da casa. As casas museus e os seus objetos servem para evocar nos visitantes lembranças de seus antigos habitantes, de seus hábitos, sonhos, alegrias, tristezas, lutas, derrotas e vitórias; mas servem também para evocar lembranças das casas que o visitante habitou e que hoje o habitam. (2013, p. 3).

            Intrínseco aos liames psicológicas e íntimos que a figura de uma casa exerce sobre as pessoas, seus comportamentos, modos de viver e se relacionar com o mundo, Gaston Bachelard coloca a casa como o “nosso canto no mundo [...], nosso primeiro universo” (2003, p.200).

[...] a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. [...] O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "atirado ao mundo", como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. (BACHELARD, 2003, p. 201).

            Em suma, estima-se que uma Casa-Museu remeta a um exemplo de espaço íntimo de vivências, excluindo a necessidade de ser um modelo tradicional da mesma. Este local expositivo pode ser elaborado como um cenário, a partir da reconstrução de uma residência, ou espaço cotidiano, para ilustrar um ambiente que não é original, mas retrata um fato, período, vida e/ou obra de um personagem de destaque em uma comunidade, independente da condição social. Ainda assim, é importante frisar que para ser considerada uma Casa-Museu, esta reconstituição deve ser executada com base na utilização de objetos e pertences de cunho íntimo da pessoa/família homenageada e com o aporte das suas reminiscências, levando ao público o cerne da vivência daqueles indivíduos.

Por vezes, denominam-se casas-museu inúmeras estruturas que retratam diferentes formas de quotidiano doméstico sem se relacionarem com alguma vivência concreta, reportando-se antes a formas de vida de determinada localidade ou região. Estas unidades museológicas tanto poderiam ser no local em que se encontram como noutro, uma vez que não têm a referência a qualquer indivíduo concreto. Não se consideram estas estruturas casas-museu, falta-lhes o fator vivência. Serão museus etnográficos, casas típicas, museus de história, onde os objetos organizados de determinada forma contam uma história criada por alguém. (PONTE, 2007, p. 40).

            Da mesma forma, uma Casa-Museu pode constituir-se como “original”, segundo interpretação de António Ponte (2007), quando a organização museológica, cenário expositivo ou decoração do ambiente foi instituído pelos primeiros proprietários do local, sendo preservada, sem alterações significativas, o mais fielmente possível até os dias atuais.             Segundo a definição de Museu instaurada pelo Conselho Internacional de Museus – ICOM e que deve ser aplicada a todas as tipologias museológicas e utilizada pela comunidade internacional,

O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. (ICOM, 2007).

            Entretanto, esta instituição necessita imprimir no ambiente, diversas outras práticas museológicas para ser considerada uma instituição de guarda, caso o contrário será apenas uma casa aberta a visitantes da comunidade. Percebe-se neste sentido o grande desafio atribuído aos gestores das Casas-Museu em transformar um modelo de residência, com seus objetos e memórias em uma instituição museológica, responsável por salvaguardar, educar entre tantas outras ações intrínsecas aos Museus.  Rosanna Pavoni, alerta para a importância da manutenção de uma memória social que está atrelada a institucionalização das Casas-Museu:

A pesar de las dificultades de transformar en público y educativo un lugar cargado de referencias individuales e íntimamente ligado a acciones y ritos personales, la casa es la única capaz de contar con un lenguaje propio aspectos de una sociedad, de una época y de un periodo artístico que de otra manera se perderían irremediablemente. (PAVONI, 2013, p. 241).

            A transformação de uma casa em uma Casa-Museu está pautada principalmente no desejo de uma comunidade ou grupo social de transmitir e preservar aquele legado às gerações futuras, baseados na memória do patrono (a), no acervo que ele cultivou ou até mesmo na relevância do edifício para formação de uma sociedade. Maurice Halbwachs afirma que “o fato de permanecer o tempo de alguma forma imóvel durante período até bastante extenso é consequência de que ele serve de contexto comum ao pensamento de um grupo [...]” (2003, p. 146), sustentando a vontade de manutenção de um espaço íntimo para apreciação da coletividade.

            Sendo assim, percebe-se que o motivo para a criação de uma Casa-Museu pode estar atrelado a diversos fatores político-sócio-culturais que vão desde a exaltação de personagens significativos em um contexto, até a exaltação de vultos das artes, literatura, arquitetura, política, e por vezes até mesmo anônimos, que por seu trabalho, vida ou postura social, permanecem “vivos”, homenageados em Casas-Museus. Existe ainda uma situação peculiar de criação destes espaços através da auto-homenagem, como é o caso da Casa Museu Fernando de Castro, a qual o patrono criou, decorou e promoveu a sua residência ainda em vida, como um museu particular, sendo transformada após o seu falecimento em uma Casa-Museu.

            Uma Casa-Museu pode não possuir uma organização expográfica vigente no local, levando em consideração o respeito que a equipe do museu pode ter tido pelo arranjo original da mobília e objetos, disposta pelos proprietários cernes e que dão sentido ao local. A expografia será uma decisão da gestão da instituição, que poderá manter fielmente os objetos espalhados pelo (a) anfitrião da Casa-Museu ou propor soluções expográficas que facilitem o acesso ao público e a leitura do local como um todo. Tais decisões relacionadas à expografia de um Casa-Museu, também poderá estar sincronizada com questões que dizem respeito à segurança do lugar e conservação dos objetos ali presentes, tendo em vista que por vezes é necessário adotar soluções expositivas facilitadoras neste sentido. Ao mesmo tempo, é contundente a posição que os gestores, museólogos, conservadores e toda equipe envolvida nestas ações, deverão ter em respeitar a vocação da instituição. Outro ponto fundamental a ser analisado, são as possíveis orientações deixadas pelo (a) patrono (a) ou doadores do local, que façam menção a organização dos objetos da casa ou quaisquer deveres e cuidados exigidos para com os mesmos.  Ainda no que tange a mudanças na constituição original da organização dos móveis e objetos da Casa-Museu, estas devem estar pautadas em documentação legítima que assegure as tomadas de decisões e que sejam justificadas pelo museólogo responsável, certificando a manutenção da memória de uma vivência no local, resguardando a instituição de causar um falso histórico e impressões distorcidas durante a leitura da exposição.

CLASSIFICAÇÃO DAS CASAS-MUSEU

            As Casas-Museu possuem diversas tipologias e singularidades, fatores que devem ser analisados e prestigiados para que a gestão, conservação, educação, comunicação entre diversas atividades típicas de instituições museais possam ser realizadas. Por constituírem modelos ou a reconstrução de exemplos de habitações, o ambiente que integra uma Casa-Museu pode algumas vezes não favorecer o exercício de algumas práticas museológicas. Este fato exige a criatividade dos personagens que atuam nestas instituições de guarda, tanto quanto a imersão em pesquisas que contribuam para o crescimento destes sítios.

            No mundo todo existem diversos tipos de Casas-Museu, não existindo até o momento uma consolidação mundial para as diferentes classificações destas instituições. Existem distintas classificações regionais, instituídas por distintos países. António Ponte realiza um apanhado dos principais registros destas classificações no decorrer dos anos e sintetiza este estudo através da tabela a seguir:

            Em uma tentativa de eliminar as distintas classificações para um mesmo tipo de Casa-Museu, o Comitê Internacional para os Museus de Casas Históricas – DEMHIST - desenvolve a mais de dez anos um projeto de categorização global para as casas-museu, mas que até hoje não está finalizado. No ano de 1999 durante conferência realizada na cidade de São Petersburgo, na Rússia, o DEMHIST apresentou para a comunidade científica uma proposta de classificação global para os tipos de Casas-Museu, a ser elaborada por Rosanna Pavoni (2001), secretária científica do DEMHIST entre o período de 1999 a 2002. A primeira fase do projeto outorgada pelo DEMHIST e organizada por Rosana Pavoni foi realizada em conjunto com diversos países, contando com o apoio de algumas Casas-Museu e profissionais que atuam em Museus. Parte da metodologia aplicada por Pavoni consistiu na produção de uma ficha, traduzida em seis idiomas, inglês, francês, espanhol, alemão, português e italiano, com intuito de facilitar o acesso ao documento e aumentar as possibilidades de respostas das instituições investigadas. Aspectos como critérios de restauração, ações educativas, investigação entre outras ações museológicas foram questionados para que se pudesse definir, como Pavoni indicou a “descrição da identidade do museu” (PAVONI, 2013).

            Durante a conferência anual do DEMHIST em Viena, no ano de 2007, as seguintes categorias de Casas-Museu foram apresentadas por PAVONI:

1. Casas de Personalidade (PersH): Artistas, escritores, músicos, políticos, entre outros personagens que de alguma forma tiveram destaque social.

2. Casas de Colecionadores (CollH): A qual a qual abrigou a residência de um colecionador ou a residência que abriga uma coleção.

3. Casas de Beleza (BeauH): A valorização estética do local é o principal ponto para musealização.

4. Casas de Eventos Históricos (HistH): Locais representativos por sua participação em eventos históricos.

5. Casas de Sociedade Local (SociH): Musealizados por refletirem a identidade de uma sociedade.

6. Casas Ancestrais (AnceH): Casas típicas de uma época, abertas ao público.

7. Casas de Poder Real (RpowH): Palácios abertos ao público

8. Casas Clericais (ClerH): Mosteiros, casas de abades e outros edifícios eclesiásticos com um uso residencial antigo ou atual e que estejam abertos ao público.

9. Casas Modestas (HumbH): Casas vernaculares abertas ao público.

            No arquivo final das classificações, disponibilizado na página virtual 2 do DEMHIST foram acrescentadas mais duas tipologias, necessárias devido a dificuldade de enquadramento de algumas instituições cadastradas dentro das nove categorias elencadas. Incluíram-se mais duas categorias para contemplar 33 instituições de distintos países, a constar:

10. Casas com salas cronológicas (Period Rooms): Casas as quais abrigam diferentes salas com decorações de diversos períodos de tempo.

11. Casas para Museus (Houses of Museums): Quando uma casa abriga diferentes coleções, não relacionados com a sua própria história.

            Um importante contributo para o processo de categorização mundial das Casas-Museu são as classificações regionais que se encontram em crescente expansão. Neste sentido observa-se o estudo de António Ponte (2007), a qual entende que as classificações elencadas pelo DEMHIST não correspondem à realidade portuguesa, e cria a sua própria classificação para as Casas-Museus de Portugal. A partir da análise das tipologias existentes em seu país, o autor institui quatro tipos de classificações de Casas-Museus, sendo elas:

            1. Casa-Museu Original: Casas-Museu que se localizam no edifício onde residiu o personagem homenageado, por um período de tempo mais ou menos longo. Ela deve preservar o mais fielmente possível a estrutura da casa, assim como a exposição dos objetos de cunho pessoal.

            2. Casa Museu Reconstituída: Instituições que podem ou não localizar-se no edifício original de vivência do homenageado, desde que sejam reconstituídos os ambientes e a decoração original da época de vida dos habitantes.

            3. Casa-Estética / Coleção: Casas-Museu que têm como objetivo homenagear um personagem através das coleções que o homenageado reuniu durante a sua vida. São localizadas nos espaços de vivência do homenageado, sendo que a tônica principal não é posta no conhecimento da personalidade do patrono, mas sim em suas coleções.

            4. Casa-Museu de Época “Period Rooms”: Instituições que se organizam nos espaços originais de vivência, ou recriam espaços íntimos do quotidiano do patrono, ou ainda recorrem às coleções ou acervo do homenageado, mesmo que sem referências pessoais específicas. “A exposição é organizada com o objetivo de transmitir conhecimentos sobre tipos de decoração ou formas de vida em determinada época” (PONTE, 2007, p. 127).

            A identificação das especificidades que compõem uma Casa-Museu auxilia na gestão e preservação, sendo a categorização destes locais um dado importante para viabilizar estas ações. Além disso, a classificação das Casas-Museu abre um portal de debate entre pesquisadores e gestores que lidem diariamente com questões similares, com intuito de compartilhar e fomentar métodos de resolução de pendências existentes nestas instituições.

CONCLUSÕES

            A definição do conceito de Casa-Museu, Museu-Casa e Casa Histórica ainda é muito discutida entre os pesquisadores que estudam esta tipologia museal, existindo algumas controvérsias sobre quais características específicas são necessárias para que uma instituição de guarda seja considerada uma Casa-Museu. A premissa de ser uma antiga residência não é condição única para se instituir uma Casas-Museu, correspondendo a locais cercados de singularidades e minúcias institucionais a serem analisadas para este fim. Necessitam de um estudo atento e dedicado sobre a sua vocação, aplicação de práticas museológicas, indicações deixadas pelo personagem que homenageia o local, entre outros aspectos, para que uma classificação efetiva seja eleita, fator que também dificulta uma classificação mundial. Neste sentido, observa-se que as categorizações regionais são um importante contributo para a área, sendo os grandes responsáveis pelos avanços neste estudo. Ainda que a produção de conhecimento sobre e dentro destes espaços esteja se ampliando, é visível a incipiência no assunto até mesmo por parte dos profissionais que gerem e trabalham nestes locais. A atuação destas entidades em congressos e eventos específicos sobre o tema, levando para o debate as suas experiências, os desafios enfrentados e algumas práticas de sucesso, auxiliam no seu fortalecimento e visibilidade no cenário museal como uma tipologia específica e em fase de consolidação.

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1 O colecionismo em diversos países teve características distintas, no que tange o tipo de coleção consonante a época que foi instituída. Na Alemanha o termo utilizado durante o Renascimento foi “Wunderkammer”, diferente da concepção francesa “Chambre des merveilles” (HERNÁNDEZ, 2001, p. 16).

2 Ficha original disponível em: http://demhist.icom.museum/shop/data/container/DEMHIST_CategorizationProject_I_Data.pdf. Acesso em 12 jun 2014.