Contribuciones a las Ciencias Sociales
Diciembre 2014

DIMENSÃO COLETIVA DO PATRIMÔNIO CULTURAL: QUESTÕES LEGAIS E DOUTRINÁRIAS



Dionis Mauri Penning Blank (CV)
dionisblank@gmail.com
Faculdade Anhanguera de Pelotas



Resumo: O objetivo desta pesquisa foi abordar a dimensão difusa do patrimônio cultural, mediante a análise das questões doutrinárias e legais que o envolvem. O artigo apresenta o meio ambiente e patrimônio cultural como conceitos inseparáveis e dependentes. Demais, descreve a compreensão, promoção e proteção dos diversos bens culturais. Ao final, investiga a valoração dos bens culturais, trazendo a dificuldade no estabelecimento do valor econômico e jurídico deles.

Palavras-chave: meio ambiente; patrimônio cultural, bens culturais; valoração.

COLLECTIVEDIMENSIONOF THECULTURAL HERITAGE: LEGAL ANDDOCTRINAL ISSUES

Abstract: The objective of this research was to address the scale diffuse cultural heritage, through the analysis of the doctrinal and legal issues surrounding it. The article presents the environment and cultural heritage as inseparable concepts and dependents. Too, describes the understanding, promotion and protection of various cultural goods. At the end, investigates the valuation of cultural goods, bringing the difficulty in establishing the legal and economic value of them.

Keywords: environment; cultural heritage; cultural property; valuation.

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Penning Blank, D.: "Dimensão coletiva do patrimônio cultural: questões legais e doutrinárias", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Diciembre 2014, www.eumed.net/rev/cccss/30/bens-culturais.html

Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/1988) ressaltou o pluralismo cultural, concebido na ação e na interação dinâmicas das diversas e inúmeras classes e grupos sociais que compõem o país. O resguardo da diversidade cultural brasileira foi ampliado da materialização dos objetos físicos, como prédios históricos, livros raros e esculturas, para o patrimônio cultural imaterial ou intangível, englobando, nesse ponto, os saberes, as tradições, as festas, as línguas e as manifestações populares.

Os operadores do direito, de maneira geral, têm tratado, na prática, a natureza e a cultura como elementos interdependentes e inseparáveis. Cuida-se de uma decorrência da sociedade atual, visto que com o aumento da inquietação do homem com a sadia qualidade de vida, cresce a necessidade de salvaguardar, não apenas o meio ambiente natural, entretanto, também, o construído ou alterado pela ação humana, preservando-se a memória e os valores, garantindo-se a transmissão às gerações do porvir.

Ademais, com o fito de tratar das questões legais e doutrinárias da dimensão coletiva do patrimônio cultural, até porque o objeto deste trabalho é o direito difuso, importante se faz discorrer acerca da relação existente entre o meio ambiente e o patrimônio cultural, visto que o patrimônio cultural é constituído por bens compostos de significativo e particular valor para a comunidade, sendo verdadeiras referências materiais ou imateriais.

Nesse aspecto, cuida-se de apresentar os direitos metaindividuais (transindividualidade, indeterminabilidade, indivisibilidade, indisponibilidade e ressarcibilidade), integrados a uma “nova” categoria de bens (bens de interesse público) e não mais públicos ou privados e a maneira de defender esses bens. Ainda, nesse sentido, trata-se de caracterizar a compreensão dos bens culturais, como componentes constitutivos do patrimônio cultural, com  a indicação de como se dá a sua promoção e a sua proteção, também se ressaltando como ocorre a sua valoração.

Portanto, o objetivo geral do trabalho foi examinar as questões legais e doutrinárias relacionas à dimensão coletiva do patrimônio cultural, tratando dos bens culturais de maneira geral, com todas as suas características, a saber, compreensão, promoção, proteção e valoração.

1 Meio ambiente e patrimônio cultural

A primeira constituição brasileira, a Constituição do Império do Brasil de 1824, não trouxe consigo preocupação alguma quanto à preservação do patrimônio cultural. Igualmente, a Constituição de 1891, conquanto democrática, não se envolveu com a matéria. Apenas em 1923, o Deputado Pernambucano Luiz Cedro, em um Projeto de Lei, propôs a criação de uma Inspetoria de Monumentos Históricos, não obtendo êxito; mas, em 1927, o governador da Bahia criou a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais. Seguindo essa linha, em 1933, a cidade de Ouro Preto/MG foi erigida monumento nacional, por intermédio do Decreto 22.928, cuidando-se de um marco para atestar o posicionamento do poder público nacional, no sentido de traçar políticas de proteção, nos termos de Costa (2009, p. 51).

De seu turno, a Constituição de 1934 iniciou a institucionalização da tutela jurídica do patrimônio cultural, tratando especificamente do tema em seu art. 10, inciso III:

Art. 10. Compete concorrentemente à União e aos Estados:

[...].

III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte.

A Constituição de 1937 mostrou preocupação mais elevada, estabelecendo em seu art. 134 que:

Art. 134. Os monumentos históricos artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

Também em 1937 foi publicado o Decreto-lei n° 25, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. O decreto firma questões, em especial, no tocante ao tombamento, seus efeitos e direito de preferência; contudo, não prevê uma forma de participação democrática, a qual, na prática, era uma carência em razão do regime de governo daquela época.

A Constituição de 1946 não agregou ao tema, representando um sistema sem efetividade: “Art. 175. As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza, ficam sob proteção do Poder Público”.

Em igual caminho seguiu a Constituição de 1967, que acompanhou a de 1937, mantendo-se sem aplicabilidade. No entanto, pela primeira vez, houve a indicação da salvaguarda arqueológica. Nessa rota:

Art. 172. O amparo à cultura é dever do Estado.

Parágrafo único – Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.

A Emenda Constitucional de n° 01/69 manteve a redação da Constituição de 1967, apenas deslocando a matéria para o seu artigo 181.

Desse modo, é de fácil constatação que o constitucionalismo brasileiro desenvolveu lentamente a inquietação com o acautelamento do patrimônio cultural, mantendo, durante muito tempo, o conceito de patrimônio disposto no artigo 1° do Decreto-lei n° 25 de 1937:

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

[...].

Consoante percebe Milaré (2007, p. 252), com a edição da CF/1988, que inovou o tratamento da tutela jurídica do patrimônio cultural, “Rompeu-se [...] com uma tradição do Direito Constitucional brasileiro, que, desde 1934, limitava-se a declarar protegidos bens de valor históricos, artístico, arqueológico e paisagístico, sem procurar, entretanto, definir a abrangência desses conceitos”. Neste particular o seu artigo 216:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

[...].

A Constituição Cidadã, como é denominada a atual CF/1988, ao trabalhar o tema do patrimônio cultural, envolveu nele inúmeros conceitos científicos e limites importantes. Dessa maneira, o patrimônio cultural é brasileiro, não é municipal, regional ou estadual; inclui bens tangíveis (monumentos, obras de arte, etc.) e intangíveis (conhecimentos técnicos, etc.), individualizados ou coletivizados; não se cuida apenas daquele erudito ou excepcional, porquanto basta que os bens sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que constituem a sociedade brasileira.

Portanto, temos aqui a consagração, diante do direito positivo, do pluralismo cultural, isto é, o reconhecimento de que a cultura brasileira não é única, não se resume ao eixo Rio-São Paulo nem ao Barroco mineiro e nordestino, mas é aquela que resulta da atuação e interação de todos os grupos e classes sociais de todas as regiões. E é essa diversidade e riqueza de bens culturais, construídas incessantemente num país de dimensões continentais e variada formação étnica, que se pretende ver preservadas. Desaparece, enfim, o antigo conceito de que os valores culturais a serem preservados eram apenas aqueles das elites sociais, necessariamente consagrados pelos atos de tombamento, como ocorria no Direito anterior. (MILARÉ, 2007, p. 252-253).

O artigo 216 da CF/1988 traz somente um rol exemplificativo acerca dos bens culturais. Os incisos I e II se relacionam ao patrimônio cultural imaterial; o inciso III diz respeito às criações artísticas, científicas e tecnológicas; o inciso IV cuida dos espaços em se realizam as manifestações de ordem cultural; e o inciso V trata da tipologia tida por tradicional, pois vem desde a Constituição de 1934, renovando, todavia, ao acrescer três valores de especial importância a serem resguardados: o paleontológico, o ecológico e o científico; de qualquer maneira, deixou de explicitar o valor espeleológico, que trata das grutas, cavernas e cavidades naturais, de acordo com Milaré (2007, p. 253).

Ademais, a CF/1988, por uma motivação sistemática legislativa, prescreveu em capítulos diferentes os ditames referentes à proteção do patrimônio cultural, conforme já apresentado no art. 216, e do meio ambiente, estabelecendo, por outro lado, de forma igual, que é incumbência do Poder Público, com a participação da comunidade, o dever de defendê-los e preservá-los, nesse particular, o artigo 225, verbis:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

[...].

Conquanto haja essa partição topológica realizada pelo legislador constitucional no cuidado das matérias, o meio ambiente e o patrimônio cultural são proposições incindíveis sob a ótica do direito, conforme salienta Miranda (2006, p. 11). O autor (2006, p. 12) vai além, indicando que a doutrina de vanguarda encara o meio ambiente com “[...] uma conotação abrangente, holística, compreensiva de tudo o que cerca e condiciona o homem em sua existência no seu desenvolvimento na comunidade a que pertence e na interação com o ecossistema que o cerca”, não mais se resumindo ao aspecto meramente naturalístico.

De qualquer forma, em termos de legislação ambiental, vale a observação feita por Birnfeld (2006, p. 253-254), que destaca a existência de três momentos normativos importantes: a) a edição da Lei n° 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, a qual “[...] passou a identificar o mundo natural como ‘meio ambiente’, tendo como centro a ideia de conjunto e interpendência”; b) a edição da Lei n° 7.347/1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, com a qual “[...] a cidadania passou a dispor de remédios efetivos para fazer valer, no campo processual, o conjunto dos direitos emergentes”; e c) o advento da CF/1988, a qual superou as anteriores “[...] na medida em que os recursos naturais ultrapassam a condição de ‘bens da União’ para se tornarem valores eminentemente comunitários, sociais, transcendentes do mero sentido de propriedade privada estatal”.

Com efeito, hodiernamente torna-se cada vez mais difícil separar o natural do cultural, até mesmo porque é sabido que são pouquíssimos os lugares na Terra que têm escapado ao impacto da atividade humana. Desde os tempos pré-históricos até a época moderna, pouco resta da superfície da Terra que não sido afetado pelas atividades humanas, razão pela qual a identificação de áreas absolutamente naturais está cada vez mais rara.

Por isso, para os fins protecionais, a noção de meio ambiente é muito ampla, abrangendo todos os bens naturais e culturais de valor juridicamente protegido, desde o solo, as águas, a flora, a fauna, as belezas naturais e artificiais, o ser humano, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico, monumental, arqueológico, espeleológico, paleontológico, além das disciplinas urbanísticas contemporâneas. (MIRANDA, 2006, p. 13).

No sentido de atestar de maneira ainda mais precisa a conexão entre cultura e meio ambiente, pode-se descrever que: o legislador constituinte incluiu os sítios de valor ecológico e paisagístico (que, de início, seriam apenas bens naturais) como integrantes do patrimônio cultural do Brasil (artigo 216, inciso VI, da CF/1988); o Decreto-lei n° 25/1937, que organiza a defesa do patrimônio histórico e artístico nacional, viabiliza o tombamento (que é um instrumento de proteção cultural) de monumentos, sítios e paisagens dotados pela natureza de feições notáveis (artigo 1°, parágrafo 2°). Ainda, a Lei de Crimes Ambientais traz uma seção cuidando especificamente dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (artigos 62 a 65 da Lei n° 9.605/1998), bem como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) tem como um de seus propósitos “[...] proteger as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural” (artigo 4°, inciso VII, da Lei n° 9.985/2000).

Dessa maneira, ressai incontroverso serem a cultura e a natureza bens interdependentes e indissolúveis, fato que deve ser levado em consideração, em especial, pelos operadores do direito. Aliás, nessa direção é o entendimento da mais elevada instância do Poder Judiciário do Brasil, a quem compete a guarda da constituição, traduzida no Supremo Tribunal Federal:

MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. [...]. (STF, ADI 3540 MC / DF – Distrito Federal, Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade, Relator: Min. Celso de Mello, Julgamento em 01/09/2005, Órgão Julgador: Tribunal Pleno).

A separação do meio ambiente em categorias que o constituem tem por objetivo facilitar a identificação da atividade degradante e do bem imediatamente agredido, segundo ensina Fiorillo (p. 2011, p. 73-78): a) meio ambiente natural ou físico: composto pelo solo, recursos hídricos, ar, fauna, flora e demais elementos naturais responsáveis pelo equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e o meio em que vivem, sendo objeto do artigo 225, caput e parágrafo 1°, da CF/1988; b) meio ambiente do trabalho: formado pelo conjunto de bens, instrumentos e meios, de natureza material e imaterial, em face dos quais o ser humano exerce suas atividades laborais, recebendo tutela imediata do artigo 200, inciso VII, da CF/1988; c) meio ambiente artificial: integrado pelo espaço urbano construído pelo homem na forma de edificações (espaço urbano fechado) e equipamentos públicos tais como praças, parques e ruas (espaço urbano aberto), recebendo tratamento não apenas no artigo 225, mas ainda dos artigos 21, inciso XX, e 182, todos da CF/1988; e d) meio ambiente cultural: constituído pelo patrimônio histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, espeleológico, fossilífero, turístico, científico e pelas sínteses culturais que integram o universo das práticas sociais das relações de intercâmbio entre o homem e a natureza, recebendo proteção dos artigos 215, 216 e 225 da CF/1988.

Nesse contexto, o artigo 225 da CF/1988, ao assentar a existência jurídica de um bem que se organiza como sendo de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, dá forma a uma nova realidade jurídica, disciplinando um bem que não é público nem, muito menos, particular.

O art. 225 estabelece, por via de consequência, a existência de uma norma constitucional vinculada ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como reafirma que todos, e não tão somente as pessoas naturais, as pessoas jurídicas de direito privado ou mesmo as pessoas jurídicas de direito público interno, são titulares desse direito, não se reportando, por conseguinte, a uma pessoa individualmente concebida, mas sim a uma coletividade de pessoas indefinidas, no sentido de destacar uma posição para além da visão individual, demarcando critério nitidamente transindividual, em que não se pretende determinar, de forma rigorosa, seus titulares. (FIORILLO, 2011, p. 176).

Por conseguinte, é o povo quem exerce a titularidade do bem ambiental, sabendo-se que esse bem não está na disponibilidade particular de alguém, nem de pessoa privada nem jurídica. O bem ambiental, fruto da CF/1988, é, pois, um bem de uso comum, ou seja, um bem que pode ser usufruído por todas as pessoas, dentro dos limites constitucionais.

Ademais, para que o bem goze de caráter ambiental, deve ser, além de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Quais seriam, então, no ordenamento jurídico os bens essenciais à sadia qualidade de vida? Fiorillo (2011, p. 176) afirma que a solução está nos fundamentos da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito: “[...] são os bens fundamentais à garantia da dignidade da pessoa humana”. Esses bens, de seu turno, encontram correlação com os direitos fundamentais da pessoa humana descritos no artigo 6° da CF/1988, sendo, logo, da conjunção dos aspectos mencionados que se estrutura constitucionalmente o bem ambiental definido pela CF/1988.

Nesse contexto, está superada a discussão sobre o patrimônio cultural ser formado apenas por bens com valor excepcional, se diz respeito a monumentos individualizados ou tomados conjuntamente, se a ele está vinculada tão somente a arte erudita ou do mesmo modo a popular, se contém apenas bens produzidos pela mão do homem ou mesmo os naturais, se bens naturais têm relação com aqueles de excepcional valor ou envolve ecossistemas, se abrange os materiais e imateriais. Enfim, todos esses bens fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, desde que sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diversos grupos formadores da nacionalidade ou sociedade brasileira, conforme prevê a CF/1988.

2 Compreensão, promoção e proteção dos bens culturais

Segundo leciona Machado (2011, p. 54), a reflexão sobre os direitos, situados em patamar superior aos interesses individuais, chamados de direitos metaindividuais, somente ocorreu com a existência dos conflitos de massa, acentuando-se depois da Segunda Guerra Mundial. Dessa maneira, os direitos metaindividuais passaram a ganhar espaço por meio da necessidade processual de compô-los.

Nesse sentido, Fiorillo (2011, p. 54) destacou que, em 1965, no Brasil, já existia a defesa do direito metaindividual, em decorrência do procedimento previsto na Lei n° 4.717, a Lei da Ação Popular (LAP), declarando que a ação popular tinha por fim resguardar direito metaindividual, a saber, o erário, “[...] e quem o fazia – o autor popular – ingressava com uma ação para discutir um conflito que dizia respeito à coletividade, de forma que esse autor popular não se caracterizava como um substituto processual, na medida em que não defendia apenas direito de terceiro, mas próprio também”.

A LAP foi, assim, o primeiro diploma legal que, embora debatesse temas de direito tipicamente instrumental, destacou questões de direito material de ordem fundamental. Isso culminou numa evolução doutrinária até a publicação da Lei n° 6.938/1981, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), a qual cuidou de definir o meio ambiente, num caráter interativo de inúmeras ordens, representando um impulso bastante considerável na proteção dos direitos metaindividuais. Nesse passo, com a edição da Lei n° 7.347/1985, a Lei da Ação Civil Pública (LACP), colocou-se à disposição um aparato processual ainda maior toda a vez que houver lesão ou ameaça de lesão ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico turístico e paisagístico.

Deve-se frisar que, houve a previsão expressa acerca dos interesses e direitos difusos e coletivos: no respectivo projeto de lei, em seu artigo 1°, inciso IV, o qual preceituava que a ação civil pública seria instrumento apto à defesa, além dos direitos supracitados, de qualquer outro direito difuso ou coletivo. Entretanto, aludido inciso foi vetado pelo Presidente da República, sob a argumentação de que não havia no ordenamento jurídico definição legal para os interesses e direitos difusos e coletivos, de modo que, enquanto pendesse a delimitação de seu conteúdo, não seria viabilizada a defesa através de ação civil pública. (FIORILLO, 2011, p. 55).

Nesse caminhar legislativo, o legislador constituinte (CF/1988), além de autorizar a tutela dos direitos individuais, que já era tradicionalmente realizada, admitiu a tutela dos direitos coletivos, porquanto compreendeu a existência de uma terceira espécie de bem, consistente no bem ambiental, quando consagrou a existência de um bem de uso comum do povo, ou seja, que não é público, tampouco privado.

Diante dessa previsão constitucional, publicou-se a Lei n° 8.078/1990, que dispõe sobre a proteção do consumidor, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), a qual tratou de definir os direitos metaindividuais (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos) e adicionou o antigo inciso IV, do artigo 1°, da Lei n° 7.347/1985, que havia sido vetado, possibilitando a utilização da ação civil pública para a defesa de qualquer interesse difuso e coletivo. Nesse ponto, o artigo 81 do CDC:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Em razão disso, a proteção do patrimônio cultural se encaixa no conceito de direito fundamental de terceira geração, sendo inquestionável que o resguardo desse direito contempla a humanidade como um todo (direito difuso), à medida que preserva a memória e os seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações do futuro. Trata-se de acautelar interesses pertencentes ao gênero humano, concebidos no direito transindividual difuso, visto que estão ligados a todos ao mesmo tempo em que não estão, de forma individualizada, vinculados a qualquer pessoa.

Como sabido, a doutrina constitucional contemporânea classifica os direitos fundamentais por meio de um enfoque histórico, de acordo com as funções preponderantes por eles desempenhadas. Fala-se, assim, em direito de primeira geração (voltados à proteção da esfera individual da pessoa humana contra ingerências do poder público, tais como os direitos à vida, à propriedade e à liberdade); de segunda geração (caracterizados pela imposição de obrigações de índole positiva aos poderes públicos em contraposição ao abstencionismo estatal, objetivando incrementar a qualidade de vida da sociedade, podendo ser citados entre eles os direitos à educação, à saúde e à moradia) e de terceira geração (que possuem como titulares não mais o indivíduo ou a coletividade, mas o próprio gênero humano, dentre os quais estão o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito dos povos ao desenvolvimento e o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. (MIRANDA, 2006, p. 16).

Miranda (2006, p. 17-18) aduz que os direitos difusos têm um conteúdo não patrimonial, que trata dois aspectos nucleares, sustentados na qualidade de vida e numa concepção de igualdade vista como direito à integração, bem como um cunho material, com importantes reflexos no campo processual: a) transindividualidade real ou essencial ampla: quando o número de pessoas ultrapassa a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente considerados para levá-la a uma dimensão coletiva, significando dizer que a pluralidade de sujeitos chega ao ponto de se confundir, muitas vezes, com a comunidade; b) indeterminabilidade de seus sujeitos, ou seja, as pessoas envolvidas são substancialmente anônimas; c) indivisibilidade ampla, isto é, uma espécie de comunhão, tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica a satisfação de todos; d) indisponibilidade no campo relacional jurídico, por não dispor de titulares determináveis, apresentando dificuldades de transigir de seu objeto no campo jurídico-relacional; e e) ressarcibilidade indireta, quando não existir a reparabilidade direta aos sujeitos individualmente considerados (levando em conta o caráter anônimo dos sujeitos) e, sim, para o fundo (artigo 13 da LACP, que será visto adiante), para recuperação dos bens lesados.

 Acrescenta o autor (2006, p. 18-19), o qual é Promotor de Justiça no Estado de Minas Gerais, com atuação na Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, que a deliberação teórica da natureza difusa e indisponível do direito à proteção do patrimônio cultural resulta em importantes consequências de ordem prática no dia a dia daqueles militam sobre o tema, como a imprescritibilidade das ações que têm por fim a reparação de danos ambientais coletivos, a possibilidade de defesa do patrimônio cultural por intermédio do uso de ferramentas processuais modernas e eficazes, tais como a LACP, e a indeclinável necessidade de intervenção do Ministério Público, como fiscal da lei, nas ações cíveis que envolvam a defesa desse bem jurídico.

Milaré (2007, p. 253), ao lançar dúvida sobre ser verdade que todas as atividade humanas poderiam estar abrangidas na moderna conceituação de patrimônio cultural, indica que, da mesma forma, seria certo que nem todas elas se qualificariam como bens a serem preservados, questionando: “Como identificar, então, os bens a serem preservados?”. Respondendo:

A solução, portanto, parece estar na atuação da comunidade, que deve participar da preservação do patrimônio cultural em conjunto com o Poder Público, como recomendado pelo parágrafo 1°, do artigo 216 da Constituição. De fato, a atuação da comunidade é fundamental, pois ele, como legítima produtora e beneficiária dos bens culturais, mais do ninguém tem legitimidade para identificar um valor cultural, que não precisa ser apenas artístico, arquitetônico ou histórico, mas também estético ou simplesmente afetivo. A identificação ou simpatia da comunidade por determinado bem pode representar uma prova de valor cultural bastante superior àquela obtida através de dezenas de laudos técnicos plenos de erudição, mas muitas vezes vazios de sensibilidade. Além de significar, por si só, uma maior garantia para a sua efetiva conservação. (MILARÉ, 2007, p. 254).

O conceito de patrimônio cultural trazido na ordem constitucional é abrangente, sem dúvida alguma, podendo ser inseridas, ao menos em tese, praticamente todas as atividades e produções humanas, podendo se imaginar que tudo isso deveria receber a tutela protetiva do Estado. Entretanto, esse pensamento não seria correto, conforme esclarece Miranda (2006, p. 53), em razão da “[...] indispensável (...) ‘seletividade’ da atuação preservacionista, sob pena de se imobilizar a vida cultural, que possui natureza extremamente mutável e dinâmica”, posição essa que é defendida nesta pesquisa.

Aliás, nesse particular, valiosa é a explicação de Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2011, p. 20):

A preservação do meio ambiente, natural e cultural, não pode ser global, porque isto implicaria impedir qualquer intervenção antrópica modificativa do meio ambiente e manteria estático o processo cultural. Preservar toda intervenção cultural humana na natureza ou toda manifestação cultural é um absurdo e uma contradição, porque à guisa de proteger as manifestações passadas, se estaria impedindo que a cultura continuasse a se manifestar. Implicaria não admitir qualquer possibilidade de mudança, processo ou desenvolvimento. Assim como preservar intocado o meio ambiente natural, seria matar a vida. Se fossem preservadas intactas todas as intervenções humanas, não haveria possibilidade de evolução ou desenvolvimento social.

Dessa maneira, devem obter a especial proteção do poder público os produtos mais representativos e significativos da cultura do povo brasileiro, o que não implica, obviamente, em abandono ou esquecimento dos demais. Miranda (2006, p. 53) salienta que a partir do instante em que um bem é individuado e reconhecido como integrante do patrimônio cultural brasileiro, ele passa a ser regido por um regime jurídico especial que o diferencia dos demais bens; independentemente de se tratar de bem público ou privado, “[...] os bens culturais são considerados pela doutrina mais moderna como sendo bens de interesse público, em razão da relevância de sua preservação para fruição das presentes e futuras gerações”.

Materialmente considerados, todos os bens, sejam ambientais ou não, são públicos ou privados. Os ambientais, no entanto, independentemente de serem públicos ou privados, revestem-se de um interesse que os faz terem um caráter público diverso, decorrente dessa nova relação de direito entre os bens de interesse cultural ou natural com o Estado e os particulares (bens de interesse público). Na verdade, sobre esses bens nasce um novo direito que se sobrepõe ao antigo direito individual existente. Explica Souza Filho (2011, p. 23) que, como o bem se divide em um lado material, físico, que pode ser aproveitado pelo exercício de um direito individual, e outro imaterial, que é apropriado por toda a coletividade, de forma difusa, passa a existir o direito ou no mínimo o interesse sobre ela. Ainda, como essas feições são inseparáveis, os direitos ou interesses coletivos sobre uma, necessariamente, comunicam-se à outra.

Esses direitos ou interesses não só ambientais naturais, mas neles se incluem os direitos sobre os bens ambientais constituídos, que são os (...) bens culturais, e até mesmo sobre as relações contratuais – direitos do consumidor. A referência deste ambiente é a sociedade humana, porque só tem sentido a tutela jurídica sobre os bens socialmente referenciados, isto é, a partir de uma ótica humanista. Sendo assim, talvez lhe assente melhor o nome direitos ou interesses socioambientais. [...].

Em conclusão, o bem cultural – histórico ou artístico – faz parte de uma nova categoria de bens, junto com os demais ambientais, que não se coloca em oposição aos conceitos de privado e público, nem altera a dicotomia, porque ao bem material que suporta a referência cultural ou importância ambiental – este sempre público ou privado –, se agrega um novo bem, imaterial, cujo titular não é o mesmo sujeito do bem material, mas toda a coletividade. Este novo bem que surge da soma dos dois, isto é, do material e do imaterial, ainda não batizado pelo Direito, vem sendo chamado de interesse público, e tem uma titularidade difusa, e talvez outro nome lhe caiba melhor, como bem socioambiental, porque sempre tem que ter qualidade ambiental humanamente referenciada. (SOUZA FILHO, 2011, 24-25).

O citado autor (2011, p. 35-36) refere que, no ordenamento jurídico brasileiro, a proteção de um bem cultural inicia pela sua individuação, para que ele possa ser exatamente localizado, conhecido e reconhecido publicamente como bem cultural preservável. Ao ser individuado, o bem ganha status de cultural e é alterada sua essência jurídica, razão pela qual não só o conceito de bem cultural como também o processo de sua constituição têm relevância jurídica. Soma o autor (2011, p. 55), ao mencionar que, com base na CF/1988, o bem cultural é um bem jurídico que, além de ser objeto do direito, está amparado por ser representativo, evocativo ou identificador de uma expressão cultural relevante.

Ao bem cultural assim reconhecido é agregada uma qualidade jurídica modificadora, embora a dominialidade ou propriedade não se lhe altere. Todos os bens culturais são gravados de um especial interesse público (de propriedade particular ou não), que pode ser chamado de socioambiental.

Nos termos de Miranda (2006, p. 55), o ato de individualização e reconhecimento (promoção) do bem cultural pode ser de natureza administrativa (inventário, tombamento, registro, etc.), legal (lei de zoneamento, tombamento legislativo, etc.) ou judicial (ação civil pública declaratória de valor cultural, etc.). Como resultado direto do ato de reconhecimento surge a certeza jurídica da natureza do bem de valor cultural e como ato reflexo o ato impõe a submissão da coisa ao particular regime jurídico acima citado.

De seu turno, o mesmo autor (2006, p. 55) destaca que ocorrem situações especiais em que se garante a defesa de uma determinada categoria de bens culturais por meio de lei, sendo a individualização deles efetivada a partir de ato administrativo subsequente: é o caso dos sítios arqueológicos, cuja especial proteção é reconhecida amplamente pela Lei n° 3.924/1961, sendo a identificação de cada sítio feita por intermédio de um registro (ato administrativo) que integrará o cadastro dos monumentos arqueológicos do Brasil, administrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Ademais, os bens culturais precisam de instrumentos capazes de lhes assegurar a devida proteção, sejam eles administrativos, judicais ou legais. Nessa linha, Miranda (2006, p. 102-204) faz um apanhado dos principais: a) inventário: visa à identificação e ao registro dos bens culturais adotando-se, para a sua execução, critérios técnicos de natureza histórica, artística, arquitetônica, sociológica, antropológica, dentre outras, possibilitando fornecer suporte primário às ações protetivas do poder público; b) registros: implica na identificação e produção do conhecimento sobre o bem cultural pelos meios técnicos mais adequados e amplamente acessíveis ao público, permitindo a continuidade dessa forma de patrimônio, assim como sua disseminação; c) vigilância: diz respeito a uma das manifestações do poder de polícia outorgado aos entes federados para que possam tutelar administrativamente o patrimônio cultural brasileiro; d) tombamento: pode ser entendido simultaneamente como fato e ato administrativo (como fato é uma operação material de registro de um bem efetivado pelo agente público no respectivo Livro Tombo e como ato é uma restrição imposta pelo Estado ao próprio direito de propriedade, com o objetivo de preservar os seus atributos), tendo por finalidade conversar a integridade dos bens sobre os quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais; e) desapropriação: é um instituto por meio do qual o Estado, para cumprir um fim de utilidade pública, priva coativamente um bem de seu titular, obedecendo ao procedimento previsto em lei e pagando justa e integral indenização em favor do expropriado (só deve ser feita se realmente indispensável, quando sejam absolutamente inviáveis ou insuficientes as outras formas legais de acautelamento e preservação); f) gestão documental: busca garantir o direito de acesso à informação, o qual somente estará preservado se a informação procurada for resguardada e, uma resguardada, se estiver organizada de modo a possibilitar a sua localização e o seu acesso; g) ação popular: atribui ao cidadão a legitimidade para promover a defesa jurisdicional do patrimônio cultural, aperfeiçoando o exercício da tarefa solidária e compartilhada do Estado e da coletividade na consecução do poder-dever de todos os bens que o integram; h) ação civil pública: é concebido como o mais importante e eficaz instrumento processual existente no ordenamento jurídico brasileiro apto a promover, por meio de acionamento do Poder Judiciário, a proteção dos bens culturais, podendo ser utilizada para a defesa do meio ambiente, do consumidor, da ordem urbanística, da ordem econômica, da economia popular e de qualquer outro interesse difuso ou coletivo; i) incentivos e benefícios fiscais e financeiros: a concessão de incentivos e benefícios fiscais e financeiros que favoreçam a proteção e a promoção do patrimônio cultural tem sido uma busca constante por parte do poder público em nível internacional; j) legislação urbanística: o uso da legislação urbanística como instrumento de proteção tem se mostrado como uma das mais eficientes formas de tutela dos bens culturais, notadamente das edificações e monumentos de valor artístico, arquitetônico e histórico; k) educação patrimonial: possibilita a compreensão da importância de preservação dos bens culturais e de quais os instrumentos existentes para isso, tornando-se uma valiosa ferramenta de promoção e vivência da cidadania, despertando a responsabilidade individual e coletiva no que diz com o patrimônio cultural nacional; e l) participação popular: os cidadão devem deixar de lado a posição passiva, de meros espectadores e beneficiários, passando a colaborar ativamente para a promoção e preservação do patrimônio cultural, reconhecendo a sua corresponsabilidade pela gestão dos interesses da coletividade.

Outrossim, um outro instrumento é igualmente importante para a preservação do patrimônio, consistente nas cartas patrimoniais, as quais:

[...] são recomendações desenvolvidas por órgãos de preservação que têm como característica sua abordagem pluri nacional. Escritas por vários grupos de classe, de perspectivas ideológicas diversas ou representantes de entidades governamentais, tais documentos referenciam os valores patrimoniais quanto a amplos aspectos socioculturais. (CÉSAR; STIGLIANO, 2010, p. 77).

Nesse norte, Milaré (2007, p. 270) elucida ser necessária uma mudança de perspectiva:

Não basta proibir, por meio de leis e regulamentos, condutas e práticas prejudiciais à preservação do patrimônio cultural. São necessários instrumentos outros que completem e subsidiem o tratamento legal, partindo-se do pressuposto de que não preservação sem a cooperação e os recursos da comunidade.

Entre os novos instrumentos, além dos legais, sejam lembrados três, em especial:  a institucionalização de um Sistema Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural, a educação ambiental e os estímulos econômicos.

Outro aspecto está na direção de que os bens culturais são tradicionalmente divididos em duas categorias: materiais (tangíveis) e imateriais (intangíveis). Os primeiros, traduzidos por coisas corpóreas, palpáveis, como edificações, monumentos, estátuas, documentos, sítios urbanos, etc., alcançando-se proteção a eles mediante tombamento, inventário, lei de zoneamento, decisão judicial, etc. Do outro lado estão aqueles relacionados à identidade, à forma e à ação dos grupos sociais, incluindo-se nessa definição as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver, considerando: a) os Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; b) as Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; c) as Formas de Expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênica e lúdicas; e d) os Lugares: mercados, feiras, bibliotecas, cinemas, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas, nos termos de Costa e Castro (2008, p. 127).

A UNESCO vem, nos últimos vinte anos, se esforçando para criar e consolidar instrumentos e mecanismos que conduzam ao reconhecimento e defesa dessa forma de patrimônio (imaterial), admitindo a sua importância e a dificuldade de definição de seus limites e de sua proteção. Em 1989, foi editada a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, que fornece elementos para a identificação, a preservação e a continuidade dessa forma de patrimônio, assim como de sua disseminação. Em 2003, após uma série de esforços, que incluíram estudos técnicos e discussões internacionais com especialistas, juristas e membros dos governos, a UNESCO adotou a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Essa Convenção regula o tema do patrimônio cultural imaterial, e assim complementa a Convenção do Patrimônio Mundial, de 1972, que cuida dos bens tangíveis, de modo a contemplar toda a herança cultural da humanidade. (MIRANDA, 2006, p. 56).

No ordenamento jurídico do Brasil, o Decreto n° 3.551/2000 instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, que constituem o patrimônio cultural brasileiro, e criou o programa nacional do patrimônio imaterial, a fim de viabilizar a efetiva proteção administrativa desses bens culturais.

Ademais, Miranda (2006, p. 75) faz importante observação, frisando que embora haja essa divisão tradicional dos bens culturais em materiais e imateriais, em sua formação, normalmente, os aspectos tangíveis e intangíveis se combinam, ou seja, não são elementos estanques: “[...] patrimônio cultural, enquanto bem jurídico, não se confunde com o objeto físico que ostenta. Com efeito, os direitos são sempre bens incorpóreos e a divisão classificatória de bens em materiais e imateriais refere-se aos objetos de tais direitos”.

[...] vale ressaltar que os bens culturais imateriais podem estar amparados em suportes físicos. [...] uma música pode estar na memória das pessoas ou escrita em uma partitura, o conhecimento tradicional pode ser objeto de transmissão oral ou estar escrito em papel, a dança se materializa no corpo físico do artista. O que caracteriza o bem imaterial é a relevância que possui a manifestação do espírito humano em relação ao suporte físico que lhe dê consistência, No bem imaterial o suporte físico não é o mais relevante. Nos importa preservar a beleza e a emoção que o Bumba-meu-boi (dança do folclore popular brasileiro) possa causar nas pessoas e não quem esteja, momentaneamente, executando as acrobacias na praça pública. (MIRANDA, 2006, p. 59).

Como já mencionado, o artigo 216 da CF/1988 trouxe um rol meramente exemplificativo, e não taxativo, dos bens culturais que integram o patrimônio cultural brasileiro. Desse modo, não pretendeu o legislador constitucional esgotar o elenco dos bens culturais, deixando aberta a possibilidade de inserir outros no texto constitucional.

Nesse sentido, didaticamente, Miranda (2006, p. 60-86) faz um breve exame de algumas das principais categorias de bens que integram o patrimônio cultural nacional: a) as formas de expressão: as línguas (não apenas a portuguesa, mas também as indígenas e africanas), a literatura, a música, a dança, as artes, as festas, o folclore, entre outras; b) os modos de criar, fazer e viver: os hábitos, os costumes e as tradições de nosso povo, oriundos das influências sofridas por parte dos grupos formadores da sociedade brasileira (maneira como vivem os brasileiros, abrangendo sua culinária, agricultura, crenças, costumes, hábitos, religião, etc.); c) as criações científicas, artísticas e tecnológicas; d) os espaços destinados às manifestações artístico-culturais: os cinemas, os teatros, as galerias de arte, os museus, as bibliotecas, os ginásios esportivos, casas de cultura, etc.; e) os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico e paisagístico e artístico; f) o patrimônio documental: formado por documentos que constituem acervo e fonte de comprovação de fatos históricos e memoráveis; g) o patrimônio bibliográfico: a preservação dos livros, que são fontes primárias e testemunhas materiais do desenvolvimento sociocultural humano; h) o patrimônio arqueológico: porção do patrimônio material para a qual os métodos da arqueologia fornecem os conhecimentos primárias, englobando todos os vestígios da existência humana; i) o patrimônio paleontológico: ocupa-se das espécies desaparecidas, mediante a análise de fósseis, que são vestígios de seres vivos contidos em rochas sedimentares; j) o patrimônio espeleológico: constituído pelo conjunto de ocorrências geológicas que criam formações especiais e cavidades naturais no solo, tais como grutas, cavernas, lapas, abrigos sobre rochas, etc.; e k) o patrimônio quilombola: preservação da cultura das comunidades originárias de quilombos (no Brasil, significa esconderijo, aldeia, cidade ou conjunto de povoações em que se abrigavam escravos fugidos), também denominadas quilombolas.

3 Valoração dos bens culturais

De início, cabe referir que, embora não se desconheça a imensa preocupação doutrinária em conseguir estabelecer um valor econômico aos bens culturais e tamanha ser a dificuldade que essa busca enseja, esta pesquisa não tem por escopo alcançar essa meta, muito pelo contrário, aliás. É objetivo, sim, deste estudo, conforme se verá adiante, encontrar uma boa parametrização para a fixação da indenização pelo dano moral coletivo causado ao patrimônio cultural. De qualquer modo, fazem-se necessários alguns esclarecimentos sobre esta temática.

Souza Filho (2011, p. 43) identifica que se pode estabelecer uma diferença profunda entre valor e preço, sendo aquele, uma magnitude permanente e medida a partir de critérios científicos e, o último, a expressão monetária de troca. Dessa forma, valor é a quantificação precisa de um bem, enquanto que preço é a quantidade de dinheiro pela qual se pode trocar o bem em determinadas circunstâncias. Quando algum bem é declarado de interesse de preservação cultural, seu valor aumenta de imediato, pois se agregam a ele valores morais, sentimentais e culturais, além de seu valor intrínseco. Mas, isso nem sempre ocorre com o seu preço, que pode variar ou não, dependendo da alteração externa ao bem (situação do mercado).

Outra questão importante que influenciará no valor e no preço é a utilidade do bem (valor de uso), no sentido de que declarado de interesse de preservação, o bem terá seu uso restringido. Assim, como não pode ser demolido, alterado em sua estrutura ou acrescido de nova construção, fica restrito às possibilidades que já detêm, não podendo ser reformado para facilitar novos usos. Também, não se pode desconsiderar que o valor do bem é revestido de um caráter histórico, pois, no momento da aquisição ele vale para o proprietário uma expressão monetária que corresponde à vontade do adquirente para o uso que dará à coisa, nos termos de Souza Filho (2011, p. 44).

Além disso, a valoração econômica dos danos aos bens culturais não se confunde com o simples valor econômico atribuído ao seu suporte físico (preço). “Com efeito, os bens culturais materiais possuem corpo (suporte físico, material, por exemplo, uma casa) e alma (valores que se agregam ao bem material, tais como a antiguidade, raridade, vinculação a fatos históricos, etc.)”, segundo Miranda e Novais (2011, p. 39), os quais ainda salientam:

[...] o valor da reparação decorrente da demolição de uma casa de valor cultural reconhecido, que tenha seu preço de mercado fixado, por exemplo, cem mil reais, não se confundirá com tais cifras, uma vez que há necessidade de avaliação dos danos aos atributos culturais imateriais agregados a ela.

São exemplos de valores relacionados aos bens culturais: o afetivo, o de antiguidade, o de autoria, o evocativo, o arquitetônico, o de uso, o de acessibilidade, o de conservação, o de recorrência, o de raridade, o cênico, o paisagístico, turístico, religioso, etc.

Nesse sentido, apenas para ilustrar a questão, sem adentrar no mérito, conforme motivação já esclarecida no início deste item, com base nos artigos de Miranda e Novais (2011, p. 40) e Steigleder (2011, p. 27), as principais metodologias existentes no Brasil sobre a quantificação de danos ao patrimônio cultural são: a) CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo): critério elaborado por uma equipe multidisciplinar de profissionais atuantes na área de patrimônio cultural e ambiental, levando em conta, especialmente, o tipo de bem que foi atingido e o tipo de dano que foi causado; b) VERD (Valor Econômico Estimado de Referência para a Degradação Ambiental): desenvolvida pelo químico Artur Renato Albeche Cardoso, a qual considera variáveis tangíveis (custo hipotético de recuperação do bem, do valor venal do imóvel, etc.) e variáveis intangíveis (danos em que não há como estabelecer ou associar um valor econômico); e c) qualificação de agravos: desenvolvida pelo professor Georges Kaskantzis, que considera dois aspectos, a saber, o valor inicial (valor da terra ou edificação construída ou o custo pela restauração do imóvel) e o valor cênico ou de singularidade (são atributos de raridade e atratividade do bem).

Ademais, é necessário explicar que a valoração econômica de recursos naturais é um tema bastante explorado. Conforme indica Steigleder (2011, p. 24-25), economistas, em especial, vêm se dedicando ao estudo de metodologias de valoração de recursos naturais como ferramentas de gestão ambiental para compreensão da Disposição do Consumidor de Pagar (DAP) por um bem ou serviço que lhe possibilitará bem-estar:

[...] o valor dos bens ambientais pode ser representado pela formulação VET = (VUD + VUI + VO + VE) que é constituída por um conjunto menor de valores que abarcam as possibilidades de uso econômico que pode ser feitos do meio ambiente. Assim, o Valor Econômico Total (VET) constitui-se em valor de uso e valor de não uso, os quais se subdividem da seguinte forma: Valor de Uso Direto (VUD): valor que os indivíduos atribuem a recurso ambiental pelo fato de que dele se utilizam diretamente, por exemplo, na forma de extração, de visitação ou outra atividade de produção ou consumo direto; Valor de Uso Indireto (VUI): valor que os indivíduos atribuem a um recurso ambiental quando o benefício do seu uso deriva de funções ecossistêmicas, como, por exemplo, a contenção de erosão e a reprodução de espécies marinhas pela conservação de florestas de mangue; Valor de Opção (VO): valor que o indivíduo atribui em preservar recursos que podem estar ameaçados, para usos direto e indireto no futuro próximo. Por exemplo, o benefício advindo de terapias genéticas com base em propriedade de genes ainda não descobertos de plantas tropicais; e Valor de Não Uso ou Valor de Existência (VE): valor que está dissociado do uso (embora represente consumo ambiental) e deriva de uma posição moral, cultural, ética ou altruística em relação aos direitos de existência de outras espécies que não a humana ou de outras riquezas naturais, mesmo que estas não representem uso atual ou futuro para ninguém. Um exemplo claro deste valor é a grande mobilização da opinião pública para o salvamento dos pandas ou das baleias, mesmo em regiões em que a maioria das pessoas nunca poderá estar ou fazer qualquer uso de sua existência.

A formulação mencionada foi incluída pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), na NBR 14653 – Parte 6, que trata de métodos e procedimentos para avaliação de recursos naturais, todos baseados em metodologias voltadas à aferição da disposição dos consumidores a pagar por serviços ecológicos e funções ambientais. A abordagens se separam em métodos indiretos, que valores os benefícios ambientais utilizando os custos evitados, relacionados indiretamente com as mudanças na qualidade ambiental, e em métodos diretos, que usam mercados de bens e serviços substitutos e complementares ou mercados hipotéticos para medir as variações de bem-estar diretamente da demanda dos indivíduos por qualidade ambiental, conforme preceitua Steigleder (2011, p. 25).

A referida autora (2011, p. 25), por outro lado, chama a atenção para o que seria realmente novo: a transposição dessas metodologias para a seara do direito, tendo em conta os valores jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico ambiental e as funções da responsabilidade civil objetiva. Outrossim, cita que, até pouco tempo atrás e não raro, o juiz arbitrava valores indenizatórios para danos ambientais, como se estivesse lidando com uma dosimetria de pena (2011, p. 25-26): “Hoje, busca-se maior cientificidade para as metodologias de valoração do dano material irreversível, deixando-se o arbitramento judicial para as hipóteses de dano extrapatrimonial ambiental (dano moral coletivo)”.

Os conceitos de dano moral ambiental, por não serem definidos em lei, não impedem sejam seus entendimentos ampliados, vindo a contemplar os danos em desfavor da coletividade, e, por isso, não são incompatíveis com o caráter transindividual, nem tampouco sofrem qualquer restrição legal. Ademais, o art. 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal e o art. 1º da Lei da Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85) possibilitam o reconhecimento da ação de dano moral ambiental coletivo, sendo que o dano moral ambiental coletivo pode ser provado a partir dos meios de prova admitidos em direito, não ficando adstrito à demonstração de comoção e sentimento público.

Camerini (2007) afirma que a devastação ambiental causa inúmeros danos morais que transcendem a pessoa individual: o comprometimento da cultura de povos tradicionais, a qualidade de vida das pessoas e a dignidade humana são apenas alguns deles, mas que passam despercebidos diante da geral falta de refinamento hermenêutico dos operadores no tratamento da questão ambiental. Desse modo, não admitir a aplicação do dano moral coletivo, ressai consonante com a lógica capitalista presente na dicotomia de individualização dos lucros e globalização dos prejuízos ecológicos, apontada por Antunes (2007), ou na externalização ambiental dos resíduos produzidos no interior do sistema econômico, aduzida por Carneiro (2003).

Conclusão

A atual CF/1988, ao construir o tema do patrimônio cultural, envolveu nele inúmeros conceitos científicos e limites importantes. Desse modo, em que pese haja uma partição topológica realizada pelo legislador constitucional no cuidado das matérias, o meio ambiente e o patrimônio cultural são proposições inseparáveis sob a ótica do direito, pois é o povo quem exerce a titularidade do bem ambiental, sabendo-se que esse bem não está na disponibilidade particular de alguém, nem de pessoa privada nem jurídica. O bem ambiental, fruto da CF/1988 é, pois, um bem de uso comum, isto é, um bem que pode ser usufruído por todas as pessoas, dentro dos limites constitucionais.

O legislador constituinte, além de autorizar a tutela dos direitos individuais, que já era tradicionalmente realizada, admitiu a tutela dos direitos coletivos, porquanto compreendeu a existência de uma terceira espécie de bem, consistente no bem ambiental, quando consagrou a existência de um bem de uso comum do povo, ou seja, que não é público, tampouco privado. Nesse particular, o artigo 216 da CF/1988 trouxe um rol meramente exemplificativo, e não taxativo, dos bens culturais que integram o patrimônio cultural brasileiro. Desse modo, não pretendeu o legislador constitucional esgotar o elenco dos bens culturais, deixando aberta a possibilidade de inserir outros no texto constitucional.

O patrimônio cultural, enquanto um direito difuso, tanto para o poder público, como para os particulares, é sempre indisponível e deve ser preservado, em especial, tendo em conta as gerações do porvir. Dessa maneira, o direito a todos aos bens culturais diz respeito não apenas à guarda, preservação e proteção desses bens, mas também a sua promoção, nela se inserindo o direito de acesso e fruição pela coletividade em geral, diante de sua titularidade difusa.

A coletividade, por sua vez, em face de um prejuízo causado ao patrimônio cultural, evidentemente pode ser afetada quanto a seus valores imateriais, diante do sentimento coletivo de desapreço, de intranquilidade, de angústia, de indignação e de demonstração de aviltamento ao direito. Assim, a aplicação da responsabilidade civil em razão de danos morais coletivos é, certamente, uma sanção garantidora do restabelecimento dignidade social, ao mesmo tempo em que funciona como medida de caráter preventivo, por representar a ampliação da possibilidade de responsabilização do agente.

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