Remo Moreira Brito Bastos (CV)
remomoreira@gmail.com
Universidade Federal do Ceará
RESUMO: O presente trabalho trata da nova estratégia do Banco Mundial na área de Educação para o decênio 2011-2020. Inicialmente é feita uma revisão sumária dos documentos oficiais daquela instituição para o referido setor, procurando-se salientar os aspectos que caracterizam seus respectivos contextos históricos e políticos. Segue o objeto deste trabalho, a análise de parte do relatório intitulado Learning for All: Investing in People´s Knowledge and Skills to Promote Development - World Bank Group Education Strategy 2020, contemplando alguns aspectos críticos de seu desenvolvimento, tais como seu amplo processo de consultas para a aprovação de sua versão final, com a participação dos interessados em mais de cem países, bem como o processo de construção de legitimidade do Banco Mundial no sentido de impor suas políticas educacionais de cariz neoliberal em toda a periferias capitalista.
Palavras-chave: Banco Mundial, políticas educacionais, estratégia, periferia capitalista, ideologia.
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Breve histórico das políticas educacionais do Banco Mundial
Inicialmente, procurar-se-á percorrer, de forma sucinta, os documentos oficiais de política educacional do Banco Mundial, eventualmente cotejados com a bibliografia crítica correspondente, de forma a delinear, de forma breve, uma visão geral da atuação daquela instituição no financiamento do setor, desde sua fundação.
Somente no início da década de 1960, quase vinte anos após a sua fundação, o Banco Mundial começa a contemplar o setor educacional em seu portfolio de empréstimos. Data de 1963 um memorando interno, originário da Presidência da instituição, delineando as diretrizes operacionais pelas quais se nortearia a nova área a ser financiada1 . Observa o documento que na maioria dos países em desenvolvimento a necessidade mais urgente era de uma expansão da educação técnica e vocacional em vários níveis, incluindo escolas técnicas, escolas agrícolas e escolas de comércio e administração de negócios; e de uma expansão do ensino secundário geral, para fornecer mão de obra de nível médio para o governo, indústria, comércio e agricultura, mais estudantes habilitados para o ensino superior e para a formação profissional especializada, e mais professores para as escolas primárias (WORLD BANK, 1963). Conforme ilustra Leher:
[...] Neste período, o Banco priorizou a expansão do ensino não formal e, principalmente, a rede de ensino técnico de nível médio, como as “escolas diversificadas” de nível secundário, orientadas para a formação profissional, sobretudo no setor agrário, em virtude das tensões sociais no campo. O financiamento das escolas técnicas rurais tinha como propósito preparar os jovens das zonas rurais para os ofícios agrários e, ao mesmo tempo, implementar um determinado modelo de desenvolvimento agrícola (capitalista), denominado de “modernização conservadora” ou de Revolução Verde. Este tipo de orientação teve seus anos de glória entre 1973 e 1979, especialmente na África, onde a quase totalidade dos empréstimos para educação envolvia o ensino profissionalizante. (LEHER, 1998, p. 202).
Em suas breves cinco páginas, o documento já reflete a estreita concepção de educação preconizada por aquela instituição financeira, a saber, de baixo custo e voltada estritamente para a formação de mão de obra necessária à alavancagem do desenvolvimento econômico. Sobre o processo de avaliação da viabilidade das propostas de financiamento, explicita claramente que, a despeito do caráter social, cultural e econômico dos gastos com a Educação, para fins de decisão com relação à viabilidade da concessão de qualquer financiamento, apenas os fatores econômicos deverão ser levados em consideração. Importa destacar também a vedação de financiamento a quaisquer despesas de caráter recorrente, as quais devem ser custeadas pelo próprio país mutuário, levando-se em conta a presumida autosustentabilidade do empreendimento a ser financiado (WORLD BANK, 1963).
Após a criação de um departamento próprio para a área educacional, ao final dos anos 1960, desvinculando-se assim da estrutura organizacional da UNESCO, o Banco, agora melhor aparelhado no que concerne à produção de estudos e análises de projetos de financiamento, redefine sua linha de atuação, fazendo-a mais propositiva, e em 1971, já na gestão de Robert McNamara (1968-81), publica seu primeiro documento de políticas específicas para a área da Educação, o Education Sector Working Paper, o qual esboçava pela primeira vez, de forma pública, os critérios para financiamentos educacionais, sinalizando, assim, aos países interessados nesses créditos, as áreas potencialmente mais suscetíveis de serem assistidas por aquela instituição financeira (WORLD BANK, 1971).
No documento seguinte, lançado em 1974, o Banco, tal qual o fazia no relatório anterior, mantém a crítica sobre a "desfuncionalidade" de um modelo educacional mais teórico, abstrato e menos prático, predominante nos países subdesenvolvidos, recomendando, alternativamente, a reformulação do currículo, de forma a garantir que os alunos formados tenham maiores possibilidades de obter emprego. Essa era a percepção de educação qualitativa, na ótica do Banco (WORLD BANK, 1974). Essas diretrizes de maior acento na dimensão pragmática do processo educacional suscitaram, dentre outros efeitos da mesma natureza, a emergência dos primeiros artigos acadêmicos que questionavam a necessidade de laboratórios para o ensino de ciências no nível secundário e os pressupostos subjacentes às concepções de turmas pequenas como um indicador de qualidade (HEYNEMAN, 2003).
Sintetizando as grandes orientações do Banco para a Educação, na década de 1970, no conceito de capital humano, por meio do qual aquela instituição financeira preconiza a ampliação da produtividade do trabalhador (estudante) e a domesticação de sua conduta sociopolítica, Roberto Leher chama atenção para o caráter de “necessidade básica” do tipo de educação que deve ser propiciada “aos mais pobres”, ainda não adaptados ao processo de modernização, por isso potencialmente suscetíveis de desencadear tensões sociais.
O Documento dirige-se claramente aos "mais pobres" em geral, enfatizando as zonas rurais e os "pobres" dos povoados. A orientação política é clara: é preciso garantir um "mínimo" de educação para que estes "pobres" sejam ganhos para o projeto de desenvolvimento do país em questão [...]. O Documento é direto: ‘a educação-funcional de baixo custo pode capacitar o pobre a participar mais efetivamente do processo de desenvolvimento.’. (LEHER, 1998, p. 202).
No documento seguinte, o de 1980, o Banco abandona a política de restringir os financiamentos educacionais às modalidades diretamente instrumentais (educação vocacional / técnica, e a de nível secundário diversificada) e passa a contemplar, em sua política de financiamentos educacionais, a qualidade do ensino e a pesquisa em educação, bem como amplia para todos os níveis, do básico ao ensino superior (privilegiando o primeiro), a assistência do Banco (HEYNEMAN, 2003). Esse autor também observa que na sequência da publicação desse documento, a equipe de pesquisa educacional do Banco foi incentivada a utilizar cada vez mais a metodologia de taxas de retorno em seu trabalho analítico, o que levou a uma maior e mais clara justificativa para o foco da política de financiamentos educacionais do Banco no ensino fundamental regular.
A partir da década de 1990, o Banco passa a produzir documentos educacionais subsetoriais, tornando assim suas recomendações e estudos mais específicos. Conforme pontua Leher,
A publicação Priorities and Strategies for Education (1995), embora aborde questões gerais, é antes uma síntese de várias publicações específicas do Banco, entre as quais destacam-se: Primary education (1990), Vocational and Technical Education and Training (1991), Higher Education (1994), entre outras. (LEHER, 1998, p. 211).
A insistência no restrito cardápio de modalidades de financiamento, presente nesse documento, desagradou grande parte da equipe da área educacional do Banco, causando considerável desconforto interno (HENEYMAN apud MELLO). Referindo-se ao documento seguinte (WORLD BANK, 1999), essa autora observa que o uso do termo estratégia no título do mesmo 2 talvez reflita a imagem externa que Banco procurava passar para a sociedade, naqueles novos tempos, menos autoritário e mais aberto a proposições externas. Para ilustrar o uso, nesse documento, desse novo recurso discursivo por parte do Banco, cita que como alguns países queriam financiar universidades, essa modalidade de financiamento foi acrescentada à longa lista de opções daquela instituição, e o documento subsetorial de política para a educação superior voltou a ser editado, embora, na prática, o Banco continuasse a marginalizar aquela modalidade de financiamento.
O documento posterior (WORLD BANK, 2005) constituiria apenas uma atualização (update) do anterior, segundo o próprio Banco3 . Nesse sentido, o Resumo Executivo do documento pontua que, com o amplo objetivo de alcançar a educação básica para todos, o documento de 1999 centrou-se sobre as crianças e jovens mais pobres, as intervenções na primeira infância, a inovação e a reforma sistêmica. Salienta que estas prioridades continuariam válidas, mas que era preciso levar em conta significativas mudanças recentes no ambiente internacional, incluindo o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e da Educação para Todos (Fast Track Initiative), um maior reconhecimento do impacto da AIDS na educação, maior preocupação com as enormes lacunas de aprendizagem entre os países e dentro deles, maior demanda para o ensino secundário e uma maior consciência sobre o papel do ensino superior e da "aprendizagem ao longo da vida", que promoveria o crescimento econômico baseada no conhecimento.
King e Palmer (2007) notam que o documento parece ter-se afastado do foco nas habilidades específicas de ocupação (seja no setor formal ou informal) para, em vez disso, manifestar uma indisfarçável fascinação com as habilidades avançadas e flexíveis da "nova economia", que se presume serem relevantes para a emergência do conhecimento.
Como sensatamente observa Psacharopoulos (2005), e tal qual se pôde observar na presente seção, é muito difícil, como em qualquer burocracia, identificar uma política concreta e clara do Banco Mundial sobre educação. Para se atingir esse objetivo, ajuda fazer uma distinção entre duas fontes nas quais se espera encontrar a real política educacional do Banco: primeiro, as políticas oficialmente declaradas nos documentos da instituição e, segundo, as políticas de fato, refletidas nas próprias ações do Banco. A primeira é ambígua, além de potencialmente parcial e viciada, conforme se viu na seção 3.2.3 - Pesquisa, produção de "conhecimento" e imposição de paradigmas e se verá na seção 3.3.2. - Estratégia 2020 para a Educação do Banco Mundial - Análise Crítica. Mas há uma abundância de evidências a partir da segunda, as quais, muitas vezes, contradizem as políticas oficialmente declaradas pela instituição, na primeira. Este é o caminho de pesquisa que se pretende trilhar, na seção vindoura, no intuito de desvelar o efetivo papel do Banco Mundial na instrumentalização da educação de forma funcional ao processo de acumulação global de capital.
Estratégia 2020 para a Educação do Banco Mundial - Análise Crítica
Serão contemplados, a seguir, alguns aspectos do relatório de planejamento estratégico do Banco Mundial, para o setor de Educação, para o decênio 2011-2020, intitulado Learning for All: Investing in People´s Knowledge and Skills to Promote Development - World Bank Group Education Strategy 2020 (WORLD BANK, 2011), (doravante WBES 2020). Este documento não foi traduzido, em sua integralidade, até o presente momento, para a língua portuguesa, sendo nela disponibilizado apenas um breve Sumário Executivo, denominado "Aprendizagem para Todos: Investir nos Conhecimentos e Competências das Pessoas para Promover o Desenvolvimento – Estratégia 2020 para a Educação do Grupo Banco Mundial - Resumo Executivo” (BANCO MUNDIAL, 2011), (doravante EEBM 2020), o qual se passa a examinar para, na sequência, contemplar-se o documento completo, no idioma original, produzido pela instituição.
Como se estrutura o EEBM-2020
O Resumo Executivo inicia, em seu Prefácio, pontuando que vivemos num período de extraordinária transformação, destacando a "impressionante ascensão dos países de renda média, liderada pela China, Índia e Brasil" (s/p) e os avanços tecnológicos, que "estão mudando os perfis e as qualificações profissionais" (s/p), o que suscita, na linha de argumentação do documento, a expansão e a melhoria da educação para a necessária adaptação à mudança e para o enfrentamento dos desafios subjacentes. Chama atenção para o fato de que
[...] embora os países em desenvolvimento tenham feito grandes avanços na última década em direção aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de educação primária universal e igualdade de gênero, um sem número de evidências demonstram que muitas crianças e jovens dos países em desenvolvimento saem da escola sem terem aprendido muito. (BANCO MUNDIAL, 2011, s/p).
Sem o menor esboço de questionamento das causas estruturais desse déficit, a estratégia elege precisamente o combate a essa deficiência como o objetivo primordial da atual política do Banco Mundial para os próximos dez anos: “Aprendizagem para Todos”, “a garantia de que todas as crianças e jovens [...] adquiram o conhecimento e as habilidades de que necessitam para terem vidas saudáveis, produtivas e obterem um emprego significativo." (BANCO MUNDIAL, 2011, s/p).
A seguir, no Sumario Executivo, após reconhecer que “o acesso à educação, que é um direito humano básico, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção das Nações Unidas para os Direitos da Criança” (p. 01), o documento trata de salientar que o objetivo global a ser alcançado é a aprendizagem, e não somente a escolaridade, dando-se aquela "dentro e fora da escola, desde o jardim-escola até ao mercado de trabalho”. (p. 01). Para isto, a nova estratégia do Banco estabeleceu duas vias de ação principais (direções estratégicas) a serem seguidas: a reforma dos sistemas de educação dos países a serem “assistidos” e o desenvolvimento de uma base de conhecimentos de alta qualidade a ser utilizada nessas reformas 4.
A nova estratégia amplia sensivelmente a abrangência do conceito de sistema de educação, acrescentando ao seu escopo
a gama completa de oportunidades de aprendizagem que existem num país, quer sejam fornecidas ou financiadas pelo sector público quer privado (incluindo organizações religiosas, organizações sem fins lucrativos ou com fins de lucro). Inclui programas formais ou não formais, para além de toda a gama de beneficiários e interessados nestes programas: professores, formadores, administradores, funcionários, estudantes e as suas famílias e empregadores. Inclui também as regras, políticas e mecanismos de responsabilização que aglutinam um sistema de educação, bem como os recursos e mecanismos de financiamento que o sustentam. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 05).
O artifício dilativo, eixo estruturante da nova Estratégia, não demora a desvelar seu propósito: a escancarada ampliação do que se considerava sistema educacional presta-se a dar conta da operação de tornar objetivos e operacionais aqueles sistemas, de acordo com os parâmetros oriundos da iniciativa privada, compatibilizando e hierarquizando seus diversos componentes de forma a permitir a responsabilização (accountability) e o monitoramento de resultados ("estabelecer um ciclo claro de retorno entre o financiamento (incluindo a ajuda internacional) e os resultados", p. 06).
É de se observar que o Banco não se furta a, de forma velada, sinalizar que trabalhará no sentido de determinar unilateralmente a adoção de seus modelos educacionais aos países “assistidos”, no que tem reconhecida experiência, pelo extenso histórico de imposição aos países periféricos do seu “Ajuste Estrutural” desde o início dos anos 1980.
Numa perspectiva operacional, o Banco Mundial concentrará cada vez mais a sua ajuda financeira e técnica em reformas do sistema que promovam os resultados da aprendizagem. Para esse efeito, o Banco irá concentrar-se em ajudar os países parceiros a consolidar a capacidade nacional para reger e gerir sistemas educacionais, implementar padrões de qualidade e equidade, medir o sistema de desempenho com relação aos objetivos nacionais para a educação e apoiar a definição de políticas e inovação com base comprovada. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 06).
Quanto à segunda via de ação, ver-se-á, em seções vindouras, que o desenvolvimento dessa “base de conhecimentos” constitui-se uma obsessão do Banco. Compreende-se: O monopólio de uma imensa base de dados global, decorrente de sua tentacular atuação na maioria dos países do mundo, obtendo destes minuciosas informações não somente sobre seus sistemas educacionais mas sobre suas economias como um todo, legitimaria essa instituição para impor seus paradigmas e dogmas a respeito de políticas educacionais e econômicas, supostamente respaldados em dados universais e irrefutáveis que constituiriam aquela base de dados, e entronizariam aquela organização como o "Banco do Conhecimento", epíteto como o Banco Mundial se autodenomina em inúmeras passagens não somente deste mas de vários de seus documentos oficiais.
Privilegiando uma perspectiva economicista, com modelos matemáticos sofisticados, de "pureza epistemológica" e de "neutralidade axiológica", o Banco procura, no documento em questão, como se verá adiante, fornecer dados estatísticos e empíricos seletivamente pinçados de experiências em mais de cento e oitenta paises onde atua, de modo a imprimir ares de "cientificidade" a suas conclusões e argumentações, aura que, ver-se-á, possui frágil sustentação quando se descobre as condições científicas, políticas e éticas nas quais são produzidos seus estudos, pesquisas e relatórios, sejam internos ou destinados ao público em geral.
Visão panorâmica do WBES 2020
A estruturação do WBES 2020 segue, basicamente, a mesma sequência da do EEBM 2020, todavia, aprofundando sensivelmente a análise de questões apenas levantadas naquele Resumo Executivo. Neste sentido, a presente seção, além de recuperar essas questões, agora em uma perspectiva analítica minuciosa e crítica, traz à baila outros aspectos da atuação do Banco Mundial com vistas a promover a reforma dos sistemas de educação dos países periféricos, problematizando dimensões ideológicas, políticas e econômicas do discurso do Banco presente no documento de que se trata.
Legitimidade social astuciosamente forjada
A nova estratégia educacional do Banco Mundial para a periferia capitalista 5 passou por um ciclo de produção dividido em quatro fases, a saber: desenvolvimento, revisão (consulta aos interessados), aprovação e apresentação ao público, o que ocorreu em 2011, após um extenso processo de consulta, que contou com duas fases internas e duas externas à organização, envolvendo a participação de aproximadamente cem paises (WORLD BANK, 2011)6 . Uma vez produzido, o documento tem sido difundido na página eletrônica da instituição na internet, bem como em cópias impressas distribuídas em todo o mundo à comunidade que trabalha em projetos educacionais.
Constitui prática no meio intelectual, acadêmico ou mesmo corporativo que elaboradores de estratégias ou de outros textos produzidos em sua área de atuação reconheçam e agradeçam as críticas e colaborações recebidas de revisores ou de outros leitores de seus escritos, e mencionem que algumas de suas sugestões foram aceitas e incorporadas ao texto final. Esse, contudo, segundo Steiner-Khamsi (2012), não é o caso do WBES 2020, provavelmente pelo fato de que quase não existe nada em comum entre o projeto que o Banco apresentou para revisão, a versão revisada e a versão final aprovada. Com efeito, o Banco aproveitou-se da ampla heterogeneidade das colaborações e sugestões oriundas da vastíssima base de interessados que participou da fase de consulta / revisão, e pinçou convenientemente as sugestões que mais se adequavam à sua agenda de políticas educacionais prioritárias. Diferentemente da fase de consulta, aberta ao público, a fase de aprovação ocorreu às portas fechadas, tal qual a primeira fase, a de desenvolvimento.
Como se pôde ver, a ênfase dada, no documento, ao caráter participativo de sua elaboração, notadamente na fase de consulta, constitui ardiloso recurso retórico-argumentativo do Banco, que não possui sustentação factual. Mesmo assim, o WBES 2020, desenvolvido exclusivamente pela equipe do Banco Mundial e de seus eventuais "consultores afiliados" é, na última fase de seu processo de gestação, apresentado à comunidade mundial como "uma estratégia de todos", no intuito de emprestar ao documento uma legitimidade social que, substancialmente, este não possui.
“O que funciona”: a institucionalização das condicionalidades programáticas
Steiner-Khamsi (2012) pondera que não é recomendável que a mesma organização pesquise a área educacional, formule o pacote de reformas adequado, financie-o e, ao final, avalie-o. Contudo, essa é a prática institucional do Banco Mundial para o setor, a qual padece, como se pode constatar pelo exposto, de considerável risco de distorções advindas de superposição de interesses por parte dos agentes envolvidos nessas quatro fases. O que a autora acaba constatando é que, ao invés de definir o problema e procurar as soluções, a formulação do problema, nos países onde o setor educacional do Banco atua, é congenitamente alinhada com as previamente existentes linhas de financiamento do Banco. Ou seja, a “solução” já existe antes da definição do problema.
Isso ocorre porque, na verdade, o Banco vem testando uma limitada gama de reformas educacionais em alguns países e em seguida as dissemina (com algumas pontuais adaptações, no sentido de reduzir o custo de transferência) por todo o planeta, independentemente do contexto político, social e econômico do país “assistido”. Fica nítido que esse leque de reformas, chamadas pelo Banco de “melhores práticas” ou “o que funciona”, na verdade, consiste num portfolio de opções a serem escolhidas, de acordo com as suas condições políticas de implementação em cada país. 7
Na correlação de forças assimétricas entre o Banco Mundial e os Estados que pleiteiam seus financiamentos educacionais, a imposição por parte dessa instituição financeiras das “melhores práticas” experimentadas em outros países consubstancia o que Steiner-Khamsi chama de “condicionalidade programática”. Tal qual sua antecessora, nos idos tempos do malfadado Ajuste Estrutural promovido nos países endividados nos anos 1980 e 1990, a atual condicionalidade funciona como um meio de sub-repticiamente reduzir as despesas públicas em educação e impor sua agenda neoliberal à educação dos países periféricos.
Contextualizando a atuação do Banco Mundial nos países periféricos
Recuperando um breve histórico desse organismo multilateral, a título de contextualização, tal instituição foi criada em 1944, na Conferência de Bretton Woods, no bojo da reestruturação institucional capitalista pós-Segunda Guerra Mundial.
Inicialmente voltado para a recuperação e reconstrução dos países aliados europeus, destruídos pela Segunda Guerra Mundial, o Banco Mundial logo se tornou o maior financiador dos países em desenvolvimento com déficits sociais, conjugando, para isto, o suporte financeiro com um amplo poder de intervenção na formulação das políticas econômicas desses países. Os primeiros empréstimos voltados à educação foram concedidos no início da década de 1960, mas foi a partir da gestão de Robert S. McNamara (1968-81) que o Banco Mundial incorporou a bandeira do "combate à pobreza", procedendo a uma profunda reestruturação organizacional e estratégica, no sentido de financiar projetos em áreas sociais nos países periféricos, mormente na África e na América Latina, dos quais se destacam os de cunho educacional.8
A partir dos anos 1980, no rastro da grave “crise da dívida”, que afetava a maioria dos países subdesenvolvidos, o Banco Mundial assume o controle da condução das políticas educacionais das nações endividadas da África e América Latina, sistematizando-as em seus documentos. Passa, então, a prescrever a prioridade para a educação básica (mais “barata” e mais rentável, do ponto de vista de retorno do investimento, segundo entendimento daquela instituição financeira), e o autofinanciamento / captação de verbas externa ao Estado, para a educação de níveis médio e superior.
Não obstante sua atuação desastrosa na América Latina, África e Ásia, impondo aos países da periferia do capitalismo um "ajuste estrutural" cujos impactos sociais tem sido devastadores para aquelas nações, essa Instituição Financeira Internacional persiste insistindo nesse instrumento de coerção da internacionalização da política macroeconômica preconizada pelo Consenso de Washington, razão pela qual tem sido alvo de inúmeras denúncias de organizações não-governamentais com relação a várias áreas de sua atuação, tais como a social, a ecológica e principalmente com relação aos direitos humanos. Mesmo assim, o Banco Mundial tem se mostrado insensível às nefastas consequências de sua intervenção na política econômica daqueles países, o que, na verdade, não poderia ser diferente, tendo em vista sua natureza, de órgão explicitamente instituído no sentido de dinamizar a reprodução do capital nos países sob a esfera de influência dos Estados Unidos.
Não poderia haver reconhecimento mais explícito do papel fundamental desempenhado por essa instituição financeira no funcionamento da macroestrutura político-financeira global de que ora se trata do que as palavras de seu próprio presidente (no cargo no período compreendido entre 1995 e 2005).
Iniciada em junho de 1995, a nova gestão prometeu mudanças profundas no Banco Mundial. Em seu primeiro discurso diante do Conselho de Governadores do Banco, Wolfensohn demarcou as cinco grandes linhas de ação do seu mandato: 1) a promoção de um clima hospitaleiro ao fluxo transnacional de capitais e à acumulação capitalista, para cuja obtenção o Banco deveria priorizar, na relação com os governos, questões como a remodelagem do aparato público e de suas relações com o setor privado, a redefinição dos sistemas legais e o fortalecimento dos direitos de propriedade [...].(PEREIRA, 2011, p. 181)
Conclusão
O esgotamento de legitimidade e de credibilidade dos organismos multilaterais criados em Bretton Woods, notadamente o Banco Mundial, já constitui elemento de considerável relevância na dinâmica da geopolítica global contemporânea. Afloram ou procuram consolidar-se outros arranjos interestatais institucionais 9, na tentativa de dar conta, nessa esfera, da nova configuração de poder econômico e político mundial, na qual se constatam o declínio do poder dos Estados Unidos e a emergência da China como novo ator hegemônico global, com potencial para acentuar mais ainda a decadência do império ianque.
Mesmo levando-se em conta o caráter parcial dos elementos do presente estudo, tendo em vista estar a concernente pesquisa em andamento, este pesquisador já possui sensíveis indicações do crucial papel institucional que o Banco Mundial desempenha na macroestrutura global de pilhagem dos países periféricos, o que pretende aprofundar na sequência da pesquisa atualmente sendo produzida, a qual compõe sua dissertação de mestrado.
REFERÊNCIAS
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HEYNEMAN, Stephen. The history and problems in the making of education policy at the World Bank 1960-2000. International Journal of Educational Development, n. 23, p. 315-337, 2003.
MELLO, Hivy Damásio Araújo. Educação, desenvolvimento e globalização: uma análise de documentos do Banco Mundial. (Relatório de pesquisa de doutorado). Disponivel em: < http://www.fflch.usp.br/ds/posgraduacao/simposio/m_10_Hivy_Mello > Acesso em: 19/09/2014.
King, Kenneth ; Palmer, Robert. Skills Development and Poverty Reduction: A State of the Art Review. Turin: European Training Forum, 2007.
LEHER, Roberto. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para “alívio” da pobreza. São Paulo, Tese de Doutorado, USP, 1998.
PEREIRA, João Márcio Mendes. A "autorreforma" do Banco Mundial durante a gestão Wolfensohn (1995-2005): iniciativas, direção e limites. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, v. 31, p. 177-206, 2011.
PSACHAROPOULOS, George. World Bank policy on education: A personal account. International Journal of Educational Development 26.3 (2006): 329-338.
STEINER-KHAMSI, Gita. For All by All? The World Bank's Global Framework for Education. In Steven J. Klees, Joel Samoff, Nelly P. Stromquist, eds., The World Bank and Education. Critiques and Alternatives. Rotterdam: Sense, pp. 3-20. 2012
WORLD BANK. Proposed Bank/IDA policies in the field of education. Washington, DC: World Bank, 1963
______. Education Sector Working Paper. Washington, D.C.: World Bank, 1971.
______. Education Sector Working Paper. Washington,D.C.: World Bank, 1974.
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______. Education Sector Strategy Update. Washington, D.C.: World Bank, 2005
______. Learning for all. Investing in people’s knowledge and skills to promote
development. Education Sector Strategy 2020. Washington, D.C.: World Bank. 2011
1 Proposed Bank-IDA Policies in the Field of Education 1963. O documento, confidencial, foi desclassificado pelo Banco em 26/07/2012 e agora está disponível em seu sitio: < http://documents.worldbank.org/curated/en/1963/10/16546424/proposed-bankida-policies-field-education> Acesso em 18/9/2014.
2 Education Sector Strategy. Washington, D.C.: World Bank, 1999. Com efeito, os documentos setoriais de Educação posteriores do Banco (WORLD BANK, 2005 e WORLD BANK, 2011, o mais recente, que será minuciosamente analisado na seção ‘3.3.2 - Estratégia 2020 para a Educação do Banco Mundial - Análise Crítica’) mantêm o uso do referido termo.
3 "An education sector strategy was last prepared in 1999, with an update finalized in 2006." Disponível em:<http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTEDUCATION/> Acesso em 20/09/2014.
4 Na implementação dessa estratégia, o EEBM 2020 estabelece que o Banco Mundial concentrar-se-á em três áreas: geração e intercâmbio de conhecimento, apoio técnico e financeiro e parcerias estratégicas. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 08); e para medir o êxito da estratégia, utilizará indicadores de desempenho, no intuito de acompanhar a efetiva adoção das ferramentas e das medidas de política educacional por ele impostas aos países “assistidos”.
5 Nos termos do próprio Banco, utilizados no documento em questão: países pobres, países de baixa e média renda, países em desenvolvimento e “estados frágeis”.
6 “Na primeira fase (março a junho de 2010), o Banco, liderado pelos membros do Setor de Educação da Diretoria, consultou várias partes interessadas (incluindo os governos, o setor privado, professores, alunos, parceiros de desenvolvimento e sociedade civil) sobre a abordagem global da estratégia, conforme descrito em um documento de síntese. Durante esta fase, o Banco Mundial realizou reuniões em 24 países, com representantes de 69 países. Na segunda fase (agosto a novembro de 2010), o setor consultou um público semelhante sobre um projeto de documento de estratégia em 29 reuniões em que 59 países foram representados. Em ambas as fases, outras pessoas enviaram comentários adicionais a um website dedicado à estratégia.” (WORLD BANK, 2011, p. 17)
7 Para uma ilustração empírica dessa configuração, reportar-se a Steiner-Khamsi (2012, p. 33-34), na qual a autora relata a avaliação de impacto do Projeto READ (sigla em inglês para Desenvolvimento e Educação Rural), na Mongólia, financiado pelo Banco Mundial.
8 Artigo submetido à Revista Trabalho e Educação em 21/02/2014, aguardando designação. (BASTOS, Remo M. B.) - A política educacional do Banco Mundial para os países periféricos como expressão da Geopolítica do Conhecimento. 2014.
9 Considere-se, a titulo de ilustração, a criação do Banco dos BRICS: "Na última terça-feira (16/7[2014]), um grupo de cinco países lançou seu próprio banco de desenvolvimento para fazer frente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, dominados pelos Estados Unidos. Governantes dos países conhecidos por BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – divulgaram a criação do Novo Banco de Desenvolvimento em uma reunião de cúpula no Brasil. O banco terá sede em Xangai. Juntos, os BRICS têm 40% da população mundial e 25% do PIB global." (http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/stiglitz-aposta-no-banco-dos-brics-2303.html , (acesso em 28 Ago 2014)