Caroline Ferri (CV)
Daísa Rizzotto Rossetto (CV)
carolineferri@gmail.com
Universidade de Caxias do Sul
Resumo: O antropocentrismo limitou a defesa do Direito Animal, quando os consagrou como máquinas, coisas que são sujeitas a apropriação. Nos dias atuais, a compreensão da vida animal é outra. Muitos países já possuem normas que coíbem práticas de exploração e violência aos animais. No Direito Brasileiro também existe um aparato normativo que vai nesse sentido, entretanto, é imprescindível que se entenda como os animais são vistos pelo direito, e se essas mesmas normas existem para a proteção direta dos animais ou como reflexo a interesses humanos, seguindo a lógica antropocêntrica. Ainda, faz-se necessário entender como tais normas se aplicam ao caso concreto.
Palavras-chave: Animais; Constituição; cultura; violência; maus-tratos.
Summary: The anthropocentrism has limited the Animal Rights defense when consecrated them as machines, things that are subject to appropriation. Nowadays, the understanding of animal’s life is different. A lot of countries already have rules that restrain practices of exploitation and violence to animals. In Brazilian Law there is also a regulatory apparatus that goes in this direction, however it's essential understand how animals are viewed by the law, and if those standards exist for the true protection of animals or just as reflect the human interests, following the anthropocentric logic. Still, it’s necessary to understand how these rules are applied to the case.
Keywords: Animals; Constitution; culture; violence; maltreatment.Para ver el artículo completo en formato zip pulse aquí
Considerações Iniciais
A questão do Direito dos animais está cada vez mais em pauta na atualmente. Já não se pode conceber a vida animal apenas aos olhos de interesses humanos e econômicos, o antropocentrismo desmedido não comporta novos ideias.
Nesse contexto, é necessário que se reflita sobre os animais aos olhos do Direito e como o Direito vem respondendo diante da popularização do debate acerca dessa temática. Nota-se, por esse viés, que a reflexão sobre como os humanos podem (ou não) dispor da vida animal remete aos primórdios da filosofia, quando já muitos pensadores colocavam-se contrários a Aristóteles com relação aos animais. Entretanto, o que acabou imperando foi a compreensão da inferioridade dos animais não humanos em relação aos animais humanos, concluindo-se que os animais são máquinas e funcionam quase que como um relógio, como acreditava Descartes.
Entretanto, na atualidade a discussão vem no sentido contrário. A partir de compreensões éticas e de comprovações científicas quando a capacidade de sofrimento e sensibilidade dos animais, considerar os animais como máquinas já não é concebível. Mesmo assim, as práticas de maus tratos, sofrimento e violência não cessam. Eis aí o papel do Direito?
Ao longo das reflexões que serão exploradas nesse artigo, pretende-se demonstrar como o Direito vem se posicionando em relação à efetividade do Direito Animal, mais especificamente como está sendo realizada a defesa dos interesses dos animais de acordo com a Constituição Federal de 1988.
I- Noções iniciais para o Direito dos Animais
Antes que se possa tratar sobre o direito dos animais aos olhos da Constituição Federal de 1988, cabe abordar, mesmo que de forma superficial, algumas noções que fazem relação à tão polêmica e moderna questão do Direito dos Animais.
Nesse sentido, as compreensões a cerca do tema são as mais amplas e variadas. Alguns podem entender o tema – do Direito dos Animais – com uma visão que vem a romper com o ideal antropocêntrico, norte da era moderna e que condiga com uma visão mais igualitária para com os demais elementos que integram a vida. A partir de tal compreensão, animais humanos e não humanos e as plantas estariam num mesmo pé de igualdade de relações, que poderia ser denominado como visão biocêntrica.
Por outro lado, há quem defenda a questão dos animais aos olhos de interesse, que traga benefícios para a vida humana apenas. Para visualizar, pense-se em quem defenda que o abate de animais deva ser “humanizado”, para que o mínimo de toxinas seja liberada e, consequentemente, não traga possíveis malefícios para a saúde humana.
(...) em matadouros legalizados ou em clandestinos, os animais liberam toxinas no organismo, substâncias essas que serão absorvidas depois pelo consumidor. Por mais absurdo que possa parecer, este argumento, relacionado à contaminação da carne – e não ao bem-estar dos animais -, é o que mais sensibiliza as pessoas.1
Entretanto a questão do Direito aos animais é mais complexa do que se pensa, afinal muitos entendem que conceder direitos aos animais não humanos, acarretaria em desconsiderações aos direitos humanos, ou ainda, enfraqueceria a noção de dignidade humana.
Indo um pouco além a consideração de direito aos animais envolvem “preocupações” tais como quem seria os responsáveis pela efetivação e defesa dos interesses da vida animal e as implicações éticas da causa.
I.1 - Primeira observação
Da Grécia antiga à modernidade, muitos foram os que se dedicaram a tentativa de caracterização da vida dos animais. Uns considerando-os como irmãos, como semelhantes da vida humana, outros os considerando como máquinas, instrumentos à utilização dos humanos.
Mesmo assim, destaca-se, pelo viés da defesa da vida animal não humana, existiu como um dos seus primeiros defensores, Plutarco, filósofo da Grécia Antiga. Plutarco não só defendeu veementemente o fim da escravatura humana, mas também a escravidão infligida aos animais. 2
Também Montaigne estendeu o debate a cerca dos animais:
Foi Michel de Montaigne que primeiro ateou o fogo da discussão em torno do estatuto dos animais, ao defender a superior moralidade e racionalidade das espécies não-humanas, e foi Descartes que ajudou a perpetuar a discussão sustentando a tese oposta, a da falta de racionalidade, de moralidade e até de consciência dos não-humanos. 3
Não se pode negar que Descartes foi um dos grandes pensadores da era moderna. O Autor desconsiderava os animais como seres dotados de senciência ou “capacidade de sofrimento”.
(...) É que o animal, como todas as máquinas benfeitas, “funciona” melhor do que o homem: “Sei perfeitamente”, escreve Descartes, “que os bichos fazem muito mais coisas melhor do que nós, mas eu não me surpreendo, pois isso serve justamente para provar que eles agem naturalmente e por uma força instintiva, assim como um relógio que mostra melhor que horas são do que nosso julgamento.4
Corroborando com a afirmação acima e indo no mesmo sentido da compreensão cartesiana:
“(...) para a doutrina do cogito (“penso, logo existo”), afinal, como a própria nomenclatura sugere, os animais não eram sujeitos cognoscentes, desprovidos que seriam da razão. Sem ela, conseqüentemente, não pensariam e sem o pensamento não possuiriam existência como indivíduos.” 5
Tal entendimento contribuiu para a formação da sociedade como está moldada na atualidade. Assim, o que acabou se solidificando, de fato, foi uma sociedade antropocêntrica. Nessa sociedade os animais humanos são os únicos dotados de razão e que, por tal motivo, estão colocados com superioridade em relação ao meio natural. Cabe apontar “que o modo de pensar da maior parte das sociedades humanas está intimamente relacionado à sua herança cultural.”6
No intuito de romper com o racionalismo cartesiano muitos pensadores dedicaram seus estudos à compreensão da vida animal e não os moldando como simples máquinas:
É contra esse cartesianismo que Maupertuis, um dos primeiros na França nesse contexto, evocará de modo explícito “o direito dos bichos”, dotados de sensibilidade e de inteligência. Mas também seria preciso citar Réaumur (...), Condillac (...), Larousse, Michelet, Schoelcher, Hugo e muitos outros mais, darão prosseguimento no século XIX. Primeiro tratarão de mostrar que o animal não é uma máquina, que ele pensa e que ele sofre. Sendo assim, possui direitos ou no mínimo cria deveres para a humanidade. 7
Mas mesmo o ideal de romper com as ideias cartesianas dos animais como máquinas, da racionalidade, de uma diferente compreensão da vida animal não deixou de ser uma compreensão antropocêntrica, como elabora Luc Ferry, na obra A nova ordem ecológica. O autor leva em consideração a temática do Direito dos Animais, aos olhos da realidade vivida pela França:
Há de notar, contudo, os limites desse anticartesianismo. Eles se devem essencialmente ao fato de continuar sendo de inspiração humanista, portanto, de alguma maneira, antropocentrista. Por esta mesma razão, o apelo ao respeito pelo animal só raramente chegará a lhe reconhecer direitos. Para dizer a verdade, será necessário esperar 1924 para ver aparecer na França uma “declaração dos direitos do animal” (...) ela é obra de um original, André Géraud, e que quase não terá repercussão. Como sublinha o próprio Larousse, no artigo, contudo, muito anticartesiano e zoófilo dedicado aos animais em seu dicionário, estes últimos não são “objeto de justiça”: eles não poderiam possuir uma personalidade jurídica comparável à dos seres humanos. A exigência de respeito não ultrapassará a ideia de que nós temos deveres não recíprocos.8
I.2- Segunda observação
Na atual conjectura que enlaça a sociedade moderna, é possível notar uma verdade antagônica. Veja-se que ao mesmo tempo em que cresce a preocupação com o bem-estar e a defesa dos interesses animais, também não deixam de cessar os relatos de maus-tratos, a indústria os coloca como objetos de uma produção em escala, os mantém em ambientes artificiais de estresse elevado. A título de exemplificação, entre tantos outros exemplos que pode ser dado, elenca-se apenas um, o caso das galinhas poedeiras:
A grande maioria das poedeiras fica amontoada dentro das baterias, que são um enorme conjunto de gaiolas de metal, colocadas umas em cima das outras. As galinhas de baixo vivem sob uma torrente ininterrupta de excrementos produzidos pelas de cima. Qualquer que seja a posição delas na hierarquia do galinheiro industrial, o ambiente em que vivem é superlotado. Num espaço que mal equivale ao de uma gaveta de arquivo de escritório, espremem-se até dez galinhas (a média na indústria é entre sete e oito).
As poedeiras estão anatomicamente adaptadas a ficarem de pé sobre o arame durante anos. Quase a metade dessas aves tem anormalidades nas pernas e nas unhas. A maioria tem feridas e contusões causadas pela fricção contra a gaiola. Todas sofrem a dor e o trauma da debicagem. 9
Como já dito, por outro lado o debate a cerca das questões como a elencada acima, cresce e estende-se ao meio acadêmico, a política, ao Direito e acaba refletindo-se nos aparatos normativos.
Nos dias de hoje, as sociedades pelo mundo começam a ver a vida animal a partir de outras perspectivas, fazendo com que essa nova “visão” interfira nos dispositivos legais que acabam por refletir certa pressão social em detrimento da defesa e da consideração da vida animal.
Entretanto, nota-se que
De fato, o progresso intelectual proporcionou melhorias pontuais de ordem prática aos animais, sob a forma de leis contrárias à crueldade. É interessante observar que os primeiros estatutos protetivos, ao coibirem os atos de abuso e crueldade, tiveram, em realidade, o propósito de proteger a moralidade humana, e não a integridade animal, em autêntica adoção da teoria dos chamados “deveres indiretos”.10
Assim, vislumbra-se que muitos estatutos jurídicos que surgiram não buscam a efetiva consideração do interesse animais, mas, seguindo a lógica antropocêntrica, refletem interesses puramente humanos. Talvez por isso seja, nos dias de hoje, ainda tão difícil quebrar o paradigma e vislumbrar os animais como sujeitos de direito e conceder direitos básicos, mas que vão de acordo com os interesses de vida que os animais possuem. Exemplificando, o direito de viver conforme a sua própria natureza, não sofrendo violência e não servindo de alimento para humanos.
Com relação às normas jurídicas adotadas por alguns países, com relação aos animais, veja-se o caso da Alemanha, que há muito tempo já vem debatendo acerca da figura do Direito Animal. “Atente-se que a proteção à natureza – e aos animais nela incluídos – é pacífica no direito alemão pelo menos desde o século XIX.” 11
Ainda,
Um dos aspectos importantes da proteção ao animal está em que, na Alemanha, é crime punido com pena de provação de liberdade (três anos), matar um animal vertebrado imotivadamente, sem qualquer razão ou desculpa e com truculência, infligindo-lhe dor ou sofrimentos.12
Muitos outros países também já vêm se posicionando em relação ao Direito dos Animais, conferindo-lhe determinadas proteções e coibindo práticas de maus-tratos que coloquem em risco a vida dos animais.
É também o caso do Brasil, onde muito se tem debatido, nos dias atuais, sobre as premissas para o Direito dos Animais. A própria Constituição Federal, prevê a proteção dos animais. No próximo capítulo, tratar-se-á exclusivamente do tema.
II- O Direito dos animais sobre a égide da Constituição Federal
Os animais, prejudicados pela adoção do que ao logo dos séculos se consolidou como o antropocentrismo, vem sofrendo de diversas formas, uma vez que, herdeiros de uma racionalidade cartesiana, foram descaracterizados de qualquer forma de sensibilidade e senciência.
A herança que foi deixada e está arraigada no direito moderno alega que os animais estão abaixo dos animais humanos e que, por tanto, suas vidas não possuem o mesmo valor que a vida de um ser humano. Na verdade, aos olhos do Direito, a vida animal não possui valor, e sim preço, uma vez que é vista como coisa suscetível de propriedade, logo, os valores atinentes a esse “bem” refere-se a um valor do proprietário, da economia.
Aos olhos do Direito, os animais foram classificados, ainda na nascente do Direito Romano, como coisas. “(...) o Direito Romano consolidou a divisão entre bens móveis e imóveis, classificando os animais na primeira categoria de bons (res mobiles), também denominados de semoventes.”13
Desta forma “A condição dos animais não-humanos é, pois, mantida sob o manto da coisificação e da impersonalidade.” 14
Pois bem, veja-se que a constituição das sociedades, citadas anteriormente, foi refletida nos aparatos normativos, mesmo naqueles que, de alguma forma, buscam a proteção dos animais. Nota-se que, no Brasil, mesmo havendo legislação que pretenda proibir abusos contra animais, eles não cessam.
A sensação de impunidade, somada ao ceticismo da maioria das autoridades em relação ao sofrimento dos bichos, é, pior, às motivações de ordem sócio-cultural do povo, serviram de estímulo às condutas cruéis registradas pela jurisprudência brasileira ao longo de muitas décadas (de 1934 a 1998). 15
O que dispõem os artigos da Constituição Federal deveriam guiar todo o restante das normas e contribuir para uma formação cultural positiva para a relação dos animais humanos com os animais não humanos.
Cabe ressaltar, ainda, que o que dispõe o artigo 225, da Constituição Federal de 88, no qual há normatividade para a proteção dos animais e coibir práticas cruéis, é consagrado como direito fundamental.
(...) em decorrência do sistema materialmente aberto dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 88 o direito à proteção ambiental é um direito fundamental. E, em virtude do mesmo motivo é também fundamental um dever fundamental, ambos previstos expressamente no artigo 225 da Constituição Federal de 88 que disciplina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 16
Entretanto, mesmo sendo norma fundamental, que geraria deveres fundamentais, muitos veem que essa mesma proteção é aparente uma vez que, as normas guardam, em sua essência, a defesa de interesses. E tais interesses não são os dos animais. Leiam-se as palavras de Laerte Levai sobre o tema:
Os avanços ambientais verificados nas últimas décadas, em prejuízo da individualidade dos animais, fizeram com que nosso sistema constitucional priorizasse a chamada função ecológica da fauna. Exceção feita ao artigo 225, § 1°, VII, da Constituição Federal, que, ao vedar a submissão de animais a atos de crueldade sugere um tratamento ético para com eles, em quase todo ordenamento jurídico brasileiro o animal é tratado como coisa, objeto material ou recuso ambiental. Vários diplomas legais que se propõem, a princípio, à tutela jurídica da fauna, não resistem a uma apurada análise crítica. O colorido protecionista impede, tantas vezes, de ver o que se oculta por trás de uma lei supostamente comprometida com o bem estar dos animais, porque no fundo o que se pretende resguardar é o interesse humano. 17
Vindo a corroborar com a ideia:
A bem da verdade, sob a égide jurídica os Animais são protegidos da seguinte forma: primeiro, os Animais continuam sendo considerados coisas ou semoventes, ou coisas sem dono conforme os dispositivos do Código Civil Brasileiro e, nesse sentido, são protegidos mediante o caráter absoluto do Direito de Propriedade, ou seja, como propriedade privada do home e passíveis de apropriação. Aqui se encontram os Animais domésticos e domesticados, considerados coisas, sem percepções e sensações.18
Para tornar os argumentos aqui utilizados mais visíveis, os tópicos apresentados a seguir tentam demonstrar como as práticas com a vida dos animais pode podem receber, ou não, o respaldo de que dispõe a Constituição Federal de 1988.
II.1- A Farra do Boi
Quando se fala em Farra do Boi, a interpretação pode vir de duas vias. A primeira refere-se à manifestação cultural, protegida pela Constituição Federal, nos artigos, 215 e 216. A segunda, um tanto mais crítica e polêmica, refere-se a uma prática que contraria o que dispõe o artigo 225, § 1°, VII da Constituição Federal. Uma vez que, acredita-se que a prática da Farra do Boi, manifestação cultural bastante popular no Estado de Santa Catarina, vai contra as práticas que tentam inibir maus-tratos e que submetam os animais à violência.
A questão, tão controversa, chegou até o Supremo Tribunal Federal, após Instituição em defesa do direito animal entrar com ação pedindo a proibição da Farra do Boi, em Santa Catarina.
Neste sentido, vale ressaltar como se caracteriza a Farra do Boi:
Costuma-se dizer que a versão brasileira das touradas é a Farra do Boi, que em 1997 foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Trazida ao Brasil há mais de duzentos anos pelos imigrantes açorianos que se fixaram em Santa Catarina, sua prática se caracteriza pela perseguição e linchamento dos animais. Os adeptos desse mau costume, munidos com paus, pedras, facas e varas, correm atrás de bois, vacas e garrotes, submetendo-os a um prolongado martírio: espancamentos, fraturas, mutilações e queimaduras. Barbárie que acontece todo ano durante os feriados da Semana Santa, a Farra do Boi ensejou tantos protestos populares que uma associação protetora de animais decidiu questioná-la na Justiça.
O processo, surpreendentemente, acabou chegando à maior Corte Judiciária do país, sobrevindo daí a histórica decisão de 03 de junho de 1997. Por maioria dos votos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Farra do Boi é inconstitucional. 19
Conforme também fica demonstrado no artigo escrito por Wilson Steinmetz 20, o recuso, embora tenha havido divergência entre os votos dos Ministros, foi acolhido. Entretanto, não é falho dizer que houve votos que compreenderam que as manifestações culturais se sobrepõe a proteção dos animais.
Entretanto, como conclui Steinmetz,
Não é nenhum exagero afirmar que o tratamento com crueldade está para os animais assim como a tortura está para os humanos. A proibição de tortura também é um mandamento definitivo, não passível de ponderação e, portanto, não pode ser afastada por outra regra ou princípio. Seria arbitrário, por exemplo, defender que determinados métodos violentos de interrogatório não caracterizam tortura se há motivos sociais ou de interesse público relevantes.21
E prossegue, seguindo a lógica do que dispõe a Constituição, no que diz respeito a outras práticas que são aceitas. “Atente-se para o fato de que a CF/88 não proíbe, com um mandamento definitivo, o abate de animais para o consumo. A nossa Constituição proíbe a crueldade, ou seja, maus-tratos, abusos, mutilação, etc.” 22
Vindo para colaborar com as ideias já expostas, Laerte Levai, após expor as inúmeras práticas tidas no Brasil como manifestações culturais, irá concluir que
(...) os valores são como estrelas polares – pontos de referência que inspiram e norteiam a Cultura. Sob essa perspectiva, o Direito é uma realidade histórica que tem por finalidade realizar os valores da Justiça, entre os quais se inclui a vida, o respeito à integridade física e o exercício da liberdade. (...) E esses direitos não se restringem a divagações de ordem abstrata ou sentimental, ao contrário, adentram no campo da razão. Basta verificar que o mandamento do artigo 225 par. 1°, inciso VII da Constituição Federal brasileira não se limita a garantir a variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. 23
Portanto podemos entender que mesmo frente a práticas tidas como manifestações culturais e socialmente aceitas faz-se necessário que as mesmas não se coloquem contra outros dispositivos legais que pretendam proteger os animais contra atitudes cruéis e violentas, uma vez que a Carta Magna pretende estancar tais abusos, atos que coloquem em risco e degradem a qualidade de vida dos animais.
II.2- Rodeios
Como visto no tópico anterior, a Farra do Boi, após incitar muita discussão no âmbito jurídico, foi considerada inconstitucional, uma vez que viola o que dispõe o artigo 225, § 1°, VII da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, usando a mesma lógica de que os Rodeios consagram-se como manifestação cultural regionalizada, pode-se dizer que o Rodeio é inconstitucional, uma vez que se utiliza de práticas de crueldade para com os animais?
Citando novamente Laerte Levai tem-se que:
Nos rodeios os animais também são submetidos à crueldade. Pulam e escoiceiam nas provas de montaria em decorrência de certos subterfúgios bem conhecidos na atividade do peão: o sedém e a espora. Usados para fustigar touros e cavalos na arena, tais aparelhos – independentemente de sua forma e da capacidade de provocar lesões – causam-lhes inegáveis sofrimento físico e mental. Assim, os peões, de rodeio fazem crer ao público que estão montando animais xucros e bravios, quando na realidade esses animais, mansos e domesticados, corcoveiam em desespero na tentativa de livrar-se daquilo que os oprime. 24
Notam-se, a partir da citação acima, que Rodeios ocorrem todos os anos, em diversas cidades do país, sem qualquer limitação as práticas de abuso e maus tratos a animais, em outras palavras, contrariando o que dispõe o artigo 225 da Constituição Federal, que veda práticas de violência e maus tratos a animais.
Muitas pessoas participam de rodeios, desconhecendo a realidade por trás do espetáculo, não possuindo qualquer outra informação, acreditam tratar-se de um esporte e desconsiderando qualquer sensibilidade dos animais. Assim, “a ampla dimensão do rodeio evidencia a metodologia cruel com que se perfaz, levando o público - desinformado – a acreditar que se trata de um esporte ou de simples diversão pública” 25. “Nesses eventos, a plateia vibra ao ver o animal ser dominado e maltratado. É incrível a capacidade humana de se divertir com a dor alheia.” 26
Rodeios constituem práticas que são vedadas, a priori, na Carta Magna, uma vez os animais envolvidos nesses eventos são tratados com desrespeito e sua integridade física é abalada.
Há quem acredite que o crime de maus tratos para com animais dependa, para sua caracterização, do contexto social e geográfico em que é praticado. Alega-se, também, que não ocorre ofensa constitucional quando se exalta – mesmo que à custa de violência – um costume local. Esse argumento soa como verdadeiras heresias jurídicas, porque o dispositivo magno que veda a submissão de animais à crueldade é um preceito geral, aplicável indistintamente a todas as unidades da federação. Do contrário estar-se-ia estimulando, ao sabor das circunstâncias, a impunidade daqueles que maltratam animais. Essa é a teoria. Na prática, porém, o que se vê em meio à vastidão territorial brasileira é um cenário desolador.27
Nota-se que,
Todas as normas constitucionais produzem efeitos jurídicos, uma vez que toda a Constituição nasce para ser aplicada e regular a vida estatal e em sociedade. Pode-se afirmar, desta forma, que todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia jurídica e imediatamente aplicáveis nos limites dessa eficácia.28
Entretanto, diferentemente do que acontecem no caso da Farra do Boi, que foi proibido em Santa Catariana, os rodeios são práticas reiteradas e que não cessam. O Brasil é famoso pelas festas de rodeios que movem milhares de pessoas e grande quantia de dinheiro.
O que fica evidente diante dos fatos apontados é que mesmo havendo previsão legal que inibe práticas de abuso, crueldade e maus-tratos contra animais, a aplicação para a proteção dos animais não ocorre de forma integral e quando são confrontadas com interesses perdem força. A norma legal acaba ficando, apenas, no papel, ou ainda, a margem de um julgamento, que pode ser até mesmo contrário ao que dispor a Constituição, que dirá que eventos, nitidamente caracterizados como práticas abusivas e que denigrem a dignidade da vida animal, são práticas culturalmente aceitas.
Assim, diga-se ainda, que o valor inerente de que falava Tom Regan ou o princípio da igualdade a que se dedicou Peter Singer passam irrelevantes diante das leituras do Direito, que se mantém atrasado quanto ao debate a cerca da dignidade da vida animal.
As situações apontadas, Farra do Boi e Rodeios, demonstram o que dispõe na Constituição Federal nem sempre tem força para frear as práticas de abuso para com a vida animal. Entretanto, a norma existe, o Direito deve conduzir à consolidação novos paradigmas sociais e romper com velhas culturas que já não de mantém diante nas conjecturas atuais.
Considerações Finais
A partir das considerações feitas nesse trabalho tentou-se apontar como o aparato normativo para a proteção dos animais existe. A Constituição Federal, lei máxima do país, estabelece proteção aos animais no artigo 225, entretanto, quando confrontada a lei como o mundo dos fatos, a realidade é outra.
A herança posta no Direito é de uma ética antropocêntrica em que os valores estabelecidos quanto ao agir ético referem-se às relações entre humanos e, mesmo que há muito venha se discutindo esse mesmo agir, agora em relação aos animais, o Direito permanece o mesmo, inerte quando confrontados direitos dos humanos com os interesses dos animais.
Entretanto, nota-se que tal direito não é, por exemplo, o direito a vida, aqui não se esta sopesando o direito de viver do animal mais do que o do humano. Aqui, aponta-se o direito do animal de viver dignamente, de não ser vítima da violência diante de um direito humano de manifestação cultural.
Em dois casos apresentados e comprovando-se a presença do abuso, dos maus tratos, das práticas violentas do ser humano contra os animais em ambas, aparece uma lacuna: no primeiro caso a prática foi proibida diante do que dispõe o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, no segundo, as “manifestações culturais” continuam a existir em diversos lugares do país, o sofrimento animal ganha o nome de esporte, entretenimento. Entretanto, a diversão não se estende ao animal.
O caminho aqui trilhado aponta como o Direito expõe as considerações antropocêntricas, em que qualquer interesse não humano sucumbe ao interesse humano, em que qualquer outra dignidade que possa ser respeitada é esquecida. E que mesmo havendo consideração a moralidade no Direito, mesmo havendo grandes teorias sobre moral, para o Direito, a relação não se estende aos animais. O Direito segue sendo o posto em Roma, o Direito segue uma lógica antropocêntrica, já ultrapassada, já não refletindo as problemáticas atuais em que não socorre os mais fracos da relação, qual seja nesse caso, os animais, o meio natural.
Referências
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2LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP: Editora Mantiqueira, 2004. p.138
3 HARRISON apud ARAÚJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p.56
4FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.69
5 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. p.191
6 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. p.36
7FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.71
8 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.73
9 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução Regina Rheda. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006. p.115
10 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. p.264
11MOLINARO, Carlos Alberto. Têm os animais direitos? Um breve percurso sobre a proteção dos animais no direito alemão. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado Socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p.158
12MOLINARO, Carlos Alberto. Têm os animais direitos? Um breve percurso sobre a proteção dos animais no direito alemão. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado Socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p.p.157-158
13 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. p.90
14LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. p.90
15 Levai, Laerte Fernando. Direito dos animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP: Editora Mantiqueira, 2004. p.34
16MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 71
17Levai, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP: Editora Mantiqueira, 2004. p.48
18RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p.p.70-71
19LEVAI, Laerte Fernando. Cultura da violência: antropocentrismo e subjugação de animais. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de; RALL, Vânia (orgs). Reflexões sobre a tolerância: direitos dos animais. São Paulo: Humanitas, 2010. p. p.61-62
20STEINMETZ, Wilson. O caso da “Farra do Boi”: Uma análise a partir da teoria dos princípios. In: STEINMETZ, Wilson; AUGUSTIN, Sérgio (Org.). Direito constitucional do ambiente. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011.
21STEINMETZ, Wilson. O caso da “Farra do Boi”: Uma análise a partir da teoria dos princípios. In: STEINMETZ, Wilson; AUGUSTIN, Sérgio (Org.). Direito constitucional do ambiente. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. p.86
22 STEINMETZ, Wilson. O caso da “Farra do Boi”: Uma análise a partir da teoria dos princípios. In: STEINMETZ, Wilson; AUGUSTIN, Sérgio (Org.). Direito constitucional do ambiente. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. p.86
23 LEVAI, Laerte Fernando. Cultura da violência: antropocentrismo e subjugação de animais. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de; RALL, Vânia (orgs). Reflexões sobre a tolerância: direitos dos animais. São Paulo: Humanitas, 2010. p. 68
24LEVAI, Laerte Fernando. Cultura da violência: antropocentrismo e subjugação de animais. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de; RALL, Vânia (orgs). Reflexões sobre a tolerância: direitos dos animais. São Paulo: Humanitas, 2010. p. 62
25LEVAI, Laerte Fernando. Cultura da violência: antropocentrismo e subjugação de animais. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de; RALL, Vânia (orgs). Reflexões sobre a tolerância: direitos dos animais. São Paulo: Humanitas, 2010. p.63
26CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos direitos dos animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 91
27 LEVAI, Laerte Fernando. Cultura da violência: antropocentrismo e subjugação de animais. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de; RALL, Vânia (orgs). Reflexões sobre a tolerância: direitos dos animais. São Paulo: Humanitas, 2010. p.64
28 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p.76