Anderson Vichinkeski Teixeira (CV)
Fabrício Fernandes Farret (CV)
Luiz Antônio Garcia de Abreu (CV)
andersonvteixeira@hotmail.com
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
RESUMEN
En este artículo se abordará el derecho fundamental a la educación de la primera infancia y sus consecuencias para los municipios, principalmente a causa de las frecuentes alegaciones de limitaciones financieras. En un primero momento examinaremos la legislación pertinente al tema. Posteriormente, abordaremos el tema de la limitación de hecho y financiera a la protección de los derechos sociales. Por último, examinaremos algunas de las decisiones más relevantes sobre la educación de la primera infancia en las cortes más importantes del derecho brasileño: el Supremo Tribunal Federal y el Superior Tribunal de Justicia.
Palabras clave: Derechos Sociales Fundamentales; Educación Infantil; Reserva del Posible; Mínimo Existencial.
RESUMO
O presente artigo abordará o direito fundamental à educação infantil e suas implicações para os municípios, sobretudo em virtude das alegações frequentes de limitações financeiras. Em um primeiro momento examinaremos a legislação atinente ao tema. Posteriormente, trataremos da questão das limitações fáticas e financeiras à tutela dos direitos sociais. Por fim, examinaremos algumas das principais decisões sobre educação infantil das duas cortes mais importantes no direito brasileiro: Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
Palavras chave: Direitos Fundamentais Sociais; Educação Infantil; Reserva do Possível; Mínimo Existencial.
ABSTRACT
This article will focus on the fundamental right to childhood education and its implications for municipalities, specially because of its usuall allegations of financial limitations. At first, we will examine the relevant legislation on the topic. Following, we will address the issue of the factual and financial limitations to the protection of social rights. Finally, we will examine some of the main decisions about childhood education from the two most important courts in Brazilian Law: the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice.
Keywords: Fundamental Social Rights; Childhood Education; “Reservation of possible”; Existenzminimum.
Introdução
A Constituição de 1988 instituiu um rol de direitos fundamentais muito superior aos existentes nas cartas constitucionais precedentes, retomando diversos direitos fundamentais que durante os governos militares foram suprimidos, ou esquecidos, por meio de práticas autoritárias, como os atos institucionais. A retomada de valores, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, ampliou a compreensão dos direitos fundamentais. A tutela dos direitos sociais, como direito à saúde e à educação, criou o dever para o Estado de assegurar tais direitos, uma vez que consolidam o chamado mínimo existencial. Todavia, diante deste grande rol de direitos fundamentais, o Estado brasileiro muitas vezes se vê em meio a ter que decidir quais direitos serão precipuamente protegidos.
Por consequência, tomando como marco a Constituição de 1988, a qual trouxe para a seara constitucional inúmeros direitos e garantias individuais, percebe-se uma forte mudança de paradigma, inaugurando, assim, um novo momento histórico do povo brasileiro e da democracia. Diferentemente das constituições anteriores, a educação passou a integrar a relação dos direitos públicos subjetivos, não mais fazendo parte de um objetivo perseguido pelo Estado na busca de desenvolvimento e unidade nacional. Isso é evidenciado, entre outros motivos, pela desobrigação do ensino de Educação Moral e Cívica e outras disciplinas afins nas escolas.
Essa ampla dimensão dos direitos fundamentais criou uma questão relevante: a quais deles o Estado irá dar prioridade? O fato de o erário não poder cobrir, em nível de excelência, todos os direitos fundamentais torna relevante o debate sobre o chamado mínimo existencial. O conceito de reserva do possível reflete a alegação de impossibilidade, por questões fáticas e de ordem econômica ou mesmo de ordem prática, na efetivação de determinado direito. Nesse sentido, é necessário analisar como a administração realiza as escolhas entre os direitos aos quais serão dado prioridade para sua efetivação, e quais direitos serão “deixados em segundo plano”.
Contudo, em alguns casos em que a administração afirma a reserva do possível diante dos direitos que compõem o chamado mínimo existencial, nestes casos é possível que o Ministério público, entre na defesa desses indivíduos. Em tais casos, acaba se tornando um dilema, pelo fato de a administração não possuir recursos, e o pedido em proveito do cidadão estar baseado na tutela do seu mínimo existencial ou mesmo da sua dignidade.
Após retomar algumas definições conceituais sobre os conceitos supracitados, bem como uma breve exposição do cenário legislativo concernente à educação, procederemos uma análise jurisprudencial dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre o direito fundamental à educação infantil, dando especial atenção para a atuação do Ministério Público na defesa de políticas públicas em prol da educação infantil (creche e pré-escola).
1. A educação infantil no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
Antes de procedermos, devemos tecer algumas considerações iniciais sobre a estrutura normativa da tutela do direito à educação infantil no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
A Constituição de 1988 estabelece, em seu art. 208, a regra maior e inicial no que concerne ao assunto em tela: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (…) IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;”
Depois da alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, pelo advento da Lei n. 12.796, de 04 de abril de 2013, o seu art. 30, II, passou a ter a seguinte redação: “A educação infantil será oferecida em: I – creches, ou entidades privadas, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.”
A diferença entre creche e pré-escola é substancial: aquela trata do desenvolvimento físico, psicológico e cognitivo da criança, enquanto esta já inicia a aplicação de conteúdos pedagógicos que, futuramente, serão aprofundados no processo de ensino-aprendizagem. A mera composição dos citados dispositivos legais já permite determinar que a responsabilidade do Estado em promover o acesso à educação, universalmente, torna-se obrigatória somente a partir dos 4 (quatro) anos, quando deve iniciar o pré-escolar.
Acrescente-se ainda o disposto no art. 212, parágrafo 3: “A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação.”. O caput do art. 212 também merece ser sublinhado: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.”
A não destinação dos recursos mínimos previstos pela Constituição para a educação costuma ser objeto de diversas ações judiciais. Quanto ao ensino infantil e a aplicação de recursos mínimos pelos Municípios, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é pacífico no sentido do exposto no RE 465.066 AgR:
CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATRÍCULA DE CRIANÇA DE ZERO A SEIS ANOS DE IDADE EM CRECHE E PRÉ-ESCOLAS MUNICIPAIS. FUNDAMENTOS INFRACONSTITUCIONAL E CONSTITUCIONAL. SÚMULA 283 DO STF. I - O acórdão recorrido determinou a matrícula de criança em creche municipal com apoio em fundamentos constitucional (art. 211, § 2º, da CF) e infraconstitucional (art. 54, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente). Manutenção do fundamento infraconstitucional. Incidência da Súmula 283 do STF. Precedentes. II - Agravo regimental improvido.
O mesmo entendimento já estava assentado no caso do RE 410.715 AgR, dando ênfase para o fato de que a discricionariedade administrativa dos entes municipais “não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.”
Devemos também analisar a norma que frequentemente é utilizada para fundamentar o dever de oferta universal de vagas em creches: o art. 54, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). A redação do referido artigo estabelece que: “É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: (...) IV – atendimento em creche e pré-escola a crianças de zero a seis anos de idade”. Ou seja, trata-se de norma que não tem como gozar de eficácia plena, pois depende de regulamentação. Carece de norma regulamentadora porque não consegue por si mesma responder a perguntas práticas elementares, como a localização onde devem ser construídas, o número de crianças por creche ou pré-escola, o número de instituições por habitantes, o valor dos recursos a destinar, o modo de ingresso, os requisitos para o ingresso das crianças em tais creches ou pré-escolas.
Não se há de olvidar que o art. 22, XXIV, estabelece que é competência legislativa privativa da União legislar sobre “diretrizes e bases da educação nacional”, enquanto que o art. 30, VI, determina que compete ao Município “manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental.” Consequentemente, a norma prevista no art. 54, IV, do ECA dependerá, para poder gozar de eficácia, de norma regulamentadora a ser elaborada pelo Município.
Um outro aspecto precisa ser tratado. O parágrafo primeiro do art. 208 da Constituição determina que “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Desta norma decorrem algumas implicações diretas:
1. Atribui à criança, a partir dos 4 (quatro) anos de idade, o direito público subjetivo a ser matriculada no ensino básico, i.e., no pré-escolar.
2. Atribui aos pais ou responsáveis o dever constitucional de procurar matricular o(s) filho(s) no sistema educacional, sob pena de incorrer no delito de abandono intelectual, mormente o art. 243 do Código Penal. Neste ponto o ordenamento jurídico, dada a gravidade de uma eventual inação por parte dos pais ou responsáveis, obriga-se a apelar à última ratio do Direito, que é a repreensão penal.
3. Atribui à Administração Pública – Municipal, no caso da educação infantil – o dever constitucional de atender os investimentos mínimos em educação previstos, sobretudo, pelo caput do art. 212 da Constituição e, por conseguinte, ofertar gratuita e universalmente o acesso ao estudo.
Em breve síntese, a partir dos 4 anos de idade, com a entrada no pré-escolar, pais e poder público são legalmente obrigados a ter as crianças matriculadas no ensino, sob pena de responsabilização criminal e fiscal, respectivamente. Já a creche, que cobre até os 3 anos de idade, deve estar incluída no mínimo constitucional de 25% de recursos destinados para a Educação por parte dos municípios, mas a não matrícula não possui repercussões penais para os pais, por um lado, e não produz a responsabilização fiscal do administrador público, por outro lado, quando satisfeito o referido mínimo constitucional de 25% de recursos destinados para a Educação.
2. Conceito de Reserva do possível
Pode-se encontrar a origem da reserva do possível no direito alemão, sobretudo na década de 1970. Com o famoso caso numerus clausus, que tratava da questão de limitação do número de vagas em universidades alemãs, costuma-se ver um possível marco inicial no tema. Sarlet (2010, p. 287) recorda que neste caso o Tribunal Constitucional Federal alemão (BVerfGE, 33, 303) afirmou que o direito de acesso ao ensino superior deve gerar uma prestação estatal que corresponda “ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.” Acrescenta ainda que “poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento.” (SARLET, 2010, p. 287)
No referido caso, a corte alemã proferiu decisão, de 18 de julho de 1972, em demanda judicial que foi ajuizada por estudantes que não haviam sido aceitos nas faculdades de medicina de Hamburgo e de Munique em razão da política alemã da época que passara a limitar as vagas em cursos superiores. Os estudantes alegavam ofensa ao artigo 12 da Lei Fundamental alemã, segundo o qual “todos os alemães têm direito de escolher livremente a sua profissão, local de trabalho e o seu centro de formação”. Com isso, o acesso à universidade passou a serguir padrões e critérios universais em toda a Alemanha, deixando mais claras e objetivas as “restrições de capacidade” (Kapazitätsengpässen) na distribuição de vagas nas universidades.
Com sua decisão, a Corte entendeu que o direito à prestação do número de vagas estava limitado pelas condições fáticas, criando um posicionamento no sentido de que somente poderia o cidadão exigir do Estado aquilo que razoavelmente pudesse esperar exigir da sociedade. Neste sentido, questões como dificuldades fáticas ou orçamentárias, deveriam ser tratadas com proporcionalidade, mediante a ponderação em sua aplicação, não podendo ser exigido do Estado prestações desproporcionais. Em sua origem a tese da reserva do possível não estava ligada unicamente à questão do erário, mas também à razoabilidade da pretensão proposta frente as possibilidades materiais e a importância do direito em questão. Com o tempo a reserva do possível passou a ser um limite para a efetivação de direitos sociais, por razões de fundo financeiro ou por razões de impossibilidade de prestação jurisdicional.
Algumas brevíssimas considerações devem ser feitas sobre a natureza jurídica da reserva do possível.
Premissa inicial: a efetividade do direito possui limitações fáticas. Tais limitações não podem ser eliminadas, em muitas situações, ainda que se esteja tratando de uma situação amplamente normatizada. Esta premissa pode ser utilizada para descrever a situação em que se encontram alguns municípios brasileiros com déficits no erário, pois enfrentam diversos problemas na realização tanto de políticas públicas como na efetivação de direitos sociais.
A reserva do possível representa o limite para a aplicação de direitos, uma vez que tais direitos só poderiam ser exigidos, segundo tal postulado, dentro das condições fáticas possíveis encontradas pela administração pública. Olsen (2008, p. 199) afirma que a “reserva do possível configura limite imanente dos direitos fundamentais sociais, para outros, ela configura limite externo”. A reserva do possível acaba sendo tratada na jurisprudência brasileira de diversas formas: como principio, como cláusula, como postulado e, ainda, como condições de realidade.
Recordemos um possível conceito de princípio, dado por Ávila (2004, p. 72):
Os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, ou seja, normas que impõe a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários para aquela promoção. Os postulados não impõem a promoção de um fim, mas em vez disso estruturam a aplicação do dever de promover um fim.
Entretanto parece inadequado descrevê-la como principio, pelo simples fato de que não prescreve um determinado estado de coisas a ser atingido. A ponderação é utilizada, em relação à reserva do possível, para compreender o conflito entre os bens sociais perseguidos e a capacidade do Estado em poder supri-los frente a outros bens sociais, alegadamente de maior ou menor importância. Desta forma, os termos cláusula ou postulado, podem ser mais adequados para se referir à reserva do possível, pelo fato dela estruturar a aplicação de normas. E ainda no conceito de Humberto Ávila, um postulado não estaria sujeito ele próprio à ponderação, pelo fato da ponderação, ela mesma se tratar de um postulado hermenêutico, não podendo, assim, ser objeto de ponderação. Desse modo, parece mais adequado descrever o conceito de reserva do possível como uma condição da realidade, que irá influenciar na aplicação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, para Kelbert (2011, p. 78) a sua definição em termos de natureza jurídica seria a de que a reserva do possível é um “limite fático e jurídico à efetivação dos direitos sociais”.
3. Os direitos sociais como direitos fundamentais
É da própria natureza dos direitos fundamentais possuir um status hierárquico-normativo superior em relação às demais normas presentes no ordenamento jurídico, estando eles submetidos aos limites impostos pela própria Constituição. Trata-se de elaboração, procedida pela doutrina germânica, que distingue claramente direitos humanos de direitos fundamentais, tomando-se como ponto referencial a relação com o direito interno dos Estados. Entende-se por direitos fundamentais aqueles que são positivados nas Constituições e nas leis infraconstitucionais, ou melhor, são aqueles que se encontram incorporados dentro da órbita jurídica estatal. Assim, a posição dos direitos humanos se situa no âmbito do direito supranacional e, também, num plano anterior ao do surgimento do Direito, seja nacional ou supranacional: vincula-se ontologicamente ao homem, influindo, destarte, na própria essência do Direito, pois, segundo Reale (1999, p. 196), o homem é o valor-fonte de todos os valores ou a “fonte dos valores”: “o homem é a fonte de todos o valores porque é da sua essência valorar, criticar, julgar tudo aquilo que lhe é apresentado, seja no plano da ação ou no do conhecimento.”
No presente momento, devemos reconstruir as origens dos direitos sociais como direitos fundamentais, e examinar a possibilidade de restrição aos direitos fundamentais, sejam individuais ou sociais.
3.1. Origem dos direitos sociais
A origem dos direitos fundamentais remonta aos direitos humanos em âmbito internacional, pois posteriormente foram reconhecidos como direito de todo cidadão dentro do Estado brasileiro, tendo em vista terem sido positivados e afirmados na Carta Magna. Os direitos humanos tiveram surgimento no pensamento filosófico ocidental, notadamente no século XVII, como teoria abstrata, cuja força se resume nas exigências formuladas ao poder político constituído.
Ao longo de um processo histórico iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, desenvolveram-se três gerações/dimensões – sucessivas e não excludentes entre si – de direitos humanos:
(1) os relativos à cidadania civil e política,
(2) os relativos à cidadania social e econômica e
(3) os relativos à cidadania “pós-material”, que se caracterizam pelo direito à qualidade de vida, a um meio ambiente saudável, à tutela dos interesses difusos e ao reconhecimento da diferença e da subjetividade. (FARIA, 1999, p. 457)
Cançado Trindade (2003, p. 488) bem destaca que o “fenômeno que hoje testemunhamos não é o da sucessão, mas antes de uma expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, consoante uma visão necessariamente integrada de todos os direitos humanos.”
A primeira geração/dimensão dos direitos humanos tem como referência para o seu surgimento duas declarações de direitos: o Bill of Rights (Reino Unido), de 1688, e a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (EUA), de 1776. Sucessivamente a estes episódios vieram a Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França), de 1789 e a Constituição francesa, de 1793, que muito pouco acrescentou à Declaração de 1789 em termos de direitos do homem. O que realmente se buscava, nesse momento histórico, era a afirmação dos direitos individuais frente ao modelo de Estado Absolutista vigente em diversos países europeus – em especial na França – à época da gênese da referida geração de direitos.
Componente essencial aos diversos movimentos iluministas e que veio a ser traço característico da primeira geração dos direitos humanos foi a noção de liberdade negativa. A classe burguesa francesa desejava mais espaço no plano político e reivindicava a diminuição das prerrogativas – quase ilimitadas – que o Monarca detinha em relação ao súdito, sobretudo no que diz respeito à fúria tributária com que muitas vezes aquele se dirigia aos bens deste. Diz-se liberdades negativas por demandarem uma “não-ação” do Estado, em outras palavras, tratava-se de um conjunto de direitos (liberdade, igualdade, propriedade, segurança, entre outros) que deveriam ser exercidos sem a intromissão ou participação do Estado.
A segunda geração/dimensão de direitos humanos começou a se delinear no fim do século XIX e início do século XX, período em que restou consagrada a insuficiência do modelo liberal-burguês pós-Revolução Francesa em relação à implementação dos direitos proclamados nos diplomas legais supracitados. Assim, o Estado passou a ser pensado dentro de um contexto intermediário entre o intervencionismo do Absolutismo Monárquico e o Liberalismo político que pregava a mínima atuação e participação do Estado na vida dos seus cidadãos.
Mesmo tendo sido a Constituição mexicana de 1917 a que “inaugurou” cronologicamente a segunda geração de direitos humanos, veremos nas Constituições de Weimar, 1919, e da Áustria, 1920, os dois principais pontos de referência desta geração que veio a ser chamada de geração dos direitos sociais. Diferentemente da geração anterior, nesta a condição do indivíduo era tomada sempre dentro de uma perspectiva político-social em que a participação do Estado era essencial à realização prática dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas e de direitos cujos titulares não eram necessariamente definidos aprioristicamente, como no caso do direito à saúde, à educação, à cultura, ao trabalho, a um mercado econômico regrado pelo Estado, entre outros. Isto fez com que fosse sustentada a necessidade de uma liberdade positiva: uma participação instrumental do Estado como agente hábil a prover direitos os quais sem a atuação concreta deste dificilmente seriam implementados, sobretudo devido à falta de uma estrutura político-jurídica que permitisse a efetivação de tais direitos. Além das já mencionadas constituições, cabe ainda referir que, inobstante a orientação político-ideológica de cada uma, a Constituição russa, de 1919, a Constituição brasileira, de 1934, e a Constituição da URSS, de 1936, também foram outras cartas constitucionais que adotaram o modelo social-interventor próprio da segunda geração de direitos humanos. (CASSESE, 2005, pp. 20-23)
A terceira geração/dimensão da doutrina dos direitos humanos tem como característica principal a defesa de direitos transindividuais, chamados também de direitos de solidariedade e fraternidade, ou ainda direitos dos povos. As duas grandes referências legislativas que podemos encontrar vinculadas a presente geração são: a Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada, em 1948, pela Organização das Nações Unidas, e a Declaração Universal de Direitos dos Povos, de 1976, também proclamada pela mesma organização.
A dimensão social dos direitos desta geração se realiza através da tutela de direitos coletivos e difusos, como a proteção à criança e ao adolescente, a proteção ao meio-ambiente, e a tutela dos direitos do consumidor. (LAFER, 2001, p. 131) Os direitos de terceira geração têm como regra geral a não-vinculação restrita a uma determinada situação fática, sendo que princípios como a solidariedade, a busca pela kantiana Zum ewigen Frieden e o princípio da auto-determinação dos povos são exemplos de direitos cujos titulares se encontram difusos em um universo fenomenológico que tem nas instituições públicas – seja em nível nacional ou internacional – o ponto base para a defesa daqueles direitos.
3.2. Restrições aos Direitos Fundamentais
A partir do momento em que é estabelecida a possibilidade de restrição aos direitos fundamentais como uma atividade que age sobre eles, modificando e reduzindo seu conteúdo em dado caso concreto, torna-se necessário estabelecer um conceito de restrição, a fim de se evitar confusões terminológicas e estruturais que certamente afetam a sua exigibilidade. (Ver OLSEN, 2008, Cap. 2)
Todas as esferas do poder público possuem a capacidade de praticar atos limitadores em relação aos direitos fundamentais, seja mediante a edição de leis pelo Poder Legislativo, seja mediante a prática de atos administrativos, ou ainda por meio de decisões judiciais. Em muitas dessas situações o controle é exercido com base no exercício da ponderação entre direitos, objetivando resolver casos de conflito entre direitos fundamentais. Em todas estas hipóteses citadas, é possível realizar um controle em relação aos princípios fundamentais do ordenamento constitucional, contudo é preciso identificar se estamos diante de restrição a direito fundamental e quais as possibilidades gozam de legitimidade ao realizar tal restrição. A restrição sempre irá afetar o direito fundamental, diminuindo o seu âmbito de atuação, diminuindo sua esfera de proteção dos direitos.
Assim, torna-se possível classificar dois tipos de restrição aos direitos fundamentais: restrição em sentido estrito e restrição em sentido amplo. (NOVAIS, 2003, p. 193-194)
Em sentido estrito podem ser classificadas as restrições que intervenham nos direitos fundamentais, mediante uma amputação ou eliminação do seu conteúdo objetivo constituído, ou uma redução em seu âmbito de ação, sendo reconhecido, conformado ou delimitado por esta norma. Este modelo de limitação não está livre do controle de constitucionalidade, do exame da proporcionalidade ou do exame da razoabilidade no caso concreto e em relação ao respeito pelo seu núcleo essencial. A própria constituição prevê possibilidades de modificação do âmbito de atuação de direitos fundamentais, sobretudo porque confere ao legislador a prerrogativa de editar normas que interfiram no âmbito de atuação da norma de direito fundamental. (Ver ALEXY, 2012, p. 287-291)
Em sentido amplo, a restrição seria toda ação ou omissão estatal que elimina, reduz ou dificulta as possibilidades de acesso ao bem jurídico tutelado pela norma definidora de direito fundamental. (NOVAIS, 2003, p. 247)
No direito brasileiro é possível verificar a admissão da restrição aos direitos fundamentais mediante lei ou ainda atuação judicial reguladora de conflito entre normas jusfundamentais. Se considerarmos os direitos fundamentais como princípios constitucionais, em que se revela necessário a ponderação para identificar posições jurídicas definitivas, assim como para solucionar os eventuais conflitos entre os âmbitos normativos, que estão em colisão, será possível deduzir a existência de restrições, em sentido amplo, desvinculadas das normas, uma vez que a verificação da restrição de um direito fundamental, muitas vezes, só poderá ser observada no caso concreto. Assim, não é possível ao legislador prever todos os possíveis conflitos entre direitos fundamentais, cabendo às técnicas hermenêuticas, como o postulado da ponderação, a responsabilidade pela resolução em casos de colisão entre normas constitucionais protetoras de direitos fundamentais.
4. Panorama jurisprudencial do direito fundamental à educação infantil
Objetivando analisar a efetividade do direito fundamental à educação infantil na jurisprudência brasileira, passemos agora a um panorama geral dos entendimentos das duas mais importantes cortes desse país concernentes a aspectos centrais do tema em objeto: Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).
Para facilitar a leitura, colocamos no corpo do texto somente as ementas na íntegra de menor extensão, destacando as partes mais relevantes das ementas mais longas. No caso da jurisprudência do STJ, analisaremos alguns dos casos de maior destaque nos últimos anos. Já no exame da jurisprudência do STF, dividiremos a abordagem de acordo com o assuntos específicos que envolvem do direito fundamental à educação infantil.
4.1. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Abaixo serão analisadas algumas das decisões recentes de maior relevo desta Corte acerca do tema central da presente pesquisa.
No REsp 1185474/SC, de 2010, é referido o conflito entre a reserva do possível e o mínimo existencial. O relator, Ministro Humberto Martins, afirma que o município em questão não possui recursos para prover a educação, pelo fato de que desloca recurso para prover bens que não fazem parte do chamado mínimo existencial. Assim, neste caso, a reserva do possível não pode ser oposta à realização de direitos fundamentais, já que não cabe ao administrador público preteri-los em sua escolha. Observa-se, desta forma, que a realização dos direitos fundamentais não faz parte da escolha do governante, não é resultado de um juízo discricionário e nem parte de uma política pública. Sendo direitos que estão intimamente ligados á dignidade humana e ao mínimo existencial que pode ser oferecido ao ser humano. Demonstrando também, a proteção da educação, consagrada na Constituição.
Vejamos as partes de maior destaque:
(...)
1. A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibiliumnullaobligatio est - Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia.
2. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendida como "sinônimo" de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos segundo regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e simultâneo.
3. Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade.
4. É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preterí-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a Democracia.
5. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador.
Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial.
6. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social.
7. Sendo assim, não fica difícil perceber que dentre os direitos considerados prioritários encontra-se o direito à educação. O que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal social, mas sim de ser um animal político. É a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade.
8. A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço característico, o relacionamento com os demais em um espaço público - onde todos são, in abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o discurso do que em virtude de atributos biológicos - é que torna a educação um valor ímpar. No espaço público - onde se travam as relações comerciais, profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania - a ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias.
No REsp 440.502, de 2009, é enfrentada a questão da legitimidade ativa do Ministério Público para representar em proveito do direito à creche e à pré-escola que toda a criança, de 0 a 6 anos, possui, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como da Constituição. O Relator Min. Humberto Martins afirma que “a educação não é uma garantia qualquer que esteja em pé de igualdade com outros direitos individuais ou sociais. Ao contrário, trata-se de absoluta prioridade, nos termos do art. 227 da Constituição de 1988. A violação do direito à educação de crianças e adolescentes mostra-se, em nosso sistema, tão grave e inadmissível como negar-lhes a vida e a saúde.” Ressalta que “[C]abe ao Parquet ajuizar Ação Civil Pública com a finalidade de garantir o direito a creche e a pré-escola de crianças até seis anos de idade, conforme dispõe o art. 208 do ECA.” Já com relação à reserva do possível, destaca que “[S]e um direito é qualificado pelo legislador como absoluta prioridade, deixa de integrar o universo de incidência da reserva do possível, já que a sua possibilidade é, preambular e obrigatoriamente, fixada pela Constituição ou pela lei.”
Nesse mesmo sentido, mas em sede de Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 485.969/SP, de 2006, o STJ examinava a seguinte situação: “[O] acórdão embargado reconheceu, ex officio, a ilegitimidade do Ministério Público para, via ação civil pública, defender interesse individual de menor, visto que, na referida ação, atua o Parquet como substituto processual da sociedade e, como tal, pode defender o interesse de todas as crianças do Município para terem assistência educacional, configurando a ilegitimidade quando a escolha se dá na proteção de um único menor.” Novamente, encontra-se o direito à educação infantil da criança de 0 a 6 anos sendo assegurado com prioridade máxima, segundo os nortes dados pela Constituição brasileira de 1988. O Estado possui o dever de criar condições objetivas, para que este direito seja efetivado com eficácia, sob pena de configurar-se inaceitável a omissão estatal. Não sendo inclui este direito, nas possíveis avaliações discricionárias que o administrador público pode realizar nas escolhas acerca de quais direitos deverão ser, de fato, efetivados. A legitimidade ativa do Ministério Público é reconhecida, sob o argumento de que
Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
Por fim, os embargos de divergência foram conhecidos e providos.
Registre-se que este mesmo entendimento já fora sustentado anteriormente no REsp 718.203/SP, de 2005, que foi provido no sentido de reconhecer a legitimidade ativa do Ministério Público e de determinar a criação de vagas em creche para crianças de 0 a 6 anos.
Importante recordar que o caput do artigo 227 da Constituição Federal estabelece:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Esta absoluta prioridade também diz respeito à educação infantil, i.e., as crianças de 0 a 6 anos, recaindo sobre o administrador público municipal o dever de promover educação de qualidade a estes indivíduos.
Assim, no julgamento do REsp 511.645/SP, de 2009, é reafirmado ser competência do Município a disponibilização do acesso à creche, para crianças de 0 a 6 anos, mediante rede própria de ensino. O relator Min. Herman Benjamin afirma que “[É] legítima a determinação da obrigação de fazer pelo Judiciário para tutelar o direito subjetivo do menor a tal assistência educacional, não havendo falar em discricionariedade da Administração Pública, que tem o dever legal de assegurá-lo.” Ainda que o Estado não tenha o dever de inserir a criança em uma escola particular, contudo, possui o dever de inserir está criança em uma escola.
4.2. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
A partir deste momento analisaremos alguns julgados do STF sobre o direito à educação infantil. Todavia, para uma melhor compreensão das especificidades do assunto e por ser tal Corte o intérprete constitucional derradeiro no Brasil, dividiremos a abordagem de acordo com temas de maior destaque em relação à educação infantil.
a) Decisão que costuma ser referida como case paradigmático no dever fundamental de ofertar vagas em creche por parte dos Municípios:
A decisão que deu por improvido o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 465.066, de 2006, costuma ser um dos julgados mais citados quando se trata do dever de ofertar vagas em creche por parte dos Municípios, pois sintetiza os entendimentos da Corte que vinham se formando até então e aponta para a desnecessidade de exame do mérito de recursos que tratem de questionar a aplicabilidade da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente em prol da oferta de vagas no ensino infantil para crianças de 0 a 6 anos.
Assim, veja-se a ementa da decisão:
CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATRÍCULA DE CRIANÇA DE ZERO A SEIS ANOS DE IDADE EM CRECHE E PRÉ-ESCOLAS MUNICIPAIS. FUNDAMENTOS INFRACONSTITUCIONAL E CONSTITUCIONAL. SÚMULA 283 DO STF. I - O acórdão recorrido determinou a matrícula de criança em creche municipal com apoio em fundamentos constitucional (art. 211, § 2º, da CF) e infraconstitucional (art. 54, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente). Manutenção do fundamento infraconstitucional. Incidência da Súmula 283 do STF. Precedentes. II - Agravo regimental improvido.
b) Obrigação do Judiciário intervir como superação de possível ofensa ao princípio da separação dos poderes:
Um dos argumentos mais suscitados pelos Municípios, em relação ao tema em objeto, é a ofensa ao princípio da separação dos poderes, assegurado pelo art. 2 da Constituição de 1988. A alegação se baseia na suposta ingerência indevida do Poder Judiciário em uma seara que trata especificamente de políticas públicas.
No RE 410.715 AgR/SP, julgado em 2005, o relator Ministro Celso de Mello, profere um dos votos mais citados quando o tema é direito fundamental à matrícula em creche:
A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. Recurso improvido.
No mesmo sentido, quando do julgamento do RE 463.210 AgR/SP, em 2005, de relatoria do Min. Carlos Velloso, restou afirmado que: “I. Sendo a educação um direito fundamental assegurado em várias normas constitucionais e ordinárias, a sua não-observância pela administração pública enseja sua proteção pelo Poder Judiciário. II. - Agravo não provido.” Este julgado apresenta, da mesma forma que o anterior, a prontidão em negar a indevida ingerência do Poder Judiciário em relação ao poder discricionário do Executivo para tratar de questões que envolvam a implementação de políticas públicas. Enfim, a decisão reforça a responsabilidade do município no fornecimento de vagas em creches. Mais uma vez se observa, nos moldes do agravo anterior, a simples determinação para o oferecimento de vagas, ficando a cargo do Município o modo como isso ocorrerá, ou seja, mediante escolas públicas ou compra de vagas em escolas particulares.
Já no julgamento do RE 464.143 AgR/SP, em 2009, de relatoria da Min. Ellen Gracie, o Município de Santo André defende a tese de indevida ingerência do Poder Judiciário em questões de municipalidade. Assevera que o provimento do pedido originário envolverá outras crianças e o orçamento do erário público. Resta, novamente, afirmada a indisponibilidade do direito fundamental à educação infantil, tendo em vista sua expressa previsão constitucional, devendo o Município criar condições objetivas no efetivo acesso a esse direito. A relatora afirma que:
1. A educação infantil é prerrogativa constitucional indisponível, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a creches e unidades pré-escolares. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. 3. Agravo regimental improvido.”
c) Decisão em que o STF reverte decisão de Tribunal inferior que manda construir creches:
Recordemos a medida cautelar Pet 2836 QO/RJ, de 2003, relatada pelo Min. Carlos Velloso, interposto pelo Município do Rio de Janeiro e que objetivava efeito suspensivo de decisão que determinou a construção de creches às expensas do Município, intentando prover 100% da demanda em 8 bairros no prazo de 1 ano.
O referido Município alegou necessidade de autorização orçamentária (art. 167, da Constituição), fumus boni juris, consubstanciado na violação frontal ao princípio da tripartição do poderes e periculum in mora causado pela grave ameaça aos cofres públicos. Dessa forma, restou deferida a medida cautelar, desobrigando o município de construir as referidas creches.
PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR. PRESSUPOSTOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: EFEITO SUSPENSIVO. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GRATUIDADE DE ATENDIMENTO EM CRECHES. DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE CONSTRUÇÃO DE CRECHES PELO MUNICÍPIO. DESPESAS PÚBLICAS: NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO ORÇAMENTÁRIA: C.F., ART. 167. I. - Fumus boni juris e periculum in mora ocorrentes. II. - Concessão de efeito suspensivo ao RE diante da possibilidade de ocorrência de graves prejuízos aos cofres públicos municipais. III. - Decisão concessiva do efeito suspensivo referendada pela Turma.
d) Decisão que determina a matrícula de crianças em creches particulares:
O julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo, n. 639.337/SP , de 2011, relator Min. Celso de Mello, fora erguido pelo Município de São Paulo contra decisão que o obrigou a matricular crianças de até 5 anos em unidades de ensino infantil próximas de suas residências ou do trabalho de seus responsáveis.
Inicialmente, o relator trata de afastar a ilegitimidade do Ministério Público de São Paulo, mostrando que entende ser inquestionável a prerrogativa dos poderes Legislativo e Executivo na formulação e execução de políticas públicas. No entanto, em bases excepcionais, o Judiciário, em casos definidos pela própria Constituição, quando se verifica o descumprimento desses mesmos encargos político-jurídicos e, assim, comprometendo a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais, abre espaço para a atuação do Judiciário como gestor dessas políticas públicas. Novamente é confirmado que a discricionariedade da administração, seja por omissão ou pragmatismo governamental, não pode constituir obstáculo para a eficácia de direito fundamental.
Não obstante ser sabedor da dramática escassez de recursos públicos, o Supremo afasta a alegação de reserva do possível, no sentido de que esta não pode ser usada com o propósito de fraudar, frustrar ou inviabilizar a implementação de políticas públicas previstas na Constituição. Continuando, o relator ainda relembra a noção de “mínimo existencial” e a proibição do retrocesso social, ou seja, a impossibilidade de descontinuação de conquistas sociais já alcançadas pelo cidadão ou seu grupo social.
Contudo, observe-se que na decisão do STF não foi apontada qualquer determinação quanto à forma de execução da decisão, ou seja, não houve expressa determinação para a construção ou ampliação do número de vagas. Apenas exigiu-se o atendimento em unidades de educação infantil. Todavia, a fixação de multa cominatória diária (astreintes) para o caso de descumprimento da decisão reveste de força coercitiva a decisão do Supremo, possuindo como efeito prático a determinação de medidas objetivas para o atendimento do pedido na inicial.
Ainda com relação a decisão do STF com previsão de multa diária, devemos recordar o caso da Suspensão de Liminar n. 680/SP, de 2013, relatada pelo Presidente em exercício do Supremo, Min. Ricardo Lewandowski. Este afirma que “é de se reconhecer que a imposição de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) constitui pesado fardo para o poder público municipal e para toda a coletividade, uma vez que essa despesa, não prevista em dotação orçamentária, exigirá o remanejamento financeiro, em prejuízo de outras necessidades públicas também relevantes, configurando-se, pois, lesão à economia pública municipal.”
No presente caso esta decisão da Presidência do STF resume-se a apenas retirar a multa que recaía sobre o Município, uma vez que ela significaria grave lesão à ordem pública e à administração municipal. A suspensão foi requerida pelo Município de Itapevi contra decisão liminar deferida pelo TJ/SP, que determinou que fossem tomadas medidas, permanentes ou provisórias, necessárias ao atendimento de crianças inscritas e ainda não atendidas no sistema municipal de creches.
Não obstante a alegação do Município de que restava satisfeito 100% da demanda do ciclo I do ensino fundamental (1 a 5 séries), de que nos últimos 5 anos foram criadas 1.300 vagas em creche (um incremento de 250%), além de informar seríssima crise orçamentária, inclusive enfrentando situação de quadro deficitário de despesas empenhadas em valor superior a corrente líquida, não foi suficiente para convencer a Presidência quanto à desnecessidade de criação de novas vagas.
e) Aplicação da repercussão geral para a matrícula em creche:
A Repercussão Geral no Agravo de Instrumento n. 761.908/SC, julgada em 2012, de relatoria do Min. Luiz Fux, entende pela auto-aplicabilidade do art. 208, IV, da Constituição Federal, o que resulta no dever do Estado (mais exatamente, do Município) de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. A aplicação da repercussão geral tem como efeito a limitação de possíveis recursos futuros ao STF sobre o tema em questão.
f) Aplicação de litigância de má-fé contra recurso abusivo:
O julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário, n. 592.937/SC, de 2009, relator Min. Cezar Peluso, foi em sentido inovador em relação ao que vinha sendo aplicado até então pelo Supremo. Tratou-se de um caso de negativa de provimento a agravo interposto pelo Município de Criciúma, irresignado com decisão de prover vaga em creche a menor. O relator confirma a educação infantil como direito indisponível assegurado no texto constitucional. Todavia, o inovador foi aplicar multa por litigância de má-fé ao Município.
A abusividade do recurso e o seu caráter meramente protelatório foram destacados na ementa do julgado:
1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Educação infantil. Criança de até seis anos de idade. Atendimento em creche e pré-escola. Direito assegurado pelo próprio Texto Constitucional (CF, art. 208, IV). Compreensão global do direito constitucional à educação. Dever jurídico cuja execução se impõe ao Poder Público, notadamente ao Município (CF, art. 211, § 2º). Precedentes. Agravo regimental não provido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões consistentes, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. 2. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2º, c.c. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar o agravante a pagar multa ao agravado.
g) Jurisprudência assentada e “ofensa à lealdade processual”:
Poucos meses após o julgado acima comentado que aplicou multa por litigância de má-fé ao Município recorrente, no julgamento do RE 469.819 AgR/SP, de 2009, igualmente relatado pelo Min. Cezar Peluso, verificou-se a afirmação de que os entendimentos relativos à educação infantil constituem “jurisprudência assentada”, devendo os recursos serem entendidos como uma ofensa à lealdade processual e, por conseguinte, passíveis de aplicação de multa por litigância de má-fé.
1. Recurso Extraordinário. Inadmissibilidade. Jurisprudência assentada. Ausência de razões novas. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. 2. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Acórdão recorrido que se valeu de fundamentos infraconstitucionais suficientes para manutenção do julgado. Aplicação da súmula 283. Agravo regimental improvido. É inadmissível recurso extraordinário quando a decisão recorrida está assentada em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrangeu a todos. 3. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2º, cc. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar o agravante a pagar multa ao agravado.
Considerações finais
Não obstante tenhamos feito considerações breves sobre temas de grande profundidade, como a questão da reserva do possível e as possíveis restrições a direitos fundamentais, esperamos ter atingido o final da presente pesquisa em condições de apresentar um quadro geral sobre os principais entendimentos formados na jurisprudência brasileira das suas duas mais importantes cortes quanto ao tema do direito fundamental à educação infantil. O pensamento dominante recai no entendimento da possibilidade de interferência do Poder Judiciário em caso de inércia ou omissão do Estado na proteção ao direito à educação, uma vez que este se equipara ao direito à saúde e à vida, o que o impede de ficar entregue à discricionariedade administrativa do Poder Executivo e seus caprichos políticos.
Mais do que uma mudança de status normativo do direito à educação, o tema em objeto implica em uma mudança de compreensão da própria função da política: a liberdade para a criação de políticas públicas passou a ser limitada pela própria noção de política pública estabelecida pela Constituição de 1988. Bens essenciais, como vida, saúde e educação, entram então em uma categoria de direitos cuja fundamentalidade vincula os gestores públicos em todas as esferas da administração pública brasileira.
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