Jane de Moraes Calderipe (CV)
Silviana L. Henkes (CV)
silvi_henkes@hotmail.com
UFPEL
Resumo
O trabalho tem como objetivo geral analisar a (im)possibilidade da prestação alimentar cumulativa entre o pai biológico e o socioafetivo. A questão é emergente no Direito brasileiro, tornando-se polêmica com a decisão veiculada no Processo nº 064.12.016352-0, da Comarca de São José, Santa Catarina. Em virtude do segredo de justiça imposto ao caso, não se teve acesso a todas as informações, assim a pesquisa almeja refletir a partir das informações obtidas, em especial dos dados da decisão liminar, para ilustrar uma possibilidade jurídica que poderá se projetar, doravante, em outros casos. Deste modo, resta explicitada a problemática do trabalho, qual seja: é possível impor o dever alimentar cumulativo entre o pai biológico e o socioafetivo? Para a realização da pesquisa foi utilizado o método indutivo e amplo rol de referências.
Palavras-chave: Dever alimentar. Pai socioafetivo. Cumulatividade.
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo general analizar la (im) posibilidad de prestación alimentaria acumulativa entre el padre biológico y el socio-afectivo. Una cuestión emergente en el Derecho Brasileño, que se ha tornado polémica con la decisión vinculada al Proceso nº 064.12.016352-0, de la Comarca São José, Santa Catarina. En virtud del secreto de justicia impuesto al caso, no se tiene acceso a todas las informaciones, por lo que la investigación pretende reflexionar sobre las informaciones obtenidas, en especial los datos de la medida cautelar, para ilustrar una posibilidad jurídica que puede surgir, en lo sucesivo en otros casos. Por tanto, es evidente la problemática del trabajo: ¿es posible imponer el deber de alimentación acumulativa entre el padre biológico y socio-afectivo? Para la realización de la investigación se utilizó el método inductivo y una amplia lista de referencias.
Palabras clave: El deber de los alimentos. Padre socioafectivos. Acumulativo.
O trabalho tem como objetivo analisar a (im)possibilidade do dever alimentar decorrente do reconhecimento da paternidade socioafetiva e ainda, a (im)possibilidade da fixação cumulativa entre o pai socioafetivo e o biológico, o que por sua vez, redundará no reconhecimento da multiparentalidade. A questão tornou-se polêmica no Brasil com a decisão liminar prolatada em 2012, no Processo nº 064.12.016352-0, da Comarca de São José, Santa Catarina, onde uma companheira e sua filha adolescente pleitearam alimentos do ex-companheiro e “padrasto”, em virtude da dissolução da união estável. Os alimentos provisórios foram deferidos e os entendimentos doutrinários acerca desta decisão são deveras divergentes.
O trabalho analisa a (im)possibilidade jurídica, ilustrando a questão a partir do caso catarinense, salienta-se que não se trata de estudo de caso, pois não se teve amplo acesso aos dados, em virtude do segredo de justiça. A realização do trabalho encontra justificativa no impacto jurídico e social da decisão, estando estruturado em cinco tópicos que sucedem a introdução. Foram abordadas as questões referentes à evolução da família e os princípios constitucionais que a tutelam para depois abordar a conceituação, a caracterização e as subespécies da paternidade socioafetiva e, por fim, analisou-se a questão do dever alimentar, em especial, o dever alimentar decorrente do reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade através da imposição do dever alimentar cumulativo entre o pai biológico e o socioafetivo.
A pesquisa adotou o método indutivo, partindo da premissa que é dever do pai alimentar o filho (e vice-versa), de acordo com o binômio “necessidade-possibilidade”, portanto, presume-se que também é dever do pai socioafetivo. Deste modo, resta explicitada a problemática do trabalho, qual seja: é possível impor o dever alimentar ao pai socioafetivo? Em caso positivo, é possível a imposição cumulativa entre o pai biológico e o socioafetivo?
2 A FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO E A SUA TUTELA A PARTIR DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAISAs transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais típicas da sociedade contemporânea vêm causando modificações na vida das pessoas e, consequentemente, na tutela jurídica. Basta analisar a configuração da família na atualidade. Percebe-se com nitidez que ela não é mais a mesma. A tutela jurídica também mudou, seja por impulso da doutrina ou da jurisprudência, como também, mas de forma incipiente, pela reforma legislativa. Neste sentido, Rosa (2012, p. 51) destaca o papel primordial da CF∕88: “após o advento da Constituição Federal de 1988 o conceito de família, até então extremamente taxativo, reconhecendo tão somente o casamento como entidade familiar, passou a apresentar um conceito plural”. Chanan (2007), também enfatiza as transformações ao longo dos anos, declarando ser sensível a evolução dos contornos familiares não mais fundamentados no modelo patriarcal e matrimonializado, mas sim num grupo familiar embasado no paradigma eudemonista: na busca da felicidade e da realização do ser. A repersonalização contemporânea das relações familiares, para Lôbo (2011, p. 25), “retoma o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito”.
Alves (2006, p. 130) ainda observa que “a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto”. Dias (2013), salienta que o conceito de família corresponde às relações entre pessoas ligadas por um vínculo de consanguinidade, afinidade ou afetividade. O reconhecimento das diversas formas de composição das entidades familiares é a concretização do direito à diferença, assegurado no texto constitucional. Para concluir, Dias (2013), destaca que a ideia de família formal, que decorre do casamento, cede lugar à certeza de que são as relações afetivas que formam os vínculos interpessoais.
Para Lôbo (2011), um dos avanços do direito brasileiro, a partir da Constituição de 1988, foi a consagração da força normativa dos princípios constitucionais. A aplicação dos princípios, em especial, os constitucionais, foi importante para a evolução (doutrinária e legislativa) do direito brasileiro, no que concerne à tutela da família. Diante destas considerações iniciais, analisar-se-ão os princípios constitucionais com interferência direta na tutela da família.
O princípio da dignidade humana tornou-se nuclear na nova ordem constitucional, sendo o que mais contribuiu para as transformações na tutela da família. De acordo com Lôbo (2011), a dignidade da pessoa humana é o centro existencial fundamental de todas as pessoas, como componentes iguais do gênero humano, conferindo-se um dever legal de respeito, proteção e intocabilidade.
A Constituição Federal de 1988 (artigo 3º. inciso I) também agasalha o princípio da solidariedade e, segundo Lôbo (2011, p. 63), “no capítulo destinado à família, esse princípio é revelado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226 da CF)”. Este princípio tem aplicação direta na imposição do dever alimentar. Neste sentido, Dias (2013, p. 69) anota:
Os integrantes da família são, em regra, reciprocamente credores e devedores de alimentos. A imposição de obrigação alimentar entre parentes representa a concretização do princípio da solidariedade familiar. Também os alimentos compensatórios têm como justificativa o dever de mútua assistência, nada mais do que a consagração do princípio da solidariedade.
Segundo Lisboa (2002), o princípio da solidariedade é formado pela afeição e pelo respeito que indicam a obrigação de auxílio mútuo entre os membros da família e entre os parentes, para fins de assistência imaterial (afeto) e material (alimentos, educação, lazer). O art. 1.694 do CC impõe a prestação alimentar entre parentes, cônjuges e companheiros, conforme o binômio “possibilidade-necessidade” como um decorrente lógico da solidariedade.
Contudo, nenhum princípio constitucional provocou tão profunda transformação no Direito de Família quanto o da igualdade entre homem e mulher, entre os filhos e entre as entidades familiares (LÔBO, 2011). O texto constitucional determina: “todos são iguais perante a lei” (art. 5º.) e “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (art. 5º. inciso I). A família antes chefiada pelo pai e submetida ao pátrio poder, hoje é vista sob outro prisma, o da igualdade de direitos e de deveres entre os pais (poder familiar) sobre os filhos e estes, ainda que menores, são considerados sujeitos de direito, e, por conseguinte, as relações devem ser permeadas pelo afeto, respeito e dignidade humana. Machado (2012) anota que o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, (artigo 227, § 6º) foi estabelecido com o objetivo de eliminar as discriminações odiosas existentes entre os filhos sejam adulterinos, adotivos etc. O autor defende que os filhos possuem igualdade de direitos, independentemente da origem, consolidando-se, somente dois tipos de filiação: a biológica e a socioafetiva.
A Constituição Federal de 1988 demonstra grande preocupação em abolir as discriminações odiosas, inaceitáveis numa sociedade multicultural, como a brasileira que alberga em seu texto constitucional o direito à diferença, o princípio da igualdade e o da liberdade.
O princípio da liberdade encontra respaldo na tutela das relações familiares, segundo Albuquerque (2004 apud DIAS, 2013, p. 67):
A liberdade floresceu na relação familiar e redimensionou o conteúdo da autoridade parental ao consagrar os laços de solidariedade entre pais e filhos, bem como a igualdade entre os cônjuges no exercício conjunto do poder de família voltado ao melhor interesse do filho.
Lôbo (2011, p. 69), sobre a aplicação do princípio da liberdade à família, leciona:
O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.
O princípio do pluralismo das entidades familiares adotado pela Constituição de 1988 é fundamentado em outros dois princípios gerais, mas também aplicáveis ao Direito de Família: o da igualdade e o da liberdade.
As estruturas familiares adquiriram novos contornos, doravante, conforme já salientado não somente o casamento entre homem e mulher merece a tutela jurídica. Para Alves (2006), o reconhecimento da união estável (artigo 226, § 3º, da CF∕88) e da família monoparental (artigo 226, §4º, da CF∕88), foram responsáveis pela quebra do monopólio do casamento como único meio legitimador da formação da família.
Além da possibilidade de formação plural das entidades familiares, atualmente, discute-se a multiparentalidade, portanto, a possibilidade de múltipla filiação registral. Neste sentido, Tartuce (2012, p. 1170) leciona:
[...] parte da doutrina nacional já aponta para a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. O que se tem visto na jurisprudência é uma escolha de Sofia, entre o vínculo biológico e o socioafetivo, o que não pode mais prosperar. Como interroga a doutrina consultada, porque não seria possível a hipótese de ter a pessoa dois pais ou duas mães no registro civil, para todos os fins jurídicos, inclusive familiares e sucessórios? O tema ganha relevo na questão relativa aos direitos e deveres dos padrastos e madrastas, com grande repercussão prática do meio social. Se a sociedade pós-moderna é pluralista, a família também o deve ser.
A imposição do dever alimentar cumulativo entre o pai biológico e o socioafetivo gera o reconhecimento da multiparentalidade. No caso catarinense, embora a decisão liminar não aborde a questão da multiparentalidade, deixa claro que o pagamento da pensão alimentícia pelo pai biológico à filha adolescente não exclui o dever alimentar do pai socioafetivo, haja vista o reconhecimento da existência desta filiação e assim, das duas formas de filiação: socioafetiva e biológica.
A decisão se fundamenta no princípio do melhor interesse da criança. Lôbo (2011, p. 75) esclarece que este princípio defende que os interesses da criança e do adolescente devem ser tratados com prioridade pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração, quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade.
Segundo Lôbo (2011), o princípio do melhor interesse se aplica à investigação das paternidades e às filiações socioafetivas. O autor ainda argumenta que o juiz tem o dever de apurar, quando do conflito das verdades – biológica ou socioafetiva - qual delas contempla o melhor interesse dos filhos tendo em conta a pessoa em formação caso a caso, ou ainda, reconhecer a multiparentalidade.
No que tange ao princípio da afetividade, Lôbo (2011, p. 70) ensina que ele “fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”. Machado (2012) afirma que por meio desse princípio, a família torna-se o locus de efetivação existencial de seus membros, à medida que instiga os laços afetivos e a comunhão de vida entre eles. Nesse sentido, transcreve-se uma das primeiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. INVESTIGANTE QUE JÁ POSSUI PATERNIDADE CONSTANTE EM SEU ASSENTO DE NASCIMENTO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 362, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO DO AUTOR DO VOTO VENCEDOR. Os dispositivos legais continuam vigorando em sua literalidade, mas a interpretação deles não pode continuar sendo indefinidamente a mesma. A regra que se extrai da mesma norma não necessariamente deve permanecer igual ao longo do tempo. Embora a norma continue a mesma, a sua fundamentação ética, arejada pelos valores dos tempos atuais, passa a ser outra, e, por isso, a regra que se extrai dessa norma é também outra. Ocorre que a família nos dias que correm é informada pelo valor do AFETO. É a família eudemonista, em que a realização plena de seus integrantes passa a ser a razão e a justificação de existência desse núcleo. Daí o prestígio do aspecto afetivo da paternidade, que prepondera sobre o vínculo biológico, o que explica que a filiação seja vista muito mais como um fenômeno social do que genético. E é justamente essa nova perspectiva dos vínculos familiares que confere outra fundamentação ética à norma do art. 362 do Código Civil de 1916 (1614 do novo Código), transformando-a em regra diversa, que objetiva agora proteger a preservação da posse do estado de filho, expressão da paternidade socioafetiva. [...]. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR. (Apelação Cível Nº70005246897, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 12/03/2003).
O acórdão do TJRS ao enaltecer que o vínculo genético não predomina sobre o afeto no reconhecimento da paternidade não está rejeitando, ao nosso ver, o reconhecimento da multiparentalidade. Tão somente, enaltece que o fator determinante da paternidade é o afeto. Haverá a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, desde que haja a configuração de duas paternidades, portanto, da participação de ambos os pais (biológico e socioafetivo) na vida da pessoa.
2.1 A entidade familiar e a filiação no cenário jurídico contemporâneo
Os conceitos de família e filiação sofreram mudanças significativas após o advento da Carta Magna de 1988. Na família do passado destacava-se o poder patriarcal e a questão patrimonial, ao contrário da família atual que prima pelos valores da dignidade, da solidariedade, do afeto entre outros. A família atual é sempre socioafetiva, em razão de ser um grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva (LÔBO, 2011). A afetividade, como categoria jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos (DIAS, 2013).
Consoante Chanan (2007, p. 54), “na medida em que a dignidade de cada um dos componentes da família passou a ser valorizada, as funções política, econômica e religiosa das entidades familiares foram colocadas em segundo plano”. Em vista disso, Lôbo (2011) argumenta que enquanto houver afeto haverá família, ligada por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que solidificada na simetria, na colaboração e na comunhão de vida.
Sobre a recomposição das famílias, outro fato social que trouxe alterações ao direito, Lôbo (2011, p. 96), leciona:
O direito de família foi constituído em torno do paradigma do primeiro casamento. Daí o vazio legal em torno das famílias recompostas, entendidas como as que se constituem entre um cônjuge ou companheiro e os filhos do outro, vindos de relacionamento anterior. [...]. Todavia, o problema pode ser debitado ao próprio direito, na medida em que franqueou as possibilidades de divórcio, e omitiu-se sobre as consequências jurídicas das recomposições familiares, quando os divorciados levam os filhos da família original para a nova. [...]. Entendemos que é possível extrair do sistema jurídico brasileiro, forte nos princípios constitucionais, uma tutela jurídica autônoma das famílias recompostas, como entidades familiares próprias.
Em definitivo, segundo Alves (2007) tem-se como assente o entendimento de que a família supera os limites da previsão jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para envolver todo e qualquer grupo de pessoas em que permeie o componente afeto. De acordo com Gama (2007, p. 160), “a família deve cumprir uma função social, permitindo a plena realização moral e material de seus membros, em prol de toda a sociedade”.
Segundo Lôbo (2011), a filiação é estabelecida pela relação de parentesco entre duas pessoas, uma nascida da outra, decorrente da adoção, vinculada mediante a posse de estado de filho ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. No direito brasileiro, a filiação é provada mediante certidão do registro de nascimento, o Código Civil de 2002 (artigo 1603) conservou a regra instituída na legislação anterior. Ressalta Dias (2013), que entre os casados, há prova pré-constituída da convivência pela celebração do casamento, sendo que basta um dos cônjuges apresentar a certidão de casamento para fins de registro de nascimento do filho em nome de ambos os genitores. Já para os que convivem em união estável, segundo Dias (2013), exige-se prova de sua existência, como sentença judicial ou até certificado do casamento religioso que permita comprovar tal convivência, caso contrário, para o registro do filho se faz necessário que o reconhecimento seja levado a efeito por ambos os genitores.
Destaca Madaleno (2006), que se bem observada, a certidão de nascimento traz em seu escopo o princípio explícito da paternidade socioafetiva, porque confere o status de filho pelo simples assento de nascimento e não necessariamente pela verdade biológica. A prova da filiação mencionada no art. 1.603 pode também sustentar a posse do estado de filho, que conforme Fachin (1999 apud MADALENO, 2006, p. 185) é “fundada em elementos que espelham o nomen, a tractatio e a reputatio”.
Para Albuquerque, (2007) os critérios para determinação da parentalidade sucedem-se no tempo, de acordo com as mudanças do tecido social. Nessa linha, Alves (2006, p. 145) alega: “verifica-se uma nova roupagem do dever de sustento, guarda e educação dos filhos: o papel do pai (gênero) moderno não se limita apenas ao simples pagamento dos gastos da sua prole ao final do mês”. A partir da valorização jurídica do afeto e, em decorrência, sua normatização, torna-se unívoca a tutela jurídica das relações baseadas no afeto, portanto a paternidade socioafetiva.
3. A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E SUA TUTELA NO DIREITO BRASILEIROO reconhecimento da paternidade socioafetiva provocou consideráveis alterações nas relações de parentesco, encontrando amparo legal no artigo 1593, do Código Civil, que preceitua: “o vínculo de parentesco pode ser consanguíneo ou de outra origem”. De acordo com Madaleno (2006), além do parentesco natural ou civil, a redação do art. 1593 do Código Civil enseja a compreensão do parentesco socioafetivo e da reprodução assistida, advindos de “outra origem”, conforme resulte ou não da consanguinidade. Neste sentido, o Enunciado n. 103, da I Jornada de Direito Civil é enfático:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
O elemento probante que subsidia a paternidade socioafetiva é a posse do estado de filho que se funda essencialmente no afeto, independente de fatores biológicos ou presunções legais, caracterizando-se pela intensa convivência. Em complemento, o Enunciado n. 256, da III Jornada de Direito Civil, de 2011, destaca que “o reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai (s) e filho (s), com base na posse de estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais” (Enunciado n. 519). De lege ferenda, anote-se que o PL 2.285/2007 (Estatuto das Famílias do IBDFAM) pretende incluir expressamente da ordem legal brasileira a previsão de que o parentesco resulta da consanguinidade, da socioafetividade ou da afinidade (art. 10 do projeto).
Para a nova definição de paternidade socioafetiva, pai ou mãe não é apenas a pessoa que gera e que tenha vínculo genético com a criança. Antes de tudo, ser pai ou mãe é ser a pessoa que cria, instrui, ampara, dá carinho, protege, educa e confere um viver com dignidade em atendimento ao melhor interesse da criança. Diante do exposto, pode-se apontar como pressupostos da paternidade socioafetiva: a posse do estado de filho e o vínculo de afeto. Consoante Silva (2012), “existem duas espécies de paternidade socioafetiva: a paternidade socioafetiva registral e a paternidade socioafetiva do padrasto”.
A paternidade socioafetiva registral, chamada “adoção à brasileira” ou afetiva, caracteriza-se pelo fato da pessoa (ou casal) registrar filho como sendo seu, sem ser. Este registro, embora surgido de um ato tipificado como ilícito penal, uma falsidade ideológica, com o decorrer do tempo, passou a configurar, de acordo com o Código Civil, uma paternidade socioafetiva, sendo a jurisprudência pacífica neste sentido. Conforme Dias (2013), registrar como seu o filho de outrem é crime tipificado no art. 242 do Código Penal, entretanto é concedido o perdão judicial, ainda que este agir constitua crime contra o estado de filiação, pela motivação afetiva que envolve essa forma de agir.
Já a paternidade socioafetiva do padrasto, caracteriza-se pelo fato do mesmo ser visto pela sociedade como o pai biológico, porque há ou não uma omissão do pai biológico. Por outras palavras, Silva (2012) entende que “para que haja essa paternidade socioafetiva do padrasto é indispensável que ele substitua o pai biológico”. A decisão catarinense não excluiu a paternidade socioafetiva, em virtude da existência do pai biológico. Não se sabe com exatidão se o pai biológico era presente ou não, se pagava alimentos ou não, mas a decisão cogita do dever alimentar do pai socioafetivo mesmo que o pai biológico também preste alimentos, portanto, dá ensejo ao reconhecimento da multiparentalidade (vide decisão no item 4.1).
De acordo com Lôbo (2000), “a constitucionalização do direito civil, da qual é corolário a repersonalização das relações de família, veio tornar a afetividade um princípio fundamental da filiação, fulcrado na Carta Magna”. Para Albuquerque (2007, p. 74), “pai é aquele que educa, sustenta e dá afeto, ao passo que, aquele que meramente procria, outra coisa não é senão genitor”.
De acordo com Fachin (2003 apud LÔBO, 2011, p. 236), “a posse de estado de filho oferece os necessários parâmetros para o reconhecimento da relação de filiação, fazendo ressaltar a verdade socioafetiva”. A terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, com relação à adoção à brasileira, argumenta que:
A adoção à brasileira, inserida no contexto de filiação socioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor (REsp n. 833712/RS, 3ª Turma do STJ).
Madaleno (2006, p. 190) acerca da relação entre o estado de filho e a adoção à brasileira, dispõe:
É a posse de estado de filho exteriorizada pela livre e desejada assunção do papel parental, em uma adoção nascida dos fatos e que se convencionou chamar de verdade sociológica ou de adoção à brasileira, quando há o prévio registro de filho de outrem por quem não é o seu ascendente biológico.
Conforme Dias (2013), quando é desfeito o vínculo afetivo do casal, ante a obrigatoriedade de arcar com alimentos a favor do filho, o pai busca a desconstituição do registro por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade. Todavia, a jurisprudência, reconhecendo a espontaneidade do ato de adoção afetiva, passou a não admitir a tal anulação, considerando-o irreversível, caso não haja vício de vontade.
4. O DEVER ALIMENTAR DECORRENTE DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVADiante da aplicação dos princípios constitucionais ao Direito de Família e das transformações legais em relação à entidade familiar, constata-se que a paternidade socioafetiva está consolidada no direito pátrio. Isso tem gerado muitos reflexos, inclusive no que tange a prestação alimentar. Para Dias (2013, p. 258), “o modo como a lei regula as relações familiares acaba refletindo no tema alimentos”.
Segundo Lôbo (2011), alimentos, em Direito de Família, significam os valores, bens ou serviços designados a necessidades existenciais da pessoa, em virtude de relações de parentesco, quando ela própria não pode ministrar, com seu trabalho ou rendimentos, a própria mantença. A obrigação alimentar é decorrente do princípio da solidariedade (artigo 3º, I, da CF∕88). Para Lôbo (2011, p. 372), “a família é a base da sociedade (art. 226, CF), o que torna seus efeitos jurídicos, notadamente os alimentos, fincados no direito/dever de solidariedade”.
Estabelece também, a Carta Magna, no caput do artigo 227, ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação e outros direitos. E, em virtude do alargamento do espectro das entidades familiares se desdobram os conceitos de família e de filiação, e com isso, a obrigação alimentar adquire novos matizes. O Enunciado 341, da IV Jornada de Direito Civil, 2006, preceitua: “Para os fins do art. 1696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”.
O caput do artigo 1694 do Código Civil dispõe: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”. Para sua quantificação, a obrigação alimentar deve, como regra, permitir a manutenção do mesmo padrão de vida que desfrutava o alimentando antes da imposição do encargo. Tal fixação, conforme prevê o parágrafo primeiro do supracitado artigo, obedecerá à proporcionalidade entre as necessidades de quem pede e as possibilidades de quem alcançará a verba alimentar.
4.1 Reflexões sobre a obrigação alimentar na paternidade socioafetiva : análise da decisão inédita
A afetividade se consolidou no Direito brasileiro como um valor jurídico do qual decorrem direitos e deveres aos membros da família. Aliada aos princípios constitucionais apreciados neste trabalho (da solidariedade, da dignidade, do melhor interesse da criança e do adolescente), a afetividade colaborou para a consagração das mudanças na tutela jurídica da família. O reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva também trouxe novas reflexões ao dever alimentar. Dias (2013) argumenta sobre a prevalência do vínculo afetivo da paternidade sobre o jurídico e o genético e sua reflexão no dever de prestar alimentos, pois nem sempre o pai registral é o pai biológico.
A concessão da liminar pela Juíza Adriana Mendes Bertoncini, da 1ª Vara de São José∕SC, publicada no Diário de Justiça do Estado de Santa Catarina, de 26 de setembro de 2012, determinou que um engenheiro aposentado pagasse pensão alimentícia à ex-enteada, de 16 anos. A referida decisão defendeu que houve reconhecimento da paternidade socioafetiva oriunda da convivência entre ambos durante a união dele com a genitora (da ex-enteada) . Em vista disso, houve diversas manifestações (favoráveis e contrárias) na comunidade jurídica nacional.
A advogada Daniele Debus Rodrigue, que representa as autoras define a decisão como inédita no país. Segundo a advogada, em reportagem publicada no Jornal Folha de São Paulo: “Já havia lido sobre a possibilidade de pleitear alimentos em caso de filhos considerados socioafetivos, mas fiz busca e nenhuma jurisprudência foi encontrada no sentido da decisão”.
A decisão liminar da juíza Adriana Mendes Bertoncini, no Processo nº 064.12.016352-0, da 1ª Vara de São José∕SC, determina:
Vistos, etc. Cuida-se de Ação de Dissolução/Reconhecimento de Sociedade de Fato proposta por S.de S. contra H.G., em que a parte autora requereu em sede de liminar a fixação de alimentos provisórios a seu favor, bem como para filha B.de M.K., ante paternidade socioafetiva. Com relação aos alimentos pleiteados pela autora, inobstante ser mulher jovem (41 anos) e formada em psicologia. Verifica-se através do comprovante de rendimentos às fls. 13, do contrato de prestação de serviços (fls. 14/15) e da cópia da carteira de trabalho que a autora foi contratada como psicóloga da APAE e percebe aproximadamente R$1.000,00 mensais. Por outro lado, o requerido é engenheiro contratado pela empresa Sul Catarinense, percebendo R$ 5.316,68, conforme cópia da carteira de trabalho às fls. 22 e declaração de imposto de renda às fls. 23/29, além de ser aposentado por tempo de contribuição, percebendo aproximadamente R$2.200,00, com base nos demonstrativos de fls. 34/39. Portanto, denota-se que a autora recebe mensalmente R$1.000,00 enquanto o requerido tem renda de aproximadamente R$7.500,00, o que por si só já demonstra uma modificação do padrão de vida vivenciado durante a união estável para o atual, após a dissolução de fato. Depreende-se da jurisprudência:(...) No caso dos autos, além do que já foi explanado, denota-se que, segundo alegações da autora, a união estável perdurou 10 anos, tendo a autora comprovado inclusive que o requerido arcou com as despesas referente a viagem da autora e sua filha para os Estados Unidos (fls. 48). Assim, entendo que o deferimento do pedido de alimentos à autora é medida que se impõe. No tocante aos alimentos pleiteados em favor de B. de M.K., com base nos laços afetivos existente entre ela e o requerido, necessário trazer a baila algumas considerações doutrinárias sobre os alimentos decorrentes das relações socioafetivas: (...) No caso em tela, tem-se que muito embora o pai registral de B. de M.K. seja J. de M.K., é o requerido quem convive com a adolescente, que conta com 16 anos, desde que a mesma possuía 6 anos. A relação afetiva restou demonstrada, posto que é o requerido quem representa a adolescente junto à instituição de ensino que a mesma estuda (fls. 52/55). Ademais, o requerido declarou ser a adolescente sua dependente, conforme teor de fls. 27, além de arcar com o custeio de sua viagem aos Estados Unidos (fls. 48). Não há nos autos notícia acerca de eventual contribuição financeira percebida pela adolescente de seu pai biológico. Contudo, mesmo que a menor receba tal auxílio, nada impede que pelo elo afetivo existente entre ela e o requerido, este continue a contribuir financeiramente para suas necessidades básicas. Portanto, primando pela proteção integral da menor e com base na relação de afetividade existente entre a adolescente e o requerido, defiro os alimentos provisórios pleiteados. Diante do exposto, fixo a verba alimentar provisória em 20% (vinte por cento) dos rendimentos mensais, (10% para cada uma das beneficiárias), percebidos pelo réu em cada empresa empregadora, salvo descontos obrigatórios, incidindo sobre o 13º salário. Oficiem-se às empresas para que procedam ao desconto e posterior depósito na conta bancária indicada pela autora na inicial. Designo o dia 27/02/2013 às 14h30 horas para a realização de Audiência de Conciliação e Resposta. Cite-se a parte requerida para comparecer ao ato, advertindo-se que sua ausência importa revelia e confissão quanto à matéria de fato, reputando-se verdadeiros os fatos alegados pela parte autora na inicial. Cientifique-se a parte demandada que em caso de não haver acordo deverá apresentar resposta na própria audiência. (...). (grifo nosso).
Entre os motivos da fixação dos alimentos provisórios está a alteração do padrão de vida decorrente da dissolução da união estável. Outra justificativa para a decisão favorável foi a existência de laços afetivos entre a menor e o ex-padrasto, pois nada impede que, pelo elo afetivo existente houvesse a continuidade na contribuição financeira para satisfação das necessidades básicas da adolescente. Ainda, segundo relatos da decisão, o relacionamento durou dez anos, nos quais foi compartilhada a mesma residência. Além disso, no processo, a mãe comprovou que o ex-padrasto financiou à adolescente viagem ao exterior, cadastrou mãe e filha como dependentes no Imposto de Renda e, ainda, representou a menina na escola onde estuda. Portanto, restou comprovada a necessidade provisória da prestação de alimentos pelo padrasto à adolescente e sua mãe, até uma readaptação do padrão de vida de ambas à nova realidade.
4.2 A (im) possibilidade da dupla paternidade e do dever alimentar
Silva (2012) posiciona-se contra a obrigação alimentícia prestada pelo padrasto, no caso concreto, pois segundo notícias veiculadas na mídia o pai biológico contribui financeiramente para o sustento da filha. A decisão relata que não há notícias de pagamento de pensão pelo pai biológico, mas mesmo que houvesse nada impediria que o pai socioafetivo também contribuísse. Silva (2012) entende que fixar alimentos onde há biparentalidade é destruir o afeto:
No caso desta decisão do Juízo de Santa Catarina, pelo que foi noticiado na mídia e segundo informações fornecidas pela advogada da causa, não havia uma omissão do pai biológico, muito pelo contrário, o pai biológico prestava obrigação alimentícia. Assim, após a leitura desta decisão, pode-se entender que não há o cabimento da fixação de pensão alimentícia do padrasto para com a sua ex-enteada, pois que não há caracterização de paternidade socioafetiva. É diferente da obrigação complementar ou subsidiária dos avós, isto porque os avós têm vínculo de sangue com seus netos e, segundo o Código Civil, quando o pai não tem condições de prestar alimentos, vai surgir, ainda que complementarmente, uma obrigação dos avós. Nota-se o mal que se gerará nas relações afetivas se implementada esta ideia absurda de que o padrasto deve prestar alimentos ao seu ex-enteado. Não haverá mais quem queira casar-se com uma mulher ou passar a viver com uma mulher que tenha filhos. Pensar em biparentalidade é pensar em quebra total das relações de afeto de uma mulher que tenha filhos e que queira se unir com outro homem, porque ela ficará sem ter amor. Ao que tudo indica, esse posicionamento de biparentalidade não olha para os afetos, diz basear-se em afetividade, mas exatamente o que vai criar é o desafeto.
Para o professor da Faculdade de Direito da USP, José Fernando Simão, em posicionamento publicado na Folha de São Paulo, a Juíza Adriana Bertoncini teve uma atitude equivocada "Ela confundiu um bom padrasto com um pai". A decisão desencoraja os maridos a ser bons padrastos", afirma ele. Na mesma linha, contrária ao dever de prestar alimentos pelo padrasto, é a posição de Lôbo (2011, p. 388):
O padrasto (ou a madrasta) não tem o dever de manter ou alimentar os enteados. Consequentemente, na fixação dos alimentos dos filhos não se desconta o que possivelmente aquele poderia contribuir, pois o faz voluntariamente, sem dever jurídico.
Favorável à paternidade alimentar, Dias (2013, p.56) leciona que a jurisprudência começou a atribuir encargos ao – na ausência de melhor nome – padrasto. Sob o nome de paternidade alimentar é reconhecido ao filho do cônjuge ou companheiro direito a alimentos, comprovada a existência de vínculo afetivo entre ambos, e que tenha ele assegurado sua mantença durante o período em que conviveu com o seu genitor.
Na mesma linha, o advogado Rolf Madaleno, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), conforme matéria veiculada na Folha de São Paulo, concorda com a determinação da Juíza. Para ele, a enteada passou a viver com a separação uma dupla perda: material e socioafetiva.
5 CONCLUSÕESO reconhecimento da filiação socioafetiva, a partir da permissão legal insculpida no artigo 1593 do CC, ocorre nos casos de posse de estado de filho e na adoção à brasileira, desde que haja prova do afeto, convivência, tratamento recíproco paterno-filial e razoável duração.
Conforme salientado, não se teve acesso a todos os dados do processo catarinense, por isso não é sabido com exatidão, se o pai biológico da menina convivia com ela e se pagava alimentos. Contudo, sabe-se que a partir do sexto ano de vida, a adolescente manteve convívio diário com seu “padrasto”, ao longo de dez anos. Tendo ele assumido, segundo a decisão analisada, o papel de pai, oferecendo educação, sustento, lazer, afeto, entre outros.
Na decisão, a Juíza alega que não há prova documental de que o pai biológico pagava pensão alimentícia à garota, entretanto, a decisão salienta que mesmo que houvesse pagamento, não haveria óbice à prestação de alimentos cumulativa. E, portanto, seria reconhecida a multiparentalidade.
O acolhimento judicial do pedido de alimentos provisórios motivou-se pelo reconhecimento da filiação socioafetiva, haja vista a comprovação do afeto entre ambos, oriundo dos 10anos de convivência diária. A decisão fundamentou-se no princípio da proteção do melhor interesse da criança e do adolescente, em virtude da necessidade da adolescente e da possibilidade do pai socioafetivo, em respeito ao binômio necessidade-possibilidade.
Na decisão, a juíza se manifestou pela possibilidade de cumular a prestação alimentar devida à filha pelos pais (biológico e socioafetivo), questão ainda mais tormentosa e com díspares entendimentos doutrinários. A doutrina se mostra mais pacificada na questão do dever alimentar do pai socioafetivo registral, ou seja, na adoção à brasileira. Os princípios da proteção do melhor interesse da criança e do adolescente e o da solidariedade albergam a imposição do dever alimentar.
Por outro lado, em posicionamento desfavorável, alguns autores (a maioria) entendem que a filiação socioafetiva, no que tange à obrigação alimentar do padrasto, afronta o próprio princípio da afetividade, gerando o desafeto. Outro ponto negativo alegado seria o de que casar-se ou passar a viver com uma mulher que tenha filhos trará o dever alimentar do padrasto para com eles (desde que comprovado a criação de vínculos de amor e afeto), o que dificultará o reestabelecimento de vínculos afetivos por casais separados e com filhos. Os entendimentos doutrinários acerca da multiparentalidade também são dispares.
A pesquisa adotou o método indutivo, partindo da hipótese que é dever do pai alimentar o filho, de acordo, com o binômio “necessidade-possibilidade”, portanto, também é dever do pai socioafetivo. E a impossibilidade de um parente (por exemplo, o pai biológico) arcar sozinho faz com que a outros parentes seja imposto de forma cumulativa o dever (pai socioafetivo).
REFERÊNCIAS
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