Contribuciones a las Ciencias Sociales
Junio 2014

BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIA: LIMITES E POSSIBILIDADES



Miguel Archanjo de Freitas Junior (CV)
Bruno Pedroso (CV)
mfreitasjr@uepg.br
Universidade Estadual de Ponta Grossa- Paraná



RESUMO
Diferentemente dos estudos acadêmicos que normalmente são voltados para um reduzido número de pesquisadores, a biografia/autobiografia tornou-se um gênero de grande interesse para o mercado editorial, pois normalmente as pessoas buscam este tipo de leitura para conhecer detalhes sobre a vida de uma pessoa. Destarte, a partir de uma análise qualitativa da literatura, este estudo procura mostrar que se for tomado alguns cuidados, esta documentação pode ir além da valorização dos heróis, da reificação de mitos e de descobertas sobre a vida privada de um personagem. Esta fonte, pode revelar detalhes sobre a sociedade que o biografado viveu; as tensões presentes na sua vida e os fatores que foram determinantes para que a realidade fosse expressa daquela forma.
Palavras-chave: Biografia, Autobiografia, Literatura, Fonte Histórica, Ideologia.

ABSTRACT
Differently of the academic studies that usually are directed to a reduced number of researchers, the biography/autobiography became a gender of great interest for the editorial market, because people usually seek this kind of reading to know details about the life of a person. Therefore, starting from a qualitative analysis of the literature, this study aims to show that if due care are taken, this documentation can go further the heroes valorization, the reification of myths and discoveries about the private life of a character. This source can reveal details about the society that the biography subject lived; the tensions present in his/her life and determinant factors to explain the reality.         

Keywords: Biography, Autobiography, Literature, Historical Source, Ideology.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
de Freitas Junior, M. y Pedroso, B.: "Biografia e autobiografia: limites e possibilidades", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Junio 2014, www.eumed.net/rev/cccss/28/autobiografia.html

Atualmente os estudiosos das Ciências Sociais e Humanas estão buscando subsídios nos mais diferentes tipos de fontes documentais. Fotografias, cartas, diários, textos literários, letras de músicas, partituras, home-page, cartilhas, entre outros documentos, estão sendo consultados para auxiliar o pesquisador na sua tentativa de compreender uma determinada conjuntura histórica. Algumas destas fontes são recém chegadas a academia, outras, porém, permaneceram esquecidas durante um período e acabaram retornando para o mundo acadêmico. Destaca-se neste estudo a importância e a necessidade de alguns cuidados metodológicos ao utilizar a "Biografia" e a "Autobiografia" como fonte de pesquisa.
Para atingir este objetivo nossa reflexão foi estruturada em dois momentos interdependentes: - o primeiro onde apresenta-se uma breve reflexão sobre os aspectos metodológicos que envolvem este gênero literário e o segundo onde escolheu-se um personagem do campo esportivo para realizar um exercício teórico utilizando-se da biografia como recurso para compreender certos aspectos da vida deste personagem e principalmente os detalhes presentes na sociedade a qual ele pertenceu.
Inicialmente é importante ter clareza que quando alguém escreve uma biografia/autobiografia, a vida passa a ter um sentido que normalmente não apresentava no momento em que os fatos narrados ocorreram, pois existe uma diferença temporal que possibilita ao autor, escrever olhando para o passado. Isto não quer dizer que este tipo de fonte é menos legítimo do que fontes consideradas mais tradicionais, pois toda delimitação seja de caráter temporal ou temático, será arbitrária, pois depende da visão e dos objetivos de quem está escrevendo.
Em termos éticos o biógrafo tem um compromisso com a verdade, pois caso contrário estaria desrespeitando o seu leitor, é o que Lejeune (2008, p.4) vai chamar de “contrato de leitura”. Entretanto, é necessário ter clareza que os limites deste compromisso normalmente não anulam a imaginação do escritor, pois ele precisa transformar um "simples" acontecimento em algo emocionante e atrativo para o leitor. Por isso, cabe a ele interpretar os fatos, valorizando determinados aspectos e ocultando outros de maneira que consiga criar a estética desejada. Nesse sentido, é possível afirmar que o limite entre a ficção e o verossímil como possibilidade de representação é separado por uma linha muito tênue.
Atualmente os estudiosos sabem que é humanamente impossível esgotar a experiência de uma vida em um estudo biográfico, por isso cabe ao escritor realizar os recortes que ele julga necessário. Esta prática é sempre uma tarefa complexa e vai depender da visão que o pesquisador tem sobre o conteúdo que seria relevante selecionar da vida do biografado, e também aquilo que seria interessante para o público, para o qual se destina a obra.
Diferentemente dos estudos acadêmicos que normalmente são voltados para um reduzido número de pesquisadores, a biografia tornou-se um gênero de grande interesse para o mercado editorial. Provavelmente seja por isso que os escritores estão optando em produzir uma história com início, meio e fim, preocupando-se mais com a forma do que com o conteúdo. Este é um dos motivos que faz com que haja por parte dos pesquisadores certo desconforto em utilizar a biografia como fonte de consulta para os seus estudos. Como indica Mayrink (1997):
... a maioria das biografias realizadas parece não satisfazer os historiadores, por oscilar entre uma idealização simplista do personagem e falsas polêmicas em torno das pessoas famosas, visando grande vendagem; além disso, muitas se comprazem no anedótico, não no essencial. (p.1) 1
De forma geral, os pesquisadores atribuíram a este gênero uma relação direta com a ficção, com a valorização dos heróis e com sua preocupação estética na produção literária, levando-os a se afastarem deste  tipo de fonte. Entretanto, nas últimas décadas é possível constatar uma reaproximação entre os cientistas sociais e os estudos biográficos.
Para Borges (2006, p.15) o retorno deste gênero literário se deve à individualidade e a curiosidade fortemente presente na sociedade atual. Isto tem levado principalmente os historiadores a produzir conhecimento de forma multidisciplinar, trabalhando em conjunto com a Sociologia, Antropologia, Psicologia, Literatura... Mas é importante deixar claro, que uma das exigências centrais da academia para com a produção intelectual híbrida feita pelo historiador, refere-se a necessidade de manter o rigor metodológico no trato com as fontes (crítica interna e externa do documento), algo que é fundamental para estabelecer fronteiras entre a História e a Ficção, ou entre o jornalista/cronista e o historiador.
Por isso, quem se munir deste tipo de fonte para auxiliar no desenvolvimento de um trabalho acadêmico, deve minimamente se preocupar em perceber: 1) Quem produziu a biografia? 2) A partir de que fontes? 3) Com quais interesses? Pois normalmente,
Existe uma insegurança epistemológica que assola a todo momento e em toda parte o leitor de biografias e autobiografias. Numa obra de não-ficção, nunca ficamos conhecendo a verdade do que aconteceu [...] na criação ficcional, o escritor faz um relato fiel do que ocorre em sua imaginação. Devemos sempre aceitar a palavra do romancista, do dramaturgo e do poeta, assim como podemos quase sempre duvidar da palavra do biógrafo, do autobiógrafo, do historiador ou do jornalista. (MALCON, 1994, p. 3)
O conteúdo presente nas crônicas esportivas ou nas biografias não é menos verdadeiro do que aquele existente nos livros, o que é preciso levar em conta é que cada uma destas fontes apresenta as suas especificidades. Por isso, ao tratar da biografia é mais prudente falar em verossimilhança, constructo por meio do qual o autor interpreta o contexto social e o expressa através de um sistema de representações realizadas à partir de um determinado personagem, que muitas vezes acaba sendo retido na memória (através de mitos) e substituindo a “própria realidade”.
As biografias e as autobiografias apresentam semelhanças na estrutura estética do texto, como por exemplo: - a visão linear da vida de quem se escreve, o encadeamento cronológico dos fatos e o olhar do escritor voltado para o passado. Não obstante a principal diferença é que na autobiografia o escritor relata sobre si mesmo, por isso, a escrita é feita em tom de confissão, justificação ou invenção de um novo sentido, ou ainda, da combinação dos três estilos. (SILVA, 2012). Tanto biografias como autobiografias podem ser classificadas de acordo com o estilo da escrita, com os objetivos do autor e a sua visão de mundo.
Ao analisar os diferentes autores que trabalham com os estudos biográficos, percebemos que não existe unanimidade sobre as diferentes formas de classificar as biografias que a cada dia tornam-se mais especializadas. Se até décadas atrás somente os grandes heróis eram dignos de ter a sua vida estudada, esta situação foi transformada e passou-se a ter pessoas comuns como objeto de análise. Um exemplo desta transformação pode ser visualizado no trabalho desenvolvido por Carlo Ginzburg (1987), que com base nos estudos da antropologia cultural e na teoria de Mikail Baktin, propôs o conceito de Circularidade Cultural, demonstrando através de um estudo de caso, que as idéias não são produzidas apenas pelas classes dominantes e impostas, de cima para baixo. O discurso pode ser visto como uma forma de distinção social, entre indivíduos de diferentes classes. Entretanto, há um processo de circularidade cultural, através do qual o discurso é recebido e reproduzido pelos diferentes grupos, os quais o fazem a partir das suas condições sociais e culturais.

Para melhor compreender o que foi exposto até aqui, optou-se em trabalhar com a biografia de um personagem significativo na história da crônica esportiva brasileira. Mario Rodrigues Filho ou simplesmente Mario Filho como ficou conhecido no cenário futebolístico. Ao observarmos alguns estudos que fornecem informações sobre a forma com que o nosso personagem viveu, é possível perceber que ele foi um dos agentes responsáveis pela mudança de comportamento na estética do jornalismo esportivo brasileiro.(SILVA, 2006, p.93)
Ele começou a sua carreira no final da década de 20, momento em que foi trabalhar com o seu pai no jornal A Manhã, onde exerceu inicialmente a função de diretor tesoureiro, um ano depois tornou-se responsável pela página literária deste jornal. Devido há problemas particulares ocorridos no interior deste periódico, seu pai decidiu fundar o seu próprio jornal.(CASTRO, 1992, p. 43-45) Fato que ocorreu em 1928, com a criação do Crítica. Neste momento Mario Filho tinha 19 anos e se tornou responsável pela página de esportes do periódico, podendo este local ser considerado o seu primeiro laboratório jornalístico. É importante destacar que ser jornalista naquele momento era algo que resultava em grande prestígio social, que nem sempre era acompanhado de significativa remuneração financeira, o que levava os “jornalistas” a escreverem/trabalharem para diferentes periódicos, mas por ouro lado, esta profissão lhes auxiliava na criação de laços sociais com pessoas importantes da sociedade.
Foi o que aconteceu com Mario Filho, que na década de 1930 viveu momentos bastante desagradáveis, a começar pela morte do seu irmão Roberto, posteriormente o falecimento do seu pai, o empastelamento do jornal durante a Revolução de 1930 e a dificuldade em conseguir emprego que perdurou por quase um ano. (CASTRO, 1992, p.115) Até que em 1931, o seu amigo de sinuca Roberto Marinho assumiu a direção do Jornal O Globo e convidou Mario Filho para ir trabalhar consigo neste periódico.(PEREIRA, 2002, p.134) 
Este acontecimento fornece indícios da boa relação existente entre estes dois personagens, principalmente pelo fato de que O Globo já possuía um responsável pela página de esportes. Hipoteticamente é possível acreditar que a atitude de Roberto Marinho, foi em solidariedade ao amigo, o qual além de ir trabalhar no jornal, levou consigo os seus dois irmãos que também foram incorporados ao quadro de funcionários de O Globo.(SILVA, 2006, p. 97-98)
No início da década de 30, o jornal O Globo dedicava a página 7 para as notícias esportivas, que eram retratadas de maneira tradicional, com uma linguagem formal e enfatizando os valores elitistas da sociedade. (O GLOBO, 1930) Inicialmente Mário Filho, começou escrevendo na página 8, lugar em que ele foi colocando em prática as suas idéias modernizadoras, apresentando iniciativas inovadoras, que modificaram a forma de noticiar e interpretar os acontecimentos esportivos. Buscando subsídios em entrevistas, que eram apresentadas através de uma linguagem coloquial, tentando aproximar o homem comum dos textos literários.
Além disso, se for observado os jornais daquele momento é possível identificar que Mario Filho acabou com a necessidade de um texto único que interligava todos os acontecimentos esportivos, ele dividiu as matérias através de números arábicos. Passou a valorizar as polêmicas e assuntos marginais que anteriormente eram desprezados.
A disputada travada em torno da página de esportes, entre dois grupos distintos fez com que o grupo recém-chegado buscasse estratégias que lhes assegurasse um lugar de destaque na balança de poder. Mário Filho optou em reinventar o noticiário, para não correr o risco de reproduzir o que seu “concorrente” havia feito na página anterior do Jornal:
Em lugar de elogios ao comportamento disciplinado e civilizado dos atletas e da platéia ou dos eventos sociais, ou eventuais críticas aos sururus, a seção do jornal abriu espaço para que se emitissem opiniões, emoções e expectativas dos atletas e torcedores, destacando as polêmicas que agigantavam os bastidores dos clubes e a vida privada dos cracks. (SILVA, 2006, p. 108)
É possível acreditar que o jornalista foi buscar nas suas experiências de vida, os subsídios necessários para a execução destas estratégias, Cabe salientar que os jornais dirigidos pelo seu pai, sempre apresentaram uma forma invasiva e sensacionalista, de investigar e divulgar os acontecimentos, principalmente os escândalos envolvendo a alta sociedade carioca. (CASTRO, 1992, p. 65-128)
Pautando-se nestas vivências anteriores Mario Filho começou a freqüentar os locais de treinamentos, tornando-se amigo dos atletas, os quais gostavam de ver as suas fotos e o seu nome estampado no jornal. O jornalista conseguiu adentrar na intimidade dos atletas, freqüentando as suas casas, bares, cafés, enfim, vivendo os bastidores do futebol (algo que anteriormente era realizado pelos repórteres policiais do jornal do seu pai), passando a valorizar o aspecto subjetivo que envolvia os personagens do jogo. Neste momento é possível perceber as primeiras aproximações e valorização do aspecto passional do futebol.
A adesão do público a este novo estilo jornalístico foi tão significativa que levou Roberto Marinho a propor uma parceria a Mario Filho, para comprar um jornal voltado somente para notícias esportivas. A aquisição do Jornal dos Sports (JS) em 1936, possibilitou à Mario Filho fortalecer os seus vínculos de amizade com intelectuais como Gilberto Freyre, que escreveu o prefácio da 1ª edição do principal livro escrito por Mario Filho "O negro no futebol brasileiro (1947)"; além de políticos como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck, que o recebiam em seu gabinete e por diversas vezes atenderam as suas solicitações.(CASTRO, 1992)
Mario Filho só assumiu a direção do Jornal dos Sports na década de 40 e a partir deste momento a linha editorial do periódico, seguiu alguns princípios que ele havia utilizado na página de esportes do jornal O Globo. Principalmente no que se refere a diagramação do Jornal, que passou a ser composto por matérias autônomas assinadas por diferentes articulistas de grande capital simbólico, o que proporcionava maior credibilidade as matérias e também ao próprio jornal. Esta atitude nos permite aferir a rede de interdependência deste personagem, o qual possuía laços de amizade com intelectuais como: José Lins do Rego, João Lyra Filho, Gilberto Freyre, Inezzil Penna Marinho, Manuel do Nascimento Vargas Neto, Thomaz Mazzoni, entre outros agentes que escreviam de forma sistemática para o Jornal dos Sports.2
O próprio jornal indica que: Sua distribuição se dá, principalmente, no Estado do Rio de Janeiro e isso faz dele um veículo verdadeiramente carioca. O que remete a uma questão interessante: - Será que ser um jornal verdadeiramente carioca é defender os interesses do esporte/esportistas daquele local? Esta foi uma das estratégias adotadas por Mario Filho e também por outros literatos deste periódico, que em várias crônicas expressaram os seus posicionamentos regionalistas, provavelmente com o propósito de atender as expectativas dos leitores cariocas, que naquela conjuntura era o maior público consumidor do periódico.
Mario Filho mostrou-se uma pessoa bastante atenta para a realidade que estava a sua volta, pois percebendo a importância das equipes paulistas e cariocas no desenvolvimento do futebol nacional e na criação de demanda para a mídia esportiva, buscou recuperar o Torneio Rio São Paulo que há anos estava desativado: ... coube a Mário Filho a iniciativa pela criação do Torneio Rio-São Paulo (sic), em 1950, reunindo equipes dos dois estados, e que acirrou ainda mais a rivalidade entre paulistas e cariocas no futebol. (ANTUNES, 2004, p.129). A importância desta rivalidade também foi expressa por empresários paulistas ligados a imprensa esportiva, de acordo com Paulo Machado de Carvalho: ... a rivalidade entre paulistas e cariocas fazia bem ao futebol brasileiro, tornava-o menos blasé, mais apaixonante e popular.(CARDOSO & ROCKMAN, p.58)
Mario Filho não ficou restrito somente a esta rivalidade, ele pode ser considerado um militante das causas esportivas, organizando jogos para crianças e adolescentes; estimulando a participação das torcidas nos estádios de futebol; empenhando-se para que o Maracanã fosse construído antes do início da Copa de 1950, etc. Contudo, ao mesmo tempo em que lutava por estas causas, ele ia obtendo conteúdo para as páginas do seu jornal, que fazia amplas coberturas nos eventos e nos projetos por ele assumido.
Os escritores deste periódico foram pessoas que ajudaram a formatar a realidade, legitimando-a e/ou realizando as suas representações. Operando diretamente na interpretação que o torcedor fazia sobre o acontecimento algo que pode ser observado na influência do pensamento de Mario Filho sobre a história do futebol brasileiro. Até poucos anos, os mitos criados por este literato estavam presentes no imaginário coletivo e eram aceitos como relatos fidedignos. (SOARES, 2001, p.13-50)
            As construções discursivas presentes no Jornal dos Sports eram pautadas pela ampliação de referentes, estratégia que possibilitava aos autores estabelecer reflexões sobre a sociedade brasileira a partir da prática do futebol, o que não significa uma redução da sociedade ao fenômeno esportivo, mas uma possibilidade de análise dos discursos intelectuais a partir de um objeto específico, que mantém a sua relativa autonomia mas que precisa ser compreendido a partir da relação que estabelece com os outros campos sociais. 3
Em suas crônicas diárias Mario Filho e/os escritores do Jornal dos Sports, atribuíam um lugar de destaque para o povo, sejam como torcedores de futebol ou como representantes autênticos da Nação, algo que na década de 1950, foi fortalecido com a aproximação da realização da IV Copa do Mundo que seria realizada no Brasil. Para ele, aquela não era uma simples disputa esportiva, mas a possibilidade do país e do seu povo, conseguir se afirmar internacionalmente através de uma vitória nesta competição. É possível afirmar que na visão deste articulista, ser moderno era tentar assumir um lugar de prestígio no cenário mundial, para isto, no âmbito esportivo havia uma exigência quase obrigatória, que era tornar-se campeão da Copa do Mundo de Futebol, mas enquanto isto não acontecia estes literatos iam estimulando o sentimento nacionalista do povo brasileiro.
            O sociólogo francês Pierre Bourdieu ao tratar da questão do campo jornalístico mostra que uma das suas especificidades é o campo literário. Este espaço social é formado por diferentes grupos de literatos, romancistas e poetas, que mantêm relações determinadas e determinantes entre si e também com o campo do poder, onde pode-se localizar leis gerais de funcionamento (que o autor vai chamar de leis invariantes) e também as especificidades do campo, que normalmente só são visualizadas por quem conhece o funcionamento do campo (leis variantes). (BOURDIEU, 1983, p.89)
            Visto desta maneira, o campo literário e o próprio cronista possuem uma liberdade que é controlada pelas leis intrínsecas que permeiam o campo e que são convencionadas pelos próprios agentes daquele campo, de acordo com as condições sociais de poder de cada grupo. Além da influência do próprio dono do periódico, que normalmente era quem definia a linha de atuação do jornal.
Como o selecionado nacional durante praticamente toda a década de 50, apresentava dificuldades em transformar o seu futebol bonito, chamado de futebol arte4 , em um futebol objetivo que fosse expresso através de resultados satisfatórios, Mario Filho buscava destacar o lado estético do futebol nacional, assim como fizera Gilberto Freyre na década de 30. Tal atitude ampliava o foco de suas crônicas e remetia para a necessidade da criação de heróis, como forma de manter viva a esperança dos torcedores brasileiros:
NÃO se pode evitar a idolização de um jogador ou a personificação de uma vitória. Mas nem isso altera o verdadeiro interesse do jogador que é o conjunto das melhores virtudes dos que o formam. [...] Não se pode transformar um Dida em um Didi ou vice-versa. É indispensável para o rendimento máximo do scratch que cada jogador ao ter de passar uma bola passe-a para por em funcionamento as melhores virtudes de quem vai recebê-la. As circunstâncias dos matchs criam os seus heróis. Mas num campeonato do mundo a melhor maneira dum jogador pensar em si mesmo é pensar no scratch. Se o Brasil for campeão o título se dividirá entre os que o conquistaram. (RODRIGUES FILHO, 26 maio de 1958, p.6)
Valorizar as virtudes do homem brasileiro era algo constante em suas crônicas, onde o literato mostrava que havia jogadores que eram esforçados, dedicados, mas não tinham vocação para ser considerados cracks e outros jogadores acabariam se tornando protagonistas das grandes decisões. Observando a forma com que os fatos eram apresentados, talvez fosse mais prudente dizer que não é somente as circunstâncias do jogo que faz o herói, mas principalmente, a necessidade de quem está relatando o jogo, pois o herói é uma construção literária e como toda a construção ela vem carregada de interesses ideológicos. Com salientou Rúbio, não é apenas a disputa que faz o atleta identificar-se com o herói, mas o caminho principalmente o caminho trilhado para obter essa identidade. (RUBIO, 2001, p. 99)
As crônicas de Mario Filho muitas vezes eram construídas como partes de uma história que havia sido pré-estabelecida e que ajudava a reforçar o seu projeto de identidade nacional. Na sua visão o futebol era um dos poucos espaços sociais que o brasileiro se unia em torno de um objetivo comum e também era através dele que se tornava possível observar os seus sentimentos sinceros, algo que ele destaca ao tratar da seleção brasileira que foi realizar amistoso na Europa em 1957:
A verdade é que o torcedor brasileiro não se identificou em nenhum momento, com a seleção que andou pela Europa. Então sentiu, definitivamente, que o que estava em andanças pela Europa não era o futebol brasileiro, e sim a seleção da C.B.D. Talvez se diga que toda seleção brasileira de futebol que veste a camisa da C.B.D. e é, portanto da C.B.D. Mas quando a gente aceita a seleção ela deixa de ser da C.B.D. e passa a ser, irremediavelmente do Brasil.  Irremediavelmente porque se uma vitória dela alegra a gente, faz a gente feliz, orgulha a gente, uma derrota atira a gente na maior depressão. Vem com ela, com a humilhação, não esportiva mas humilhação, a infelicidade  completa. É a história da identificação que não houve. O scratch não chegou a ser brasileiro, embora fosse oficialmente, com todos os documentos em ordem. Quem faz um scratch brasileiro ou não, não é a C.B.D., é a gente, que ou cobre com a bandeira nacional ou não cobre. (RODRIGUES FILHO, 19 DE Maio de 1957, p.6)
            O autor chama atenção para o fato de que somente o pertencimento geográfico não é suficiente para que a identidade seja criada. Na sua visão, o sentimento é algo fundamental para a consolidação identitária e isto muitas vezes apresenta uma relação direta com os resultados positivos. Entretanto, como destacamos inicialmente para poder compreender uma mensagem é necessário pensar no contexto em que ela foi emitida e neste sentido verifica-se que esta crônica foi escrita em um momento que Mario Filho havia declarado guerra contra a CBD, que estava às vésperas de uma nova eleição presidencial, mas que acima de tudo, na visão do cronista estava dando muita abertura para os dirigentes paulistas.
            Neste sentido, não se trata somente da não identificação do torcedor pelo selecionado nacional, mas principalmente de uma estratégia de desqualificação do cronista ao mostrar que no futebol as coisas não devem ser impostas, pois elas são determinadas pelos sentimentos dos torcedores, que no caso em questão renegaram a equipe formada. Mas o interessante é a forma com que o articulista construiu a sua narrativa, partindo de um referente empírico que lhe permitiu criar um exemplo do processo de formação da identidade por meio do futebol.
Observando a trajetória histórica do nosso personagem é possível identificar que os seus escritos constantemente fomentavam polêmicas. Inúmeras vezes, isto aconteceu entre os próprios literatos do Jornal dos Sports que apresentavam posicionamentos conflitantes sobre uma determinada temática. Hipoteticamente pode-se acreditar em duas possibilidades:

  1. As polêmicas internas eram mais uma das estratégias deste articulista e empresário, visando garantir a atenção dos leitores;
  2. O Jornal dos Sports era realmente um periódico democrático, onde os articulistas tinham liberdade de expressão, independente do posicionamento adotado.

Um exemplo das polêmicas que circulavam nas páginas deste periódico pode ser acompanhado através da discussão travada entre Mário Filho (proprietário do jornal) e Vargas Netto (um dos cronistas mais antigos e conceituados do jornal), ao tratarem da questão da aceitação da Loteria Esportiva:
Quando a prefeitura quis fazer o concurso esportivo municipal, que foi a única fórmula encontrada para realizar o programa de auxílio elaborado pela comissão de planejamento, houve uma gritaria de todos os setores alheios. [...] agora querem fazer algo semelhante baseado no Tocalcio, onde os clubes praticamente não terão retorno. (RODRIGUES FILHO, 24 Jul. 1957, p.6)
            Mario Filho não aceitou o fato de anos atrás não ter sido permitido que a prefeitura explorasse financeiramente o futebol carioca, mesmo com os inúmeros benefícios que ela estava oferecendo para os clubes. Entretanto, de acordo com o discurso deste cronista, após ter passado algum tempo, foram trocadas algumas pessoas que estavam a frente dos órgãos públicos legislativo, executivo e também das organizações esportivas, e os novos responsáveis definiram que esta prática de apostas poderia auxiliar o futebol brasileiro. Posicionamento que não foi bem aceito por Vargas Netto:
Não gostei positivamente do artigo de Mario Filho, sobre a implantação do jogo baseado nos resultados da partida de football. Não há quem não saiba que se isso não existe legalmente no Brasil, funcionando desde o governo Vargas, fui eu quem atrapalhei. [...] em minha humilde pessoa, por me opor sempre a implantação desse corrosivo moral no seio do desporto. Até hoje não houve argumento bastante forte para me convencer da utilidade da iniciativa ou da falta de nocividade do empreendimento.(25 de jul. 1957, p.5)
            Claramente o cronista vai contra o posicionamento feito pelo dono do jornal, mostrando que na sua concepção a “loteria esportiva” era um instrumento perigoso para ser aplicado na frágil estrutura do futebol brasileiro. Vargas Netto apresenta uma clara preocupação com a possibilidade de fraudes na realização das partidas. Posicionamento instigante por partir de alguém que durante muito tempo foi Presidente da Liga Metropolitana de Futebol do Rio de Janeiro, ou seja, um indivíduo que conhecia a forma de gerenciamento do futebol naquele Estado. Contudo na edição do dia seguinte Mario Filho, argumenta:
A oposição de Vargas Netto ao Concurso Esportivo Municipal tinha de ser olhada como um caso especial. Ele sempre fora contra a Loteria Esportiva, temeroso de que ela poderia influir de modo maléfico nos costumes, não muito rígidos do esporte brasileiro. E era tão sincero que podendo a loteria esportiva usá-la para dar ao Conselho Nacional de Desportos uma força irresistível, não só pelo poder econômico, como pelos benefícios ao esporte, construindo estádios, ginásios... (Rodrigues Filho, Jornal dos Sports, 26 jul. 1957, p.5)
            Este debate fornece indícios sobre o nível de liberdade que o cronista apresentava para expor o seu posicionamento através das páginas do Jornal dos Sports. Mário Filho finaliza esta polêmica dizendo que respeitava o ponto de vista de Vargas Netto, mas que para ele não estava claro os motivos que levaram o governo carioca a liberar a realização da loteria esportiva, principalmente por ela não trazer os mesmos benefícios propostos anteriormente para o futebol do Estado. Além do posicionamento divergente entre os cronistas, esta crônica apresenta um dos poucos episódios no qual o cronista realiza algum tipo de crítica ao governo, pois a postura do Jornal dos Sports normalmente foi de apoio incondicional e irrestrito as decisões tomadas pelo Estado.
            Inúmeras vezes havia um esforço para estimular a disputa, buscando explorar o caráter conflituoso do esporte, alimentando a dúvida ao trabalhar com o temor e a ansiedade dos torcedores. A paixão pela seleção nacional, que se torna correspondente da paixão pelo país, a insatisfação com a derrota ou o desejo de vitória, não eram vistos como elementos negativos, eram utilizados para criar um clima de suspense necessário para a formação de representações místicas em torno do futebol.
Os principais temas abordados por Mário Filho nas crônicas em que ele trata do selecionado nacional que disputou a Copa do Mundo de 1950, apontaram para as várias faces do brasileiro, destacando o individualismo, a humildade, o complexo de ser brasileiro, e o orgulho pela vitória que ainda não havia ocorrido. Características que eram tensionadas pelo posicionamento passional do cronista e pela tentativa dos dirigentes em tentar superar o subdesenvolvimento para poder chegar a modernidade.
A formação intelectual de Mario Filho apresenta uma grande influência da mentalidade nacionalista que imperava no Brasil dos anos 30 e 40, principalmente nos projetos ideológicos desenvolvidos por Gilberto Freyre, o qual acreditava que a cultura seria o meio mais eficiente para que as pessoas de cor tivessem acesso ao projeto de modernidade brasileiro. O futebol foi um dos temas privilegiados por este intelectual ao analisar a questão da autenticidade brasileira, servindo de exemplo empírico para que ele pudesse justificar a sua tese de que em uma sociedade conflituosa como a brasileira, a miscigenação decorrente do convívio harmonioso entre diferentes raças, resultou em um novo ethos, que foi expresso na figura do mulato.  De acordo com Ribeiro, Gilberto Freyre foi:
Herdeiro de uma tradição elitista que buscava na miscigenação a identidade do homem e da nação brasileira. Foi um dos principais construtores do imaginário coletivo que legitimou e preservou uma modernização conservadora, fundada em passado patriarcal e escravocrata. Freyre é um homem do seu tempo e esta marcado pela permanência da tradição patriarcal escravista. (2005, 103)
Como participante do debate intelectual que buscava reorganizar a sociedade brasileira, a partir do processo de modernização que se impunha nas primeiras décadas do século XX, o mulatismo de Freyre revela a capacidade do homem brasileiro em se adaptar, integrando-se e aculturando-se. Algo que foi expresso através de personagens como Leônidas da Silva, indivíduo que representava o jeito singular do futebol e da cultura brasileira. Apesar da grande diferença de desenvolvimento social, cultural, tecnológico, etc. que separava o Brasil dos países desenvolvidos, Freyre mostrou que os bons resultados da seleção brasileira de 1938 foram decorrentes do potencial de uma civilização mestiça.
Este enfoque pode ajudar a situar o sentido do discurso realizado por Mario Filho no processo de tentativa de modernização da sociedade brasileira, nos anos de 1950. Contudo, cabe salientar que a questão racial foi um tema que praticamente não foi abordado por este autor nas crônicas produzidas no Jornal dos Sports. Mas que foi o objeto central do seu livro clássico O negro no futebol brasileiro, publicado pela primeira vez em 1947 e que teve o prefácio escrito por Gilberto Freyre, ganhou uma segunda edição em 1964, sendo complementada por mais dois capítulos.
Em ambos os casos ele foi escrito a partir da compilação de uma série de histórias obtidas pelo autor através de conversas realizadas com jogadores, torcedores e cartolas, além das suas próprias memórias que foram transcritas com base na sua experiência ficcional. Partindo de uma leitura ideológica da tese de Gilberto Freyre, o autor buscou apresentar a idéia de que no Brasil o racismo havia sido superado graças aos feitos heróicos dos negros que através do futebol estavam socialmente inseridos e conseguiram prestígio social. 5 Este discurso da vitória racial na representação do mito de um Brasil moderno acabou disfarçando a falta de espaço e de liberdade política desta população, que desorganizada ficava a margem da modernização institucional realizada em setores econômicos, social e cultural do país.
A metodologia utilizada por este autor para produzir o seu livro, a falta de indicação das fontes consultadas, o estilo literário apaixonado/envolvido e principalmente a forma com que o livro foi estruturado, com base em três situações básicas: 1 – a segregação e o racismo; 2 – a resistência; 3 – a integração social e a vitória do negro, mostram que este livro apresenta fortes características de um romance literário e/ou sociológico.
Estas classificações sustentam-se principalmente no fato de que Mario Filho criou um cenário de sofrimento, luta e no final destacou a vitória do personagem que foi perseguido por todos, mas graças as suas forças conseguiu superar os problemas e se tornar um herói. Para Mario Filho a Copa do Mundo de 1950 era o momento que iria coroar o homem de cor, pois na sua concepção o futebol brasileiro havia se tornado dependente dos jogadores negros: daí a gratidão de tanto branco, por um mulato ou preto que ganhava um jogo ou campeonato. O amor pelo clube transferia-se para os que o defendiam em campo, independentemente da cor. Partindo de algumas imagens, este autor cria uma representação da modernização conservadora brasileira, estabelecida a partir da síntese de conciliação das forças de modernização expressas pela aceitação social do negro e da conservação, representada pela desconfiança das pessoas de cor e por formas mais amenas de racismo.
O futebol é apresentado como um meio de mobilidade social e econômica para as pessoas de cor no Brasil, algo que na primeira edição do seu livro o autor indica que havia sido superado. Entretanto, ao ampliar a sua análise através da segunda edição, Mario Filho apresenta dois novos capítulos, mas que seguem o mesmo estilo literário da primeira edição, fornecendo indícios de uma possível re-atualização dos acontecimentos. O problema é que na primeira edição o autor termina o livro indicando que a questão racial estava resolvida no Brasil, mas na segunda edição ele contraditoriamente vai mostrar que a partir dos acontecimentos da final da Copa do mundo de 1950, principalmente após a derrota na partida final para o Uruguai, onde os jogadores Barbosa, Juvenal e Bigode, todos negros, foram considerados culpados pelo resultado. Para o autor, isto era prova de que o racismo ainda permanecia na sociedade brasileira. A forma tendenciosa que Mario Filho estrutura a segunda edição é ressaltada por Soares:
As supressões de segmentos de texto da primeira edição sobre a realização final da democracia racial poderiam ser interpretadas como uma releitura de Mario Filho sobre o racismo brasileiro. Entretanto, se mergulharmos nos novos capítulos, veremos que as supressões apenas apagam o triunfo da democracia racial e o final feliz do herói negro em 1947, impondo-se-lhe novos danos e provações para se anunciar o triunfo final na edição de 1964. (2001, p.4)
Comungamos com as críticas estabelecidas por Soares a este autor, principalmente no que se refere a forma com que Mario Filho prepara os acontecimentos para encadeá-los em sua história que já estava pré-estabelecida. A análise das crônicas e dos jornais produzidos nos 6 meses que seguem a derrota brasileira, acontecida em 16 de julho de 1950 não fazem ligação a cor do jogador e o fracasso da equipe brasileira. A culpabilidade do negro vai aparecer na segunda edição de O negro no futebol brasileiro, fornecendo indícios para se acreditar que estas críticas partiram do próprio Mario Filho, como estratégia para valorizar os feitos dos jogadores negros. O autor inicialmente criou um cenário de adversidades, para posteriormente  transformar os jogadores negros em heróis, fato que vai ser consolidado em 1958 quando o Brasil vence a Copa do Mundo da Suécia e os cronistas do Jornal dos Sports elegem Pelé e Garrincha como símbolos do sucesso modernizador brasileiro.
O projeto ideológico de Mario Filho apresentava o futebol como um sistema simbólico que permitia cultivar o orgulho nacional em torno de idéias e práticas tradicionais forjadas em um discurso de democracia racial. Este livro apresenta um conteúdo significativo sobre o clima de uma época, principalmente sobre a leitura que um grupo de indivíduos de uma determinada configuração fez sobre a sociedade e como formadores de opinião, buscaram influenciar o imaginário dos seus leitores, por meio da criação do mito de sucesso das pessoas de cor na sociedade brasileira, inicialmente como os principais jogadores dos seus clubes e posteriormente como os protagonistas das principais conquistas do selecionado nacional.
 Entende-se que a postura crítica de Soares foi de extrema importância, para os cuidados metodológicos necessários ao se trabalhar com a obra de Mario Filho, que durante muito tempo foi vista como a única referência possível para se compreender o futebol brasileiro. Como o próprio pesquisador destaca:
Mas, poder-se-ia perguntar, que problemas haveria em usar Mario Filho como fonte de fatos e interpretações da história do futebol brasileiro? De fato, não haveria problema algum se a obra fosse tomada como mais uma fonte de informação e contrastada ou cruzada com outras.(2001, p.14)
Soares não nega a validade da obra deste autor, mas apresenta a necessidade de se tomar cuidado com os mitos que foram criados. A tese de Mário Filho envolveu muitos pesquisadores das Ciências Sociais/Humanas, que acabaram reproduzindo e re-atualizando os seus mitos. Talvez pela forma sedutora de um discurso politicamente correto e/ou pela comodidade em não precisar realizar um trabalho minucioso com as fontes da época, as idéias de Mario Filho passaram a figurar no meio literário e acadêmico como sinônimo de verdade e durante algum tempo foram vistos como fatos quase inquestionáveis.

Considerações Finais
Analisar a produção de um intelectual é uma das formas de compreender a sua biografia. Neste caso, não se trata de reificar mitos, destacar aspectos positivos da vida, ou lamentar-se por aquilo que não fora feito, mas sim buscar compreender o que fora produzido, em quais circunstâncias, com quais intencionalidades...
O discurso de Mario Filho foi produzido em um momento onde o espírito que predominava entre as elites dirigentes e os intelectuais era de re-ordenamento e reestruturação social. Este autor defendeu a tese de um Brasil moderno, que seria concretizado à partir da idéia de aceitação do negro, que ao se tornar vitorioso ascenderia socialmente e passaria a ser visto como uma pessoa normal, superando barreiras que foram atribuídas a partir da nossa tradição colonial.
Esta imagem da realização da nação através do futebol foi um discurso estruturado para subsidiar um projeto de afirmação da identidade nacional mestiça. O resultado desta representação era constantemente tensionada pelas inúmeras contradições presentes na sociedade brasileira, principalmente no que se referia ao papel atribuído a população negra do país. Autores como Renato Ortiz e Marcos Napolitano mostram que para grande parte da intelectualidade local os negros e mestiços eram vistos como motivo de vergonha.
A biografia/autobiografia é uma fonte que pode contribuir significativamente para a renovação metodológica dos estudos desenvolvidos pelas Ciências Humanas e Sociais, porém, ela necessita ser compreendida na sua relação entre o que há de específico (sentimento, irracionalidade, paixão, ideologia...) e o contexto social. Estudar uma temática, tendo como mote a vida de uma pessoa nos remete ao desafio de buscar racionalizar algo que possui elevado grau de indeterminação. Aí parece estar o ponto nevrálgico deste tipo de fonte, pois se torna imperativo que o estudioso perceba a impossibilidade de analisar um objeto por meio de uma narrativa pré-concebida, que normalmente acaba criando uma visão redutora e heróica dos diferentes acontecimentos da vida de um indivíduo e isto acaba dificultando para que se compreenda determinadas atitudes tomadas em um contexto histórico.
            A utilização da biografia/autobiografia, ao mesmo tempo em que não pode perder de vista a dimensão pessoal, não pode descaracterizar a sua estrutura social, a tal ponto que não nos permita perceber as intencionalidades e ideologias presentes na sua construção, pois somente a partir destes cuidados é que conseguiremos compreender a complexidade social vivenciada pelo indivíduo.

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1 Ainda neste aspecto cabe salientar que O Catálogo Brasileiro de Publicações comparou a produção da obras biográficas dos anos de 1987 e de 1994, percebeu-se que houve um aumento de 55% na produção deste tipo de literatura.Cf. SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19,1997. p.1

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3 Sobre a questão da relativa autonomia dos campos sociais, vale a pena cf. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.55-56.

4 Uma boa discussão sobre literatura e a visão do futebol arte brasileiro, foi desenvolvida por MANHÃES, Eduardo. João sem medo – futebol-arte e identidade. Campinas/SP: Pontes Livros, 2004.

5 Soares vai identificar como sendo a leitura de um freyrismo popular, o que erroneamente reduziria o pensamento de Freyre a idéia de que no Brasil não havia racismo. SOARES, Antonio Jorge. Op cit. p.15.