Renata Ovenhausen Albernaz (CV)
Universidade Federal de Pelotas
renata_albernaz@terra.com.br
Resumo
Esse ensaio tem por objetivo realizar uma reflexão sobre os limites materiais e subjetivos às normas de direito comunitário tendo por referência uma distinção entre diferentes esferas de interesse pertinentes ao ser humano. Esses interesses foram classificados em três categorias – (1) interesses universais; (2) interesses particulares; (3) interesses econômicos – e evidenciados em suas características e definições. A cada um deles advoga-se uma espécie normativa que lhe seja pertinente em termos de alcance material e de extensão dos sujeitos sobre os quais se aplica, a fim de que seja respeitada a legitimidade de tais normas, expressa na consciência de que sejam efetivamente devidas. Em face dessa referência, foram reunidas e tecidas algumas críticas ao direito comunitário da União Europeia e algumas reflexões sobre o Mercosul em termos de violação democrática e ao direito de distinção afirmado pelos povos dos estados membros. Esse estudo foi efetuado em referências bibliográficas de obras sobre o direito comunitário e outras sobre ciência política, sociologia e economia. Como resultados entendemos trazer algumas reflexões importantes para a afirmação e delimitação do direito comunitário, como direito restrito aos interesses universais – que também devem ser tratados – e interesses econômicos, no intuito de garantir igualdade na obtenção de vantagens sociais.Vivemos num conflito. De um lado, as promessas de desenvolvimento econômico e social da ordem mundial globalizada; de outro, as críticas sobre a ilegitimidade, violação da soberania e direito de distinção e auto-afirmação dos povos, desobediência a princípios democráticos de participação nas escolhas, exclusão e desigualdade sobre os quais essa ordem, que apregoa desenvolvimento a qualquer custo, constrói-se. As comunidades constituídas pelos blocos econômicos aparecem como uma possível resposta a esse conflito entre o contexto econômico mundial e os interesses de grupos com algumas características comuns. Mas, mesmo no âmbito dessas comunidades, há questionamentos sérios sobre a sua legitimidade e a súplica dos grupos menores, seus membros, de que certos interesses muito particulares seus, que lhes afirmam a identidade e distinção, não sejam violados.
Nesse embate - vontade soberana legitimada e ordem mundial marcada pela dominação de certos grupos econômicos - no entanto, há de se retomar algumas considerações importantes, pois a questão não se deve resumir a um retrocesso histórico para negar ou destruir, sejam os avanços em conquistas democráticas e humanas, sejam os que traduzem tecnologia, processos e mecanismos de desenvolvimento econômico. A questão é como se dará a convivência, mesmo que não inteiramente pacífica, pois a interpenetração de atividades é inevitável, entre essa liberdade do grupo social de se determinar, de proceder suas escolhas e traduzi-las objetivamente em suas normas, soberanamente e as exigências que a nova ordem econômica mundial impõe a esses grupos.
Um início de uma resposta possível a essa questão pode se dar pela delimitação normativa sobre o aspecto das diferentes esferas de interesses que elas devem envolver. Esferas essas em que é possível, ou não, presumir-se a extensão da vontade dos grupos sujeitos às ordens normativas. Entender que há certos interesses, por demais difusos, por pertencerem à própria essência ou qualidade do humano, podem, legitimamente, ser resguardados em normas de grande amplitude de alcance subjetivo; outros, porém, se realizam através dos antagonismos ou das diferenças e que, por isso, tais devem ser mantidas e devem ser asseguradas as transações apenas por normas de intermediação; e que, também, existem esferas de interesses muito particulares de cada grupo, que lhe resguarda a identidade e dos quais ele não está disposto a abdicar ou a negociar em prol de uma ordem maior e que devem, assim, ser respeitados, o entendimento dessas diferenças é fundamental para sustentar a legitimidade de qualquer norma integracionista ou comunitária. Iniciar a discussão e proceder algumas reflexões sobre os limites materiais que esses interesses distintos impõem ao direito comunitário é a intenção desse ensaio.
Uma das capacidades inerentes ao ser humano é a capacidade de querer – a vontade – que lhe permite desenhar o seu destino e ser distinto perante outros seres humanos. Essa vontade faz com que toda e qualquer imposição que a agrida se torne para o ser humano uma violência à sua própria natureza. Ocorre que o ser humano não vive só. Seu querer enfrenta, nas múltiplas interações sociais que desenvolve, o querer de outros, muitas vezes distintos e excludentes, e que tem com ele a mesma dignidade. Os interesses, que manifestam esse querer, assim, podem colidir. Para solucionar esse conflito de interesses, ou se entende que há uma meta vontade que, a priori, estabeleça entre eles uma ordem de preferência – vontade divina ou da natureza – ou que o próprio ser humano, em acordos com os demais, elege uma ordem que lhe seja adequada e a aplica. Essa ordem humana, porém, tem um alcance subjetivo, ou seja, afeta, para ser legítima, apenas aos indivíduos que a ela aquiesceram. E, nesse limite, pretende-se soberana, respeitada por seus membros e por todos os outros grupos.
Uma dessas ordens construídas para a solução desses conflitos é o direito. Segundo Boaventura de Souza Santos 1, direito é concebido como “o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados justiciáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e prevenção de litígios e para a resolução desses através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada”. As formas desses processos regularizados e o conteúdo desses princípios normativos, no entanto, são aqueles escolhidos pelo grupo como significativos. Nesse processo, podemos dizer, atuam aqueles que Max Weber denomina agentes políticos2 , agentes de escolha entre vários contextos significativos possíveis dentro da imensidão da realidade.
As instituições, os institutos que nelas estão contidos, e, enfim, toda a ordenação jurídica que a reúne de maneira sistemática3 , está envolvida por essas escolhas significativas decorrentes de expressões volitivas4 de seus agentes que a elas se subordinam e que a pretendem respeitada pelos outros grupos. Essa ordenação é, assim, soberana. Nesse sentido, interessante a expressão de Rosemiro Pereira Leal (1996, p. 32):
Poder-se-ia acrescentar que a soberania, na acepção moderna, como instituição condicionante e criadora do ordenamento jurídico dos povos em forma de Estados autodetermináveis e independentes, equivale à consciência coletiva que, por direito fundamental, decorre da livre manifestação do povo para modelar o Estado, segundo princípios imanentes a essa própria consciência.” (grifo do autor)
Essa consciência coletiva se manifesta sobre todos os âmbitos de interesse para aquele grupo: interesses sociais, culturais, econômicos, políticos. Ela é representada pelo estado e alcança, em termos subjetivos, todos aqueles que a ela aquiesceram, sob pena de, se avançar sobre outros, deixar tal ordem de ser legítima. No que se refere aos interesses econômicos – relevantes em termos de direito comunitário – devemos ter em conta que transações que os envolvam também, para serem legítimas, devem ser confirmadas pela vontade popular, o que, assevera Rosemiro Pereira Leal (1996), não ocorre na atualidade, principalmente em países periféricos, por conta da subordinação dessa vontade e do próprio estado às forças dominantes e totalizadoras macro-mundiais representadas pelo Sistema Econômico Mundial e pelo Sistema Monetário Internacional que impõe a todos uma ordem mundial. Essa ordem mundial, assevera o autor, que, por ser de natureza essencialmente excludente, como o sistema capitalista e neoliberal5 , não se presta a ter seus preceitos universalmente reconhecidos – uma vez que o que vige para os países centrais não se dá com os países periféricos e essa desigualdade é, inclusive, pressuposto para manutenção do sistema econômico atual – e que também não se encontra legitimado pela decisão e expressão de vontade local, não pode resistir às críticas quanto à sua legitimidade e às reações daqueles sobre os quais ela, arbitrariamente, se impõe com efeitos destrutivos a princípios democráticos e com degradação social. E, nesses termos, a soberania, como vontade comandante, deve se manifestar como reação ao desprezo normativo que essa ordem imperialista sustenta contra a vontade comum ou geral da humanidade, da comunidade maior, ou da especial e particular dos grupos menores – estatais ou intra-estatais.
Não negamos a possibilidade de certa ordem mundial ou comunitária. Ocorre que ela deve ter alguns limites em seu alcance material para que não se apresente ilegítima àqueles aos quais se aplica. No intuito de evidenciar esses limites, procuraremos distinguir três esferas de interesse que exigiriam âmbitos normativos distintos: os interesses universais, os interesses econômicos e os interesses particulares.
Tendo em consideração o que acima expusemos sobre a vontade soberana instituidora das normas e requisito de legitimidade dessas normas na regulamentação dos interesses segundo escolhas significativas, poderíamos distinguir três esferas em que tais interesses se apresentam. Por um lado, assim, teríamos uma vontade comum universal, expressa em interesses universais, ou assente em grandes comunidades, manifestada em interesses mais essenciais da natureza humana (por isso absolutos e universais, atemporais e a-espaciais) ou interesses semelhantes entre grupos, ambos, por essa conotação comum, despidos de distinções ou diferenças formadas em processos particulares de interação social, de cunho histórico, econômico, axiológico, ideológico, institucional, social, político ocorridos em cada sociedade, a legitimar normatizações de amplo alcance material e subjetivo, sem que violados sejam os direitos de liberdade e de participação na construção da vontade comandante. Tal se dá com o abrigo normativo aos interesses de paz, vida, liberdade, dignidade, participação e de manutenção das diferenças significativas de cada grupo que não agridam os interesses anteriores. Nesse nível, assevera Ari Marcelo Sólon 6:
O ‘dever-ser’ é projetado até a ‘civitas maxima’ da comunidade jurídica universal, expandindo-se desde o indivíduo a círculos cada vez mais amplos, não se detendo nem mesmo nas fronteiras das nações e dos Estados. Esse ‘dever-ser’ faz o caminho inverso da história real, que partiu da unidade da Humanidade para chegar aos modernos Estados imperialistas. Com o primado do Direito Internacional, ‘o Direito passa a servir a organização da Humanidade, unificando-se com a ideia de moral superior.
Considerando a possibilidade dessa esfera de interesses universais, mas que não esgotam a plenitude dos interesses humanos, haja vista que há um espectro bastante amplo de interesses distintos, particulares e especiais, tidos como significativos em indivíduos e grupos distintos e que exaltam a sua identidade, poder-se-ia advogar a existência concomitante de dois sistemas soberanos: o nacional ou particularizante – adequado com as condições históricas, econômicas, sociais, culturais e políticas específicas de cada grupo; e o supranacional ou comunitário em termos gerais (e não simplesmente econômicos) – adequado a aspectos essenciais em comum seja na Humanidade, pertinentes à natureza humana, seja em determinado grupo mais amplo com alguns desses traços em comum.
Há, no entanto, a esfera dos interesses que não são comuns e sobre os quais não há a possibilidade de acordo. É a esfera dos interesses particulares que conferem identidade às pessoas que atuam dentro de um espaço de liberdade, entre pares, dentro do qual desenvolvem suas ações e discursos, e que, assim, não pode ser violada, sob pena de agredir a própria humanidade. Podemos refletir, nesse sentido, sobre algumas ideias políticas de Hannah Arendt (1999), afirmando o ser humano como o ser com outros humanos e que se afirma e distingue perante os demais através de seu discurso e ação em um contexto de pares e envolto na liberdade – é a esfera política afirmando a natureza humana. Adverte a autora que, para que se desenvolva essa esfera política, tal como já advertiam os gregos, há de se limitar o grupo para que o embate seja possível e para que as distinções não se tornem mais acentuadas que as semelhanças. Em um contexto mundial, e mesmo em um contexto comunitário, tal esfera não nos parece viável. Logo deverá ser reservado a ela um espaço importante não violado pelas imposições da comunidade e da ordem mundial, sob pena de reações desses grupos por essa imposição tida como arbitrária.
No sentido de como os grupos reagem a imposições que lhes parecem ilegítimas por violarem seus interesses particulares, interessante é o estudo de Boaventura de Souza Santos, intitulado "O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica". Nessa obra, o autor apresenta um estudo em que contrasta a prática jurídica estatal dos países capitalistas com a prática jurídica do interior de um grupo social marginalizado - uma favela carioca a qual ele denomina "Pasárgada" - através de sua associação de moradores, com base no referencial da tópica-retórica e de um estudo empírico com base do método da observação participante. Esse autor observa que tal prática dos grupos marginalizados, dentro deles tidas como perfeitamente legítimas, em detrimento de estarem ao arrepio do direito oficial7 (material 8 e processualmente9 ), apresentam-se originadas como resistência à falta de espaço de suas querências (condições de propriedade, de habitabilidade e solução de conflitos internos) na legalidade e a outras pressões de interesses dos grupos dominantes. Acentua o autor que essas construções da prática jurídica em Pasárgada tem saliente teor de discurso jurídico, e não de mera aplicação de uma lei posta ao caso concreto, discurso que envolve um quadro de topoi10 vago e abstrato 11, além de provérbios, slogans, máximas, referências bíblicas, escolhidos na própria comunidade e concretizados pela atuação discursiva das partes e até de outros sujeitos.
A esfera desses interesses econômicos, que pretendem alcançar grande vulto em penetração e dominância na atualidade, só poderia ser legitimada por um sistema de conciliação ou trocas de interesses relevantes entre as partes envolvidas. A relação econômica se dá entre não comuns, ou seja, o interesse mesmo que instiga a relação se manifesta em virtude da diferença entre os que se relacionam. Diferenças em termos de capacidade de gestão, em disponibilidade ou qualidade de recursos, em poder financeiro, em tecnologia, em penetração ou domínio de mercado, as quais incentivam trocas, alianças, ou dominação. O desafio passa a ser a promoção de igualdade em relações que imprescindem da desigualdade para que se promovam. Essa igualdade pode ser, por exemplo, a da vantagem social específica, na ponderação de importância sobre em que consiste essa vantagem própria para cada parte. A vontade é a acordada entre as partes, mas têm como pano de fundo os interesses particulares e distintos de cada uma na regulação.
A consideração dessas distintas esferas de interesses – universais, particulares e econômicos – que devem ser resguardadas e reguladas por ordens normativas específicas, pode ajudar na verificação dos limites materiais e subjetivos dessas ordens sob os princípios da legitimidade, participação democrática e direito de distinção, constituindo um referencial importante para averiguar os limites das normas comunitárias.
A formação de blocos econômicos, numa tendência de regionalização, se dá dentro e em resposta a um contexto globalizado. A regionalização, segundo Florência Gonzales-Oldekop12 , realiza-se no sentido de um "regionalismo aberto", com o intuito de reforçar os laços continentais, através da constituição de um mercado único para, fortalecidos todos os países do bloco, posteriormente, proceder à interação global. Tal estratégia decorre, segundo a autora, do pressuposto de que o acesso aos mercados mundiais é um requisito prévio para o desenvolvimento dos mercados locais. Nessa intenção - constituir um mercado comum - e para instrumentalizá-lo, continua a autora, foram criadas e conformadas as instituições e normas do sistema da comunidade europeia, com nítida distinção entre matérias de política geral e de políticas para a consolidação e funcionamento do mercado comum.
A esfera de interesses regulados no entanto, foi ampliada no Tratado de Maastricht, podendo alcançar outras que não as de mera intermediação econômica. Isto porque, segundo Florência Gonzalez-Oldecop13 , o artigo 3º amplia a competência da Comunidade Europeia para envolver matérias relativas à cultura, educação, formação profissional e juvenil, saúde pública, fomento da criação e desenvolvimento de redes transeuropeias, fortalecimento da indústria, medidas nos âmbitos de energia, proteção civil e de turismo além de reforçar matéria de cunho social. O problema é que na integração ou cooperação que invada, com suas normas homogeneizantes, esferas de interesses as quais não pode invadir, o processo fica suspeito em termos de legitimidade e agressão à soberania popular. Se a vontade de participar da integração é livre, autorizada por muitas constituições, essa cessão de soberania necessária à formação da comunidade, bem como os limites de interferência normativa, no entanto devem estar muito claros e afetar apenas aqueles interesses passíveis de transcenderem aos limites do estado, como unidade política, com legitimação espontânea ou automática (como as dos interesses universais) ou até mesmo do indispensável, como são as normas para regulamentar interesses econômicos em relações além fronteiras. A não observância de certos limites na atuação de normas de resguardo desses interesses econômicos interestatais pode pôr em risco a própria manutenção da comunidade, por entenderem seus indivíduos violados em seu direito de distinção, revelado na preservação de seus interesses particulares. Aliás, essa crítica de legitimidade de normas comunitárias e violação cultural já é foco de crítica ao e de crise do direito comunitário na União Europeia, segundo alguns autores.
Entre eles, Jimenez (1995), que em seu estudo realça as reações da França, Alemanha e Itália ao direito comunitário, bem como a desconfiança que nesse sentido parece dominar o cenário das decisões políticas no Mercosul14 .
A questão do déficit democrático também ameaça os processos de integração, mesmo de índole restrita aos aspectos econômicos. Ensina Andréa E. G. Ciafonne 15 que, apesar das conquistas alcançadas pela Comunidade Europeia, os europeus resistem ao Tratado de Maastricht, passo decisivo ao federalismo advogado por Jean Monnet, em virtude de temerem o afastamento do pólo de decisão do estado e do próprio povo, além da característica alienante que assumiu o processo e conteúdo decisório. Há, na Europa uma dupla sensação - os europeus querem a integração (e autora apresenta pesquisas que confirmam isto), mas temem a ausência de participação, de democracia para sustentar a legitimidade das decisões e da autoridade das instituições comunitárias. Aliás, acentua a autora, no que se refere à construção institucional e de suas atribuições, foram enfatizados mais os critérios técnico-especialistas, do que critérios democráticos.
Sob outra perspectiva Rolf Linkohr 16 ensina que, se, de um lado, as gerações mais velhas aplaudem o sistema comunitário na crença de que ele defende os valores da paz, por tanto abalada pelas guerras, e do desenvolvimento econômico, na promessa de bem estar geral a todos os cidadãos da Europa, de outro, a geração mais nova retoma a questão e se interroga sobre sua identidade e cultura em face da união comunitária. Há, assim, segundo o autor, uma insegurança de países europeus no processo de unificação europeia em termos de afastamento do pólo de decisão da realidade de cada país membro - o que torna maior o vulto da minoria cujos interesses não são acolhidos - além de algumas condições culturais, econômicas, sociais, entre outras circunstâncias, peculiares a cada estado serem banidas em virtude de destoarem dos demais, ou mesmo dos interesses da comunidade. A CE, afirma o autor, atravessa hoje uma das mais graves crises - é a crise do crescimento - que pode ameaçar a própria existência da comunidade.
Essas críticas, e outras muitas que despontam nos fóruns de discussão sobre direito comunitário e Mercosul, devem ser consideradas como alertas de que há limites sérios às normas comunitárias e que devem ser obedecidos sob pena de ferir em aspectos humanos importantes tais como a participação na escolha normativa e o direito de distinção de cada ser humano e de cada grupo dos demais. Se não observados, em nome dos interesses de uma ordem econômica mundial totalizante e arbitrária, apresentar-se-á tal ordem como dominação ilegítima e contra ela, inevitavelmente, surgirão reações.
Diante do exposto, podemos perceber que o sistema decisório da União Europeia está sendo questionado em termos da alienação na participação política efetiva de cada indivíduo ou dos próprios estados membros em termos realmente efetivos. Os critérios de eficiência técnica e alcance dos objetivos econômicos apregoados justificam, mas não ao povo, a possibilidade de decisões e órgãos que tendem à ilegitimidade democrática. Ocorre que a interferência econômica sobre outras esferas de interesses particulares, e mesmo certos interesses não comuns de índole econômica advindos das diferentes dificuldades e vantagens de cada estado, não permite que a Comunidade seja encarada apenas com olhar técnico. Ela envolve, e talvez principalmente, questões políticas importantes, e em tais questões o que está em jogo são os interesses – nem sempre sujeitos a uma unificação racional comum, como quer pressupor a estrutura funcional – particulares de cada estado parte na barganha política de se verem atendidos.
A integração, em seu sistema normativo, deve ser tratada mais sobre os limites da verdadeira vontade comum (interesses universais ou comuns ao grupo) cuja legitimidade é presumida, ou sobre a necessidade de intermediação dos distintos interesses econômicos envolvidos nas transações, resguardando a busca de vantagens sociais distintas mais equivalentes para cada participante. O direito de distinção, expresso na busca de respeito aos interesses particulares, deve ser resguardado e afastada qualquer regulamentação comunitária que sobre ele interfira, sob pena de tal interferência fazer ruir toda a comunidade em uma crise de legitimidade de participação democrática .
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1 Boaventura de Souza Santos. O discurso e o poder. Ensaio sobre a retórica da sociologia jurídica, p. 72.
2 Em recensão sobre a obra de Max Weber, Hector Saint-Pierre evidencia a distinção que o autor traça entre os agentes políticos, carregados de juízos de valor e que conferem, com suas escolhas, significados a determinados aspectos da realidade que passam a ser tidos como relevantes, dos cientistas, que, libertos dos juízos de valor, expressam os juízos científicos sobre essa realidade relevante, ou seja, aqueles que sem esquecê-la como algo carregado de sentido, de significação, não os conferem a ela.
3 Para Savigny, menciona Canaris, sistema é uma concatenação das regras e institutos jurídicos numa unidade, e Stammler, segundo o mesmo autor, acrescenta que esta unidade é totalmente coordenada. Podemos depreender dessas definições de sistema, ensina Canaris, duas características que em todas aparecem: as idéias de ordenação e de unidade. Por ordenação, entende o autor, compreende-se um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível, ou seja, fundado na realidade; por unidade, a não permissão de uma multidão de singularidades desconexas, mas, pelo contrário, conduzidas a alguns princípios fundamentais.
4 Ensina Ari Marcelo Sólon (1997, p. 20-48) que essa concepção da vontade humana como criadora do direito sobre o qual será governado o estado, à qual nos perfilhamos, não tinha qualquer paralelo na antigüidade clássica que entendia essas leis governadoras como produto de princípios eternos, originados de Deus, da natureza ou dos princípios da justiça. Também na Idade Média, estando em interdependência Império e Igreja, entendia-se que haveria uma ordem, unidade ou harmonia divina que a tudo governava e da qual deveriam derivar as leis e os homens obedecer. Só no século XII, com a distinção entre o poder temporal e espiritual, iniciam-se os discursos sobre soberania, como poder do governante, mesmo que ainda se entendesse a existência de uma lei natural que impunha limites a sua ação. Com Hobbes e Rousseau inicia-se a idéia de soberania advinda do consenso de vontades dos cidadãos. A partir daí quebra-se qualquer vínculo com leis ou vontades universais e absolutas, pois toda e qualquer lei expressa vontade humana que pode, a qualquer tempo ser alterada, provocando a revogação da lei. Mas, nesse momento, e sob influência de doutrinas positivistas, o poder soberano passa a ser reconhecido como pertencente ao estado (não ao povo), e era a este que competia criar e alterar qualquer lei. Para Kelsen, em interpretação do autor, a soberania era da ordem jurídica, à qual o estado está subordinado, e isso tem como pressuposto o domínio do homem sobre o homem, sem interferência de qualquer vontade supra-individual.
5 Segundo Noam Chomsky e Heinz Dieterich (1999, p. 10-11), “o Neoliberalismo é uma doutrina que, em nome do Capitalismo do século XXI, pretende reordenar a economia mundial, mas que de fato está sustentando uma verdadeira guerra econômica das grandes empresas transnacionais contra a maioria da população, que são os assalariados. Por isso se esconde atrás de noções vagas como as de “modernidade”, “eficiência econômica” ou “sociedade tolerante”. Em menos de três décadas, o neoliberalismo conseguiu na América Latina o contrário do que seus exegetas pretendem, e as cifras estão aí para prová-lo: uma concentração sem precedentes da riqueza, o empobrecimento e o desemprego ou subemprego da maioria da população economicamente ativa e a condenação de milhares de seres humanos ao analfabetismo, à desnutrição e à marginalização, o que os fará crescer com profundas desvantagens, sem ter direito à saúde, à educação ou à terra, sentenciando-os a viver na injustiça e sem possibilidade de um futuro digno.” Outra característica que esse sistema tem apresentado é a priorização ao capital especulativo, esfoliador da economia dos países periféricos dependentes de empréstimos e investimento internacional, em detrimento do capital produtivo de mais riquezas e empregos. Esse sistema, acentuam os autores, composto por políticas assim tão antipopulares foram implantadas em virtude de duas circunstâncias criadas: (1) O fato de não terem sido explícitas e de se esconderem sob o discurso competente da “modernidade”, em si tido como inquestionável, inevitável e a partir do qual todos – estados e cidadãos – devem se quedar; (2) a ausência de um debate democrático sobre o seu conteúdo, intencionalmente evitado. A partir dessas constatações, em termos de afirmação soberana, que é o que nos interessa nesse ensaio, em questões econômicas contemporâneas, percebe-se que certos discursos e políticas devem ser olhados com certa desconfiança em termos de representação real da vontade popular.
6 Ari Marcelo Solon. Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão. p. 63.
7 Marcado, segundo o autor, por maior grau de institucionalização e dotado de mecanismos mais poderosos de coerção, características que o tornam menos atentos ou propícios ao discurso jurídico no sentido da retórica, ao contrário do que foi observado em Pasárgada.
8 Como os topos e outros recursos discursivos utilizados que não constituem preceitos expressos, como no direito oficial.
9 Como a instrumentalidade dos formalismos para os fins de alcançar uma decisão justa e não, como no direito oficial, em que eles constituem os limites externos do discurso.
10 Segundo o autor (1988, p. 17), originalmente os topoi significam pontos de vista, lugares comuns e caracterizam-se por sua natureza de força persuasiva e não como expressão de verdade absoluta.
11 São os topos da justeza, da cooperação, da boa vizinhança, como afirma o autor (1988, p. 19 - 20).
12 Florência Gonzalez-Oldecop. La integracion y sus instituiciones. pp. 14 -16.
13 Florência Gonzalez-Oldecop. ob. cit. p. 45.
14 Segundo a autora, todas as Constituições dos países membros prevêem um controle de constitucionalidade das leis. Isso, segundo a autora, representando uma possibilidade de um exame das normas de integração, constitui um risco para a evolução do processo.
15 Andréa E. G. Ciafonne. Organizações internacionais de integração econômica. Déficit democrático na comunidade européia. In CASELA, Paulo Borba. Contratos internacionais e direito econômico no Mercosul, 1996, p. 124 - 140.
16 Rolf Linkohr. Aspectos culturais e éticos da Integração Européia. In ALGORTA PLÁ, Juan. Mercosul e a Comunidade Européia. Uma abordagem comparativa, 1994, p. 102 - 111.