Isabel Halfen da Costa Torino (CV)
torino@hotmail.com
Universidade Federal de Pelotas
Resumo: Este artigo pretende um diálogo e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre as relações entre a memória, a identidade e a cultura visual na pós-modernidade, a partir do pensamento de alguns teóricos de estudos culturais como Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Paul Ricoeur, Pierre Nora, Joël Candau, Andreas Huyssen, Michel Maffesoli, Nicholas Mirzoeff, entre outros. No texto, também são abordadas questões como as de que maneira a cultura visual contemporânea e o conteúdo midiático, incrementado pelas inovações tecnológicas, podem influenciar na construção da memória social e da identidade cultural.
Palavras-chave: Memória, Identidade cultural, Cultura visual, Contemporaneidade.Introdução
Desde os tempos mais remotos, o tema memória vem despertando interesse na humanidade, principalmente com relação ao seu funcionamento e aspecto cognitivo, mas foi somente durante o século XIX que surgiram os primeiros trabalhos científicos de maior importância a respeito das características e funcionamento da memória humana, muitos deles, a partir do estudo de pacientes e da experimentação animal.
Centrado nas tendências positivistas e cientificistas, o pensamento filosófico do final do século XIX e começo do século XX valorizava o objetivismo em detrimento da relação entre corpo e mente. E é justamente nesse momento que a filosofia, com o filósofo francês Henri Bergson e a psicologia, com o médico austríaco Sigmund Freud começam a discutir a memória como ciência. Bergson, como grande pioneiro no estudo do conceito da memória em sua obra “Matéria e Memória”, escrita em 1896, desafia esse cientificismo ao defender que a memória não pode ser explicada apenas pelo cérebro, mas também pelo espírito, sendo a própria memória o fruto dessa relação corporal e espiritual. O sociólogo francês Maurice Halbwachs viria, logo a seguir, contribuir com a sua “sociologia da memória” para a introdução da noção de memória nas ciências sociais, semeando um terreno fértil e abrindo caminho, na área das humanidades, para vários teóricos desse tema que discutem a articulação da memória como fonte de ligação social e construção da identidade cultural.
Atualmente, o interesse pela base social da memória atinge a vida cotidiana, sendo objeto de estudo não somente em relação ao funcionamento de organismos vivos e no campo das neurociências, mas da sociedade, da história, da cultura, da arte, da literatura, ou seja, da memória social. Mesmo sendo foco de toda essa complexa rede de estudos, os mecanismos do armazenamento das memórias, todavia, permanecem até hoje como um mistério, segundo o médico e cientista argentino, Ivan Izquierdo1 (2002).
Portanto, o estudo sobre a memória social se desenvolve em um campo amplo que atravessa diferentes áreas disciplinares, constituindo-se, desta forma, em um terreno de pesquisa de difícil delimitação conceitual, pois trabalha com conceitos complexos que, embora sejam conexos, possuem as suas especificidades.
Que relação se pode, então, estabeler entre a memória e a construção de uma identidade cultural? Segundo um dos maiores estudiosos da cultura material, o brasileiro Ulpiano Bezerra de Meneses (1984, p. 33), a memória, como suporte fundamental da identidade, “é mecanismo de retenção de informação, conhecimento, experiência individual ou social, constituindo-se em um eixo de atribuições que articula, categoriza os aspectos multiformes de realidade, dando-lhes lógica e inteligibilidade”. Assim, nos conhecemos e reconhecemos por meio dessas percepções e lembranças, dos registros que fazemos de fatos passados, de objetos e coisas que nos são caras, que nos identificam socialmente. Portanto, preservar, tornar “bens” sempre presentes e disponíveis, ativa a nossa memória e, consequentemente, nutre a nossa identidade cultural.
Segundo Izquierdo (2002), o aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso. O autor afirma que não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória: “aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos de tudo isso” (IZQUIERDO, 2002, p. 90).
Portanto, a memória e sua relação com o tempo é vital ao ser humano; é essencial a sua identidade, pois, juntas, elas – memória e identidade – se tornam capazes de gerar sentido, organização social e unificação de um grupo, mantendo-o coeso e ancorado em referenciais simbólicos familiares a ele.
Diálogos entre memória e identidade na contemporaneidade.
Além de estabelecer alguns possíveis diálogos entre autores, este texto pretende uma reflexão sobre a estreita relação entre a memória, a identidade e a cultura visual na pós-modernidade e suas presenças marcantes neste período. Como paradigma dessa época, surge a linguagem e como linguagem especial, a arte. Tudo isso influenciado diretamente, nas últimas décadas, pelas inovações tecnológicas, que praticamente desfazem os limites entre comunicação, lazer, arte e economia. E, ao mesmo tempo, os “excessos de memória”, a busca frenética pela afirmação da identidade e os estudos sobre a cultura visual, preocupados com o poder exercido pela profusão de imagens na atualidade, a influência e o modo como elas nos afetam na construção das identidades, já que reconhecem que a visão é culturalmente construída e, portanto, contribuem para a formação dessas identidades.
A obra do filósofo Henri Bergson “Matéria e Memória“ (1999) propõe uma reflexão de leitura do mundo a partir das imagens e a percepção desse mundo, pelo corpo. Sua teoria trabalha com o caráter subjetivo ao afirmar que a memória não pode ser apenas atribuída ao cérebro, mas ao espírito também, como fruto da interação entre eles.
Para Bergson (1999, p.247), a memória é um fenômeno que “prolonga o passado no presente". O autor afirma que “é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida" (Bergson, 1999, p. 179). Assim, a memória seria a própria ferramenta de conservação do passado, que só sobrevive graças à evocação, no presente, das lembranças. O “tempo” de Bergson possui uma concepção abstrata. A duração não é a mera sucessão de instantes ou a passagem linear do tempo:
A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração e, assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela (BERGSON, 1999, p.77).
Bergson ressalta em seu trabalho dois tipos de memória: a memória-hábito, adquirida pela repetição e ação de comportamentos habituais (por vezes automáticos) e a imagem-lembrança, constituída por rememorações isoladas, vocativas, que ocorrem independentes de qualquer hábito. Essa última, por ser inconsciente e individualizada, é considerada por ele como a verdadeira memória, pois o passado estaria aí, vivo para “souvenir”, vir à tona, constituindo-se em autênticas ressurreições do passado (BOSI, 1987, p. 48). As lembranças, nesse caso, poderiam ser buscadas no inconsciente para serem atualizadas, no presente.
Para Bergson (1999), a percepção, ou seja, a leitura que fazemos do objeto presente está sempre impregnada de lembranças, mesmo as lembranças que estão no inconsciente (memória pura).
Segundo Bosi (1987, p. 14) a teoria de Bergson, sustenta que o passado se conserva inteiro no espírito, “seja em forma inconsciente ou evocado pelo presente através das lembranças. A memória é, pois, sob a óptica bergsoniana, a conservação integral do passado recordado de forma linear e integral”.
Já o sociólogo francês Maurice Halbwachs (2004) contesta a compreensão da memória à luz da percepção individual de Bergson (1999), pois a considera como um fenômeno social. Sobre a “memória pura” de Bergson (1999), Halbwachs afirma que a mesma não existe; é sempre associada ao trabalho da consciência, pois, segundo ele, a reflexão precede à evocação da lembrança. Para ele, tudo o que lembramos e julgamos ser subjetivo não o é, por que, na realidade, é determinado socialmente. A teoria científica de Halbwachs diz que o ser humano não se lembra sozinho. Isso significa que nossa memória e lembranças são produto da sociedade em que vivemos. Sobre a possibilidade da existência de uma memória estritamente individual, Halbwachs (1990, p. 36), é enfático em afirmar: “só temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais grupos e de nos situar novamente em uma ou mais corrente do pensamento coletivo”.
Outro ponto central na teoria de Halbwchs é o caráter construtivo da memória social. Para ele, a nossa memória não é uma reprodução das experiências passadas, mas sim, uma construção que se faz a partir delas, no presente. Segundo ele, “as representações sociais se dão por meio da ancoragem de novas experiências em conhecimentos preexistentes”, mas em função da realidade presente e com o apoio de recursos proporcionados pela sociedade e pela cultura.
Halbwachs (Los marcos sociales de la memoria, 2004) também explica a memória individual a partir de sua dimensão social: relacionada aos grupos sociais. Segundo ele, a memória individual existe, mas está enraizada dentro de quadros sociais, ligada às representações coletivas estabelecidas por grupos sociais. Ele associa “quadros sociais” a um “sistema de representações” no qual a memória é feita de imagens, esquemas do passado. Segundo ele, os indivíduos não recordam sozinhos: as lembranças são frutos destes esquemas ou quadros adquiridos na convivência social (família, grupo profissional, classe social). A afirmação central de Halbwachs sobre a memória é a de que, quaisquer que sejam as lembranças do passado que possamos ter — por mais que elas pareçam resultado de sentimentos, pensamentos e experiências exclusivamente pessoais —, elas só podem existir a partir dos quadros sociais da memória, tendo como referencial as estruturas simbólicas e culturais do grupo. Assim, como uma construção social, essa memória é seletiva, pois o indivíduo pode recordar somente aquilo que considera importante para seu grupo, reivindicando a sua formação identitária a partir dessas experiências coletivas. A memória coletiva seria, assim, uma memória partilhada por um grupo, um povo, uma nação, constituindo e modelando a identidade, a particularidade, a inscrição na história do grupo relacionado.
A teoria de Halbwachs, em alguns aspectos, apresenta ainda muita atualidade, como no argumento de que os grupos sociais produzem uma memória do seu próprio passado coletivo e que essa memória consiste em manter um sentimento de identidade que permite identificar os grupos, distinguindo-os dos demais. Isso significa pertencer a um grupo; “afinar-se” a ele e, ao mesmo tempo, se “situar”, pelos contrastes, pois sabemos que a identidade cultural é marcada pela diferença, isto é, só entendemos uma identidade cultural ao contrastá-la com outra (por isso a diversidade é tão essencial para a manutenção das culturas).
Mas, depois de quase um século, com as transformações da sociedade ocasionadas pelo crescimento dos meios de comunicação de massa, o conceito de construção da memória coletiva de Halbwachs encontra certa dificuldade. Os grupos sociais já não “tão definidos” e, cada vez mais “flexíveis” geograficamente, são influenciados pela interação virtual proporcionada pelo “mundo em rede”, onde se se ampliam e homogeneízam culturas – e também memórias – que interferem direta e indiretamente na elaboração dessa memória coletiva. Por isso as memórias comuns, “puras” – mas não no conceito bergsoniano e, sim, no sentido genuíno, legítimo do grupo – se tornam, a cada dia, mais significativas para a memória social contemporânea.
Faculdade da memória; faculdade do esquecimento
O filósofo francês Paul Ricoeur, ao partir de uma análise da memória como fenômeno em sua obra Memória, História e esquecimento (2007), já no início de seu texto adverte para a necessidade da proposição de uma memória equilibrada, capaz de se contrapor aos “excessos de memória”, ao “exagero de comemorações” e ao “excesso de esquecimento” que, segundo ele, fazem parte, atualmente, de um espetáculo inquietante:
Continuo preocupado com o inquietante espetáculo proporcionado pela memória demais aqui, pelo esquecimento demais acolá, para não falar na influência das comemorações e dos abusos de memória – e de esquecimento. A ideia de uma política da justa memória é, sob esse aspeto, um de meus temas cívicos confessos (RICOEUR, 2000, p. I)
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Ricoeur (2007) mostra-se perturbado com esses excessos de memória/esquecimento e dos abusos de memória por parte de indivíduos, grupos ou pela ordem política e reivindica uma política de memória mais justa: a “justa memória” como meio de enfrentamento dos traumas do passado, capaz de manter a sociedade corretamente a salvo de situações de abusos, injustiça e violações de direitos humanos. O autor trata os temas memória, história e esquecimento com a mesma proporção nessa obra. Ele cita o esquecimento passivo (a forma patológica) e o esquecimento ativo, como ligado às relações ideológicas, políticas e de poder (incluindo aí as anistias).
Como formas de abuso da memória, Ricoeur (2007) refere-se à memória obrigada (que envolve abusos políticos, tratando obcessivamente o dever de memória de uma sociedade com seus eventos traumáticos); à memória manipulada (que envolve relações individuais e coletivas entre memória e identidade impostas ideologicamente para justificação de poder) e à memória impedida (que envolve manifestações patológicas da memória coletiva, como o recalcamento de lembranças, que leva à compulsão à repetição).
Ao problematizar o esforço de recordação e o esquecimento, Ricoeur explica que a tentativa de “tudo lembrar” e “nada esquecer” busca o passado para torná-lo presente.
Não é somente o caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer... de se lembrar. Aquilo que [...] chamaremos de dever de memória consiste essencialmente em dever de não esquecer. (RICOUER, 2007-48)
Desenvolvendo pesquisas no campo da Antropologia cognitiva2 , o antropólogo francês Joël Candau trabalha com as diversas formas de memória: compartilhada ou supostamente compartilhada (memória familiar e genealógica, memória coletiva, etc) distinguindo notadamente no trabalho de memória os aspectos protomemoriais, memoriais e metamemoriais. Em sua obra Memória e Identidade, Candau (2011) argumenta que a memória é a sustentação da identidade. No decorrer desse livro, o autor dialoga com Halbwachs (1990), Nora (1984) e, também, com Ricoeur (2007).
Quando se refere às diferentes manifestações da memória, Candau (2011, p. 23) decompõe seu conceito em três níveis: a protomemória, que é a memória social incorporada e que se expressa quase que automaticamente nos gestos, procedimentos e hábitos; a memória de alto nível, da evocação ou recordação voluntária e a metamemória, que é a representação que fazemos das próprias lembranças, como nos vemos e identificamos, ou seja, aquela diz respeito à construção identitária. Para ele, só a terceira memória, a metamemória, aquela que se refere à memória coletiva, pode ser compartilhada, pois é um conjunto de representações da memória. Essa afirmação, de certo modo, aprimora a teoria de Halbwachs, diminuindo o risco de confusão entre memória individual e memória coletiva.
Candau (2011, p. 44) diferencia, também, as memórias fortes e as fracas: a memória forte, para ele, é aquela que estrutura a identidade, nos ajudando a organizar sentido, enquanto que a fraqueza da memória é fruto da transformação gradativa dos grupos e da diluição de seus quadros sociais de memória.
Candau (2011, p.16) acrescenta que “a memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é, por nós, modelada”. Para ele, isso resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, uma narrativa.
Em relação ao esquecimento, Candau (2011, p.128), argumenta que ele nem sempre é um inimigo da memória; por vezes ele pode ser seu segredo, um tranquilizador quando as lembranças se tornam um fardo difícil demais para carregar: “às vezes é preciso passar a esponja para ir adiante”. Ainda sobre o esquecimento, Candau (2011, p. 129) cita Halbwachs, lembrando que a sociedade tende a descartar da sua memória tudo o que pode separar os indivíduos, separar os grupos uns dos outros. Observa-se que, assim como a lembrança, o esquecimento também é seletivo: somos dotados da faculdade da memória e do esquecimento e, como aptidão inata, natural ou adquirida, possuímos a capacidade de usá-la da forma mais conveniente.
O “boom da memória” na contemporaneidade
Ao afirmar que “a história é filha da memória” e que “fala-se tanto em memória porque ela já não existe mais”, Candau (2011, p. 133) lembra o historiador francês Pierre Nora. Uma expressão que vem sendo empregada com frequência na contemporaneidade foi criada por Nora na obra “Les lieux de mémoire”, em 1984. Os “lugares de memória” surgem, segundo o autor, de um jogo entre a memória e a história no qual é preciso se ter vontade de memória, de manter algo vivo. Essa expressão tem sido utilizada para referenciar suportes de memória, locais aos quais vinculamos referências que nos são importantes; lugares capazes de guardar lembranças e permitir o acesso a elas sempre que se fizer necessário ou conveniente; são lugares ou espaços em que a memória pode ser revivida ou recriada para a construção de uma memória coletiva capaz de identificar importantes grupos sociais que, por sua vez, podem contribuir também para uma identidade maior: a da nação.
Nora (1984) também refere-se à “aceleração da história” como um fenômeno contemporâneo, que ocorre pela velocidade da vida pós-moderna, acentuada pelo avanço tecnológico e que afeta não somente a memória individual, como também a cultural. Sobre a aceleração do tempo – essa impressão de que ele passa cada vez mais rápido – o historiador alemão Andreas Huyssen em seu livro “Seduzidos pela memória” (2000) compactua, em parte, com a opinião de Nora. Ele considera que essa rapidez na forma de viver e de se relacionar socialmente trás junto uma necessidade de rememorar o passado, guardar objetos e preservar coisas que muitas vezes nem sabemos o porquê.
A palavra memória tem sido utilizada com muita frequência ultimamente. Segundo Huyssen (2000), as últimas décadas do século XX foram impregnadas pela “cultura da memória”, quando houve a valorização de um passado como algo que dá substância e coerência à nossa experiência, frente a um presente fragmentado, que não vislumbra um futuro promissor. O autor considera que essa “volta ao passado” tenha ocorrido talvez pela tentativa de se combater o medo e o perigo do esquecimento com estratégias de sobrevivência de rememoração pública ou privada, explicando que:
Já o sociólogo francês Michel Maffesoli em seus vários estudos sobre a pós-modernidade, apresenta uma abordagem diferente da formação das identidades. Em sua obra “A Contemplação do Mundo” (1995) o autor, referindo-se ao homem pós-moderno ou contemporâneo, reconhece-o como um sujeito sensível, fragmentado, que é desafiado a buscar referenciais em um contexto dinâmico, que se altera a cada instante, influenciado pelo uso da tecnologia. Em sua abordagem, ele valoriza o “estar junto” e a “experiência sensível” do corpo nessa busca. O presenteísmo de Maffesoli é diferente do de Joël Candau, que o associa às crises do presente. Para Maffesoli, o presenteísmo é o tempo vivido no próprio cotidiano, que, aliás, ele aconselha a viver a cada momento, experimentando-o e compreendo-o, como forma de adquirirmos um conhecimento que não está nos livros e nem nas academias.
Maffesoli (1995, p.24), comenta os avanços e recuos que caracterizam as histórias humanas dos quais, segundo ele, nenhuma sociedade pode escapar: a busca de reafirmação da identidade, refletida na reaparição ou retorno de antigos referenciais que já tiveram significados importantes e que são capazes de nutrir a vida social, como “o retorno de imagens, a importância do contágio emocional, o recurso a simbolismos de afirmação de identificação religiosa, a efervescência étnica e a busca do território”. Segundo Maffesoli, (1995, p.16), a busca por um ideal comunitário na pós-modernidade dá novamente sentido a elementos arcaicos que “se acreditava totalmente esmagados pela racionalização do mundo.” Como as manifestações mais marcantes desse arcaísmo, ele cita os fanatismos religiosos, as ressurgências étnicas, as reivindicações linguísticas e outros apegos aos territórios. Mesmo com diferenças nos usos e costumes nos grupos, a cultura é sempre marcada, influenciada por uma cultura maior. Na pós-modernidade para Maffesoli, é a cultura do sentimento, que representa a vivência da emocionalidade que permeia todos os grupos sociais. Nessa cultura renascente, segundo o autor:
Pode-se ver em ação um conjunto de imagens que, por acréscimos sucessivos, chegam a constituir uma consciência coletiva que serve de suporte, ao mesmo tempo, ao conjunto da vida social e às diversas tribos que dela fazem parte (MAFFESOLI, 1995, p. 17).
Segundo Maffesoli (1995, p.26), na contemporaneidade, o estilo e a imagem convergem em direção a um mundo imaginário definido como um conjunto complexo, onde as diversas manifestações da imagem, do imaginário, do simbólico e o sentido das aparências dominam, ocupando um lugar primordial. Para ele, a vontade de pertencer a um grupo, a uma tribo remete a uma estilística da existência denominada estética, pois se liga ao estilo de um tempo e aos diferentes modos de viver socialmente. A estética do cotidiano (1995, p. 26) valoriza a maneira de sentir e experimentar em grupos, em comum, no dia a dia: “a sensibilidade coletiva, que está na base da formação de uma sociedade”.
A maioria dos teóricos de estudos culturais concorda com essa “impregnação” da memória que vem acontecendo nos últimos tempos. Faz parte de um consenso, também, o pensamento que o homem contemporâneo vive uma crise de identidade agravada pelas mudanças de valores ocorridas na passagem da modernidade para a pós-modernidade, refletindo-se na revalorização de objetos ou antigos valores que já foram importantes, na procura pela moda retrô e na busca exagerada por registros, vestígios e referenciais para se localizar no presente, ou seja, para afirmação de sua identidade cultural.
A cultura visual, como a memória e a identidade cultural, tem sido assunto de grande interesse e de estudo na contemporaneidade. A imagem, principalmente a partir da segunda metade do século XX, teve seu uso explorado progressiva e exaustivamente até “povoar” o nosso cotidiano. A influência e o modo como essa “profusão de imagens” afeta na construção das identidades, influenciados diretamente pelas inovações tecnológicas que praticamente desfazem os limites entre comunicação, são objeto de estudo de vários teóricos, atualmente. Como resultado desta “desordem social” gerada, surge esse sujeito “sensível e fragmentado”, mais suscetível à dominação, desconectado de seu mundo real e, por isso, permanentemente em busca de vestígios e referenciais identitários.
Assim como Nora e Huyssen, Nicholas Mirzoeff (Introduccion a la cultura visual, 2003, p.19) considera o desenvolvimento recente da tecnologia digital como a causa de mudanças culturais importantes que deram lugar à preeminência do visual na vida cotidiana. Tem havido, também, muita preocupação com a penetração da cultura popular no processo de rememoração, por exemplo, com a possibilidade das pessoas passarem a incorporar e relatar como se fossem suas, as experiências vistas na mídia. Torna-se necessário desenvolver uma postura crítica em relação às imagens que são despejadas sobre nós no dia a dia, pois por intermédio da mídia, assim como de todas as fontes de informação, podemos absorver grande parte de nosso entendimento pelo mundo e incorporar diversos elementos sócio-culturais. A interação com os conteúdos da mídia nutre a nossa memória virtual, refletindo na construção de nossa identidade. É preciso perguntar afinal, a quem interessa esse projeto unificador? Devemos aceitar a posição de sujeito que nos oferecem? De que maneira nos identificamos?
Assim como Mirzoeff (2003), Candau (2011, p.111) também se mostra preocupado com a exteriorização da memória que se exprime por essa profusão de imagens difundidas continuamente, tratadas, estocadas, a qual ele classifica como uma “iconorreia”.
Mirzoeff (2003, p. 136) ao tratar desse domínio que a imagem visual vem exercendo progressivamente por meio das novas tecnologias e os modos como ela afeta nossas vidas, explica que o fenômeno da virtualidade é um lugar social e culturalmente construído, independente de qual seja a tecnologia digital. Não é, portanto, um lugar de inocência, pois os meios estão marcados por hierarquias de raça, gênero e classe. O autor afirma que os suportes virtuais da contemporaneidade (já que ele afirma que a virtualidade existia desde o século XVIII no ato de se apreciar arte nos períodos clássico e neoclássico), o dos novos meios de comunicação, usam a visão como seu sentido prioritário de exteriorização, proporcionando um universo onde a imagem é uma realidade já trabalhada e, muitas vezes, forjada, fornecendo pouco espaço de raciocínio ao expectador. E nesse sistema cultural global onde as todas as culturas interagem (não existem mais culturas virgens), precisamos nos afastar do senso comum para fugir da homogeneização cultural, preservando nossa identidade.
Este assunto da homogeneização cultural, que também vem sendo tratado por vários autores contemporâneos, representa um risco tão grave para a preservação da identidade cultural que, sob a visão de que a globalização poderá levar à perda do pluralismo dos vários grupos humanos, principalmente os das minorias, a UNESCO na Declaração Universal da Diversidade Cultural, de 2001, definiu estratégias para proteger expressões culturais em risco de desaparecimento. Por exemplo, o artigo I diz que a diversidade cultural é tão necessária para a humanidade quanto a biodiversidade é para a natureza.
O papel da memória e sua importância para a sobrevivência das sociedades.
Consideramos que as relações com o passado são variadas, já que nem todos compartilham dele as mesmas representações. Assim, os valores que atribuímos aos bens são relativos, pois além das influências diretas das memórias e do modo nos identificamos e nos apegamos a elas, estes valores também podem variar de acordo com interesses pessoais, político-ideológicos e financeiros. Se considerarmos, também, que o que sabemos de nós mesmos e do mundo nos vem do passado, observamos que é nesse passado que buscamos as memórias que nos mantêm vivos, que nos identificam culturalmente. Assim, quando nos propomos a preservar um bem, é porque admitimos haver alguma ameaça à continuidade da sua existência, que consideramos significativa; essa importância pode estar diretamente ligada à nossa vida, às nossas memórias, ou estar relacionada a outro grupo de pessoas.
Talvez por isso que, desde o início dos tempos, ouvimos falar da preocupação dos homens com a guarda de objetos que possuíam alguma importância para eles, seja pela sua funcionalidade ou mesmo pelo simbolismo que podiam representar. Essa vontade de guardar estaria relacionada com o desejo de reter, de não perder lembranças que de alguma maneira pudessem dar algum significado a sua existência. Pensando desta forma, pode se considerar que esses objetos já eram depositários da história desses homens; de seus hábitos e informações culturais, e já serviam de suporte para suas memórias. Da mesma maneira, pode se avaliar que esses objetos guardados e, portanto, considerados “bens”, já possuíam uma acepção aproximada do que hoje chamamos de patrimônio.
Nesse sentido, desde a antiguidade até a contemporaneidade, podemos observar a prática de diferentes processos de representação do passado, que ocorrem em tentativas de reafirmar, no presente, laços que consideramos caros, ou seja, com o propósito de resgatar vínculos identitários. Uma destas práticas se traduz na reivindicação patrimonial, atualmente também em crescente “proliferação”, pela valorização de bens culturais a partir de valores de percepção que lhe são atribuídos. O conceito de patrimônio e os valores a ele atribuídos evoluíram ao longo da história da humanidade, mas a sua relação com a memória e a identidade sempre persistiu, tornando-se cada vez mais forte e íntima, chegando à atualidade com uma necessidade absoluta de manutenção desses laços.
Considerações finais:
O esquecimento, assim como a memória e a identidade, também passou a ser um assunto recorrente na contemporaneidade. Ao mesmo tempo em que se questionam os “excessos de memória”, a busca de vestígios do passado e a necessidade crescente de patrimonialização de bens culturais, se reconhece, também, o perigo de esquecer; o risco do desaparecimento gradual da nossa história, das nossas memórias, dos referenciais em nossas vidas. Talvez por esse medo do esquecimento, que, cada vez mais, a sociedade se solidariza com as instituições encarregadas de guardar e preservar nosso acervo cultural, o que se reflete no crescente número de estabelecimentos com esses fins (nunca se teve tantos espaços de guarda de memória como na atualidade). Em meio a esse esforço de inventariar e patrimonializar os bens culturais que consideramos como detentores de um potencial de memória e identidade cultural, surge, também, a necessidade de preservar esses suportes de possíveis alterações prejudiciais, colocando em prática estratégias capazes de suprir essa “necessidade social” de tudo preservar. Mas, se conservamos e reivindicamos a guarda de algo que julgamos importante é porque queremos e necessitamos também, partilhar – ou compartilhar – memórias.
Assim, quando buscamos lembranças é porque temos medo de esquecê-las. Se as evitamos, é porque temos medo de sofrer. Ao mesmo tempo, se insistimos em lembrá-las, é porque temos medo de sofrer novamente. Podemos escolher: bebemos as memórias no poço de Mnemosyne, que nos previne do esquecimento ou de Lhete, que nos faz esquecer.
Nas grandes guerras e tragédias da história, onde “reinam” governos autoritários e onde, geralmente, a palavra das vítimas é abafada, a lembrança expressa por essas vítimas de formas variadas pode se tornar uma resposta a esses regimes (Ricoeur 2007). Assim, esquecer ou tentar esquecer para não rever cenas que, de alguma maneira nos incomodam ou fazem mal (como se isso nos eximisse da responsabilidade social) são recursos possíveis, mas questionáveis.
Há casos, no entanto, em que precisamos lembrar sempre, para que não aconteçam novamente, mesmo que essa evocação seja dolorosa, como o trágico incêndio 3 da boate na cidade de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, que vitimou 242 pessoas, a grande maioria estudantes da Universidade Federal local. É preciso lembrar essas jovens vítimas, cultuá-las, mas não esquecer, também, dos horrores por elas vividos, pois ao apagar essas “lembranças que nos fazem mal” colaboramos para que a inércia do sistema judicial leve à impunidade os responsáveis. É necessário, então, evitar que um dia essas, se unam a novas vítimas. Dessa forma, o “dever de memória” consiste em dever de não esquecer (RICOEUR, 2007, p. 48).
Refletindo sobre o poder da memória como fonte de ligação social, podemos afirmar que a memória integra – presente ao passado – projeta o futuro, “situa”, proporciona reconhecimento, reencontro, significado, sentido. É ela que nos alimenta com as informações vitais que nos ancoram à vida. Podemos dizer que possuímos a faculdade da memória – ou do esquecimento – mas continuamos “reféns” da memória. Por isso, ela permanece na contemporaneidade tão subjetiva e, ao mesmo tempo, tão fundamental a nossa identidade e a nossa sobrevivência.
Referências:
BÉRGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Martins Fontes. São Paulo, 1999.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: Lembrança de velhos. São Paulo: T. A Queiroz Editor, 1987
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Caracas, Anthropos Editorial, 2004
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Rio de Janeiro, Vertice, 1990.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/60437331/TEORICO-Huyssen-Seduzidos-pela-memoria-completo-em-portugues> Acesso em 12/12/2013.
IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre:Artmed, 2002:19-33.
MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. Identidade Cultural e Arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 20/1984. P. 33. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=\\Acervo01\drive_n\Trbs\RevIPHAN\RevIPHAN.docpro&pesq=identidade%20cultural%20e%20patrimonio%20arqueologico>. Acesso em 11/09/2013
MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to visual culture. London: Routlege, 1999; Una Introducción a la cultura visual.Barcelona: Paidós, 2003.
NORA, Pierre.Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. IN Pierre Nora (org). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. Vol 1 La République, 1984
RICOEUR, Paul. Memória, História e Esquecimento, Campinas, Editora da Unicamp, 2007.
Ivan Izquierdo é argentino naturalizado brasileiro, sendo pioneiro no estudo da neurobiologia da memória e do aprendizado.
2 Segundo informações da seguinte página eletrônica: http://www.unice.fr/LASMIC/homepage-candau.html.
3 Este incêndio ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em decorrência do uso de fogos de artifício no interior da boate. Tragédias semelhantes também ocorreram em várias partes do mundo, no mesmo tipo de ambiente e ocasionadas pelo mesmo motivo: em fevereiro de 2003, em uma boate em Rhode Island, nos estados Unidos, 100 pessoas morreram; em dezembro de 2004, em Buenos Aires, na Argentina, as vítimas chegaram a 194 pessoas.
4 UNESCO (2002) - DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL- IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO:
Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em 12 dez. 2013.