Veronica Coffy Bilhalba dos Santos (CV)
nicasantos2006@yahoo.com.br
Margarete Regina de Freitas Gonçalves (CV)
margareterfg@gmail.com
Universidade Federal de Pelotas
Resumo: Esse artigo apresenta uma breve revisão teórica a respeito da problemática preservação cultural, aspectos reflexivos acerca da evolução da doutrina do restauro e sobre a realidade das práticas brasileiras de restauração. O objetivo é destacar a importância de uma produção científica direcionada ao campo prático da restauração brasileira, para que se possa atender às demandas de restauro de acordo com o princípio de sustentabilidade das intervenções reafirmado pela Teoria Contemporânea da Restauração.
Palavras-chaves: restauração contemporânea, restauração brasileira, sustentabilidade em restauração.
A concepção de bem cultural herdada pelo século XXI (ICOMOS, 1985; UNESCO, 2003), trouxe a necessidade de reconfigurar as práticas de preservação patrimonial. Quando esse tema é estudado pelo viés da teoria contemporânea do restauro (MUÑOZ-VIÑAS, 2010) parece estar claro que as últimas transformações sofridas no campo disciplinar foram assumidas e de certa maneira combinadas às “teorias clássicas” da restauração. Provavelmente, a maior novidade é a afirmação do princípio de sustentabilidade das intervenções, que busca ser o elo entre a teoria e a prática da atividade de restauro. Nesse sentido, o pragmatismo da doutrina contemporânea parece propor um novo direcionamento para a área técnica, especialmente quando surgem demandas em circunstâncias modestas.
Observando as condições de muitas instituições brasileiras de pequeno porte, por exemplo, parece ser evidente que as pesquisas de métodos alternativos de restauração têm vocação para o futuro no Brasil. Esse universo museológico é vasto e no geral apresenta coleções de caráter mais singelo, cuja situação mais comum é a falta de verbas e de infraestrutura adequada para suprir as necessidades de restauro. Desse modo, a realidade brasileira espera soluções que respondam de maneira eficaz e adequada aos problemas particulares de cada objeto e acervo.
Para explicar essas reflexões iniciais, o artigo apresenta uma breve revisão teórica a respeito da problemática de preservação cultural, aspectos reflexivos acerca da evolução da doutrina do restauro e os argumentos de alguns autores brasileiros que reforçam a importância de uma produção científica preocupada com a aplicabilidade das técnicas de restauração no território nacional.
Castriota (2009) explica que para discutir a problemática da preservação é necessário entender as matrizes dos valores culturais, observando que na contemporaneidade a questão torna-se bem mais complexa que em épocas precedentes.
As primeiras instruções relacionadas à preservação patrimonial foram baseadas especialmente nos valores artístico e histórico, ou seja, envolveram o conceito de excepcionalidade estética e a ligação com os fatos importantes do passado. Esse modelo foi concebido na França1 , durante a Revolução Francesa (fins do século XVIII) e foi adotado por outros países durante a expansão da política nacionalista (CHOAY, 2006). Porém, logo ficou evidente a necessidade de reconfigurar essa ideologia para incluir critérios de conservação aos monumentos cujo reconhecimento veio depois.
Esse tema motivou a publicação d’O culto moderno aos monumentos (1903),de Aloïs Riegl 2 (RIEGL, 2005). No texto, o autor estuda o modo de preservação de várias épocas e observa que as medidas de proteção surgem após um vácuo de assimilação dos valores atribuídos aos monumentos. Riegl estrutura os valores do início do século XX e constata que as classes sociais demonstram interesses simultâneos e opostos sobre os monumentos. Para explicar essa questão, o autor separa os valores de atribuição em duas categorias principais: os valores de rememoração (antiguidade, histórico e não intencional) e os de contemporaneidade (uso e artístico). A partir disso, é possível verificar a concorrência de interesses sobre o patrimônio – entre pessoas instruídas (estudiosos, Estado e Igreja) e da sociedade em geral (usuários, leigos e proprietários) – que, por consequência, constitui a problemática da preservação moderna.
O equilíbrio entre os valores coletivos e as medidas de conservação do patrimônio parece ter sido o objetivo da preservação patrimonial durante todo o século XX e tornou-se o principal desafio do século XXI. É possível verificar os esforços nesse sentido ao analisar as Cartas Patrimoniais internacionais (1931-2010), nas quais se pode perceber também a evolução da noção de patrimônio durante sua fase de modernização e universalização 3. Alguns desses documentos estão diretamente relacionados ao tema proposto nesse artigo: a Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), a Carta de Restauro (MIP, 1972), a Carta de Burra (ICOMOS, 1980), a Carta do México (ICOMOS, 1985), a Conferência de Nara4 (UNESCO, 1994) e a Recomendação de Paris (UNESCO, 2003). Entre esses, dois assinalaram a diversidade cultura humana e apresentaram a mais recente noção de patrimônio:
O patrimônio cultural de um povo compreende [...] as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas (ICOMOS, 1985) [grifo nosso].
Entende-se por patrimônio cultural imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural [e transmitem] de geração em geração [...] (UNESCO, 2003) [grifo nosso].
Com isso, o escopo patrimonial adquiriu contornos ainda mais amplos, já que certos legados culturais – antes negados à História por uma predileção ao passado hegemônico – alcançaram o status de bem cultural (PELEGRINI, 2009). Não obstante, os bens patrimoniais passaram a ser vistos como evidências materiais e imateriais dos traços de identidade coletiva (classes sociais e gerações) de um determinado contexto espaço-tempo. Dessa maneira, os bens tangíveis tornaram-se suportes de informação cultural e, através disso, os problemas relacionados à preservação patrimonial foram potencializados.
Implementadas tradicionalmente pelos estados, as políticas de preservação trabalham com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma memória, privilegiam-se certos aspectos em detrimento de outros, iluminam-se certos aspectos da história, enquanto outros permanecem na obscuridade (CASTRIOTA, 2009, p. 39).
Parece ser evidente que as políticas públicas vigentes estão dissociadas da ideologia de preservação contemporânea, carecendo estabelecer critérios democráticos e sustentáveis para a manutenção de todos os bens culturais. Exatamente por isso, nos diz Sanches (2011), que no final do século XX ressurgiu o interesse pelos ensinamentos de Riegl: pela necessidade de buscar equilíbrio no processo de patrimonialização e de discutir novas diretrizes para o campo patrimonial.
Como parte dessa evolução e visando atender as expectativas que surgiram junto às novas noções teóricas, a área técnica da restauração acabou por se dividir em diversas frentes de trabalho nos últimos anos do século XX, como será descrito na sequência.
A evolução da doutrina da restauro
De uma maneira bastante básica, é possível dizer que a prática da restauração se divide em duas correntes de trabalho antagônicas: o intervencionismo (restauro), que por razões práticas ou preferências estéticas busca a unidade artística e a revitalização do objeto através de adaptações (subtrações e/ou aditamentos); e o anti-intervencionismo (conservação), que propõe manter os artefatos inalterados por valorizá-los como documentos históricos5 .
No período oitocentista, a manutenção dos edifícios históricos resumia-se a essas duas abordagens puristas, que ficaram eternizadas nas figuras de Eugènne Emannuel Violet-Le-Duc6 e John Ruskin7 . Na passagem do século XIX para o XX, a doutrina da restauração se afastou desses extremos, adotando o equilíbrio entre as instâncias estéticas e históricas dos monumentos ao conjugar as reflexões de Camillo Boito8 e Aloïs Riegl9 .
A ideologia moderna de restauração consolidou-se somente quando foram publicadas a Teoria da Restauração (1963), de Cesare Brandi 10, e as Cartas de Veneza e do Restauro (ICOMOS, 1964; MIP, 1972). Após esses progressos, a práxis da restauração ficou identificada como corrente do restauro científico, passando a exigir uma postura crítica, científica e interdisciplinar no momento da intervenção. Na tentativa de afastar a intuição da ação profissional, foram instruídos os seguintes princípios práticos: a mínima intervenção, o estudo prévio detalhado (pesquisa histórica e análises científicas), a distinguibilidade sem prejuízo ao conjunto (formal e estilístico), documentação minuciosa, respeito à autenticidade da obra, compatibilidade entre o original e a intervenção e a reversibilidade de materiais.
O extremismo com que essas regras foram tomadas por alguns agentes culturais, motivou o surgimento de um movimento reacional ao restauro científico. Por um lado tomou-se a consciência de que havia necessidade de flexibilizar os padrões de conduta para resolver os problemas relacionados à preservação moderna 11; por outro, algumas abordagens de restauro pareciam prejudicar a autenticidade dos objetos patrimoniais12 . De fato, os cofres públicos geralmente limitam as verbas para as intervenções no patrimônio e isso reflete na pouca amplitude do restauro científico dentro preservação moderna. Por consequência, o discurso conservacionista foi reforçado durante a década de 1990.
As objeções ao restauro científico não tem uma sequência cronológica bem definida, mas foram publicadas em artigos, conferências, na internet, dentre outras formas de divulgação, intensificando-se gradativamente quando os valores intangíveis tornaram-se o fundamento básico da preservação cultural (UNESCO, 1994; UNESCO, 2003). A recente publicação da Teoría contemporánea de la Restauración (2010), de Salvador Muñoz Viñas 13, organizou esses discursos que de certa maneira reformularam alguns conceitos e noções ligados à atividade tradicional do restauro. Nesse aspecto, tomam forma de “teoria contemporânea”, ao qual o título do livro faz referência.
De acordo com Muñoz-Viñas (2010), a nova doutrina demonstra clara oposição às concepções objetivas e aos conceitos de verdade das “teorias clássicas”, especialmente no que se refere à autenticidade dos objetos culturais. Isso parece ficar mais claro quando o autor passa a analisar os valores dos objetos de preservação, todos eles subjetivos e relativos aos sujeitos que mantém relações com o universo patrimonial. Para o autor, são as pessoas que conferem valor aos objetos, que interpretam os eixos simbólicos e que tomam decisões sobre como conservar determinado bem cultural. Tal pensamento parece se afirmar nos ensinamentos de Riegl e se relacionar com as instruções da UNESCO (1994) para demonstrar que a validação de princípios objetivos, tomados como regras éticas universais, não são aplicáveis à realidade da restauração contemporânea.
Com relação à autenticidade, Viñas explica que atualmente existe a consciência de que nem todos os objetos patrimoniais são obras de arte, alguns nem sequer são obras, tampouco podem ser classificados como antiguidades ou objetos históricos. Além disso, o patrimônio estendido a limites culturais possuem significados que variam a interpretação de pessoa para pessoa, nas classes e níveis culturais diversos. As funções culturais dos artefatos também são diversificadas e excedem o universo institucional, ou seja, admite-se que a restauração não interessa somente aos experts, mas à sociedade em geral, podendo estar relacionada com valores ideológicos, afetivos, religiosos e muitos outros. Desse modo, a doutrina contemporânea da restauração busca satisfazer um número maior de sensibilidades:
La restauración se hace para lós usuários de lós objetos: aquellos para quienes esos objetos significan algo, aquellos para quienes esos objetos cumplen uma función esencialmente simbólica o documental, pero quizá también de otros tipos. [...] Uma buena restauración es aquella que hiere menos um menos número de sensibilidades – o la que satisface más a más gente (MUÑOZ-VIÑAS, 2010, p.176 e 177).
Para assinalar que as práticas de conservação e de restauração já atendiam os planos democráticos da ideologia contemporânea, adotou-se uma nova terminologia oficial para identificar o trabalho técnico dos restauradores: conservação preventiva, conservação curativa e restauração (ABRACOR, 2010). Na prática, porém, não houve mudanças: os protocolos de análise permaneceram importantes especialmente porque aí se distinguem as ações de caráter cultural daquelas que estão motivadas por opiniões arbitrárias e pela intuição.
Cabe destacar que Muñoz-Viñas (2010, p. 137) critica o modo como a investigação científica é conduzida desde que foi instituída: “La mayor parte de la investigación científica em Restauración [...] nunca llega a ser convetirse em verdadera ciencia aplicada a la Restauración”. De fato: a sistemática do restauro científico mostra-se eficiente no que diz respeito à documentação dos objetos patrimoniais14 , assim como auxiliam a compreender as causas e efeitos da degradação dos materiais. Apesar disso, muitas intervenções ainda são executadas através de meios empíricos, para as quais a área técnica não discute (e tampouco comprova) se os resultados são eficazes à preservação dos objetos. Nesse aspecto, o autor sinaliza o desejo de que os restauradores se qualifiquem para que a ciência torne-se uma ferramenta aplicada ao restauro cultural.
É provável que a maior novidade da doutrina contemporânea seja a afirmação do princípio de sustentabilidade dos métodos de intervenção, que busca ser o elo entre teoria e a realidade no qual as atividades de preservação se desenvolvem. Em linhas gerais, a orientação reforça a importância de refletir sobre os interesses e impedimentos que giram em torno da preservação do patrimônio e implica maior responsabilidade aos agentes envolvidos com a guarda patrimonial em cada cultura. Em primeiro lugar as decisões devem levar em consideração com quem se relaciona determinado bem patrimonial (estado, particulares, grupos específicos ou sociedade em geral) para determinar quais são as atuais exigências de preservação e no se crê relevante às gerações futuras. Quando a intervenção for necessária, torna-se fundamental organizar a infraestrutura, materiais, equipamentos, pessoal qualificado, verbas e prazos para executar as tarefas de conservação ou de restauração de acordo com as condições oferecidas.
No Brasil, o contexto é de transição: percebe-se a continuidade do empirismo, mas também a tentativa de combatê-lo com a difusão da teoria vigente e com estímulos à qualificação do corpo técnico.
A Restauração é um campo bastante insipiente no Brasil e percebe-se que ainda tenta se consolidar como disciplina independente das áreas da Arquitetura e Artes Plásticas. A atividade do restauro ligada aos acervos públicos foi introduzida no Brasil durante a década de 1950 e se iniciou através de treinamentos práticos, estágios supervisionados e cursos de curta duração (CASTRO, 2009).
Após a redemocratização do país, houve grandes transformações no setor patrimonial: criaram-se repartições regionais, associações de profissionais e multiplicaram-se as estratégias de difusão dos valores das práticas de restauração científica. Por volta da década de 1980, organizou-se a instrução oficial nas universidades públicas nacionais e, assim, a doutrina científica pôde avançar um pouco mais pelo território brasileiro. Contudo, é evidente que as melhores condições para desenvolver essa linha de trabalho ficaram restritas aos grandes centros de referência da Conservação e Restauro – estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia15 . Desse modo, é possível dizer que muitas das demandas de restauração não são atendidas como deveriam e que em muitas localidades a restauração nunca saiu do empirismo.
Para verificar essa questão, basta visitar as instituições públicas do interior. Nesses locais, é fácil perceber que as soluções para a conservação das coleções sofrem sérias interferências: a grande maioria das instituições carece de verbas, de infraestrutura e de pessoal qualificado para suprir as lógicas de preservação. As coleções em geral abrigam uma grande quantidade de objetos (tipologicamente variados), muitos de caráter modesto e/ou moderno que não sofrem manutenção regular. E, quando isso acontece, não é difícil de deduzir que muitas das decisões que deveriam partir de profissionais de restauração, não necessariamente o são. Na falta de legislação que obrigue a contratação de profissionais qualificados16 , tem se aceitado outros atuando sem a devida capacitação, o que parece ser um contrassenso numa época em que defendemos as especialidades e a interdisciplinaridade. Ainda que haja boas intenções, os reflexos disso geralmente são pareceres mal fundamentados e de caráter imediatista, que não refletem sobre as premissas da restauração contemporânea. Por isso, KÜHL (2005) acena preocupação com decisões arbitrárias, de parecer exclusivo e equivocado, defendendo a qualificação nesse campo profissional.
Digno de ser comentado é que, enquanto os trâmites legais da regulamentação da profissão de restaurador não se finalizam, as intervenções de restauro no patrimônio nacional desenvolvem-se na confiança de que os profissionais cumpram os padrões de éticos dos tempos atuais. Em verdade, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) parecem se esforçar para solucionar as questões que se erguem pelos critérios pouco explícitos da atual legislação patrimonial brasileira (Decreto-leis nº 25/37 e nº 3551/2000). A publicação do Plano de Gestão Museológica (IPHAN, 2006), a aprovação do Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/2009) e o Programa IBRAM de Fomento aos Museus17 são exemplos de medidas introduzidas pelo governo que reconhecem a necessidade de especialistas para manter os acervos museológicos nacionais. Torna-se importante salientar, porém, que o apoio do IBRAM não contribui à sistematização da restauração brasileira efetivamente, apenas supre as eventuais demandas de preservação com o apoio da iniciativa privada – através das Leis de Incentivo à Cultura (LIC)18 .
Cabe observar também que as LICs sujeitam as práticas de restauração às lógicas de marketing do mundo contemporâneo, motivo pelo qual geralmente os incentivos são direcionados às necessidades de restauração do patrimônio histórico-artístico nacional (de maior impacto e apelo estético), que são consideradas um alto investimento para os cofres públicos. Enquanto isso, os objetos não enquadrados no ideal estético ou que representam os grupos sociais minoritários e étnicos – em geral artefatos de caráter modesto e relativamente recentes – esperam tratamento adequado às suas necessidades.
Desse modo, o sistema de preservação sustentado pelas LICs restringe a competência do restaurador aos objetivos estéticos, contribuindo para que o ofício persista sob um prisma tradicional e insólito. Nessa perspectiva descreve-se o profissional de restauro como uma pessoa paciente, que domina a essência subliminar19 das práticas de intervenção, a quem se confia e se recorre quando algo de valor perdeu seu atrativo físico e/ou está em risco de desaparecimento. Segundo Machado (2007), essa idealização cria em torno do restaurador uma aura de glamour que, de certo modo, estimula a continuidade do ofício isolado nos ateliês e laboratórios de restauração. Apesar de já haver a consciência da rotina científica e multidisciplinar a cumprir (MIP, 1972; ICOMOS, 1980), com ênfase no estudo dos significados dos objetos culturais, na realidade isso não se reflete totalmente.
Esse tema foi objeto de análise em uma pesquisa desenvolvida no interior de laboratórios de restauro, ateliês, escolas e museus, erguendo um parecer que preocupa: os profissionais observados “se ativeram a um exame metódico e discussão em grupo acerca dos métodos especializados para o restauro da obra, mas sem [...] expressar atenção pelo histórico, estética ou integridade física do objeto” (TOLIN, 2011, p. 2 e 3). Obviamente, isto demonstra uma dissociação entre teoria e prática, nos locais onde deveria se refletir sobre o fundamento pelo qual os objetos são preservados hoje, para, a partir daí, definir uma linha de trabalho a seguir. Hannesch (2012, p. 7) vai um pouco mais além quando afirma que os técnicos de restauração brasileiros adotam as receitas de restauro estrangeiras sem adaptá-las aos padrões nacionais de preservação.
Enquanto isso, nos eventos ou em artigos cujo tema é a preservação patrimonial contemporânea, é recorrente o discurso condenando as condutas desse tipo. Ainda que as discussões estejam baseadas em termos teóricos, o principal objetivo disso é formar profissionais capazes de observar as circunstâncias nos quais se trabalha e de refletir sobre questões éticas, metodológicas e técnicas para desenvolver a restauração brasileira sem os “modelos pré-concebidos” da manualística (KÜHL, 2005, p. 25).
Na mesma direção, Botallo (2007) indica o que se espera dos restauradores nos dias de hoje:
A mesma referência lembra a responsabilidade social do profissional de restauro em relação ao espaço em que trabalha e à proteção do meio-ambiente: é desejável que as intervenções de restauro sejam planejadas minimizando o uso de materiais tóxicos, para que os procedimentos não se projetem negativamente sobre o gerenciamento institucional, para se evitar doenças e poluição. Nesse aspecto, a realidade brasileira espera soluções de baixo custo, simples manejo, fácil aplicação e mínima toxidade. Além disso, como foi destacado na Declaração de Vassouras sobre Patrimônio e Sustentabilidade (APERJ et. al., 2012, p.3), existem expectativas de que surjam materiais e técnicas inovadores na atividade de restauro, desde que isso contribua para a permanência dos bens culturais.
Todas essas informações circulam de maneira mais explícita nos grandes centros de preservação, mas podem – senão devem – ser assumidas como obrigações a cumprir. Toda a classe conservação-restauração brasileira deve estar ciente disso e se esforçar a aplicar os novos preceitos para que de fato o progresso e avanços cheguem nessa área no século XXI.
Considerações finais
Com esse trabalho de pesquisa, parece ter ficado claro que a restauração brasileira reflete uma fase de transição: entre as práticas de restauração empíricas ou tradicionais, para àquelas que a teoria contemporânea anseia. Nessa perspectiva, é preciso estimular uma produção científica que valorize o conhecimento técnico interdisciplinar acumulado a partir dos últimos anos do século XX e que organize uma metodologia de análise que comprove os resultados das restaurações para a preservação dos bens culturais brasileiros.
De fato, torna-se importante ressaltar por um lado a escassez de profissionais na área da conservação-restauração de bens móveis; por outro, a necessidade de pesquisas inovadoras que correspondam de maneira mais fidedigna à teoria vigente e preocupadas em solucionar as problemáticas da maior parte dos acervos nacionais. Isso significa que o plano de expansão da restauração brasileira não pode considerar apenas o aumento do número de técnicos em restauro: antes, pois, é preciso estimular a formação de pesquisadores nesse campo de trabalho. Em última instância serão esses sujeitos que discutirão as estratégias relacionadas à sustentabilidade das intervenções brasileiras, que buscarão as inovações científicas para o ofício técnico e serão os autores de uma literatura preocupada em solucionar os problemas vivenciados nos museus brasileiros.
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1 Nesse contexto, a prática de preservação considerou apenas a proteção dos monumentos clássicos, pois representavam o poder da nação francesa. Cabe observar que a legislação patrimonial francesa foi instituída somente nos fins do século XIX.
2 Escritor, professor, conservador e historiador de arte austríaco (1858-1905). O texto constitui os fundamentos teóricos da reorganização da legislação de preservação na Áustria.
3 De uma maneira geral, as cartas patrimoniais são recomendações para tentar minimizar a ocorrência de destruições, descaracterizações e descontextualizações do patrimônio coletivo.
4 Esse documento consolidou a flexibilização do conceito de autenticidade a partir de diferentes noções culturais. Atualmente, compreende-se a autenticidade como uma qualidade relacionada aos aspectos formais e ao conteúdo simbólico dos bens artísticos.
5 Os conceitos resumem as noções introduzidas na Carta de Veneza e de Burra (ICOMOS, 1964 e 1980).
6 Arquiteto e restaurador francês (1814-1879). Contribuiu para a teoria da restauração apontando a importância de um estudo detalhado da obra em restauro (VIOLLET-LE-DUC, 2006).
7 Escritor e crítico de arte inglês (1819-1900). Marcou a oposição às práticas de restauração, esclarecendo a relevância histórica dos monumentos (RUSKIN, 2006).
8 Arquiteto, crítico e historiador de arte italiano (1834-1914). Elaborou princípios moderados para a teoria da restauração, que estão entre as ações invasivas e a negligência da conservação integral (BOITO, 2008).
9 Como já citado anteriormente, esse teórico organiza os valores rememorativos e contemporâneos e, através disso, contribuiu para legitimar a prática do restauro para fins de preservação.
10 Crítico e historiador de arte italiano (1906-1988), que organizou as bases filosóficas da restauração moderna (BRANDI, 2004).
11 As críticas iniciais partiram da própria classe da restauração que, ao apresentar as minúcias de sua atividade e reivindicar algumas necessidades básicas para desenvolvê-la, acabaram por expor as carências das instituições públicas (espaço, infraestrutura, pessoal qualificado, entre outros).
12 Assistiu-se a multiplicação de restaurações inovadoras, tais como, por exemplo: a hipermanutenção, a posição central, conservação interventiva (ou reparadora, direta, ou ainda ativa), manutenção, estabilização, entre outras práticas desconhecidas (KÜHL , 2005; ABRACOR, 2010).
13 Artista, historiador da arte, professor e conservador-restaurador, nascido na Espanha, em 1963.
14 Reflexões sobre a origem, autenticidade, componentes estruturais e partes estratigráficas dos bens culturais.
15 Esses estados reúnem uma grande soma de profissionais – entre técnicos, especialistas, mestres e doutores – de grande experiência prática e esforço em pesquisa na área em questão. Em vista disso, essas regiões são beneficiadas com informação, equipamentos e materiais que melhor correspondem à prática do restauro científico.
16 O Projeto de Lei que versa sobre este assunto, ainda tramita no Congresso Nacional (LOBÃO, 2008).
17 Informações disponíveis em: http://www.museus.gov.br/premios-e-editais/programa-de-fomento-2012/, acessado em 20/11/2012.
18 A mais conhecida é a Lei Rouanet, nº 8.313/91.
19 Em sua semântica, a expressão pretende explicar que existem práticas que são de domínio exclusivo do profissional de restauro e que, se compartilhadas, podem não ser entendidas (MACHADO, 2007). O sentido parece oposto à interdisciplinaridade tão desejada hoje e surpreende que ainda seja aceita para definir as reflexões da atividade de conservação-restauração.