Contribuciones a las Ciencias Sociales
Junio 2013

DESAFIOS COLONIAIS E INTERCULTURAIS : O CONHECIMENTO JURÍDICO COLONIAL E O SUBALTERNO SILENCIADO



Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (CV)
raquel7778@hotmail.com
Gabriela M. Kyrillos (CV)
Universidade Federal do Rio Grande

RESUMO

O texto apresenta uma proposta, o desafio da construção de um novo discurso/pensamento decolonial e intercultural como ferramenta teórica capaz de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos (não mais centrado em concepções epistemológicas eurocêntricas), vinculando-os à colonialidade epistêmica. Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropocêntrica e ocidental, podem ser devidamente questionados. Objetiva-se, nesse sentido, realizar uma abordagem intercultural e decolonial que passa pela análise da colonialidade epistêmica e da inserção do direito ocidental moderno como forma de colonialidade. O que se quer com este novo paradigma de cunho criativo/produtivo na área do Direito é solucionar os problemas reais e necessários, reconhecidos como tal pela comunidade, refletindo de fato o que se quer como mudança, em busca da justiça e da paz social, bem como garantir a capacidade de resolver efetivamente problemas, mantendo o fenômeno jurídico como força viva.


Palavras-chaves: colonialidade;.interculturalidade; .conhecimento;. subalterno.

Intercultural colonial Challenges: Legal Colonial knowledge and the Silenced Subordinate

ABSTRACT
The text presents a proposal. The challenge is the construction of a new line of speech/ non-colonial and intercultural way of thinking as a tool which makes possible a rhetorical analysis of legal knowledge (not centered anymore on epistemological and Eurocentric concepts) which connects them to an epistemic colonialism. Thus, the foundation and pre-concepted values of the modern legal culture can be appropriately questioned. The objective therefore, considering this matter, is to produce a intercultural and non-colonialism approach on the subject that enables an analysis of the epistemic colonialism and also the insertion of modern western legal rights as a mean of colonialism. What is requested from this creative/productive paradigm in the field of Law is to solve the real and necessary problems, acknowledged as such by the community, reflecting in truth what is wanted as change, in the search for justice and social peace, as wells as to guarantee the ability to effectively solve problems by keeping the juridical phenomenon as an alive strength.
Key words: Intercultural; colonialism; knowledge; subordinate.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Lopes Sparemberger, R. y Kyrillos, G.: "Desafios coloniais e interculturais : o conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado ", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Junio 2013, www.eumed.net/rev/cccss/24/colonialidade.html

Introdução

O texto apresenta uma proposta, o desafio da construção de um novo discurso/pensamento decolonial e  intercultural  como ferramenta teórica capaz de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos (não mais centrado em concepções epistemológicas eurocêntricas), vinculando-os à colonialidade epistêmica. Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropocêntrica e ocidental, podem ser devidamente questionados. Objetiva-se, nesse sentido, realizar uma abordagem intercultural e decolonial que passa pela análise da colonialidade epistêmica e da inserção do direito ocidental moderno como forma de colonialidade. Tal direito vincula-se a uma concepção geográfica e historicamente localizada que se constituirá num modelo dominante para julgar e definir o que é ou não jurídico. A partir desse ponto neutro de observação todas as outras formas jurídicas se transformam em primitivas, subalternas,  inadequadas ou são simplesmente silenciadas. Visa, também, a propor uma decolonialidade e interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos, o que possibilita uma redefinição e ressignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e Estado, a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno. Apresenta ainda algumas experiências ligadas ao novo constitucionalismo latino-americano focado nas Cartas constitucionais da Bolívia e do Equador como tentativas de consolidação desse novo discurso decolonial.

1. A COLONIALIDADE EPISTÊMICA E A CONFIGURAÇÃO DA EPISTEMOLOGIA (CONHECIMENTO) JURÍDICA NO BRASIL 

Segundo Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010), a expressão Epistemologias do Sul é uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de saberes, povos e culturas que, ao longo da história, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo – colonialismo que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, do sentido da vida e das práticas sociais. Percebe-se aí a afirmação de uma única  ontologia, de uma epistemologia, de uma ética, de um modelo antropológico, de um pensamento único e sua imposição universal.
Muitos pensadores provenientes de diversas áreas refletiram e refletem sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas, e não como uma etapa histórica já superada. A colonização não diz respeito apenas à administração colonial direta sobre determinadas áreas do mundo, mas refere-se a uma lógica de dominação, exploração e controle que inclui a dimensão do conhecimento e também do conhecimento jurídico, como ocorrido no Brasil. Nesse sentido, fala-se em colonialidade e não apenas de colonialismo. A palavra colonialidade 1 é empregada para chamar atenção sobre o lado obscuro da modernidade, assim fala-se em modernidade/colonialidade.
A retórica da modernidade e suas ideias pretensamente universais (cristianismo, modernidade, Estado, democracia, mercado etc.) permitiram e permitem a perpetuação da lógica da colonialidade (dominação, controle, exploração, dispensabilidade de vidas humanas, subalternização do saberes dos povos colonizados, etc.) (MIGNOLO, 2008, p. 293). A colonialidade se sustentou e continua a se sustentar, portanto, a partir da construção do imaginário epistêmico da universalidade. Em nome de uma pretensa racionalidade universal foi necessário o tráfico de escravos, a exploração dos indígenas e a expropriação de suas terras. Ou seja, a retórica positiva da modernidade justifica a lógica destrutiva da colonialidade e acentua o conceito de subalterno. Saber é poder. Essa afirmação resume nossa premissa. O saber é um dos pontos de sustentação da dominação, em todos os territórios das atividades humanas. E, no processo atual da globalização, o domínio do saber tecnológico é simbolicamente o determinante das relações de poder. Tais relações foram construídas e constituíram saberes e conhecimentos diferenciados que definiram os dominantes e os dominados. Dominados esses que tiveram e têm seus conhecimentos subalternizados, inclusive no nosso foco de estudo que é o conhecimento tradicional do Direito.
  Segundo Figueredo (2000, p. 84), a expressão “subalterno” começou a ser utilizada nos anos 1970, na Índia, como referência às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e possibilitou um novo enfoque na história dos locais dominados, até então, observados apenas do ponto de vista dos colonizadores e seu poder hegemônico. Emergiria, assim, o nome “subalternidade”, que, de nome abstrato, teria seu sentido deslocado para certa concretude e visibilidade. Gayatri Chakravorty Spivak, no texto “Pode o subalterno falar?”, também conhecida por seu empenho na questão da subalternidade, aponta para o termo “subalterno” não apenas como uma palavra clássica para o oprimido, mas como representação aos que não conseguem lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente, no qual o “subalterno é sempre aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é” (SPIVAK, 2010, p.12).
Segundo a autora, a condição de subalternidade é a do silêncio, ou seja, o subalterno2 carece necessariamente de um representante por sua própria condição de silenciado. Por um lado, observa-se a divisão internacional entre a sociedade capitalista regida pela lei imperialista e, por outro, a impossibilidade de representação daqueles que estão à margem ou em centros silenciados (SPIVAK, 2010, p.14). Figueredo (2000, p. 87) assevera que, de acordo com Spivak ((2010, p.14)1988), escrevemos como povos que tiveram a consciência formada como sujeitos coloniais e, negar isso, seria negar nossa história. É justamente nessa linha que Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010, p. 49), na obra “Epistemologias do Sul”, enfatizam que o mundo é um complexo mosaico multicultural. Todavia, ao longo da modernidade, a produção do conhecimento científico foi configurada por um único modelo epistemológico, como se o mundo fosse monocultural, o qual descontextualizou o conhecimento e impediu a emergência de outras formas de saber não redutíveis a esse paradigma. Assistiu-se, assim, a uma espécie de epistemicídio, ou seja, à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outras, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presentes na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas (SANTOS;MENESES, 2010, p. 49).

2. O CONHECIMENTO JURÍDICO E AS VOZES SILENCIADAS DO SUBALTERNO

Se “paradigma” significa exemplo, modelo, padrão a ser seguido, temos no Direito um “paradigma” epistemológico dominante centrado na objetividade, na reprodução, e aceito pelo chamado senso comum teórico dos juristas3 , com fortes características coloniais e de subalternidade. O paradigma epistemológico tradicional (colonial), nesse sentido, concentra-se em torno dos valores e interpretações ligados a um tipo de conhecimento centrado na objetividade ou na relação construída entre sujeito e objeto. Assim, mesmo que o  termo  paradigma,  introduzido por Thomas S. Kuhn na obra “Estrutura das Revoluções Científicas”, de 1962, utilizado no estudo dos fenômenos científicos, encontre atualmente muitas críticas por suas limitações e ambiguidades, é uma  das discussões mais importantes  no que concerne ao conceito e à crise de paradigmas nas diversas áreas do conhecimento. O núcleo do pensamento desse autor tenta estabelecer a assertiva, afirmando que o caráter normal de uma ciência está centrado na organização de cada campo de estudo do conhecimento científico sobre uma base de visões ou concepções globais do objeto estudado, que tanto vai inspirar a análise e a teoria como a própria pesquisa (OLIVEIRA, 2001).
Com essas palavras é possível vislumbrar que a escolha do termo “paradigma” sugere alguns exemplos aceitos na prática científica real. Tais exemplos incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação, proporcionando dessa forma modelos dos quais brotam as tradições “coerentes” e específicas da pesquisa científica (PENNA, 2000). Nesse sentido, a epistemologia, ou filosofia das ciências, caracteriza-se como um ramo da Filosofia que estuda a investigação científica e seu produto, o conhecimento científico. Até meio século atrás a epistemologia não era mais que um capítulo da teoria do conhecimento ou gnoseologia. Ainda não haviam surgido os problemas semânticos, ontológicos, axiológicos, éticos ou de qualquer outra natureza que se apresentam tanto no curso da investigação científica como no da reflexão metacientífica. Predominavam, então, problemas tais como a natureza e o alcance do conhecimento científico – em oposição ao vulgar –, o da classificação das ciências e o da possibilidade de edificar a ciência indutivamente a partir de observações (BUNGE, 1987).
Para Lalande (1968), a palavra inglesa epistemology é, com muita frequência, empregada (contrariamente à etimologia) para designar aquilo que em francês se denomina “teoria do conhecimento” ou “gnoseologia”. Epistemologia, gnoseologia, teoria do conhecimento ou mesmo metafísica do conhecimento constituem expressões equivalentes para efeito de se designar a reflexão sobre a natureza do conhecimento, suas formas, suas características, suas origens, seus limites, seus obstáculos e, sobretudo, sobre o tema da verdade (PENNA, 2000).
O significado de epistemologia como equivalente à filosofia das ciências  foi perfeitamente explicitado pelo Positivismo, que a definia como uma reflexão sobre os resultados da ciência a fim de entendê-los e unificá-los como conhecimento sistematizado, preciso, coerente e verdadeiro. Falar da filosofia das ciências é admitir para essa disciplina as características atribuídas a ela pela corrente positivista, o que nos leva a indagar se o termo “epistemologia” também supõe tais princípios. É importante ressaltar que as epistemologias normalmente partem de novas perspectivas e chegam a outras concepções sobre a ciência. Assim, a epistemologia tradicional, ou filosofia das ciências essencialmente positivista, passa  por um processo de ruptura ou transformação em busca de novos princípios e tarefas a serem cumpridas. Essas novas tarefas devem ser adequadas ao pensamento científico contemporâneo, em contínua evolução. Esse aspecto torna a filosofia das ciências e/ou a epistemologia tradicional de características coloniais inadequadas para a construção da cientificidade atual, significando que no passado tais sistemas conseguiam refletir a ciência de sua época, o que não acontece hoje, uma vez que as transformações sofridas pelo pensamento científico não foram acompanhadas pela epistemologia tradicional (BULCÃO, 1999).
Assim, se a epistemologia permite a reflexão, é importante destacar aqui os vários problemas que permeiam tal discussão quanto à natureza do conhecimento: o primeiro se ele tem sua origem a partir da relação sujeito/objeto; o segundo diz respeito à questão de seu valor e de suas possibilidades; o terceiro aponta para as formas por ele assumidas; o quarto centra-se na questão da verdade; o quinto volta-se para o problema de suas origens; e, finalmente o sexto, ressalta o tipo de abordagem adotado em sua investigação (PENNA, 2000). O Direito é um fenômeno autônomo, cujo conhecimento é o objeto da ciência jurídica como atividade intelectual distinta da ética das ciências sociais. A autonomia da ciência jurídica requer que ela se liberte das contaminações ideológicas que, de forma mais ou menos consciente, têm perturbado o estudo do Direito. Hans Kelsen foi um dos principais expoentes de um tipo de conhecimento que desconhecia as realidades outras, ou seja, desenvolveu os seus trabalhos com o objetivo de delinear com precisão os exatos contornos do conhecimento jurídico no campo científico.
É importante salientar que o conceito de ciência do Direito influenciou e traçou os limites do conhecimento jurídico na contemporaneidade. Tal influência é que possibilita a discussão do que é ser científico para Kelsen: qual o conceito de ciência que ele utiliza e transfere para o campo do Direito, o significado do termo “pura”, uma vez que este trabalha com a ideia de uma ciência do Direito isenta de todos os elementos considerados por ele estranhos para o mundo do Direito, como a Sociologia, a Psicologia etc. Observou que sendo o Direito uma esfera específica não seria de bom alvitre transportar para a égide da ciência jurídica métodos válidos para outras ciências. Entendendo que o jurista deveria investigar o Direito mediante processos próprios ao seu estudo, esse autor concluiu que isso só seria possível se houvesse “pureza metódica” (DINIZ, 1996). Então, com base no postulado kantiano de que “todo conhecimento é puro quando não se acha misturado com algo estranho que prejudique sua autonomia” (KELSEN, 1994, p. 82), e vendo-a ser diluída entre os conceitos de Psicologia, Biologia, da moral e da Teologia, Kelsen se propõe a dela eliminar todos os elementos que lesam a sua pureza e independência, ensejando levar a ciência do Direito às últimas consequências do Positivismo. Assim, a ciência jurídica pode ser caracterizada como uma ciência normativa à medida que toma seu objeto como norma e constitui-se numa atividade somente descritiva, ou seja, para Kelsen, a ciência é uma atividade que se esgota na descrição de leis postas – do Direito positivo. Nesse ponto, é possível entender o “jurídico” ou o “direito” não apenas pelo viés eurocêntrico e institucional, mas  como um discurso que além de moderno também é colonial e, sendo assim, participava e participa da lógica colonialista, subalternizando saberes.
Nessa perspectiva, a contribuição de Edward Said (2007) é no sentido de que existiria conhecimento neutro por parte das ciências, somando-se ao fato de que as constituições dos saberes relacionavam-se com o colonialismo, não considerado como uma experiência que tinha sido finalizada, mas que continuava presente nas relações de conhecimento, determinando a pretensa superioridade/inferioridade de certas pessoas e saberes. Nesse ponto, ressalta-se como o paradigma dominante de ciência vem monopolizando a produção do saber, e como tal fato produziu efeitos na ciência jurídica. A Teoria Pura do Direito é considerada como principal produto desse fenômeno. Assim, a crítica a essa concepção estrita de conhecimento, propugnando uma abertura epistemológica e metodológica da ciência jurídica, foi capaz de justificar a adoção do tudo vale de Paul Feyerabend (2007) ao Direito, com a finalidade de torná-lo mais adequado ao seu papel de realização de um projeto de sociedade (MACHADO, 1968). Segundo Feyrabend, o predomínio dessa concepção de ciência não possui razões transcendentais ou uma justificação lógica insofismável, mas sim decorre, em verdade, de ser ele o que melhor atende aos ideais das classes que ocupam a centralidade do processo de globalização cultural, ou seja, os Estados capitalistas ocidentais desenvolvidos, sendo impostos por eles aos demais países (apud REIS NETO, 2012).  De acordo com o autor, o predomínio dessa forma de produção de saberes também se justifica por haver a ciência moderna se tornado o que Thomas Kuhn (2007, p. 29) chama de “ciência normal”, isto é, o modelo que, em regra, os novos cientistas aprendem muitas vezes sem maiores questionamentos de ordem epistemológica (REIS NETO, 2012). A produção científica restringe-se ao desenvolvimento das questões já levantadas pelos precursores, contribuindo para uma estabilização (KUHN, 2007). Mas, então, por que prevalece esse paradigma até o presente momento, ao menos numa perspectiva teórica? A resposta parece evidente, e já foi enunciada: a Teoria Pura permite que o Direito seja considerado uma ciência, de acordo com a concepção ainda dominante que se possui desse conceito. Claro, uma ciência de abrangência restrita, e talvez exatamente por isso uma ciência de forte influência dos discursos coloniais de construção da própria ciência do Direito.

 3. AS TENTATIVAS DE RUPTURA: EM BUSCA DE (DISCURSOS) CONHECIMENTO DECOLONIAL

O tópico anterior mostrou sucintamente que o modelo de ciência/conhecimento construído por Hans Kelsen é o paradigma da ciência jurídica moderna. O fato, no entanto, não nos impede, neste momento, de fazermos uma análise crítica de sua estrutura e de suas implicações. Sabe-se que a tradição jurídica portuguesa, vinculada à concepção patrimonial de Estado, introduziu no Brasil um Estado deficitário e uma cultura jurídica excessivamente formalista. O Direito e o Judiciário na época colonial não construíram a ideia de cidadania. A igualdade jurídica foi sempre uma tentativa de igualdade formal, nunca material. As funções básicas da burocracia portuguesa no Brasil foram sempre fiscalizar e agir com rigor quando da sonegação de impostos, e representar a figura do Rei. O povo não detinha nenhuma importância, sendo que dele somente era exigido o profundo respeito pelo Monarca, fato que quando contrariado era punido severamente (MALISKA, 1997,p.20-21). Deve-se ter presente que o Estado brasileiro não nasce das exigências do cidadão, e é a partir daí que se constrói no Brasil o conhecimento jurídico e nasce o conceito de subalterno. Segundo Boaventura de Sousa Santos na obra “O Discurso e o poder”, historicamente o Brasil é marcado pelo pluralismo de ângulo colonial, pois o direito oficial implantado foi o direito português, em específico as Ordenações. A relação entre o direito oficial e o direito tradicional da colônia foi de exclusão e não reconhecimento deste último. Não havia o reconhecimento de outro direito além do direito português. O direito que brotava das relações sociais existentes na colônia era ignorado pelo direito oficial português. A segunda expressão tem, de certa forma, ligação com a primeira. São os direitos dos povos indígenas que viviam no Brasil ao tempo da colonização (SANTOS, 1988). Qualquer ideia de pluralidade foi totalmente desconsiderada pelo direito oficial português.  Assim, o tipo de conhecimento construído foi o monista, cuja concepção parte da ideia de que o Direito só existe na forma de um sistema único e universal. Para Jean Carbonnier (1972, p. 24):
O bien el sistema jurídico global toma en cuenta los fenómenos jurídicos descritos como constituyendo otro derecho… quedando la unidad restaurada por medio de este sistema global que asume el conjunto o bien los fenômenos del pretendido Derecho diferente quedan fuera, no integrados en el sistema, en estado salvaje, y no pueden ser calificados como auténtico Derecho, siendo considerados, todo lo más como sub-derecho.

Percebe-se assim que uma visão monista do Direito pressupõe que um sistema jurídico existe quando as normas jurídicas são produto exclusivo do Estado. Todas as normas que estão fora do Direito estatal de visível influência colonial não podem ser consideradas como direito. Para que se possa avançar na tentativa de construção de um outro tipo de conhecimento/discurso decolonial, ou de  questionamento crítico a respeito de  alguns aspectos das ideias kelsenianas, no que concerne à construção da ciência do Direito/do conhecimento jurídico monista, faz-se necessário “abandonar” um pouco a perspectiva tradicional e, por meio de uma linguagem um tanto alheia aos métodos tradicionais, buscar compreender o agir dos juristas dentro dessa e de uma nova perspectiva epistemológica decolonial.
Segundo Reis (2012), há muitas questões que podem ser enfrentadas, como por exemplo: “(...), o modelo da ciência moderna é o único capaz de produzir um conhecimento absolutamente verdadeiro? A resposta negativa se impõe, porque: a) existem conhecimentos não científicos; b) existem conhecimentos científicos produzidos fora do paradigma moderno (conquanto os adeptos do modelo dominante possam negar-lhes cientificidade); c) o método moderno não consegue produzir verdades absolutas”. De fato, entendendo-se que o paradigma científico da modernidade não pode monopolizar a produção do conhecimento, a Ciência do Direito deve abandonar as pretensões de pureza e objetividade, para abarcar de maneira mais ampla possível todos os elementos relativos à elaboração e implementação de um projeto de sociedade, este sim seu objetivo.
Evidentemente, isso implica num intercâmbio com diversos ramos do saber, e também como assevera Linda T. Smith, uma antropóloga Maori4 da Nova Zelândia, trabalhar com a ideia de “descolonização de metodologias”. Descolonizar metodologias significa uma compreensão mais crítica dos pressupostos subjacentes, motivações e valores que motivam as práticas de investigação. Nesse sentido, concordamos com a autora ao defendermos que os pesquisadores precisam criticar seu próprio “olhar”5 .
Segundo Damazio (2011), diferente das metodologias clássicas de pesquisa científica, as metodologias decoloniais são pluralistas e se posicionam como uma ruptura desse tipo de pesquisa colonizadora que tem sido central para perpetuar a colonialidade em todos os seus aspectos. Há uma necessidade de produção de diferentes conhecimentos, que devem se originar a partir de distintas abordagens e conceitos. Autores como Michel Foucault, Edward Said e Walter Mignolo são exemplos dessas múltiplas perspectivas metodológicas.
Trata-se da possibilidade de ir além do discurso jurídico moderno/colonial e pensar condições outras do jurídico. Significa vivenciar o “direito” não como um sistema fechado de normas jurídicas pensado apenas a partir do “Estado”, tampouco defender que conceitos como democracia, justiça e direitos humanos sejam entidades únicas definidas e válidas para todo o planeta. Nessa linha, Eloise Peter  Damázio (2011, p. 150) assevera que 

(...) para podermos nos mover nesta direção, precisamos nos distanciar da universalidade epistêmica (e suas concepções de verdade, sujeito de conhecimento deslocalizado e neutro, tempo linear, progresso, bem como as relações binárias tradicionais do pensamento filosófico) e nos direcionarmos para pluriversalidade epistêmica. Esta diz respeito a uma outra visão de mundo pautada na geopolítica e na corpo-política do conhecimento. Nesse sentido, o fundamental é afirmar os saberes construídos a partir de distintos corpos em diferentes localizações. Representa, portanto, a entrada em cena do “outro”, do anthropos e de suas formas de conhecimento “outras” em um processo decolonial da própria “lógica” epistêmica que dá suporte à colonialidade.

A entrada em cena do “outro” e de suas formas de conhecimento significa que por meio dos processos de decolonialidade epistêmica é possível buscar as reações e respostas daqueles que tiveram seus saberes subalternizados (saberes em um sentido amplo, incluindo práticas, memórias, subjetividades, etc), os quais foram considerados primitivos, inferiores, arcaicos, etc. O que se pretende é a discussão ou mesmo a proposição de um pensamento jurídico “outro” que parta da emergência dos saberes jurídicos latino-americanos subalternizados e não da perspectiva jurídico-epistemológica eurocêntrica e colonial do conhecimento.
Para muitos pensadores jurídicos, tanto o direito como o Estado, por estarem vinculados à tradição moderna, associados à razão, são considerados como soluções universais que devem ser aplicadas em toda parte. As “leis do direito” são abordadas como “leis naturais” ou as “leis da natureza”. Isto é, confundem uma forma de direito com o direito. Sabe-se que o modelo atual de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Tal modelo predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Verifica-se então a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada. A partir dessas reflexões, se propõe que o pensamento decolonial e a interculturalidade podem ser utilizados como ferramentas teóricas capazes de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos, vinculando-os à colonialidade epistêmica.
 Esta nova realidade em que o cidadão adquire a condição de participante  de um outro tipo de conhecimento, prudente para uma vida decente, ou da consciência emergente da diversidade social e cultural, a existência de desequilíbrios, fatores de tensão, divergências de valores e posicionamentos culturais distintos, estão na base do surto de uma reflexão sobre a pedagogia intercultural, metodologia estritamente vocacionada para a compreensão da diferença, da aceitação do outro.
Para Trindade (1993, p. 9), a consabida e pacífica crença na dimensão universal e genérica do homem, traduzida através de um mesmo suporte biofísico e pelo traço distintivo da racionalidade, vê-se subitamente posta em causa pela eclosão de uma pluralidade de singularidades que configuram diferentes formas de pertença, de identificação para com os vários grupos sociais em que se insere. Para a autora:
 
Da procura da compreensão substantiva dos mecanismos, das formas, dos julgamentos de base, dos valores que presidem aos relacionamentos interpessoais, emergirá o ideário intercultural, cuja metodologia vem a suceder à visão algo formalista e mítica de entender as sociedades como eminentemente homogêneas, impermeáveis, imutáveis, centradas sobre si mesmas, fiéis depositárias do bem comum, das nações como expoentes emblemáticos do povo soberano. Foi este, afinal, o sonho dos que imaginaram as sociedades orgânicas como exemplos concretizáveis de uma adequada distribuição de funções e de poderes entre os vários elementos e instituições, garantindo, assim, a priori, uma previsibilidade dos objetivos a atingir e também dos comportamentos sociais expectados (TRINDADE, 1993, p. 9).

Verifica-se, aqui, a presença do termo  interculturalidade que  pode ser usado para “significar  e representar um processo e projeto político-social transformador” (WALSH, 2009, p. 83). Para Walsh, a interculturalidade, nesse sentido, pode ser considerada como uma ferramenta conceitual central para construção de um pensamento decolonial. Primeiro porque está concebida e pensada desde a experiência vivida da colonialidade; segundo porque reflete um pensamento não baseado apenas nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta na geopolítica dominante do conhecimento que tem tido como centro dominante o norte (WALSH, 2009).
Segundo Damazio (2011), diferente do multiculturalismo oficial, no qual a diversidade se expressa em sua forma mais radical, por separatismos e etnocentrismos e, em sua forma liberal, por atitudes de aceitação e tolerância, a interculturalidade, como é entendida pelos grupos historicamente subalternizados, diz respeito a complexas relações, negociações e intercâmbios culturais que emergem de espaços de fronteira. Trata-se de uma interação entre pessoas, conhecimentos, práticas, lógicas, racionalidades e princípios de vida diferentes. Uma interação que admite e que parte das assimetrias sociais, econômicas, políticas e de poder e também das condições institucionais que limitam a possibilidade de que o “outro” possa ser considerado sujeito com capacidade de atuar (WALSH, 2009, p. 45).
Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropocêntrica e ocidental, passam a ser devidamente questionados. A proposição da decolonialidade e da interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos, possibilitará uma redefinição e resignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e Estado a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno.
Segundo Damazio (2011), como parte de um sistema jurídico intercultural, é necessário incluir distintas maneiras de conceber e exercer os direitos. A interculturalização jurídica, para Walsh (2010), não deixa de lado o pluralismo jurídico, mas aprofunda sua prática e compreensão.  Requer que o sistema “uninacional” e sua lógica-razão jurídica também se pluralizem dentro de um marco de justiça que parta da realidade do país e não só do modelo do “direito moderno-universal-ocidental-individual”, modelo que, sem dúvida, é o que veio perpetuando a colonialidade (DAMAZIO, 2011). Para  esta autora:
Não entendemos a decolonialidade da (anthropos)logia jurídica como algo dado e um objetivo final, mas como um processo de desobediência epistêmica contínuo. Nesse sentido, consideramos que não é possível decolonizar instantaneamente todos os âmbitos da produção de saberes, principalmente o âmbito acadêmico, pois há muitas amarras eurocêntricas que não podem ser questionadas e modificadas de uma única vez (por exemplo, as normas para um trabalho acadêmico). Por isso, também, defendemos que o processo decolonial é lento. Entretanto, nossa tarefa enquanto pesquisadores é impulsioná-lo e pensá-lo a partir desta nova realidade que visualizamos não só na América Latina, mas no mundo todo. Assim o conhecimento jurídico não é então mais aquele de um objeto e de sua objetividade, como o era para os epistemólogos positivistas. A epistemologia se transforma em uma perspectiva de interação entre o objeto e o sujeito (não são mais separados sujeito e objeto), conhecimento de um novo projeto, a que chamamos de princípio da projetividade (relação harmônica). A partir desses dados podemos compreender a busca frenética por novos paradigmas, plurais, interculturais, decoloniais. (DAMAZIO, 2011, p. 179)

O Brasil assim como em outros países da América Latina colonizados por europeus e que herdaram o modelo universalista, deixou à margem índios, negros, pobres, entre tantos outros que se tornaram vitimas de um Estado desigual em oportunidades e distribuição de renda. Apesar disso, é possível comemorar as mudanças e evoluções ocorridas nas três ultimas décadas e ter esperança num futuro próximo de menores níveis de pobreza e desigualdades, por isso a relevância do novo constitucionalismo latino-americano.
Stuart Hall acrescenta:

Nos primórdios do desmantelamento dos antigos impérios, vários novos Estados-nação, multiétnicos e multiculturais, foram criados. Entretanto, estes continuam a refletir suas condições anteriores de existência sobre o colonialismo. Esses novos Estados são relativamente frágeis, do ponto de vista econômico e militar. Muitos não possuem uma sociedade civil desenvolvida. Permanecem dominados pelos imperativos dos primeiros movimentos nacionalistas de independência. Governam populações com uma variedade de tradições étnicas, culturais, ou religiosas. As culturas nativas, deslocadas, senão destruídas pelo colonialismo, não são inclusivas a ponto de fornecer a base para uma nova cultura nacional ou cívica. Somam-se a essas dificuldades a pobreza generalizada e o subdesenvolvimento, num contexto de desigualdade global que se aprofunda e de uma ordem mundial econômica neoliberal não regulamentada. Cada vez mais, as crises nessas sociedades assumem o caráter multicultural ou “etnicizado” (2003, p. 56).

No aspecto jurídico, desenvolveu-se um sistema voltado para beneficiar os donos do poder, e não para criação de um sistema justo. O perfil ideológico do constitucionalismo político, enquanto sustentáculo teórico do Direito público do período pós-independência, traduziu não só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de um momento singular da organização político-social, como expressou a junção notória de algumas diretrizes, como o liberalismo econômico, sem a intervenção do Estado, o dogma da livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante, a concepção monista de Estado de Direito e a supremacia dos direitos individuais.6
O antigo colonialismo foi substituído por um sistema de poder assimétrico e globalizado, cujo caráter é pós-nacional e pós-imperial. Suas principais características são a desigualdade estrutural, dentro de um sistema desregulamentado de livre mercado e de livre fluxo de capital, dominado pelo Primeiro Mundo, e os programas de reajuste estrutural, prevalecendo os interesses e modelos ocidentais de controle ( HALL, 2003, p. 57).
Além do discurso da interculturalidade, a perspectiva da “descolonização” (do Estado, da sociedade) também entrou em evidência, principalmente na Bolívia e no Equador, a partir da primeira década deste século (sofrendo influência inclusive dos estudos acadêmicos latino-americanos da decolonialidade, Quijano, Mignolo, etc.).
Na Bolívia as organizações camponesas, indígenas e originárias, no contexto da Assembleia Constituinte (que elaborou o texto aprovado em janeiro de 2009), articularam o discurso da descolonização a partir da proposta do “Estado plurinacional” (GARCÉS, 2009, p. 175). O Estado plurinacional é considerado para esses movimentos e organizações com um modelo de organização que teria como função “descolonizar nações e povos indígenas originários, recuperar sua autonomia territorial, garantir o exercício pleno de todos os seus direitos como povos e exercer suas próprias formas de autogoverno” (GARCÉS, 2009, p. 176).
            Para concretizar o Estado plurinacional, um dos elementos fundamentais seria o direito à terra, ao território e aos recursos naturais, possibilitando acabar com o latifúndio e com a concentração de terras em poucas mãos, rompendo assim com o monopólio de controle dos recursos naturais em benefício de interesses privados. Da mesma forma, o Estado plurinacional “implica que os poderes públicos tenham representação direta dos povos e nações indígenas, originários e camponeses de acordo com suas normas e procedimentos próprios” (GARCÉS, 2009, p. 176).
            Seria, segundo Garcés (2009, p. 176), um “Estado de consorciação onde as coletividades políticas opinam, expressam seu acordo e tomam decisões sobre as questões centrais do Estado.”. A ideia de que o Estado tem soberania única e absoluta sobre seu território é desfeita e, desse modo, possibilita-se o exercício do autogoverno (para dentro) e do cogoverno, em relação ao Estado central e com as outras entidades territoriais (GARCÉS, 2009, p. 176).
            Com relação ao Equador, a proposta da plurinacionalidade foi introduzida inicialmente no final da década 1980 pela CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) e amplamente discutida por essa organização durante os anos de 1990, mas com pouco entendimento e acolhida por parte da sociedade dominante “branco-mestiça”. As organizações indígenas, junto com vários intelectuais não indígenas, deixaram claro que a plurinacionalidade não implica numa política de isolamento ou separatismo, mas sim no reconhecimento de sua própria existência como povos e nacionalidades no interior do Estado equatoriano, enfatizando que não existe uma só forma nacional, mas várias formas historicamente estabelecidas (WALSH, 2009, p. 98).
A América Latina tende cada vez mais a se renovar no sentido pluralista, através de uma democracia que inclui o índio e o negro como personagens atuantes, construindo uma sociedade mais humana e mais próxima da igualdade econômica, social e cultural. As experiências tanto da Bolívia quanto do Equador demonstram os anseios da população latino-americana por uma nova ordem constitucional.
As novas Constituições trazem mudanças que abrangem não só a questão cultural e os direitos coletivos, mas os sistemas políticos e jurídicos. O objetivo é que um Estado que assista todos os seus cidadãos possa crescer com menos conflitos, que o respeito às diferenças e peculiaridades de cada grupo possa criar uma sociedade mais humana, e que os povos de cultura diferenciada, antes excluídos das sociedades nacionais, possam somar na luta por um meio ambiente saudável e uma sociedade inclusiva.
Nas palavras de Raquel Yrigoyen (2012), o chamado constitucionalismo pluralista de características decoloniais começou a ser desenvolvido em três ciclos:

  • Constitucionalismo multicultural (1982-1988), com a introdução do conceito de diversidade cultural e reconhecimento de direitos indígenas específicos;
  • Constitucionalismo pluricultural (1988-2005), com adoção do conceito de “nação multiétnica” e o desenvolvimento do pluralismo jurídico interno, sendo incorporados vários direitos indígenas ao catálogo de direitos fundamentais;
  • Constitucionalismo plurinacional (2005-2009), no contexto da aprovação da Declaração das Nações Unidas  sobre o direito dos povos indígenas. Nesse ciclo há e houve a demanda pela criação do Estado plurinacional e de um pluralismo jurídico igualitário. Percebe-se por fim, segundo Damazio (2011, p.58), que os estudos pós-coloniais e decoloniais possibilitam compreender os discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem a partir das relações coloniais. Estes discursos, inevitavelmente, resultam na subalternização dos saberes que surgem a partir do “outro”, do anthropos. Trata-se, desta maneira, de uma perspectiva diferente de se entender o direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes categorias e formas de conhecimento, inimagináveis para o direito eurocêntrico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo constitucionalismo latino-americano promove uma ressignificação de conceitos como legitimidade e participação popular – direitos fundamentais da população –, de modo a incorporar as reivindicações de parcelas da população ou de grupos que foram subalternizados pelos discursos hegemônicos e sempre ficaram fora dos processos decisórios. Nosso objetivo ao longo deste trabalho foi defender uma ideia segundo a qual a epistemologia tradicional (ou teoria do conhecimento) ou a epistemologia jurídica tradicional de características coloniais  encontra-se em crise, originada na manutenção de um modelo de construção do conhecimento, ou de um fazer ciência que insiste em ser fechado, preciso, restrito, ou de preservar um tipo de conhecimento centrado na objetividade ou na relação construída entre sujeito-objeto, em que o primeiro somente reproduz o objeto dado e subalterniza saberes. Demonstramos que este tipo de construção epistemológica precisa ser revisto/redefinido, pois embora o chamado “senso comum teórico dos juristas”  insista em preservá-lo, já  vai longe o tempo em que estes podiam afirmar a existência de verdades transcendentais que descortinariam a trilha rumo à descoberta de um sentido estático, prévio, intrínseco aos preceitos jurídicos e, com isso, definir de modo inequívoco a subsunção da norma aplicável ao caso concreto.

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1 Colonialidade é um conceito utilizado inicialmente por Quijano. Este termo é uma importante contribuição dos autores latino-americanos para a consolidação no âmbito acadêmico do pensamento de fronteira que surge a partir do anthropos. A palavra colonialidade (e não colonialismo) é utilizada para chamar atenção sobre as continuidades históricas entre os tempos coloniais e o tempo presente e também para assinalar que as relações coloniais de poder estão atravessadas pela dimensão epistêmica. Colonialidade é um conceito complexo (atua em vários níveis).(DAMAZIO, 2011, p.55).

2 O termo “subalterno” foi utilizado inicialmente por Gramsci (2002), para referir-se as classes subalternas, especialmente ao proletariado rural. Já os Subaltern Studies modificaram o significado de subalterno, ele é considerado como um sujeito histórico que responde também as categorias de gênero e etnicidade, não apenas de classe. Nesse sentido, o conceito “subalterno” é utilizado a partir da diferença colonial. O subalterno é identificado como o colonizado, ou com o sujeito colonial, não se trata de um ser passivo, um sujeito ausente, mas um sujeito ativo.(DAMAZIO, 2011, p.47).

3Senso comum teórico dos juristas designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas. Nas atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, preconceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação (WARAT, 1994,  p. 13).

 

4 A população nativa da Nova Zelândia é designada como “Maori”.

5 É importante para esta discussão o livro DecolonizingMethodologies de Linda T. Smith (1999). A primeira parte da obra aborda a história da pesquisa ocidental e realiza uma crítica dos pressupostos culturais por trás das pesquisas sustentadas pela cultura dominante colonial. A autora analisa a relação entre conhecimento, pesquisa e imperialismo analisando as diferentes maneiras pelas quais o imperialismo está presente nas disciplinas científicas e nas metodologias. A segunda parte centra-se na definição de uma nova agenda de pesquisa indígena que busca recuperar o controle sobre suas maneiras de conhecer e ser, visando assim a uma práxis crítica para os povos ocidentais e não ocidentais.