Renan Albuquerque Rodrigues*
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira**
Elizabeth Cristina Siel Souza ***
Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade ****
Universidade Federal do Amazonas, Brasil
falcicley@gmail.comResumo
Foi estudada a brincadeira indígena de onça e de cutia e partiu-se do pressuposto da interação que esse jogo infantil, próprio à etnia Sateré-Mawé/AM, propõe a seus integrantes. Conceitos referentes à criança e à brincadeira nativa foram descritos. Utilizou-se metodologia da observação participante. Os resultados apontaram que esse jogo coletivo envolve dinâmicas de predação e pertencimento, relacionadas com territorialidades e simbolismos e, partindo desse indicativo, que i) domínios sobre a terra, ii) memórias coletivas, iii) modos de vida e iv) sociabilidade do cotidiano estão implicadas na brincadeira.
Palavras-chave: Criança indígena; etnia Sateré-Mawé/AM; Amazônia.
Abstract
Was studied the indian's joking of jaguar and agouti and pressuposed the interaction that the activity, of the Sateré-Mawé ethnicy, offers for your members. Are described concepts about the childrens envolved on the nativo's joke. Was utilizated the descrition metodology. The discution showed that predation and belonging, both relationed with territoriality and simbolism, are implicated to the study. Was observed that i) domination over land, ii) colective memories, iii) life's style and iv) sociability are implicated on the joke.
Keywords: Indigenous children; Sateré-Mawé ethnicy; Amazon.
Resumen
Se estudió la broma indígena de onza y de cutia y se partió del supuesto de la interacción que ese juego infantil, propio a la etnia Sateré-Mawé / AM, propone a sus integrantes. Se describieron conceptos relativos al niño y al juego nativo. Se utilizó metodología de la observación participante. Los resultados apuntaron que ese juego colectivo involucra dinámicas de predación y pertenencia, relacionadas con territorialidades y simbolismos y, partiendo de ese indicativo, que i) dominios sobre la tierra, ii) memorias colectivas, iii) modos de vida y iv) sociabilidad de lo cotidiano implicadas en la broma.
Palabras clave: Niño indígena; etnia Sateré-Mawé / AM; Amazonia.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Renan Albuquerque Rodrigues, Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira, Elizabeth Cristina Siel Souza y Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade (2018): “Brincando de onça e de cutia em aldeamento Sateré-Mawé/AM”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2018). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2018/01/brincando-onca-cutia.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1801brincando-onca-cutia
Introdução
Contexto do estudo e metodologia
O ato de brincar é universal e principalmente se brinca quando criança. Trata-se de atividade que engendra particularidades simbólicas e territoriais (Ariès, 1981; Corsaro, 2002). Considerando que o brincar fomenta aprendizagens e desenvolvimentos cognitivos, além de incursões prévias a status não relacionados a afetos parentais (Mubarac Sobrinho, 2011), foram investigadas relações possíveis desse brincar na formação da pessoa Sateré-Mawé, etnia que ocupa, entre outros lugares, principalmente a terra indígena Andirá-Marau, localizada na fronteira do Estado do Amazonas com o Pará, Norte do Brasil.
Tomou-se como suposto que a partir de brincadeiras são possibilitadas interação e socialização dos Sateré-Mawé em diferentes níveis, tendo em vista contextos de integração e identificação sociocultural (Alvarez, 2009; Penteado, Seabra e Bicudo-Pereira, 2014). Nesse sentido, o estudo levou em conta o ato de brincar enquanto interpessoalidade a partir da qual são formados processos de autoconhecimento via relações vinculares variadas e cingidas com universos externos (Kramer, 1996; Kramer e Leite, 2007; Barros, 2010).
A ideia foi abordar o jogo da onça e da cutia, muito popular entre os Sateré-Mawé, que pode ser entendido da seguinte forma: é tradicional, faz parte da cultura e a partir dele concepções de mundo são transmitidas intergerações, dentro de uma dinâmica própria de manifestação grupal presente em cotidianos de crianças (Kuhlmann Jr., 1998; Kishimoto, 2012). Mas em que medida a brincadeira se constrói de forma significativa ante tradições, territorialidades, simbologias cosmológicas, míticas e anímicas para os Sateré-Mawé?
Sobre a questão, tomou-se a contento i) o mecanismo por meio do qual a brincadeira se desdobra, ii) a concepção funcional da brincadeira diante de papeis assumidos e iii) os modos a partir dos quais se tendem a notar subjetividades que povoam o universo lúdico da etnia – deuses, espíritos, habitantes de extraplanos cósmicos, plantas, pedras, lugares e artefatos. Procurou-se fundamento mediado por sistemáticas da etnia ante realidades de entorno e de saberes e fazeres em situação de diálogo com brancos.
O estudo da brincadeira da onça e da cutia entre crianças Sateré-Mawé do Baixo Amazonas/AM foi estimado tendo em vista buscar associações de significados entre o jogo e as representações de mundo de crianças aldeadas. Tomou-se como hipótese que noções perspectivistas entre crianças étnicas incidem sobre concepções da sociedade e da cultura enquanto instâncias essenciais do pensamento.
Para Viveiros de Castro (1993), tópicos referentes a perspectivismo podem servir para se investigar valores relacionais, intracorpóreos e psíquicos, de humanos e não-humanos, além de interpretações acerca de socialidades humanas ante mundos não-humanos. Mediante o enfatizado, pretendeu-se perceber brincadeiras estipuladas no estudo de caso e entremeadas a partir de atos que mesclam imaginário e realidade dentro de determinado território tradicional, em um contexto de fronteira interétnica.
Ao se estudar a brincadeira da onça e da cutia do povo Sateré-Mawé, propôs-se conhecer artifícios semânticos e papeis socioculturais adornados no contexto da etnia. Optou-se pelo universo dos infantos porque brincadeiras tendem a i) construir identificações e reconhecimentos de pertença ao grupo, ii) teatralizar realidades ao se expressarem modos de vida e iii) forjar modelos de compreensão para universos que dizem respeito a real e imaginário étnico.
Foi realizada investigação com crianças moradoras de um aldeamento de pequeno porte na sede urbana do município de Parintins, região do Baixo Amazonas, extremo leste do Estado do Amazonas, na fronteira com o Pará. O espaço é denominado de Casa de Trânsito e serve de moradia para indígenas em fluxo migratório intermitente ou regular pela cidade parintinense.
No local, não houve prescrutamento direto a infantos. A investigação se deu no contexto da observação sistemática participante, cuja proposta foi analisar o jogo da onça e da cutia, como os índios Sateré-Mawé a denominam. Foram realizadas sessões de visitas na intenção de registrar informações manifestas e latentes sobre a brincadeira indígena. Foi adotada a opção para levantamento do contexto social dos índios, por meio de anotações sobre comportamentos do cotidiano.
Dados da coleta foram analisados a partir de inferências acerca do fenômeno, descritas a partir de i) relações de troca, ii) padrões comportamentais e iii) coocorrências incidentes ao ato. Aproximações teóricas para interpretações sobre características de humanidade e não humanidade na Amazônia ameríndia auxiliaram no embasamento do estudo (Viveiros de Castro, 2002, 2013).
Enfoque teórico
A criança e a brincadeira nativa
Crianças se constroem como pessoas histórico-sociais e de direito na relação com o meio onde vivem (Charlot, 1986; Sarmento, 2005). Diferentes contextos influenciam identidades e subjetividades. Para se almejar inferências sobre significados de ser criança na Amazônia e significados de ser criança indígena na Amazônia, interessou conhecer universos onde infantos estão inseridos e onde suas brincadeiras se acontecem.
Além, propriamente, dos significados sobre 'ser criança indígena na Amazônia' representarem os construtos da proposta de forma específica, também se suscitou emersões psíquicas relacionadas a composições cosmológicas que incidem em imaginários orientadores de brincadeiras. Projetaram-se como pressupostos complexidades conceituais referentes à ideia de ser criança e do brincar ao longo das épocas.
Por exemplo, até a Idade Moderna não eram concretizadas distinções entre deveres de crianças e responsabilidades de adultos. Infantos eram tomados como adultos em pequeno tamanho, capazes de executar as mesmas atividades dos velhos (Rodrigues, 2009). Não havia separações ante etapas da vida e pais ou mestres artífices ensinavam experiências práticas e valores humanos que pudessem ter (Tomás, 2006). O importante era crescer rapidamente e conseguir trabalho.
Ao surgir abordagem considerando degraus para a infância, no século XX iniciou-se a tomada de base dos desenvolvimentos interacionais com ambientes e sociedades. Foram projetados estudos (Vygotsky, 1987) para o brincar e se buscou avaliar em que medida mentalidades formadas a partir do nascimento dinamizavam concepções e simbologias em meio a vivências. Até hoje, no ocidente, a ideia se mantém de modo geral (Coll Delgado e Müller, 2005), salvo vieses concernentes a populações étnicas (Nunes, 2012) – e foi nesse enfoque que se pretendeu estipular reflexões no estudo.
A brincadeira, entre ameríndios, emana da ecologia humana compartilhada etnicamente. E cabe entender ecologia humana como um conjunto amplo de envolvimentos de animais, matas, águas, peixes, céu, chuvas, ventos e sol (Albert e Kopenawa, 2003). É tudo aquilo que de maneira natural é dado pelo ambiente e possui uma classificação nativa, organizada pela relação entre imaginário e real.
A natividade repousa na caracterização 'terrana' das pessoas, para usar um conceito de Latour (2012), ou seja, naquilo que emana da comunidade cosmopolítica onde se vive, quando é evocada a existência de povos tradicionais que não possuem relação direta com o Estado tal e qual se concebe em sociedades urbanas, porque indígenas são intensamente propensos a não aceitar construções unilaterais de Estado similares a sociedades contemporâneas urbanas clássicas europeias, ungidas conforme aparatos geopolíticos e imperialismos concernentes.
A geopolítica possível, para os ameríndios, é a da vida e da morte, do espaço e do tempo, mediada por aspectos abstratos que engendram subjetividades ancestrais. E como ocorre na contingência do estar vivo e estar morto, do presenciar o aqui e o agora, crianças que brincam a partir de posições de poder classificadas por espiritualidades de gente e de bicho, de gente e de planta, de gente e de peixe, projetam-se para serem crianças inseridas em categoria sociocultural diferenciada, firmada por maquinarias primitivas incapturáveis por Estados nacionais (Wagner, 2010).
Ser criança e estar permeada por brincadeiras nativas significa, conceitualmente, participar de uma realidade semântica a partir da qual entes da natureza intermedeiam parâmetros cosmológicos. Aos Sateré-Mawé, imaginações essenciais próprias dessa inserção dos infantos no universo adulto solidificam o que eles realmente poderão ser no futuro, em termos de pessoas com crenças e atitudes não ficcionais, modeladas por uma brincadeira que, em si mesma, é totêmica.
Imaginar o passado e suscitar o futuro são atos xamânicos induzidos pelo consumo de alucinógenos em função de uma cênica ritualística. No caso da brincadeira de onça e de cutia, a cênica se funda em razão de movimentos corporais e psíquicos que remetem os brincantes a universos metafísicos.
Resultados e Discussão
Bicho fraco versus bicho forte
A brincadeira da onça e da cutia para crianças Sateré-Mawé, em princípio, envolve aprendizados sobre ascendências clânicas. Os Sateré-Mawé são heterogêneos, originados de tronco Tupi pertencente à base Tupi-Guarani (Yamã, 2007). Eles se organizam em clãs: Sateré (Lagarta), Waraná (Guaraná), Hwi (Gavião), Akuri (Cutia), Awkuy (Guariba), As’ho (Tatu), Ywaçai (Açaí), Iaguareté (Onça) e Ywania Moi (Cobra).
Clãs definem posições familiares de ocupação sob condições determinadas, das quais citam-se nascimento, casamento, relações de trabalho produtivo material e relações de trabalho produtivo imaterial. A ocupação de uma posição clânica é um estado que se mantém por princípio e em razão de tradição conceptiva da etnia. Por vezes, no entanto, em casos de realocação clânica, a condição furtiva é o emparentamento consanguíneo.
Duas ascendências clânicas que estão efetivamente inseridas na brincadeira têm, em realidade, mais importância relacional no âmbito da etnia ante outra que também está inserida no mesmo jogo. Os membros do clã Lagarta são bons tuxauas e os do clã Gavião são bons guerreiros, conforme entendimento da etnia que se traduz no ato de brincar. Clã manifesto por sua organização emblemática, o dos Ywania Moi (Cobra), integra a tríade de papeis sociais que infantos arregimentam na brincadeira – mas este é um tanto menos importante do que os dois anteriormente descritos. Demais ascendências clânicas tem papel coadjuvante.
Membros do clã Cobra, de modo latente, são 'painis', pajés de ventre, ou seja, de nascença, ordenados por consanguinidade ou a partir de iluminação divina, manifesta em choro dentro da barriga da mãe e sendo narrado o episódio para tuxauas da etnia (Alvarez, 2009). Todavia, não por isso os Cobra possuem algum depoimento claro a dar em que se interpretem como integrantes dos altos clãs Sateré-Mawé envolvidos na brincadeira: Lagarta e Gavião. Significa que por concepção podem ser compreendidos como inseridos no alto escalão Sateré-Mawé, mas não por obrigação estão inseridos e por isso mesmo não o afirmam.
Para a origem de cada clã, também na brincadeira, utilizam-se mitos contados por velhos e reproduzidos no jogo da onça e da cutia. Note-se exemplo do enfatizado.
Antigamente, a onça comia muitas pessoas. De tanto comer, já não havia quase ninguém. Quando chegava a hora dela aparecer, as pessoas se escondiam. Certo dia, quando ela chegou, só encontrou o papagaio da velha e perguntou:
– O está fazendo?
– Estou cantando.
– Onde está sua dona?
O papagaio respondeu:- Ela foi à roça buscar batata.
A onça pediu para o papagaio que lhe avisasse quando a velha voltasse. E assim foi embora. Quando a velha chegou, o papagaio contou-lhe que a onça tinha vindo. E que ela tinha recomendado que ele nada lhe contasse. Mas o papagaio contou que a onça disse que ia comer a velha.
Então, a velha preparou um tucupi mal cozido para oferecer para a onça quando voltasse. Nesse momento a onça chegou e a velha ofereceu o tucupi mal cozido. E a onça tomou o tucupi à vontade.
Em seguida, a onça ficou com muito sono e dormiu na casa da velha. Pediu que não mexesse com ela. Pediu também que catasse o piolho dela. E a velha ficou catando piolho, enquanto a onça roncava. Depois a velha saiu devagar, deixando a onça. Pegou um pau bem apontado e enfiou no ouvido da onça. A onça gritou e morreu.
Em seguida a velha chamou todos que estavam escondidos. E logo apareceram. A velha contou que tinha matado a onça.
E perguntou de cada uma das pessoas, onde estavam escondidos. Uma pessoa falou que estava escondido dentro do pau, conhecido como Sateré. Então ela deu o nome de geração Sateré. O outro na frente tinha se escondido debaixo do guaranazeiro. Então ela deu o nome de nação Guaraná. Outro tinha se escondido em cima do açaizeiro. Então passou a ser conhecido como nação Açaí. Por último veio outro e disse que tinha se escondido junto com os filhos da cutia. E recebeu o nome de nação Cutia. A partir daí, é que surgiram as nações (Souza, Marciana e Trindade, 1998, p. 10-11).
Mitos originais de surgimento de clãs Sateré-Mawé envolvem narrativas sobre hierarquias cosmológicas e alteridades sociofamiliares e de compadrio. Engendradas ao suposto, encontram-se interpretações sobre a composição não humana dos mitos e as caracterizações híbridas dentro de uma estrutura piramidal e patrilinear de poder própria à etnia, perpassando naturalmente pela arte das guerras e das memórias de defesa de território (Almeida e Suassuna, 2010; Silva, 2012; Lira e Rubio, 2014).
A brincadeira da onça e da cutia, considerando o suposto, é um jogo coletivo de roda, disputado em função de resoluções de conflito e orientado por cantos da etnia. Envolve crianças de todas as etapas da infância e de todos os clãs componentes, com mais ou menos participantes distribuídos segundo cada clã. É realizada da seguinte forma: crianças que desejam brincar de onça e de cutia se juntam em um ponto não central do aldeamento e escolhem duas representantes do grupo para encenarem os animais do jogo: uma para ser a onça e a outra para ser a cutia. Daí, o mecanismo lúdico do ato começa a se materializar.
Todos os demais infantos inseridos na brincadeira e não escolhidos para representar os bichos formam um círculo estreito, não exato, em volta da pessoa que irá encenar a cutia; a onça fica fora e apartada do grupo. Tanto onça quanto cutia constroem mentalidades próprias a essas representações e criam metáforas gestuais e cênicas referentes ao jogo. A meta é formar uma barreira humana de isolamento, similar a uma prisão acordada de defesa, para que o escolhido curumim ou a escolhida cunhantã não se aproxime da onça a ponto de servir de alimento a ela. O brincar, portanto, em si mesmo, envolve dinâmicas de predação e pertencimento.
Para se proteger, a cutia – encenada pela pessoa mantida em prisão acordada – serve-se do espaço do cordão humano infantil formado para levar a termo sua missão: escapar da onça. A segregação de contato com a onça, nesse instante, constrói um cenário de adversidade e inimizade entre esses dois mais importantes figurantes da brincadeira indígena. A onça é representada por uma criança forte e de maior estatura, tendo em vista a magnitude do animal; a cutia é representada por uma criança de porte mais frágil e menor.
O jogo se inicia quando começam os ensaios dos ataques do animal forte contra o animal fraco e os brincantes que compõem o cordão humano de defesa da cutia devem articular entre si estratégias e usar força e inteligência em níveis coletivos para defendê-la. A ideia é simples: proteger a cutia significa não permitir que a onça acesse o espaço dela, a capture e a devore. A salvação depende de escolhas, portanto.
O ato de cuidar, no jogo, materializa-se até o ponto em que se dá a formação e a manutenção do círculo de proteção pelo cordão humano. Essa 'toca de cutia', assim denominada e organizada para defender o animal, é mediada por relações de confiabilidade formadas ocasionalmente. É uma construção social cooperativa dos Sateré-Mawé, ao fim e ao cabo da análise, mas não livre de fragmentações de formação, a partir da qual membros da brincadeira se tornam parte de uma roda de parentes chegados ou não, afins potenciais (Viveiros de Castro, 1993, 2002, 2013).
O cordão humano comunica entre si artifícios para impedir que a cutia seja apreendida e comida pela onça. Ao mesmo tempo em que ocorrem ataques desferidos pelo animal maior, a cutia, acuada, tenta fugir de dentro do seu espaço, no cordão humano, em clara relação de oposição controversa ao seu defensor. São papeis sociais que se transpassam por sistemática da cosmologia Sateré-Mawé, devendo portanto serem respeitados pelas partes envolvidas em suas complexidades e posicionamentos morais.
Em dado instante, ocorre inversão territorial e simbólica de papeis – não de modo consensual e parcimonioso. A onça alcança lugar dentro da roda em um ataque violento e a cutia despista o predador escapando para o lado de fora do cordão humano. São forças oponentes que passam a coexistir na brincadeira como duplos transgressores e arquirrivais. Integrantes do cordão humano aprisionam o felino como prenda ao próprio sacrifício – que pode ocorrer a qualquer momento – tendo em vista a possível matança da cutia.
Porém, não se permitindo que a onça saia de dentro do cordão humano, haveria que se comemorar a fuga do animal menor e sua libertação por fim. Essa seria a pretensão mais comum dentro de uma conjuntura ocidentalista, urbana, branca e higienizada. Esse seria o objetivo ao se testar reconstituir a imaginação conceitual indígena nos termos da própria imaginação branca, que em muitos vieses é adornada por felicidades irracionais. Mas a motivação dessa parte do jogo da onça e da cutia é mitológico no sentido da fabricação de resultados e felicidades inerentes a esses resultados.
O brincar de onça e a cutia, por envolver número significativo de participantes, é atividade motriz de viés imaginativo, cooperativo e de posição simultânea, pautada dentro de um modelo socializador étnico, mediado por conexão coletiva boa parte das vezes angustiante para indivíduos não indígenas. Na brincadeira, a criança Sateré-Mawé interage com o meio social e os contextos vividos nesse meio, “obedecendo a marcas explícitas dos ritmos e ciclos sazonais” (Nunes, 2012, p. 86). E por ciclo sazonais entendem-se etapas cósmicas orientadas por desterros que têm como nascedouro a entropia.
A associação de significados no espaço privilegiado da aldeia implica em fomento à construção de conhecimentos dentro de um modelo de lazer que não possui regras propriamente ditas, mas sim normatizações cosmopolíticas. O que se estabelecem são acordos multilaterais feitos entre crianças que participam segundo sistemas de compadrio organizados em função de viver ou morrer em uma batalha pela existência, compartilhada não apenas por infantos, mas por velhos do lugar, que amenizam extremos os quais possam vir a acontecer na organização interna do jogo.
Quando as crianças se reúnem para brincar de onça e de cutia há trocas e combinações de elementos que compõem o lazer engendrando tensões, até mesmo porque a escolha de quem vai ser a onça ou a cutia é feita por idade ou entre os maiores ou menores brincantes, e todas as escolhas possuem exceções. No ato, além dos acordos, a estrutura do corpo, a projeção mental das ações no desenvolvimento das atividades e a articulação grupal pró ou contra a cutia compõem universos que envolvem fundamentos de integração coletiva.
Território e elementos simbólicos estão presentes na brincadeira da onça e cutia na seguinte medida:
i) crianças que formam a roda criam a toca da cutia e usam qualquer espaço para servir como guarita, seja amplo ou exíguo, devido não haver número determinante e consensual para constituir a roda. Pode ser em chão batido ou campo limpo o terreno da guarida da cutia, a exigência é que o bicho esteja livre para possibilitar o desenvolvimento da brincadeira, ou seja, a cutia deve ter espaço para se deslocar enquanto o cordão humano gira no sentido horário ou anti-horário – para guardá-la e ao mesmo tempo confundi-la ante a posição da onça. A roda se desloca conforme a necessidade de proteger a criança-cutia e a criança-onça usa de estratégia para capturar a presa. Existe a possibilidade da cutia fugir da toca e a brincadeira ser encerrada. O jogo depende da esperteza da onça em relação à rapidez do animal menor.
ii) A criança-cutia, representada pelo infanto mais novo do grupo, fica dentro do cordão humano para se sentir protegida territorialmente e simbolicamente da criança-onça. Ser devorada significa não só servir de alimento e regozijo, mas estar em posição de sacrifício ante outro ser, de maior hierarquia dentro do arranjo presa-versus-predador. O espaço do qual a cutia se apropria é limitado – no momento em que a mesma precisa de proteção –, ou amplo – quando ela sai da roda e necessita fugir para que a onça não a alcance e a mate. A deliberação desse espaço é funcional e não parametrizada por características morais.
iii) a criança-onça, mais velha ou mais alta e forte do grupo, articula-se entre diversos locais para poder entrar no cordão humano e capturar a cutia. Ela ocupa e procura espaços vazios e frágeis para pleitear o objetivo da brincadeira, em um pleno ritual de preparação para sacrificar, caso consiga, o animal menor. A onça pode ocupar espaços limitados, trocando de lugar com a cutia, mas a situação só ocorre quando a cutia sai da roda, o que sugere inversão de papeis, atingindo o nível clânico substancial do jogo.
Tomando essa conjuntura territorial e simbólica, não é possível determinar limites de tempo para encerrar a brincadeira e não se definem vencedores ou perdedores em razão de força e juízo anímico representado. No caso, o ato primordial que essencializa vencedores e vencidos é a força implementada por ataques e defesas. O mais teso consegue subjugar o rival e sai vitorioso. Tende-se a repetir a brincadeira enquanto houver jogares aptos a representar a não humanidade imbuída no jogo, sendo que cada representante cênico, ao incorporar o papel de onça ou cutia, incorpora valores cosmológicos e movimenta desejos de se expandir corporal e mentalmente.
O movimento do cordão humano, a corrida de ataque da onça e a disparada em fuga da cutia são variáveis valorativas ou ao menos projetam-se enquanto tal. E há basicamente duas relações a respeito do espaço e do tempo. A primeira mediada pelo sistema o qual o cordão humano adota para funcionar dentro de modelos esquemáticos da brincadeira, se em sentido horário ou anti-horário. A segunda orientada a partir do espaço que a cutia ocupa dentro de sua roda de refúgio, que conforme menor ou maior amplitude mostra planos específicos de domínio.
São espaços e temporalidades fundamentais para o desenvolvimento da brincadeira. Quão mais amplo o lugar e mais tempo o rodízio de personagens dura, mais cognitiva, afetiva e amadurecida a convenção para esse lazer se mostra (Sarmento, 2005). E uma vez que haja acordos e articulações realizados pelo grupo para a onça não alcançar a presa, as crianças se servem da força para ajudar a cutia, possibilitando uma única troca de lugares entre os dois elementos do jogo lúdico.
Concepções e continuidades
Brincadeiras são dinâmicas de significado simbólico, agregadoras ou dispersoras de saberes em universos coletivos. Entre os Sateré-Mawé, são simulações bem avaliadas, referentes a bens de natureza imaterial, que expressam percepções de base comum e impulsionam construções da pessoa indígena em nível de crenças e atitudes. Para a criança da etnia, o brincar engendra corpos e fundamenta psiquês em função de relações preconcebidas (Silva, 2012).
Ao participar do jogo, infantos moldam identificações enquanto membros clânicos e passam a projetar concepções e continuidades sobre vivências comuns, parentelas e partilhas de saberes e fazeres (Almeida e Suassuna, 2010). Essas concepções e continuidades são elementos que fazem com que a oposição entre consanguinidade e afinidade seja naturalmente nula no âmbito do jogo.
Consanguinidade e afinidade passam a ter igual valor na brincadeira por estarem implicadas mutuamente. A implicação se dá no nível local de ordenação em função do que fazem e do que planejam fazer em razão dos três etapas de amplitude próprios a ela, representados por cutia, cordão humano e onça. Trata-se de um amplo dialogismo, orientado pela comunalidade étnica e pela mais forte escritura mítica dos Sateré-Mawé: o remo sagrado Porantim.
No que se refere ao aspecto mítico, os Sateré-Mawé possuem marcadores étnicos fundamentais de identidade. O Porantim é um deles. Trata-se de um bastão sagrado em forma de remo, de madeira escura e lisa, com incisões de cor branca. Enquanto símbolo icônico material, que insinua tradições orais ancestrais, é objeto consultivo do legislador social e os índios se referem a ele como arcabouço filosofal.
O remo reúne consigo conhecimentos oriundos da mística de demiurgos universais, funcionando como escritura epistemológica para os Sateré-Mawé. A materialidade da peça indica caminhos para apartar desavenças e conflitos. O ícone é suporte onde estão gravados, de um lado, o mito da origem e a história do guaraná; e de outro histórias de guerras. “Posiciona-se para a sociedade que o talhou como instituição máxima, aglutinando esferas política, jurídica, mágico-religiosa e mítica” (Lorenz, 1992, p. 15).
A força totêmica e de veneração relacionada ao Porantim advém da injunção pictórica do remo junto à etnia. A peça indica a autenticidade cosmogônica dos indígenas segundo a narrativa de velhos. Cardoso de Oliveira (1964), Esteva Fabregat (1984) e Eriksen (1991) apontam suposição similar de entendimento, ressaltando que o discurso mítico veiculado pelo Porantim tem impacto para os indígenas a partir da constituição mítica daquele bastão de madeira dentro de uma dinâmica racional.
Em inúmeras sociedades da Amazônia, a comunalidade étnica alimenta dinâmicas racionais de institucionalização de políticas e amparos afetivos (Gonçalves, 1997). Essas dinâmicas não tendem a se dar apenas em nível de decisões comunitárias tradicionais ou no trato com sociedades urbanas, mas também em função da inscrita canônica que consta no Porantim, com seus valores normativos e reguladores. Para os Sateré-Mawé, no próprio remo sagrado existem engendramentos constituintes para a formação da pessoa étnica.
São essas conformações que abarcam diversidades e principiam vínculos emocionais mantidos com territórios e símbolos específicos por meio de i) domínios sobre a terra, ii) memórias coletivas, iii) modos de vida e iv) sociabilidade do cotidiano (Lima, 1986, 1995). A brincadeira da onça e da cutia, portanto, configura-se em moldes de aliança – não matrimonial, não imperativa, não totalizante –, mas uma aliança moral, totêmica e estruturadora, que personifica humanos e não humanos em dado perspectivismo, arrumando-os para uma disputa disciplinada em subjetividades (Viveiros de Castro, 2013).
O brincar constitui-se, então, de um lado, como arena para a apresentação da personalidade coletiva do cordão humano, instituído enquanto guardiões afeitos àquele microcosmo de guerra; e de outro, dentro de uma razoabilidade, como referência direta à onça e à cutia, que comumente são animais imbricados em extensões perspectivistas, concretizando-se conforme seus estatutos relativos e relacionais de predador e presa.
Esses estatutos estipulados no contexto do jogo desvelam papeis sociais conjuminados a memórias de guerras, em um tempo onde existiam cotidianamente figuras sacrificiais para os Sateré-Mawé, a partir das quais matador e vítima caminhavam segundo definição dual, mas inseparável. Funcionava a partir de uma correlação de complementaridade. Um mesmo dependia de um outro e se fixava enquanto figura étnica, esse mesmo, apenas mediante o outro, numa agressividade interdependente.
A representação dessa dependência, sugere-se, dá-se na brincadeira (Harrison, 1993). Onça e cutia só existem porque se fundem um no outro e se complementam na formação daquele microcosmo de guerra, onde, como já foi sublinhado, o cordão humano representa uma personalidade coletiva a arbitrar como juiz. Hoje é mantido no conjunto urbano de índios do município de Parintins algo aproximado ao que foi denominado de par matador-vítima (Lévi-Strauss, 1955, 1956), que se digladia na brincadeira como se fosse uma briga por mentalidades.
Na contenda, um deseja estar inserido no subjetivo do outro, possuí-lo, dominá-lo a partir de intencionalidades e a morte da cutia ou da onça significa justamente a dominação equivalente, ritmada pela dança da agressividade e pelas arbitragens significativas do cordão humano. A função dos brincantes principais, onça e cutia, define-se pela vontade de cada um deles em ocupar o ponto de vista do inimigo (IB., op. cit.); e a função do cordão humano é conseguir ser o referee dos pontos de vista.
A vontade de dominação, por parte da onça, perpassa mais pela identidade subjetiva da presa do que pela funcionalidade ideológica que se possa adquirir a partir do ato de devorar o bicho apequenado. Não se trata de um domínio estritamente físico, mas sobretudo simbólico, operado pelo ponto de vista que advém da predação, da submissão do outro pela força corporal e mental.
A cutia, ao conseguir escapar da onça, festeja às divindades sua fuga e cresce espiritualmente com a anunciação aos deuses de sua vitória. E sua vitória, intrinsecamente, é, em verdade, uma não-derrota. Implica que no jogo ser predador ou presa não é estatuto social, é condição construída a partir de uma natureza revelada pela contingência da historicidade da etnia.
Na brincadeira, a existência de uma posição circunstancial em razão de composições corporais e mentais, bem como a estruturação dos papeis dos brincantes, permite que haja trocas furtivas de posições. A cutia pode vir a ser onça e a onça pode vir a ser cutia por determinado momento durante o jogo e segundo determinada proposição contextual da brincadeira. A inversão dos polos faz parte da dança semiológica e dialética com a qual os animais tendem a exercer poder um sobre o outro.
Pensar sobre a inversão é instigar intuições acerca da condição relacional e mutável de inimizade para os Sateré-Mawé. Por exemplo, inexiste, na brincadeira nativa de onça e de cutia, um inimigo por excelência, um espectro canibal por definição. O que há são representatividades condicionadas a planejamentos de ataque e defesa entre adversários mutantes, dentro de um contexto também mutante, arrumado por caricaturas gestuais, faciais e cênicas, forjadas sob papeis étnicos.
É o estatuto ontológico que muda, seja da onça ou da cutia, e tão somente porque o protótipo da guerra está desenhado na brincadeira. O que há de bárbaro no ato da onça em devorar a cutia e de exótico na sagacidade da cutia em escapar da onça com a ajuda do cordão humano? Em suma, não há nada nesse sentido. O que existe é uma estruturação psicofísica da criança para a guerra, a construção do infanto para possíveis batalhas no porvir.
O cordão humano, ao agir como mediador dessa intersecção consensual de pontos de vista, quiçá ambivalentes e construídos para abrigar a um só tempo a cutia e a onça dentro de um mesmo espaço psicofísico (Lévi-Strauss, 1975), é a figura diplomática do jogo. O cordão possui conectividade estratégica com predador e presa e por isso define condições metodológicas e pragmáticas da brincadeira.
Se a meta da brincadeira é propor que a cutia olhe com olhos de onça e a onça olhe com olhos de cutia, dentro de um cenário de interação simbólica e adversativa, o qual caracteriza a disputa predador-presa, celebram-se a vida e a morte de adversários mediante cânticos e encenações Sateré-Mawé para que a vitória ou a derrota, ao que se insinua mediante sanhas interpessoais, seja decidida na brincadeira, que é um marcador de identidade da etnia.
Dentro desse teatro de guerra, a brincadeira se apresenta como episódio geopolítico e militar, forjando vicissitudes do próprio processo civilizador ameríndio em meio à colonização europeia. As cênicas da onça e da cutia marcam a passagem de um padrão, sugere-se, civilizado, em que operações bélicas são formações de combate interétnicas, para uma realidade em que se dá a perspectiva do aniquilamento, da sujeição e da destruição do oponente em face à rudeza armamentista branca.
A distinção entre combatentes e não combatentes ocorre na subdivisão de papeis para o ato de brincar, sob avaliação prescrutadora do cordão humano e de índios adultos, que analisam a ética militar inserida na atividade e tentam cotejar adversidades engendradas. A histórica oposição de exércitos coloniais ante populações nativas já mostrou boa parte do espírito dizimador de guerras inter-relacionais globais e agora se anima a memória desse passado por meio do jogo infantil.
Na brincadeira, a tensão entre a vida instintiva e a vida imposta por marcações culturais se condensa, formando volumosa carga de ambiguidade a ser impulsionada por desejos. Representar a onça ou representar a cutia, partindo-se de completudes cênicas, é um desejo marcador de etnia. E como desejo marcador da etnia, ele tende a se constituir aos poucos, desde a infância, à força de fantasias, imaginações, frustrações, perdas e ganhos.
Os Sateré-Mawé possuem quatro marcadores fundamentais da étnica: i) consumo ritual e cotidiano de guaraná, ii) funções do tuxaua e do xamã, iii) funções de materialidade de objetos artesanais e iv) ritos de iniciação masculina e feminina (Alvarez, 2009). A brincadeira de onça e de cutia, no sentido em que aqui se projeta, é um rito de iniciação organizado a partir do princípio de conflitos territoriais e simbólicos. Rito que, de igual maneira ao relatado em sociedades urbanas (Konraht et al., 2011), principia um tipo de interação com enfoque a partir do tradicionalismo e que fortalece a promoção de fatores associados à cooperação, relações pró-sociais e satisfação de si e dos outros.
São fatores interligados à função da empatia, os quais possibilitam que as crianças se relacionem e promovam cooperação e unidade, em vez de conflito e isolamento. O ato de brincar, assim, parece persuadi-las a seguirem tendências interpessoais originárias da história ancestral dos Sateré-Mawé. Sem essa persuasão, doutro modo, a vida comunitária arrefece e pequenas diferenças passam a inspirar reações violentas e o próximo mais parecido etnicamente é aquele que se passa a odiar com maior intensidade, negando a integração à coletividade.
Uma negação decorrente do medo de se perder no coletivo, dado que se trata de uma perda relacionada à invenção de pensamentos e critérios próprios. Na coletividade, infantos indígenas podem se furtar à tarefa de criarem-se a si mesmos, com menos incertezas quanto a suas escolhas em princípio porque consideram estar acompanhando uma identidade grupal baseada em espiritualidades cosmológicas. Dessa forma, a brincadeira, enquanto ato coletivo, apresenta mais certezas que os atos individuais, porque já está posta, já é uma realidade de todos.
Para as crianças Sateré-Mawé, ser onça, cutia ou integrar o cordão humano é um ação de busca por sentidos míticos para acontecimentos da vida e sobre lugares no mundo. Acontecimentos e sentidos, nesse contexto, integram o conjunto de formação anímica dos indígenas e estão relacionados, por exemplo, a culpas, rebeldias, afetos, felicidades, incertezas, aprovações, negações e contravenções – todos estados componentes de comportamentos sociais assumidos.
Sobre esses comportamentos, desde fins do século XVIII, portanto há pouco mais de 200 anos, que a cultura pós-moderna instituída idealiza a infância como uma época feliz em totalidade e repercussão. Para os ameríndios, no entanto, essa construção comportamental parece carecer de sentido porque, como se nota nas dinâmicas da onça, da cutia e do cordão humano, a atenção dos indígenas adultos a essa etapa da vida é projetada justamente para não fazer declinar a autonomia e não infantilizar os pequenos. Sobretudo porque a cênica da brincadeira é mais que uma obrigação pró-forma, irresistível e normalista de repetir ad infinitum experiências afetivas ancestrais. Ela é uma das bases de construção da pessoa Sateré-Mawé, que envolve totalidades do corpo e da mente.
Conclusão
A discussão se propôs a sublinhar o fato de que a brincadeira de onça e de cutia envolve dinâmicas de predação e pertencimento relacionadas a territorialidades e simbolismos e, partindo desse indicativo, concluiu-se que i) domínios sobre a terra, ii) memórias coletivas, iii) modos de vida e iv) sociabilidades do cotidiano estão implicadas no jogo infantil.
Cunhantãs e curumins Sateré-Mawé que participam da brincadeira da onça e da cutia estão a anunciar, mesmo que inconscientemente, um possível futuro de confrontos exógenos. Os infantos se preparam para o porvir, pois estão a encenar problemas e sismas contingenciais. Tanto onça quanto cutia acenam positivamente para o brincar por planos legais e ilegais, com referência no incerto, mas apostam nisso verdadeiramente.
A hipótese apresentada na introdução do artigo – de que noções perspectivistas entre crianças étnicas incidiam sobre concepções da sociedade e da cultura enquanto instâncias essenciais do pensamento – foi verificada em concomitância a posturas, gestos, encenações e maneirismos instituídos na brincadeira. Partindo-se dessa interpretação, não somente as instâncias de pensamento, mas as atividades e posturas corporais, também pareceram constar como modelos de compreensão para universos que dizem respeito a imaginários étnicos dos Sateré-Mawé.
O jogo da onça e da cutia instaura-se sob uma cristalizada e imperiosa óptica, que exige sacrifício e risco estimados. É um cenário montado para a encenação da brincadeira que não se resume a uma procura por prazeres lúdicos, até mesmo porque se assim o fosse ela não seria relevante enquanto tradição cultural. Existe uma dimensão trágica constante a curumins e cunhantãs Sateré-Mawé.
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*Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas
(Ufam). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia na Ufam (PPGSCA/Ufam)
**
Professora Emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professora Permanente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP
***
Graduada em Pedagogia, com ênfase em Pedagogia Intercultural, pela Universidade
Federal do Amazonas (Ufam). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade
e Cultura na Amazônia da Ufam
****
Doutorando em Ambiente e Sociedade na Universidade Estadual de Campinas/SP.
Professor da Ufam – Campus Parintins
Recibido: 17/11/2017
Aceptado: 16/01/2018
Publicado: Enero de 2018