Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


TRANSEXUALIDADE E PRECONCEITO: CONFLITOS PRESENTES NA OBRA SERGIO Y. VAI À AMÉRICA, DE ALEXANDRE VIDAL PORTO

Autores e infomación del artículo

Elisena Bertotti Pereira *

Jefferson Jonathan dos Santos **

Melissa Salinas Ruiz ***

UNIOESTE, Brasil

lisabertotti@hotmail.com

Resumo: A literatura permite uma interlocução com a sociedade e seus conflitos. Desta forma, analisaremos a temática da transexualidade na obra Sergio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto. Temos como objetivo entender a própria composição do texto literário e os conflitos por ela suscitados, sejam eles individuais ou coletivos na busca pelo pertencimento e conquista da felicidade. Primeiramente, identificaremos o autor e o enredo de sua obra. Em seguida, caracterizaremos brevemente os personagens social e psicologicamente, e consequentemente a temática apresentada por eles. Concluímos que a obra literária estudada cumpre o seu papel de instigar o leitor a refletir sobre seus desafios pessoais e sociais na construção de sua identidade e história.
Palavras-Chave: Literatura, Transexualidade, Sociedade, Sergio Y. vai à América, Alexandre Vidal Porto.

 

TRANSSEXUALITY AND PREJUDICE: CONFLICTS PRESENT IN THE NOVEL SERGIO Y., BY ALEXANDRE VIDAL PORTO

 

Abstract: The literature allows an interlocution with the society and its conflicts. This way, we will analyze the theme of transsexuality in the novel Sergio Y., by Alexandre Vidal Porto. We aim to understand the composition of the literary text itself and the conflicts it arouses, be them individual or collective in the pursuit for the belonging and conquest of happiness. Firstly, we will identify the author and the plot of his work. Next, we will characterize briefly the characters socially and psychologically, and consequently the theme presented by them. We conclude that the literary work studied fulfills its role of instigating the reader to reflect on his personal and social challenges in the construction of his identity and history.
Keywords: Literature, Transsexuality, Society, Sergio Y., Alexandre Vidal Porto.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Elisena Bertotti Pereira, Jefferson Jonathan dos Santos y Melissa Salinas Ruiz (2017): “Transexualidade e preconceito: conflitos presentes na obra Sergio Y. Vai à América, de Alexandre Vidal Porto”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/transexualidade-preconceito.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704transexualidade-preconceito


INTRODUÇÃO

A transexualidade é um assunto que ainda gera conflitos e discussões em nossa sociedade, seu preconceito ainda permeia as relações e dificulta a aceitação da identidade e o reconhecimento de seus direitos. A literatura, como um reflexo da sociedade, permite tais questioidntos através da criação fictícia, tentando suprir a falta observada no mundo. Por exemplo, a ausência tanto do debate da transexualidade no mundo real quanto no âmbito literário, visto que ainda é um tema com pouca exploração na ficção, torna a obra de Alexandre Vidal Porto, Sergio Y. vai à América, inovadora e um material digno de estudos. Também, a criação de uma metaliteratura embasa sua discussão e traz aprofundamento da temática proposta – diversificando-se do estereótipo do transexual ao apresentá-lo em diferentes classes sociais e ambos os sexos/gêneros.
Desse modo, objetivamos entender como o autor compõe sua obra como texto literário e busca desvelar a transexualidade e seus conflitos, tanto individuais quanto coletivos. Para isso, primeiramente faremos a reconstrução do percurso realizado pelos personagens Armando e Sergio/Sandra na obra Sergio Y. vai à América. Em seguida, concretizaremos o enredo pela caracterização dos personagens, permitindo, assim, discussões a respeito da família e sociedade, trazendo a verossimilhança da obra, em um momento seguinte. Na sequência, faremos um breve estudo sobre o conceito de transexualidade historicamente construído. Por fim, apresentaremos as considerações finais.

1. A OBRA SERGIO Y. VAI À AMÉRICA

Alexandre Vidal Porto é um escritor contemporâneo, diplomata, com mestrado em Direito pela Universidade de Harvard, e ativista em movimentos sociais. O autor publicou duas obras, Matias na Cidade (2005) e Sergio Y. vai à América (2014)


1, sendo que a última lhe concedeu o Prêmio de Literatura Paranaense em 2012, por ser um romance riquíssimo, seja por seu enredo envolvente, sua temática ou pela sua titulação de obra literária, que ultrapassa a própria obra, e que fascina com sua linguagem, que com suas personagens provoca sensibilidade, angústia, dor, repúdio, felicidade, alívio, revolta, tristeza e um desejo de transformação, seja pela não aceitação do desfecho da obra, seja pela verossimilhança com os conflitos sociais que tanto nos perturbam. Como menciona Compagnon (2009, p. 51) “a literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não tem limites, ela jamais conclui, mas fica aberta”.
Todos os sentimentos, contraditórios, acima mencionados são os sentimentos que nos humanizam, que nos colocam na mesma situação de aprendizes e em constante processo de construção e desconstrução. É nesse processo dialético, concretizado nas personagens, que a obra foi estruturada, que o enredo passa a criar forma e vida, pois como Candido (2002, p. 53) ressalta, “o enredo existe através das personagens”. O autor, por meio do narrador-personagem, constrói duas narrativas paralelas, a do Armando, narrador, contando sua própria história, e a que é narrada por ele, a história de Sergio Y. Importante destacar, que ambas dialogam gerações, ambientes, a busca pela felicidade e paz interior, seja pelo viés profissional ou pessoal.
Armando, um psiquiatra renomado e confiante, que após receber como paciente Sergio Y, um garoto de 17 anos, inteligente e articulado, se vê como um profissional falho, pois mesmo sem entender, teve seus serviços dispensados após determinado tempo de terapia, com a argumentação de que o maior problema do paciente, a infelicidade, havia sido compreendida e por consequência, seria solucionada. Para um profissional de seu garbo, que como o mesmo relatou sempre era quem decidia quando a terapia deveria ser interrompida – passada a outro profissional ou solucionada –, ser alvo de sua própria soberba gerou um conflito pessoal.
No entanto, isso não o impediu de continuar desenvolvendo seu trabalho, apesar do desconforto. Certo dia, porém, encontrou a mãe de Sergio Y e ela o agradeceu por ter contribuído para que seu filho encontrasse a felicidade que tanta almejava. A mãe enalteceu o psiquiatra e declarou que Sergio estava morando em Nova York, cursando gastronomia e que abriria seu próprio restaurante. Essas palavras foram suficientes para que o médico recuperasse sua autoestima e se sentisse merecedor de um presente, como mérito por sua competência. Devido à sua arrogância ele mesmo o fez.
Após esse acontecimento, mesmo não compreendendo como havia ajudado seu paciente, o encontro com a mãe havia lhe dado a tranquilidade que necessitava. No entanto, após alguns meses, Armando lê em um jornal uma nota de falecimento de Sergio Y, em Nova York. Como seu antigo paciente era de uma família de posses, era comum o comunicado em jornais. Esse fato trouxe à tona toda a fragilidade do médico e o sentimento de culpa, visto que, se o trabalho que desenvolveu com ele foi capaz de levá-lo a Nova York e lá ele encontrou a morte, Armando sentia-se culpado e responsável por tal fatalidade. A culpa o deixou obcecado pela descoberta da causa da morte. Podemos dizer que até este momento, Armando estava doente simbolicamente e que ao descobrir a morte de seu paciente, simbolicamente também morreu. A morte é do profissional imbatível, renomado, dono de seus sentimentos e vida.
Na tentativa de descobrir a causa da morte de Sergio, Armando entra em contato com um primo, que sugere um advogado e este realiza pesquisas referentes ao nome, data, local e motivos da morte, pois nos Estados Unidos é possível ter acesso a essas informações, pois são de domínio público. Desta forma, o psiquiatra descobre que não havia nenhum registro em nome de Sergio Y e sim de Sandra Yacoubian. Referente a este momento, faz-se necessário chamar a atenção para o fato de que até então, na obra, o narrador identifica o protagonista como Sergio Y – indicando incompletude, consolidando a infelicidade do mesmo e, biologicamente, o Y faz referência ao cromossomo masculino, que não o representa. Assim, o nascimento de Sandra Yacoubian representa a completude da personagem, o surgimento de uma identidade e o encontro da felicidade, ou seja, a ida a Nova York foi o preço pago para encontrar o que tanto procurava.
Na obra, é possível identificar várias personagens que também realizaram travessias geográficas para encontrar a felicidade, entre elas, o bisavô de Sergio Y, Areg Yacoubian, que serve de inspiração a ele. Afinal de contas, como o avô dizia, “‘Se a felicidade não está onde estamos, temos de ir atrás dela. Ela às vezes mora longe. Tem de ter a coragem para ser feliz’” (PORTO, 2014, p. 36).
Ao descobrir a presença de Sandra entre Armando e Sergio, o psiquiatra fica ainda mais obcecado. A partir de então, a tentativa de descobrir e reconstruir os passos de Sergio Y passa a ser o processo de reconstrução de Armando, é a possiblidade da aceitação das falhas, da imperfeição e do perdão por ter sido omisso quando teve a oportunidade de admitir sua humanidade.
Na sucessão da obra, Armando vai relatando suas fraquezas, inseguranças, atitudes que, como ele mesmo admitiu, não demostrou nem quando sua esposa faleceu, sempre teve uma postura de frieza diante das situações e os fatos como decorrentes da vida. No entanto, o caso de Sergio é diferente, e a morte não ocorre de uma maneira natural, nem independente de Armando, por isso ele sente e demonstra tais sentimentos:

Em geral, saber da morte de uma pessoa idosa não me comove. Como médico, concebo bem a noção de que a idade degenera e mata o corpo. […] Não é que não lamente a perda da pessoa, mas a morte de um idoso não me emociona tanto assim. […] Em contrapartida, tenho muita dificuldade para assimilar a morte de um jovem. Fico comovido ao saber de vidas que acabaram incompletas. As mortes dos jovens vêm por doenças incuráveis, acidentes de trânsito dispensáveis, em geral cercadas de revolta. Ainda que se deem placidamente, são sempre violentas. (PORTO, 2014, p. 59-60)

Agora, portanto, Armando sentia ansiedade, queria entender como ajudou Sergio e se era responsável pela sua morte. Tentou contato com os pais, mas devido à dor do falecimento só conseguiu contato após determinado tempo, e quando a mãe retornou seu contato, em resposta aos questioidntos, sugeriu que entrasse em contato com a psiquiatra de Sergio Y em Nova York. A perturbação tomava conta de Armando e ele resolveu que quando fosse à formatura de sua filha na cidade também iria encontrar a psiquiatra, Cecília Coutts. Na verdade, seu pensamento estava dominado por Sergio Y. Armando refez percursos feitos por ele, foi à escola que estudou, foi ao bairro que morava, sentia a necessidade de reencontrá-lo, mesmo que em tempos diferentes, pois sentia Sergio Y em suas andanças, tentava sentir e ouvir o que ele dizia.
Mas o momento mais angustiante ainda estava por vir, o encontro com a psiquiatra Cecília Coutts. Quando Armando chega ao consultório, consegue sentir a presença de Sergio Y – “Estávamos juntos no lugar, mas separados no tempo” (PORTO, 2014, p. 100) – e percebe que é o momento de descobrir o que tanto temia, qual era a sua responsabilidade na morte de Sergio Y.
Contudo, ao conhecer a psiquiatra e receber os elogios quanto ao seu trabalho e ajuda, Armando sente-se envaidecido e não consegue, num primeiro momento, admitir sua fragilidade e desconhecimento tanto da transexualidade quanto ao que teria feito de tão grandioso. Durante a conversa, a doutora relata o quanto Sandra Yacoubian valorizava o trabalho de Armando e o quanto esse acompanhamento foi importante psicologicamente para que começasse o tratamento hormonal e em seguida, de mudança de sexo. Enfatizou também que o restaurante que Sandra abriria receberia o nome de Angelus e que de certa forma também era uma homenagem à sua contribuição para a felicidade que encontrou. Durante o diálogo entre os psiquiatras, é possível identificar que Armando refere-se sempre a Sergio Y e a Cecília Coutts a Sandra Yacoubian, cada um fazendo menção a quem conheceu e atendeu durante as terapias.
Ao falar sobre o restaurante, o doutor percebe que a psiquiatra faz uma indicação para a biblioteca e refere-se a um livro, que ainda não faz sentido algum a ele. O encontro dos dois precisou ser interrompido, pois a doutora precisava atender seus pacientes. O doutor Armando sai do consultório incomodado com sua própria covardia e passa o resto do dia tentando entender o que aconteceu. Como no dia seguinte Armando voltaria a São Paulo, marcou um novo encontro para esclarecer tudo que o incomodava. Conforme combinado, chegou ao consultório e disse tudo que o afligia, seu medo, insegurança e culpa. A doutora, no entanto, não o julgou, e reforçou que mesmo sem que ele tivesse consciência, contribuiu para que Sandra conseguisse passar por todo o tratamento e com bastante clareza de suas necessidades.
A doutora esclareceu, também, qual tinha sido a contribuição de Armando para que Sandra nascesse: o livro Angelus que Sergio tomou conhecimento ao ir a um museu indicado pelo doutor em uma de suas viagens de férias a Nova York, e ela explica a Armando que “O exemplo de Angelus deu a Sandra um sentido de possibilidade existencial que a vida de Sergio nunca havia tido. Esse sentido de possibilidade só chegou a ela graças ao senhor” (PORTO, 2014, p. 105). O livro Angelus, conta a história de um transexual que também faz uma viagem geográfica, que se vê infeliz e encontra sua felicidade vestindo roupas masculinas, assumindo sua identidade. Adriana encontra a felicidade como Angelus, assim como Sergio Y. encontrou em Sandra Yacoubian.
Quando o narrador-personagem declara seu desconhecimento a respeito da transexualidade de Sergio e encontra as respostas que buscava, ele renasce mais humano e compreende com mais profundidade seu papel como psiquiatra. Mesmo após compreender de que maneira Sandra Yacoubian foi morta, o doutor Armando vai ao presídio para conversar com a vizinha, colega e assassina de Sandra. Importante destacar que, mesmo havendo indícios de que ambas haviam consumido drogas, a justificativa de Laurie Clay para o crime é o fanatismo religioso, pois relata que ouvia uma voz que lhe dizia para empurrá-la, mesmo achando que ter uma colega transexual era legal, que chamava a atenção, a considerava uma anormalidade. Assim, identificamos a verossimilhança, a transexualidade na sociedade ainda é vista como uma doença.
Desse modo, o doutor Armando encerra sua investigação e resolve relatar sua história dialogando com a do Sergio, quebrando a ética profissional ao relatar fatos de um paciente, mas com a justificativa de aprimoramento pessoal e profissional. Para a conclusão da obra, o doutor Armando realizou entrevistas com os pais de Sandra e nas palavras de ambos é possível identificar o peso da sociedade nos ombros da família que sente a culpa pela disforia do filho, o que analisaremos mais tarde.

2. OS PERSONAGENS DE SERGIO Y. VAI À AMÉRICA

Podemos afirmar que, em certa medida, é o personagem quem guia toda a obra literária e quem dita seu tom, suas intenções e, consequentemente, sua trama. Não existe história sem personagens. E é justamente o surgimento de tal personagem que “[…] declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto” (ROSENFELD, 2002, p. 23). Desse modo, percebemos como é impossível dissociar o enredo dos personagens que o compõem afinal, “[o] enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo” (CANDIDO, 2002, p. 53) e são elas quem permitem a adesão intelectual e afetiva do leitor, porque, como leitores, podemos nos projetar nos personagens, em suas situações, angústias e incertezas, e identificarmo-nos com eles. Eis então quando a literatura passa a fazer mais sentido.
Afinal,

“[…] a grande obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo)” (ROSENFELD, 2002, p. 45)

O romance moderno, segundo Candido (2002), no entanto, preocupou-se com a complicação da psicologia dos personagens, e o Dr. Armando se encaixa em uma definição dada pelo autor: “[…] seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério” (CANDIDO, 2002, p. 60), e se caracteriza por preencher três dimensões, ao invés das duas convencionais, com suas características repletas de maior complexidade que, portanto, confere aos personagens a capacidade de surpreender o leitor.

2.1 O narrador-personagem: Armando

Armando é o narrador da obra Sergio Y. vai à América, mas é igualmente um dos protagonistas. Comumente, a narração em primeira pessoa é tida como não confiável, o que está sendo discutido e desmentido recentemente: “[…] a narração em primeira pessoa costuma ser mais confiável que não confiável, e a narração ‘onisciente’ na terceira pessoa costuma ser mais parcial que onisciente” (WOOD, 2011, p. 20). Isso quer dizer que o narrador é, de todo modo, falho, e não sabe de tudo, mas tem propriedade do que diz e entende o que passou ao narrar em primeira pessoa, deixando de lado a “trapaça” da onisciência em terceira pessoa, que não é verdadeira pela impossibilidade de se conhecer as pessoas totalmente. Desse modo, Armando narra em primeira pessoa, revelando suas angústias e incertezas, mas depois de ter passado por tudo, e podendo lançar um olhar reflexivo sobre toda a situação. Consequentemente, podemos confiar nele, apesar de suas falhas, dignas de qualquer ser humano.
O psiquiatra Armando, que tratou Sergio Y. por um período de tempo antes que ele dispensasse as consultas porque “tinha encontrado as respostas”, é marcado por fortes características. Há um quê de fanatismo médico em sua narração, e um ego que é o que guia sua elevada estima de si mesmo, desconstruída quando ele não sabe o que fez para ajudar Sergio e, principalmente, quando ele percebe como falhou profissionalmente com ele. O excesso de autoconfiança se desmanchando o torna obsessivo ao extremo, guiado pelo seu angustiante sentimento de falha, ao qual ele não quer se permitir, não quer assumir.
Percebemos, desde o início da narrativa, o que é que Armando pensa de si mesmo:

Sou um dos melhores médicos desta cidade. Sei que soa imodesto apresentar-me nesses termos, mas é como se referem a mim quando comentam o meu trabalho. Orgulho-me do reconhecimento que me concedem. Sou vaidoso, mas isso não me incomoda. Sempre achei a modéstia uma qualidade superestimada. (PORTO, 2014, p. 11-12)

Tal autoestima é evidente, e trabalha em conjunto a outras informações, como sua mania por limpeza – “Sou um pouco maníaco por limpeza. Digo ‘um pouco’ porque acredito que minha mania está sob controle” (PORTO, 2014, p. 57) –, para a construção da personalidade de Armando, cuja ‘mania por limpeza’ funciona simbolicamente como uma representação pela sua mania de querer resolver tudo, ‘limpar’ tudo, que é o que o impulsiona a descobrir o que aconteceu com Sergio, ‘limpando’ essa história toda, de alguma maneira. Armando é extremamente sóbrio, consciente de si mesmo. Ele se conhece mais que a ninguém e, para ele mesmo, sabe admitir coisas como a sua obsessão desenfreada. Afinal de contas, quando ele descobre que seu paciente, cujo caso nunca foi terminado, está morto, ele assume a sua obsessão:

Tornei-me obsessivo. Por horas a fio, eu compunha uma série de cenários para a morte de meu ex-paciente. Sonhava com assassinos, com quedas de janelas, com a cara de medo de Sergio, vestido de chef de cozinha, com a cabeça sangrando, coberto de neve, no quintal de sua casa. (PORTO, 2014, p. 63)

Com o desvendar do mistério da morte de Sergio Y., Armando descobre que seu ex-paciente foi assassinado em Nova York, onde vivia uma vida feliz, agora como Sandra. Ele se sente parcialmente culpado pela morte de Sergio/Sandra, tanto por não ter diagnosticado sua transexualidade, como também por ter, de alguma forma, ‘sugerido’ que ele fosse para Nova York. Desse modo, a culpa de Armando se materializa na forma de suas mãos sujas de sangue: “Sentia sangue nas palmas, nas unhas, entre os dedos. Sob a água da torneira, com muito sabonete, fui aos poucos conseguindo retirar aquele sangue imaginário” (PORTO, 2014, p. 62) e, mais uma vez, o personagem reconhece o seu conflito psicológico: “Eu sentia que não estava conseguindo lidar sozinho com o conflito psicológico e a culpa que as circunstâncias da morte de Sergio haviam desencadeado em mim” (PORTO, 2014, p. 73).
Talvez o que mais angustie Armando, e isso é importante, seja mais do que o fato de Sergio ter morrido, ou uma vida ter sido tirada tão cedo (embora ele lamente isso profundamente), mas o sentimento de desconstrução da imagem que ele tinha de si mesmo. O ‘melhor médico da cidade’ falhou epicamente, e isso o angustia e o entristece, porque ele é obrigado a encarar uma realidade na qual não está, necessariamente, no pedestal em que sempre se colocou. Ele precisa, definitivamente, assumir a culpa por um erro que não se julgava capaz de cometer, e isso, a morte de Sergio e sua culpa, o transforma:

Eu me havia tornado uma pessoa mais medrosa e um médico menos comprometido. A morte de Sergio Y. me havia tornado pior. / Passei a carregar uma culpa nos ombros e uma tristeza no coração que eu não queria que ninguém identificasse. […] Sergio foi a minha grande falha profissional. Acho que nunca errei tanto com nenhum outro paciente como errei com ele. (PORTO, 2014, p. 78)

É dessa forma que, tentando retomar a sua sobriedade que é uma interessante mescla de sua humanidade e sua profissão, Armando tenta resolver aquilo que tanto o angustia e atormenta – e busca a resolução do caso de Sergio indo até Nova York, conhecendo a médica que o tratou lá e acompanhou todo o processo de ‘nascimento’ de Sandra, encontrando barreira para a sua rendição definitiva toda vez que sua excelente prática profissional é ressaltada, como quando ela agradece ‘tudo o que ele fez por Sergio’ e explica que ele nunca teria ido para Nova York e feito a cirurgia se não fosse por ele. Ele é constantemente elogiado por um trabalho que não sabe ter feito, e tem dificuldade para assumir sua falha – “Minha vaidade me impedira de mostrar minha ignorância” (PORTO, 2014, p. 108).
A transformação definitiva de Armando acontece próximo ao fim do livro, em um momento humanístico em que ele finalmente se rende a Cecília e confessa sua falha, explicando a ela:

A morte dele me pegou totalmente de surpresa. Mas surpresa ainda maior que a de sua morte foi a de que ele fosse transexual, de que existia uma Sandra entre nós. Nunca diagnostiquei nada. Nunca percebi nada. Cometi um erro médico. (PORTO, 2014, p. 112)

É ao se assumir para outra pessoa, que não ele, como falho que Armando passa por um interessante crescimento e amadurecimento, além de, finalmente, libertar-se de toda a culpa e peso que carregava por guardar e investigar esse segredo. Ele supostamente escreve Sergio Y. vai à América (afinal, ficcionalmente, Armando está escrevendo o livro, narrado em primeira pessoa) como um desabafo final e uma maneira de colocar a história de Sergio Y./Sandra Yacoubian no passado, e assegurar-se, por fim, de que Sandra foi feliz, independente de sua morte.

2.2 Sergio Y. x Sandra Yacoubian

O personagem de Sergio Y. é mencionado pela primeira vez na obra, antes de o conhecermos, quando a diretora de sua escola o encaminha para Armando, e conhecemos o que é dito sobre ele: “[…] ela dizia que um aluno de dezessete anos, ‘articulado, inteligente e confuso’, me procuraria. Segundo ela, seria um ‘caso interessante’” (PORTO, 2014, p. 17). Durante as primeiras consultas de Sergio e Armando, temas relacionados ao seu avô, Areg, à busca da felicidade e o sentimento de infelicidade que acompanha o rapaz são colocados em evidência. Sergio Y. sente-se infeliz, incompleto, mesmo que Armando não possa entender o motivo, mas garante que o rapaz era fiel a seus sentimentos de infelicidade; no entanto, o inconformismo ainda existente, e foi tal condição que o fez procurar ajuda:

Considerava-se infeliz, sem que, no entanto, isso fosse perceptível. Era sóbrio. Sua tristeza não transparecia. Se não professasse seus sentimentos, ninguém saberia de nada. Jamais levantaria suspeitas. / Acredito que essa sua sobriedade em relação ao que sentia era a expressão de uma alma precocemente madura. Não negava sua condição infeliz. Ao contrário: reconhecia-a, mas a rechaçava, fugia dela, tentava derrotá-la. Ter procurado a terapia era evidência disso. No entanto, não a exibia publicamente. (PORTO, 2014, p. 29)

Motivado pelas suas recordações de coisas que seu avô Areg dizia, Sergio Y. entende a necessidade de ele mesmo tomar iniciativa em busca da felicidade, afinal de contas, “[…] a felicidade existe. Vão atrás dela, mesmo que para isso vocês tenham de fazer uma coisa nova, que nunca imaginaram fazer. A felicidade vem da coragem de fazer algo novo. A felicidade existe.” (PORTO, 2014, p. 40). Desse modo, transexual, encontrando em Armando a ajuda necessária que o médico nem sabe ter proporcionado, “[…] Sergio cruzou um oceano para encontrar felicidade em Sandra” (PORTO, 2014, p. 114), mudando-se para Nova York onde passou por todo o processo de readaptação do sexo.

Foi assim que descobri que Sergio Y. e Sandra Yacoubian eram a mesma pessoa. Ou melhor, que eram derivações distintas de um mesmo corpo. Sergio, que havia adquirido cidadania americana graças a um visto de investidor, solicitara em agosto de 2009 a mudança formal do seu nome e gênero a um tribunal de Manhattan, que reconheceu o pedido e autorizou a mudança. A justificativa para o pedido era ‘transexualidade’. (PORTO, 2014, p. 66)

Independente de todo o processo que se desencadeia em Nova York (a consequente morte de Sandra Yacoubian), é interessante ressaltar que, mesmo que o leitor não chegue a conhecê-la em nenhum momento, as informações recebidas a seu respeito nos informam a respeito de sua profunda felicidade. Como Sandra, finalmente ela foi feliz. Duas passagens da mãe de Sandra Yacoubian exemplificam essa afirmativa; a primeira quando ela diz a Armando que “Do nada, ela me disse: ‘Mamãe, eu nunca achei que chegaria a ser tão feliz quanto agora’.” (PORTO, 2014, p. 175); e a segunda nas últimas palavras do livro, quando a mãe diz, também a Armando: “‘O senhor não chegou a vê-lo, mas, acredite em mim, se a visse, sentiria orgulho’” (PORTO, 2014, p. 175, grifo nosso) – interessante notar o uso dúbio de ambos os gêneros em uma mesma frase.

3. A FAMÍLIA E A SOCIEDADE EM SERGIO Y. VAI À AMÉRICA

Como já mencionado anteriormente, a família de Sergio fazia parte da alta sociedade paulista e, por esse motivo, zelava pela imagem patriarcal construída historicamente: “Confesso que até gostei que ele fosse fazer o tratamento fora do Brasil. A gente tem evidências nos negócios. A situação podia ser explorada pela imprensa, ficar pública. Não seria bom para ele. Não seria bom para ninguém” (PORTO, 2014, p. 157). Por esse motivo, Sergio não assumiu sua identidade em São Paulo, mesmo identificando-a muito cedo: “Sandra lhe contara que, aos doze anos, ao ler um artigo sobre transexualidade em uma revista, deu-se conta de que poderia ser transexual. Foi assim que identificara o que sentia em relação ao próprio corpo” (PORTO, 2014, p. 105)
Mas Sergio tinha consciência e sempre em sua terapia deixava clara a tristeza, a infelicidade que era sua vida e o quanto se orgulhava do avô que teve coragem de ultrapassar barreiras, construir uma nova história e encontrar a alegria de viver. O exemplo que tinha na família conciliou-se com a de Angelus e possibilitou a quebra do silêncio, mesmo sem muita receptividade, afinal de contas, “Ela tentou falar com os pais, mas eles ficaram constrangidos” (PORTO, 2014, p. 105).
Ratificamos aqui a resistência da família em aceitar Sergio e sua individualidade. A mãe carregava nos ombros a pressão social de dar à sociedade filhos que atendessem às expectativas sociais e o sentimento de culpa a perturbava: “Quando soube da sua transexualidade, meu primeiro pensamento foi de fracasso. Eu gerava coisas imperfeitas, incompletas. Meu ventre não era profícuo. Era mal-acabado, sub-humano, pensei” (PORTO, 2014, p. 174).
A dicotomia da opinião do pai sobre a transexualidade do filho é bastante interessante, e torna-se importante avaliar o sentimento paradoxal dele em relação ao filho. Primeiramente, o pai não aceita e assume o quão difícil foi ouvir dele que ele era transexual, que queria ir para Nova York, onde poderia viver como uma mulher e fazer a operação de troca de sexo, relatando com dor o momento em que o vê vestido de mulher pela primeira vez: “Foi horrível quando o vi vestido de mulher. Tive vontade de arrancar aquelas roupas dele, de reencontrar meu filho debaixo daquelas roupas, daquelas unhas pintadas, mas não fiz nada. Absolutamente nada” (PORTO, 2014, p. 157).
Com toda a dor expressa do pai, ele define seus sentimentos como uma mistura apavorante de amor e ódio, mesclando seu preconceito e intolerância com um amor que não podia deixar de sentir, concluindo que “[…] depois que se transformou em Sandra, Sergio foi feliz. Era alegre, tinha amigos. Como mulher, encontrou felicidade” (PORTO, 2014, p. 158). Com isso, o pai de Sergio/Sandra pode chamá-lo de filho novamente, pode reconhecer que o amava e que o fato de vê-lo feliz, independente da forma, também o deixava feliz: “Ele foi feliz, e isso me tranquiliza, me dá paz” (PORTO, 2014, p. 158).
Mesmo a mãe reconhecendo a felicidade de Sandra e sendo conivente a todo o tratamento, a aceitação era mascarada. “Depois que ele morreu, deixei de chamá-lo de Sandra. Salomão fez a mesma coisa. Para a gente, Sandra era Sergio. O nome de quem pari era Sergio...” (PORTO, 2014, p. 174). Desta forma, percebemos porque a obra de Porto nos remete com tanta verossimilhança à sociedade, o preconceito é mascarado por uma falsa aceitação, um faz de conta de que as políticas sociais estão incluindo os transexuais e demais minorias, porém estes continuam marginalizados.

4. A TRANSEXUALIDADE EM SERGIO Y. VAI À AMÉRICA: LEITURAS SOCIAIS

Segundo Compagnon (2001), a relação entre Literatura e realidade sofreu uma expressiva transformação ao longo dos séculos. Inicialmente aclamada quanto melhor representasse o real, logo a análise literária orientou-se no sentido drasticamente oposto: a interpretação de uma obra devia limitar-se apenas ao âmbito de sua própria estrutura. Menos drástica, a perspectiva predominante na atualidade considera que, embora não possa reduzir-se a leitura do texto literário às condições sociais de seu entorno, considerar a Literatura como fragmento do real mediado, pela ficcionalidade e pela forma, contribui tanto para os estudos literários quanto para uma percepção mais holística da experiência humana. Sobre isto, expõe Filho

[...] no texto literário, se configura uma situação que passa a ‘existir a partir dele como tal e que caracteriza uma apreensão profunda do ser humano e do mundo, a partir de tensões de caráter individual. (Filho, 2007, p. 32.)

O livro Sergio Y vai à América, de Alexandre Vidal Porto, aborda, dentre outros temas, o da transexualidade, dessa maneira convidando o leitor a uma reflexão sobre o assunto. Pois, diz Compagnon (2009, p. 26), a literatura é um “exercício de reflexão” e “responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo”. Ainda, embora a interpretação e percepção de um texto sejam peculiares de leitor para leitor, há elementos objetivos dispostos na obra pelo autor, os quais não podem ser ignorados. (Jouve, 2012)
Voltar o olhar para a maneira como a transexualidade é tratada torna a leitura de Sergio Y vai à América mais rica, e faz-se apta a desvelar inúmeras possibilidades do texto. Nesse sentido, as angústias de Armando referentes à incapacidade de “ver” poderiam ser uma metáfora da maneira como a sociedade percebe a disforia de gênero. Oscilando entre a visão usualmente preconceituosa da população leiga e a perspectiva dos profissionais da saúde, o livro de Alexandre Vidal Porto desvelaria a existência de prejulgamentos, inclusive dentro do ambiente que seria voltado ao atendimento médico e psicológico dos transgêneros.
A isto corrobora o fato de a transexualidade ainda encontrar-se classificada como doença na literatura médica. Quanto a isto, Oliveira diz que

A transexualidade, ainda atualmente é considerada pelos cânones da medicina e da psicologia como uma doença, sendo catalogada tanto no DSM IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da APA (Associação de Psiquiatria Norte-Americana) quanto no CID-10 – Código Internacional de Doenças, classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde) (OLIVEIRA, 2013, p.1)

Suscitam-se, a partir disto, inúmeros questioidntos. Seria possível a compreensão e auxílio humanizado para as pessoas trans quando sob estes recai o rótulo de “doentes”? Poderia a identidade trans limitar-se a uma lista de sintomas? Oliveira (2013), ao expor os critérios de diagnóstico da transexualidade adotados no Brasil, critica:

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina nomeia a transexualidade como doença e aponta quais as cirurgias e quais os tratamentos hormonioterapicos viáveis, bem como define os critérios para o diagnóstico da mesma, através da sua resolução n. 1652/2002. Este documento e base para a portaria n. 1.707, de 18 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde a qual estabelece o Processo Transexualizador no domínio do SUS. Mais recentemente, o CFM publica a resolução n. 1955/2010, a qual retira do caráter experimental algumas das cirurgias direcionadas aos homens transexuais, como a mastectomia e a histerictomia, embora permaneçam as neofaloplastias e a metoidioplastia (ambas a técnicas cirúrgicas para a construção de uma genitália masculina). Esta hegemonia na forma de conceituar a experiência transexual não surge de forma imparcial, sem levar em conta os valores morais da cultura heteronormativa (OLIVEIRA, 2013, p.3)

Ressalta-se que, por meio de tais indagações, não se visa prescindir da medicina ou negar que esta possa beneficiar ao indivíduo trans. Conforme menciona Perrone-Moisés (2006), a literatura revela o que falta ao mundo ao evidenciar as mazelas deste, dentro da narrativa. Mediada pela forma, a qual lhe confere força, a obra literária faz-se capaz de discorrer poderosamente sobre o preconceito velado que, ainda, permeia nossa sociedade.
No âmbito da narrativa de Porto (2014), o doutor Armando representaria toda a expectativa social e a soberba do pensamento acadêmico, cujo diagnóstico não-realizado da transexualidade de Sergio é vista como uma falha profissional. Conforme expõem sociólogos como Stuart Hall e Zygmunt Bauman, compreender a estruturação da identidade é algo complexo, inexistindo “fórmulas” hábeis a captar todas as suas dimensões. Dessa maneira, o Armando não compreendeu Sergio como transgênero, pois este aspecto far-se-ia incongruente com a identidade de “jovem de classe alta”.
Quanto a influência do gênero na identidade, a filósofa americana Judith (2008) ressalta que “gênero” se distingue de sexo, sendo aquele “a identidade chave para a configuração dos sujeitos, sendo ele fator que qualifica a vida desses sujeitos no interior da inteligibilidade cultural”. (Quintela, 2013)
Ainda, referente à identidade hegêmonica hodieridnte, Oliveira ressalta que “[...] a hierarquia máxima esta destinada a homens (nascidos com a genitália tida como masculina), brancos, heterossexuais, monogâmicos, sem nenhuma deficiência (física ou mental), não empobrecidos, jovens, cristãos, ocidentais”. (OLIVEIRA, 2013, p.4). Sergio, logo Sandra, tem boa aparência, educação, status social e é transgênero. Incorpora muitas das características consideradas “desejáveis”, portanto a personagem desconstrói a concepção de transexual que predomina em nossa sociedade, associada aos ambientes e trabalhos periféricos. Ativista da causa LGBT e homossexual, Alexandre Vidal Porto revelou em entrevista que desejava, através de Sergio Y. vai a América, escrever sobre algumas das incertezas e dificuldades que vivenciou e que, pensa, devem ser discutidas a fim de superar a discriminação.
Embora a obra literária não possa ser reduzida ao sentido intencional, este é elemento que compõe o sentido manifesto (Jouve, 2012) e, portanto, faz-se relevante conhecer a finalidade que o autor desejava alcançar com sua obra. Pois

A criação de mecanismos de reconhecimento em nossa sociedade se faz necessário, reconhecimento esse que está para além apenas da questão jurídica e médica, mas um reconhecimento que se construa nos relacioidntos íntimos dos indivíduos, fruto de práticas sociais e de uma educação que respeite a diferença e entenda que exista diversas possibilidades identitárias. (QUINTELA, 2013, p.10)

Em Sergio Y. vai a América nota-se que o texto literário é capaz de sensibilizar o leitor (Candido, 2004), o qual pode conduzir a transformação deste e, em consequência, de seu meio. E, conforme exposto quanto ao tema da transexualidade urge a desconstrução dos valores hegemônicos de nossa sociedade os quais oprimem as pessoas transgênero. “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia” (Candido, 2004, p. 175). A morte da personagem Sandra, de uma banalidade inquietante, também poderia trazer um paralelo da destruição, real ou simbólica, que a pessoa trans experimenta em seu cotidiano.
Embora existam iniciativas relevantes referentes à transformação da visão preconceituosa da transexualidade, tal qual a campanha Stop Trans Pathologization, de 2007, de alcance mundial, a ausência de destaque do tema da despatologização na 10ª Reunião da CISLGBT (Oliveira, 2013) é apenas um dos muitos exemplos que demonstram que ainda é reticente conferir voz à população trans a fim de que esta exponha as dificuldades que enfrenta quanto à transidentidade.
Ressalta-se, ainda, que por meio da obra metaliterária Angelus: the story of our father, Porto (2014) retrata de maneira sensível o transexual masculino, o qual, segundo Oliveira (2013), em razão de seu reduzido acesso ao processo transexualizador do SUS, vivencia o paradoxo de ter de considerar-se portador de patologia. Ademais, a história do personagem de metaficção Angelus demonstra que a transidentidade existe e sempre existiu, dessa maneira corroborando à necessidade de percebê-la como possibilidade – e não patologia – da condição humana.
O autor Calvino (2009) destaca que o texto literário é “território de disputa”, onde cabe ao leitor o direcioidnto do adquirido durante a leitura. Embora a narrativa de Sergio Y. vai à América apresente as qualidades literárias já mencionadas em tópicos prévios, seu conteúdo, acredita-se, pode levar o leitor a uma postura mais crítica e, em decorrência, evidenciar a necessidade do questioidnto daquilo que não condiz a uma sociedade igualitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise da obra Sergio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto, percebemos que a obra cumpre seu papel literário ao possibilitar reflexões, despertar sentimentos e instigar novas discussões a respeito de uma questão social, ainda não aceita em nossas relações e pouco discutida. Com uma linguagem conotativa, que utiliza-se da verossimilhança para representar o real e refletir sobre ele, a obra literária consegue, por exemplo, tecer críticas à suposta aceitação, compreensão e entendimento da transexualidade, mas que por fim só reforça o preconceito propriamente dito, de forma velada. Desse modo, a obra atende também a uma expectativa individual do leitor, possibilitando o conhecimento da transexualidade, desde a sua identificação até a concretização por meio da cirurgia de mudança de sexo, tornando-se, assim, ela mesma um paralelo à obra metaliterária apresentada por Porto, Angelus.
É importante ressaltar que um dos aspectos mais impactantes da obra é a relação íntima dos familiares com a personagem transexual, que de forma controversa trazem toda a questão da expectativa social de um estereótipo de família, funções de gêneros em contraponto ao amor dos pais e a aceitação, independente da sociedade. No entanto, também percebemos a intensa representação da necessidade humana de pertencimento e consequente busca por felicidade. Assim, a transexualidade também funciona como uma simbologia, capaz de representar os obstáculos individuais de cada leitor em suas respectivas buscas pela felicidade, enfrentando os desafios postos pela sociedade, seja por meio do preconceito ou expectativas individuais e coletivas, concretizando, assim, o papel da literatura como propulsora de transformações sociais.
Por fim, a obra literária cumpre sua função social de trazer à tona a necessidade de discussões e transformações em relação aos próprios direitos humanos, um dos objetivos propostos pelo autor ao escrever Sergio Y. vai à América. Notamos que ainda há um longo caminho a ser percorrido em relação à transexualidade no que concerne a saúde, visto que ela ainda é tida como uma patologia. O processo de despatologização enfrenta desafios, mas não deixa de ser necessária. Ainda assim, concluímos que a primeira problemática a ser resolvida é a questão do preconceito que os transexuais ainda enfrentam, sendo sua inclusão no mercado de trabalho (e na sociedade) essencial para que tenham seu direito de pertencimento assegurado, como os demais cidadãos.

REFERÊNCIAS

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BUTLER, Judith. Problema de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008.

CALVINO, Italo. Para quem se escreve? (A prateleira hipotética). In: Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: __________. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.

_________________. O direito à Literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

____________________. Literatura para quê? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

 

FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. 8a ed. São Paulo: Ática, 2007.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

OLIVEIRA, André Lucas Guerreiro. Os homens transexuais brasileiros e o discurso pela (des)patologização da transexualidade. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 10, Florianópolis, 2013. Disponível em <http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384804329_ARQUIVO_AndreLucasGuerreiroOliveira.pdf> Acessado em 19 de ago. 2016.

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PORTO, Alexandre Vidal. Sergio Y. vai à América. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

QUINTELA, Hugo Felipe.  Navalha na carne: o não reconhecimento da transexualidade e suas consequencias. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 10. Florianópolis, 2013. Disponível em <http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384892204_ARQUIVO_HugoFelipeQuintela.pdf> Acessado em 19 de ago. 2016

ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, A. et al. a personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.

WOOD, James. Narrando. In: ____________. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

*Mestranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela UNIOESTE lisabertotti@hotmail.com
Jefferson Jonathan dos Santos **Mestrando em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela UNIOESTE jejonathan@yahoo.com.br
Melissa Salinas Ruiz ***Mestranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela UNIOESTE m__salinas@hotmail.com
1 Informações retiradas do site oficial do autor. Disponível em: http://www.alexandrevidalporto.com/ Acessado em: 24 de ago. 2016.


Recibido: 21/11/2017 Aceptado: 19/12/2017 Publicado: Diciembre de 2017

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