Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


O SUJEITO E A FORMAÇÃO GRUPAL: O funcionamento psíquico e simbólico dos grupos

Autores e infomación del artículo

Carla da Conceição Mores Gastaldin *

Ivo José Dittrich **

UNIOESTE, Brasil

carla.gastaldin@unila.edu.br

Os grupos são entes que mediam, desde o nascimento, a vida pessoal dos indivíduos, e são por esses criados, geridos e transformados. Um grupo não é uma mera reunião de indivíduos autônomos, pois possui uma dinâmica própria de funcionamento, formas particulares de representação, um imaginário comum e ligações afetivas que determinam sua existência e andamento. Todo grupo possui formas de representar a si mesmo, frente aos outros, e aos próprios membros. São através das manifestações e dos ritos os grupos visam diferenciar-se dos demais, estabelecendo uma linha que determina o pertencimento a uma ordem. Todo grupo possui uma mensagem a comunicar (cujo líder é o porta-voz legítimo) e se reúne em nome de um projeto comum, o qual pretende fazer conhecer e reconhecer. O laço mútuo existente entre os membros de um grupo está baseado numa importante qualidade emocional comum: a ligação subjetiva com o líder. O líder ocupa um lugar privilegiado na economia psíquica dos grupos, e a sua fala concentra todo o capital simbólico acumulado pela coletividade que ele representa.

Palavras-chave: Grupo, Vínculo, Funcionamento Psíquico, Capital simbólico, Líder.

 


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Carla da Conceição Mores Gastaldin e Ivo José Dittrich (2017): “O sujeito e a formação grupal: o funcionamento psíquico e simbólico dos grupos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/sujeito-formacao-grupos.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704sujeito-formacao-grupos


INTRODUÇÃO

            Este artigo visa percorrer brevemente os caminhos através dos quais o ser humano encontra-se com o social, especialmente no que tange a sua inserção nos grupos. Nessa trajetória a cultura aparece como elemento fundamental na construção da leitura que o indivíduo faz sobre o mundo. Da mesma forma, os diferentes grupos aos quais o sujeito faz parte durante a vida permitem-lhe construir a sua história, onde o “outro” ocupa um papel fundamental.
            No cenário de interação entre o sujeito e a cultura, a linguagem aparece como o meio através do qual o indivíduo se insere na dimensão social, compartilhando códigos comuns com os outros sujeitos. A linguagem funda o poder simbólico a partir do momento em que a fala de um indivíduo passa a ser reconhecida pelos outros, ou seja, quando adquire um significado social. Isso mostra que é o “outro” quem atribui significado às palavras, e assim fazendo, confere significado ao mundo.
            O artigo percorre os efeitos transformadores que o grupo opera sobre os indivíduos, e mostra como o funcionamento grupal está organizado em torno do afeto existente entre seus membros, em especial, deles para com o líder.
            A figura do líder aparece como protagonista da vida psíquica dos grupos, sendo ao mesmo tempo o modelo e o porta-voz das aspirações grupais, além de unificar o grupo pelo efeito que possui também na ligação entre os membros. O texto trabalha, ainda, sobre a competência linguística necessária para ocupar o papel do líder, bem como as características que levam ao reconhecimento deste por parte de um grupo.
            Após apontar brevemente os caminhos que um grupo pode tomar ao longo da sua história, fala-se na dificuldade do ser humano de viver em sociedade, apesar do papel fundamental que esta ocupa em sua constituição. 

DESENVOLVIMENTO

            Ao questionar-se sobre a importância do elemento social na vida de um indivíduo, logo nos deparamos com o fato de que todo ser humano nasce irremediavelmente dependente e, portanto, precisa de um outro para sobreviver. A vida social está presente para qualquer pessoa através da família, da nação, de uma instituição ou grupo, que em dado momento de sua existência ocupa um importante papel na sua constituição como sujeito.
            Para o sociólogo Eugéne Enriquez  (1994, p.25), o indivíduo só existe dentro de um social dado e de uma cultura que desenvolve suas significações imaginárias, o que configura uma anterioridade dos processos sociais. Assim, pode-se pensar que cada pessoa desenvolve a si mesmo a partir de um social que a ajuda a construir uma leitura sobre o mundo a seu redor. Tal leitura passa inevitavelmente por aspectos acumulados por dada cultura, que atravessam gerações e prescrevem maneiras de ser, pensar e agir.
            Segundo Kaës,
“O grupo é o paradigma do conjunto intersubjetivo no qual se constitui essa parte de cada um que o faz tornar-se sujeito de uma malha de outros. Esclareço: de mais de um outro e de mais de um semelhante. O grupo cumpre funções fundamentais na estruturação da psique e na posição subjetiva de todas as pessoas. Nascemos para o mundo já como membros de um grupo, ele próprio encaixado em outros grupos e com eles conectado. Nascemos elos no mundo, herdeiros, servidores e beneficiários de uma cadeia de subjetividades que nos precedem e de que nos tornamos contemporâneos: seus discursos, sonhos, seus recalcados que herdamos, a que servimos e de que nos servimos, fazem de cada um de nós os sujeitos do inconsciente submetidos a esses conjuntos, partes constituídas e constituintes desses conjuntos”. (Kaës, 1997, p.106)

            Nessa perspectiva o grupo aparece como sendo um lugar, um espaço, onde o sujeito pode vir a ser, através do entrecruzamento com outros, das trocas intersubjetivas que fazem parte da dinâmica psíquica dos grupos. Fator importante presente nos grupos é a possibilidade ampliada de troca, por favorecer o contato com mais de um indivíduo simultaneamente. Em meio ao outros o indivíduo se constitui subjetivamente, herdando as experiências acumuladas por dada cultura.
            Nascendo dentro do grupo familiar, o indivíduo incorpora significantes que foram sendo apropriados pela família e pelos grupos maiores que a sucedem, como o de uma região, uma nação, um povo ou uma descendência. Cada sujeito herda de vários grupos uma história que o precede e o ultrapassa, história essa povoada de sonhos e discursos, que chegam até ele ao longo da vida através de diversos tipos de linguagem. O que Kaës explica é que o inconsciente individual é portador e veiculador de uma experiência apropriada por um povo, de forma tão longínqua e difícil de determinar que pode-se mesmo dizer que todas as pessoas são herdeiras de uma experiência acumulada pela humanidade.
            Assim como inserir um indivíduo em uma cultura é sinônimo de ensinar, moldar e limitar, ao mesmo tempo é muní-lo de valores, costumes e de uma história que o faz sujeito único, articulando-o com o social (Monteiro, 2001). A história é importante para situar o indivíduo no mundo, formar sua identidade e tornar sua existência real para ele mesmo e para os outros.
            Em 1921 Freud escreve o livro “Psicologia de Massas e Análise do Eu” (p.2), onde explica que há sempre (e invariavelmente) um “outro” envolvido na vida mental de um indivíduo, o qual é tomado como objeto de afeto, auxiliar, oponente ou modelo, de tal forma que todas as relações que o indivíduo estabelece pela vida devem ser tomadas como fenômenos sociais. Ao afirmar que toda psicologia individual é também uma psicologia social, Freud aproxima a dimensão individual da social, mostrando ser frutífero o transporte da Psicanálise para a comunidade social (Machado e Roedel, 2004, p.12). 
Para Pierre Bourdieu (2008, p.42-43), a língua é o fator que insere os sujeitos nos universos sociais, já que os locutores precisam de uma competência linguística capaz de gerar aceitabilidade social nos grupos onde essa competência é exigida. Assim, fazer parte de um universo social onde se pode fazer trocas, comunicar-se e ser compreendido, exige que o indivíduo se conforme às regras de um código comum, o qual está presente na forma de todo tipo de linguagem: corporal, falada e escrita. Ser membro de uma cultura ou sociedade implica ser capaz de partilhar as significações pertencentes a esse código comum, inserindo-se num mercado de trocas simbólicas.
Bourdieu (2008, p.109) parte do princípio de que todo poder simbólico exercido entre indivíduos é fundado no reconhecimento, de forma que um enunciado somente produz a existência do que enuncia a partir do reconhecimento que um “outro” possa conferir às palavras. Esse ponto de vista ressalta a importância do “outro”, enquanto membro da comunidade humana, na construção partilhada das significações, já que é preciso que o que foi falado faça sentido para quem escutou.
Embora as significações imaginárias (termo usado por Enriquez) estejam sempre apoiadas na cultura, já que foram construídas nas interações com os outros (na família, na escola, nas instituições ou em outros grupos), é surpreendente notar que um indivíduo pode sentir, pensar ou agir de forma inesperada (incomum), quando está incluso no que Le Bon chamou de ‘grupo psicológico’:

“A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é  a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõe (...) o fato de haverem se transformado num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem ou que não se transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo” (Le Bon, 1995).

Segundo Le Bon, o grupo seria dotado de uma mente coletiva, a qual é transformadora da forma pela qual o indivíduo se vê, pensa e se coloca frente ao mundo social. Tomado por uma espécie de mente grupal, o indivíduo tenderia a transformar os sentimentos mais fortes em atos, já que no grupo ele adquire o sentimento de um poder invencível por partilhar a responsabilidade de suas ações com outras pessoas. É preciso coragem para levar a cabo a realização de certos impulsos, tarefa muito facilitada quando se está imerso em um grupo, especialmente aqueles cujo nível de excitabilidade atinge um alto grau, capaz de diminuir a repressão dos impulsos de natureza antissocial.
Em consonância ao que foi mencionado, Le Bon aponta que na situação de grupo a ansiedade social, responsável por dirigir em grande parte a consciência, desapareceria. Com isso haveria a diminuição da repressão, permitindo que venham à tona os impulsos instintuais inconscientes, o que sugestiona os outros membros do grupo para agirem da mesma forma (FREUD, 1921, p.4). Dessa maneira, todo sentimento e ato dentro de um grupo pode ser considerado ‘contagioso’, de maneira que o interesse pessoal pode ceder completamente seu lugar ao interesse da coletividade, já que a imersão em uma situação coletiva convoca o indivíduo a aderir à mente grupal.
Freud compara a influência do grupo sobre o indivíduo ao trabalho do hipnotizador sobre o hipnotizado, o qual pode ser sugestionado a realizar atos com irresistível impetuosidade. Por isso Freud pensa o grupo como crédulo, sem faculdade de julgamento, incapaz de sentir dúvidas e com capacidade intelectual restrita, tal qual as crianças e os selvagens (Freud, 1921, p.5-6). Em geral, o grupo é portador de uma certeza inquestionável, que não está pautada na objetividade, pois dela ele nada quer saber.
Em Bourdieu (2008, p.38) encontra-se que o poder de sugestão exercido através das coisas e pessoas é o que garante a eficácia de todo poder simbólico. Desse ponto de vista pode-se pensar que toda a sugestionabilidade, a que estão vulneráveis os membros de um grupo, garante que entre eles circule e se compartilhe o capital simbólico acumulado, o qual se expressa nas crenças, nos ritos, no imaginário e na ideologia.
Ainda em Bourdieu, encontra-se o conceito de violência simbólica ligado ao discurso ideológico, já que este faria com que seus destinatários tratem a ideologia 'como ela exige ser tratada': que creiam nela sem faculdade crítica. Para esse autor “uma dada produção ideológica é tanto mais bem-sucedida quanto mais for capaz de desqualificar qualquer um que tente reduzí-la a sua verdade objetiva” (Bourdieu, 2008, p.151).  A isso equivale dizer que um grupo não quer ser questionado em sua ideologia, pois está repleto de certezas. Qualquer um que represente resistência às suas idéias, tentando “objetivizar” o seu discurso e buscar fundamentos racionais para suas ações, pode rapidamente virar alvo de impulsos agressivos por parte de seus membros.
Para Enriquez, “ódio ao exterior, amor mútuo, amor ao grupo enquanto grupo, sentimento de serem irmãos e de formarem uma comunidade de iguais, sentimentos de serem minoritários e portadores da verdade, são (...) as condições de constituição do vínculo grupal” (Enriquez, 1994, p. 61). Segundo o autor, é o ódio ao exterior que favorece o amor fraterno, e o grupo se apoia tanto em um quanto no outro para fazer triunfar seu projeto. Todo grupo religioso é um exemplo de como o amor é partilhado entre todos aqueles a quem abrange, ao passo que a intolerância e a crueldade é reservada aos que estão fora desse círculo (Freud, 1921, p.15).
Não há dúvida de que há uma ligação emocional forte dentro dos grupos, que faz com que os membros permaneçam unidos apesar das muitas diferenças individuais, em prol de um projeto comum. Todo grupo só se constitui em torno de uma ação a realizar, de um projeto ou uma tarefa a cumprir. O projeto comum é a condição primeira da formação de um grupo, pois significa que este possui um sistema de valores suficientemente interiorizado por seus membros e apoiado no imaginário social do grupo: existem representações coletivas sobre quem são esses membros, quem querem vir a ser e em que tipo de sociedade ou organização pretendem intervir (Enriquez, 1994, p.56).
Enriquez (1994, p.61) aponta que os grupos funcionam à base da idealização, da ilusão e da crença presentes no projeto comum. Este precisa possuir um caráter sagrado, de forma que se afaste dele todo tipo de julgamento objetivo, que poderia se configurar em um elemento desagregador para o grupo. Assim, a idealização, a ilusão e a crença conferem ao grupo a noção de ‘causa a defender’, o que permite que cada membro do grupo sinta-se como porta-voz de algo maior, que o ultrapassa (a ideologia do grupo). Daí à intransigência, a passagem é rápida: a inserção na mente grupal coloca a intolerância como meio necessário para que a concretização do projeto comum torne-se possível.
Para Bourdieu (2008, p.112) a tentativa de oficialização de um grupo encontra sua plena realização nos atos de manifestação, acontecimento tipicamente mágico através do qual o grupo - até então virtual, ignorado ou reprimido - pode tornar-se visível, tanto para os outros como para si mesmo. A manifestação seria a forma pela qual um grupo pretende atestar a sua existência, tornando-a conhecida e reconhecida, fazendo com que o mundo perceba a sua aura de originalidade como distinta de qualquer outra. O que confere essa aura de excepcionalidade é a mensagem que o grupo pensa ter a comunicar, aquilo que Enriquez chamou de 'projeto comum'.
Entretanto, parece interessante pensar que um indivíduo faz parte de um grupo não só porque quer realizar um projeto coletivo, mas sobretudo porque pensa que é com essas pessoas – e não com outras – que pode também se ver reconhecido em sua própria originalidade. Ao mesmo tempo é uma experiência agradável e compensatória entregar-se de forma irrestrita às paixões, fundindo-se em um grupo e, assim, atenuando os limites da própria personalidade.
Durante toda a sua “Psicologia de Massas” Freud pergunta-se sobre o vínculo que une os indivíduos ao grupo, e suspeita que haja algo mais envolvido no laço grupal além do amor entre iguais (membros do grupo), conforme havia sido mencionado por seus antecessores. Afirma o autor: “Já começamos a adivinhar que o laço mútuo entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação (…) baseada em uma importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder” (Freud, 1921, p.19).
Diferentemente de outras teorias, a freudiana enfatiza o laço emocional do grupo para com o líder, colocando esse laço como a principal característica partilhada entre seus membros. Além disso, ressalta que o traço libidinal partilhado é da natureza de uma identificação, segundo a qual os indivíduos colocam um só e o mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego: o líder. 
O que interessa aqui é particularmente a acepção empregada pela palavra identificação, que no dicionário aparece como 'ato de identificar-se': “tornar-se idêntico a; igualar-se; determinar a identidade de; reconhecer (…) partilhar das idéias e sentimentos de” (Houaiss, 2010, p.416). Identificação é, portanto, o ato através do qual um sujeito tenta se igualar a um outro ou transformar a própria identidade através da imagem desse outro, por meio de um processo que envolve emoção e compartilhamento de pensamentos e sentimentos comuns. Por isso Freud fala sobre a identificação do grupo com o líder: este é colocado ao mesmo tempo no lugar de porta-voz dos anseios e aspirações grupais e daquele modelo que se quer seguir, incorporar e igualar-se. A isso equivale dizer que o líder goza de um lugar de prestígio no grupo, o que faz com que seja colocado em um lugar de respeito e admiração, o qual lhe confere autoridade para agir e falar em nome daquela comunidade.
Em “A Economia das Trocas Linguísticas” Pierre Bourdieu (2008, p.63) busca a compreensão sociológica sobre a força 'ilocucionária' que existe no discurso daquele que detém a palavra para falar em nome de outros. Para ele, esse seria um agente singular que recebe um mandato para falar e agir em nome do grupo, tendo uma competência linguística legítima que lhe confere o 'poder pela palavra':
A “alquimia da representação (…) através da qual o representante constitui o grupo que o constitui: o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do grupo que existe somente por essa procuração. Grupo feito homem, ele personifica uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, 'como um único homem'. Em contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de 'se tomar pelo' grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele 'se entrega de corpo e alma', dando assim um corpo biológico a um corpo constituído (…) Ou então, o que dá no mesmo, o mundo é minha representação” (Bourdieu, 2008, p.83).

O líder seria então aquele sujeito que possui por procuração o direito e o poder sobre a palavra. Ele é a corporificação da palavra que representa o grupo, sendo o porta-voz da ordem vigente e detentor de um capital simbólico proporcional ao reconhecimento que recebe daquela ordem social. Esse é ao mesmo tempo seu privilégio e seu dever, pois o tratamento diferenciado que recebe tende a encorajá-lo a agir no grupo conforme tal essência, sob o peso dessa designação social. O líder consegue agir sobre os outros através das suas palavras, as quais concentram o capital simbólico acumulado ao longo do tempo pelo grupo, através de suas vivências e experiências. O porta-voz é na realidade o procurador da coletividade, o que significa dizer que ele possui a autorização para se pronunciar em nome dos outros: a mesma sentença sendo reproduzida por outra pessoa não possui a mesma eficácia e peso daquela reproduzida pelo líder. Um enunciado está condenado ao fracasso se proferido por uma pessoa que não possui delegação para pronunciá-lo (Bourdieu, 2008, p.89 e p.101).
Para Bourdieu, o uso da linguagem depende em grande parte da posição social do locutor, pois é o líder que comanda o acesso a uma instituição, seja ela um grupo, uma organização ou uma nação. Aí está onde deve ser buscado o poder simbólico das palavras: nas condições sociais em que se encontra aquele que pronuncia as palavras, de onde retira a sua força 'ilocucionária'.  Para Bourdieu, a autoridade de que se reveste a linguagem vem de fora: é a imposição de um nome, a instituição de uma identidade e de uma essência social, que confere ao líder uma competência que é ao mesmo tempo um 'direito de ser' e um 'dever ser'. Logo, espera-se do líder que ele aja conforme o 'cetro' que possui. Vale lembrar que tudo isso acontece através da linguagem, o que faz com que as trocas linguísticas sejam também relações de poder simbólico (entre um produtor e um consumidor do discurso) e signos de riqueza a serem apreciados, acreditados e obedecidos (Bourdieu, 2008, p.53, p.57, p.87 e p.100).
Na maioria dos grupos, em especial aqueles organizados, a ascensão de um líder depende de uma investidura que garante a eficácia simbólica da ocupação desse lugar. A investidura transforma a pessoa consagrada, ao transformar a representação que os demais membros possuem sobre ela, modificando assim os comportamentos que os outros adotam em relação a essa pessoa.  “A investidura (do cavalheiro, do deputado, do presidente, etc) consiste em sancionar e em santificar uma diferença (…) fazendo-a conhecer e reconhecer, fazendo-a existir enquanto diferença social, conhecida e reconhecida pelo agente investido e pelos demais” (Bourdieu, 2008, p.99).  O ato de consagrar alguém como líder oficial nada mais é que um julgamento de atribuição social, que visa o reconhecimento institucionalizado do poder investido a um dos membros do grupo, com vistas a torná-lo o porta-voz do discurso institucional. Geralmente o ato de investidura é realizado através de um rito, para que se faça reconhecer o líder como depositário de um mandato que lhe permite falar pelo grupo, e não somente em seu próprio nome (Bourdieu, 2008, p.93).
            Os ritos fazem parte de toda a vida dos grupos, pois não são utilizados apenas como forma de conceder a palavra de ordem ao líder: são nos rituais que os grupos representam a si próprios, renovam os laços mútuos, incluem novos membros na irmandade e delineiam uma linha divisória que faz reforçar a distinção entre os que pertencem e os que não pertencem a sua formação. Assim, o rito marca solenemente a passagem de uma linha que determina uma divisão fundamental da ordem social, pois ele consagra a diferença e dá o testemunho do pertencimento (Bourdieu, 2008, p. 97). A força do rito está na crença do grupo sobre o poder simbólico de tal ato, pois como já foi dito, todo poder simbólico está fundado no reconhecimento.
Tendo sido consagrado através de um rito que funda a legitimidade do lugar que ocupa, o porta-voz do grupo precisa ser ainda capaz de exercer sua autoridade sobre a coletividade. Freud lembra que o grupo respeita a força e é pouco influenciado pela bondade, a qual chega a encarar até mesmo como uma forma de fraqueza. Por isso exige de seus heróis (líderes/porta-vozes) que ajam com força (e, por vezes, violência), já que deseja ser dirigido, oprimido e 'temer os seus senhores' - além de ter aversão por inovações e um respeito ilimitado pelas tradições. Quem quer que deseje exercer influência sobre um grupo não precisa exatamente possuir lógica em seus argumentos, mas antes, precisa exagerar, 'pintar em cores fortes' e repetir diversas vezes as palavras de ordem. Isso porque os grupos não anseiam por verdade, exigem ilusões e não conseguem existir sem elas (Freud, 1921, p.6-7).
Se um grupo não pode passar sem ilusões, ele pode ser visto como um 'rebanho obediente' que não consegue achar-se sem um senhor. Por isso o porta-voz grupal só pode ser uma pessoa fascinada por intensa fé (a fim de despertá-la nos outros membros), que possua uma vontade forte e imponente, para suplantar a do grupo, que não tem vontade própria. Um grande líder acredita fanaticamente na idéia que prega e, possuindo prestígio entre as pessoas, paralisa suas faculdades críticas (Le Bon, 1995).
Parece claro até aqui a natureza da ligação que existe entre o grupo e os seus líderes, a importância que sua palavra detém sobre a economia psíquica e o mercado simbólico dos grupos. Dizer que o que une pessoas no grupo é o fato de partilharem um sentimento de identificação com o líder, equivale a alegar que o compartilhamento de tal traço produz também efeitos afetivos entre os próprios membros. Assim o intenso afeto e porque não dizer, o amor, aparece como elemento unificador do grupo, tanto ligando cada indivíduo ao líder quanto cada um aos demais membros. Tal elemento parece ser fator determinante da união grupal, já que do grupo fazem parte um número - por vezes elevado - de indivíduos diferentes em muitos aspectos.  O amor tem o poder de transformar o que seria um aglomerado de indivíduos em um verdadeiro corpo social.
O próprio Freud inúmeras vezes atribuiu ao amor um fator civilizador, concebendo-o como única força capaz de colocar freio ao narcisismo das pessoas.  Entretanto, as ligações afetivas verticais (em relação ao líder) e horizontais (entre os membros) presentes nesse tipo de formação humana explicam outro grande fenômeno da psicologia e sociologia de grupo: a falta de liberdade de um indivíduo numa situação grupal, o que faz com que as personalidades individuais sejam em muito restringidas pela formação de grupo (Freud, 1921, p.14 e p.26). O amor, portanto, não só permite o acesso às coisas, possibilitando que se partilhem representações coletivas/ideologias ou que se identifique com os outros seres humanos, mas ele também possui uma dimensão restritiva das paixões individuais.
            Enquanto há uma organização grupal ao redor da figura do líder, aparece na coletividade o sentimento de viver em irmandade com os outros.  O afeto pelo líder e o sentimento de conexão entre os irmãos se somam, produzindo um efeito libidinal forte que se reverbera nos grupos. Freud usa a igreja e o exército para mostrar como essas ligações afetivas são vivenciadas dentro de dois grupos organizados, e como o sentimento de possuir um líder (general e Cristo), que ama igualmente todos os seus subordinados/súditos, produz um laço forte entre os iguais. Surge um espírito de proteção, amor e comunhão entre irmãos, que faz com que a religião, por exemplo, torne-se tão importante na vida dos sujeitos: por que religa-os uns aos outros e a algo maior, protegendo os indivíduos da angústia e do desamparo ligados ao sentimento de solidão (Enriquez, 1994, p.70).
            Embora todas as características abordadas até aqui façam parte, em maior ou menor grau, da economia psíquica de qualquer grupo, é sabido que estes podem seguir em diversas direções, de acordo com a sua história, com o momento social e com a sua constituição interna. Obviamente o funcionamento grupal preservará sempre características fundamentais que ligam os indivíduos uns aos outros, e que dão sentido às formações coletivas. O amor pelo líder e pelos outros membros, os ritos, a existência de um projeto comum, a constituição de representações, do imaginário e de uma linguagem grupal, são algumas das características inerentes aos grupos que foram trabalhadas até aqui. O arranjo que existe entre esses (e outros) componentes é peculiar a cada formação e depende, como já foi dito, de muitos fatores.
            Para o sociólogo Eugene Enriquez (1994, p.63-64), ao longo da trajetória dos grupos, eles podem caminhar de forma a assemelhar-se cada vez mais a uma massa de pessoas, ou na direção da diferenciação. Os grupos tendem a reproduzir um comportamento de massa quando cada vez menos toleram a diversidade de condutas e pensamentos, quando há a degradação da reflexão e da inventividade, e quando as imagens e os comportamentos que predominam internamente são do tipo primitivo. Nesse tipo de formação, o grupo se torna o objeto de todos os investimentos afetivos de seus membros, deixando-os cegos e cobertos de certeza. Em contrapartida, os grupos também podem caminhar no sentido de admitirem em seu interior uma maior diferenciação entre os indivíduos, agindo com mais tolerância e cooperação. Ainda assim esses grupos serão repletos de conflitos internos, mas há uma chance maior destes serem encarados como uma forma de crescimento do grupo, como uma tensão permanente e necessária.
            Se o grupo necessita suportar uma tensão permanente é certamente em decorrência da complexidade inerente a todos os relacionamentos humanos. As diferenças e os afetos constituem-se ao mesmo tempo como elementos unificadores e dificultadores da existência em grupo. A interação entre o índividuo e o social é um labirinto que tem sido percorrido por diversos pensadores ao longo da história, e a discussão não se encerra nunca.
            Em “O Mal Estar da Civilização”, Freud aponta três fontes de sofrimento do ser humano, sendo a mais penosa delas o relacionamento que os homens detém uns com os outros:

“Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente – isto é, uma acomodação que traga felicidade – entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável”. (Freud, 1930, p.62-63)
           
            Apesar de nascer e se constituir no meio social, e somente através dele, tem sido penoso para o indivíduo encontrar uma forma satisfatória de viver em sociedade. Contudo, mesmo “o outro” sendo um oponente, ele é ao mesmo tempo objeto de afeto, auxiliar e modelo. Apesar do conflito fazer parte das vivências grupais, ele não deixa de ser parte constituinte da vida emocional de todos os seres humanos. Descobrir se há uma acomodação possível entre as exigências individuais e a necessidade de se viver em sociedade, conforme questionado por Freud, é uma tarefa árdua. Dão prova disso as guerras, o terrorismo, o holocausto, a miséria… mas não há dúvida de que humanidade persiste, à guisa de tantas tragédias pelas quais tem atravessado ao longo da sua história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Os grupos são entes que mediam, desde o nascimento, a vida pessoal dos indivíduos, e são por esses criados, geridos e transformados. Assim como na economia psíquica e simbólica das sociedades e dos indivíduos, a idealização, a ilusão e a crença também ocupam um papel fundamental na instauração e manutenção dos grupos. Um grupo não é uma mera reunião de indivíduos autônomos, pois possui uma dinâmica própria de funcionamento, formas particulares de representação, um imaginário comum e ligações afetivas que determinam sua existência e andamento.
             Num grupo, um indivíduo pode se comportar de forma bastante diversa daquela que faria isoladamente. Esse fato é atribuído à imersão dos sujeitos no que pode ser chamado de “mente grupal”, o que produz efeitos sobre o pensamento e a emoção dos indivíduos imersos em um grupo.
            Todo grupo possui formas de representar a si mesmo, frente aos outros, e aos próprios membros. Através das manifestações e dos ritos os grupos visam diferenciar-se dos demais, estabelecendo uma linha que determina o pertencimento a uma ordem.
            O laço mútuo existente entre os membros de um grupo está baseado numa importante qualidade emocional comum: a ligação subjetiva com o líder. O líder ocupa um lugar privilegiado na economia psíquica dos grupos, e a sua fala concentra todo o capital simbólico acumulado pela coletividade que ele representa. Uma mesma fala possui um valor e uma influência muito superior sobre o grupo, quando pronunciada por seu porta-voz. É no reconhecimento do grupo que se funda a autoridade do líder.
            Todo grupo possui uma mensagem a comunicar (cujo líder é o porta-voz legítimo) e se reúne em nome de um projeto comum, o qual pretende fazer conhecer e reconhecer. É através desse projeto que o grupo pretende ver-se reconhecido em sua originalidade.
            A dinâmica grupal pode mover-se na direção da diferenciação ou do comportamento de massa, conforme o grupo consiga lidar com as frustrações e com as diferenças, que são sempre fontes de angústia para o ser humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (BR). Especialista em Políticas Públicas para a Infância e Adolescência pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (2011).Possui os títulos de Psicólogo e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2005). Atualmente é Psicóloga do Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador na Universidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA. Atua principalmente nos seguintes temas: Saúde do Trabalhador, Psicologia Institucional, Psicanálise.

** Orientador de Mestrado, 2015ijdittrich@gmail.com


Recibido: 30/09/2017 Aceptado: 10/10/2017 Publicado: Octubre de 2017

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